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Como se constrói um corpo múltiplo: a praxiografia de um cenário médico contemporâneo

RESENHA

Como se constrói um corpo múltiplo: a praxiografia de um cenário médico contemporâneo

Vanessa Maia Rangel

Doutora pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (2009); Departamento de Política, Planejamento e Administração em Saúde. Endereço eletrônico: tufaha@terra.com.br

MOL, Annemarie.

The body multiple: ontology in medical practice.

Duham and London: Duke University Press, 2005. 196 p.

Mol, em seu livro The Body Multiple, apresenta uma abordagem teórica interdisciplinar crítica na qual a própria teoria é aplicada no propósito do texto. Isto pode ser reconhecido no modo de formatação da escrita, onde as abordagens teóricas aparecem como pano de fundo, em notas do texto principal. Nesta configuração, a autora confere importâncias desiguais para a teoria e a prática, na tentativa de subverter o alto capital simbólico da teoria nos textos acadêmicos. Mostra, assim, como se pode construir uma narrativa sobre a dinâmica da arteriosclerose, evidenciando seus contextos, seus agentes, seus corpos, suas perspectivas, suas relações, seus instrumentos, afirmando que a categoria arteriosclerose "surge" desta dinâmica, que segundo a autora, seria o conjunto de relações entre sujeitos e objetos da prática. Portanto, essa prática comporta uma multiplicidade de aberturas à possibilidade de atribuições de sentidos, análises e configurações.

A dificuldade de sua narrativa, a meu ver, não se encontra na língua inglesa ou na linguagem utilizada pela autora, mas no modo de construção desta narrativa, que é frequentemente iniciada com a palavra não. Mol parece ter demasiada preocupação com o leitor, dizendo em inúmeros momentos do texto o que não vai fazer, ou o que o texto não é sobre. Portanto, torna-se de fundamental importância ler o livro a partir das suas negativas, já que a narrativa positiva será configurada necessariamente em conjunto com a atitude do leitor diante de sua resistência. Talvez seja mais uma dinâmica que Mol, engenhosamente, convida o leitor a participar.

Desta maneira, como leitora de seu texto, me sinto na autoridade de dizer que a autora afirma ser seu livro um estudo em filosofia empírica ou um movimento entre campos, com a intenção de investigar o modo como as tensões entre fontes de conhecimento são manejadas, dentro das práticas rotineiras da medicina alopática, a partir de seus exemplos do cotidiano.

Sua pesquisa foi feita a partir de observação participante em um hospital de médio porte na Holanda, com foco específico para a dinâmica da arteriosclerose, ou seja, para as maneiras como esta categoria diagnóstica é encenada pelos diferentes agentes institucionais (pacientes, cirurgiões, médicos clínicos, médicos patologistas, epidemiologistas, enfermeiros). Ela parte das perspectivas dos agentes em ação, sem o propósito de aprofundá-las no entendimento da política de cada grupo de agentes – no entanto, de entendê-los em conjunto, nas situações materiais das práticas que eles constroem. Pode desta maneira, segundo a autora, chegar no corpo que é tocável, ou seja, no objeto de observação propriamente dito.

É compreensível que Mol queira ultrapassar o perspectivismo, evitando a formação de dualismos, na tentativa de mostrar que na prática os limites das perspectivas se borram pela cooperação que constitui a ação desses agentes. A autora mostra este aspecto de forma privilegiada, pois independentemente de a perspectiva estar circunscrita ao que se entende como mal-estar (illness) ou doença (disease), por exemplo, para pacientes e médicos, constrói-se o diagnóstico da arteriosclerose na dependência, pelo menos, desses dois, necessariamente. Estes podem se multiplicar com um acompanhante, ou um ou vários instrumentos diagnósticos, mas o corpo do paciente tem que estar presente. Assim, segundo Mol, a encenação (enactment) é uma realidade acima de tudo da carne.

No capítulo 2, Mol assume sua posição teórica referencial a partir da metáfora teatral. Assim, ela utiliza o termo performance no lugar de construção e atinge seu conceito de encenação, promovendo uma certa autonomia à cena da arteriosclerose. Os agentes, que chama de atores, estão, portanto, em posição secundária à cena como ela se dá. Além disso, aponta para as diferentes encenações referentes à arteriosclerose de acordo com os diferentes contextos e seus conjuntos de atores. A arteriosclerose encenada no laboratório de patologia é completamente diferente daquela encenada na clínica de assistência aos pacientes com dor nas pernas quando caminham.

A questão problemática da decisão de Mol, de traçar uma hierarquia ontológica da arteriosclerose entre a clínica de assistência e o laboratório, é que ela pressupõe a suspensão das perspectivas dos atores em cena. Isto porque mesmo entendendo que a cena assistencial é que decide a intervenção no corpo do paciente, a incorporação do conhecimento teórico sobre a arteriosclerose como perspectiva auxilia na decisão de intervir ou não – ou seja, na relação com o corpo, se pelo menos o corpo, do paciente. A visão das cenas da patologia ou da clínica de assistência pode ser feita de maneira fragmentada. Parece ser a perspectiva da pesquisadora, aquela que tem a intenção de unir, de cooperar, aquela que intervém articulando.

No capítulo 3, Mol insiste na apresentação da arteriosclerose "como ela é", apontando para a transformação do verbo ser, que de ontologia natural passa para uma posição relacional, criada no cotidiano da vida onde o contexto do que acontece para configurar o que acontece passa a ser fundamental. A questão central deste capítulo é delimitar como diferentes arterioscleroses, porque encenadas em diferentes contextos, podem estar integradas numa única categoria. Ela analisa com diversos passos para frente e para trás como a categoria é encanada num processo de negociações entre a experiência de sofrimento do paciente e o conhecimento técnico instrumentalizado dos médicos. Evidencia, nos seus exemplos de campo, que esta negociação é feita de avanços e recuos, utilizando basicamente uma única ferramenta: a dúvida do outro sobre o processo em um movimento de consenso, que é coerente, por sua vez, com o que se sabe fazer nos casos dos pacientes com arteriosclerose. Este processo, Mol intitulou de coordenação.

No capítulo 4, há um avanço para outro movimento chamado distribuição, onde a negociação não chega a nenhum consenso devido ao perigo de atritos que podem colocar em risco a prática que se observa. No entanto, embora múltiplas arterioscleroses possam estar presentes na observação, ela ainda é entendida como uma coisa, algo que, em última instância, é operável ou não. Mol chama a atenção para o fato de que a possibilidade de intervir na arteriosclerose (critério de indicação, segundo a autora) é o principal fator da sua existência.

É importante notar que, embora a narrativa do texto central seja desconectada fisicamente do seu arcabouço teórico, Mol, mais uma vez, trabalha com as categorias que as teorias citadas disponibilizam, como no caso de negociação, processo, condição, fazendo com que elas funcionem praticamente para a inteligibilidade do seu texto.

"Inclusão" é o título do capítulo 5, onde Mol começa a forjar um caráter institucional para a arteriosclerose, afirmando que tanto sua consensualidade quanto sua distribuição se comportam de maneira a manter seu status de categoria (condição, processo, etc.), assim como diferentes grupos de atores associados aos diferentes vocabulários. Ela denomina este aspecto de inclusão, já que, para a autora, diferentes arterioscleroses e suas tribos incluem uns aos outros, embora possam parecer incompatíveis.

Assim, ela mostra como tanto a clínica de pacientes sofredores de dor nas pernas, cirurgiões restituidores de camadas íntimas arteriais, epidemiologistas criadores de estatísticas de mortalidade pela arteriosclerose, indústria farmacêutica desejosa de manipular medicações que curem a arteriosclerose; todos estão incluídos nesta instituição chamada arteriosclerose. É a circularidade que a abordagem teórica oferece para as análises de Mol.

A autora termina o seu livro no capítulo 6, onde afirma a ontologia da prática localizada na própria prática, configurando, portanto, o que chamou de praxiografia.

Praxiografia então seria uma metodologia narrativa que considera a amplitude dos agentes, instrumentos, instituições, ambientes e seus entornos, para o melhor entendimento do fenômeno que se quer descrever e analisar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    2010
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