APRESENTAÇÃO
Alimentação e Cultura na Espanha, no México e no Brasil: reflexões sobre a constituição desse campo científico
Shirley Donizete Prado
Numa das imortais narrativas que sustentam nosso passado e nos dão o mundo latino, o rei da grandiosa Troia, humilde e suplicante, vai ao campo inimigo implorar pelo corpo dilacerado do filho Heitor. Quando fala mais alto a compaixão, Aquiles concede a Príamo a possibilidade de realizar os imperiosos ritos fúnebres, sem os quais o amado filho vagaria, em sofrimento sem descanso, por toda a eternidade. Em seguida, Aquiles e Príamo comem juntos (VIRGÍLIO, 2003).
É um banquete o cenário que Virgílio escolhe para que Eneias possa nos contar sobre
os combates e o herói que, por primeiro, fugindo do destino, veio das plagas de Troia para a Itália e para as praias de Lavínio [e sobre o longo tempo em que] foi o joguete, sobre a terra e sobre o mar, do poder dos deuses superiores, por causa da cruel Juno; durante muito tempo também sofreu os males da guerra, antes de fundar uma cidade e de transportar seus deuses para o Lácio: daí surgiu a raça latina e os pais albanos e as muralhas da soberba Roma. (VIRGÍLIO, 2003, p. 9).
O Banquete de Platão (s/d), ou Simpósio, se dedica ao amor. Por meio do "assucar" e da arte de fazer doces, Gilberto Freyre (2007) traz à luz história e escravidão no Nordeste brasileiro. Câmara Cascudo (2004) abre seu clássico História da alimentação no Brasil dizendo do universo da comida, da culinária, da cozinha que identifica um grupo social e uma nação por meio de pratos culturalmente consumidos segundo horários, trabalho ou lazer, crenças, doenças, celebrações, enfim, conforme os significados e sentidos que lhes são por nós atribuídos.
Tudo isso é absolutamente distinto daquilo de que trata a Nutrição normativa e intervencionista, em seu lugar de racionalidade biomedicinal. Muito além do alimento reificado, dos nutrientes e da dieta que visa à prevenção ou à cura das doenças, a Alimentação tem por objeto a comida o alimento simbolizado e contextualizado na sociedade e na história (CARVALHO; LUZ; PRADO, 2009; PRADO et al., 2009) porque se expressa como arte, como saber (FOUCAULT, 1990).
Identificando a crescente busca por parte de profissionais da saúde, especialmente nutricionistas, por formação que considere a compreensão dos fenômenos alimentares, entendendo-os como necessariamente relativos e complementares ao campo nutricional e da saúde, tomamos a iniciativa de promover o "Encontro Brasil, México, França e Espanha sobre Pesquisa em Alimentação, Saúde e Cultura", realizado em 17 e 18 de novembro de 2008, pelo Instituto de Nutrição da UERJ, através do Programa de Pós-graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde e do Núcleo de Estudos sobre Cultura e Alimentação (NECTAR), em parceria com o Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ e contando com apoio da FAPERJ, aos quais registramos nossos agradecimentos.
Da excelente repercussão auditório lotado e atento desde a abertura até o último instante do evento derivou este número temático, que traz, em seus três primeiros artigos, exposições que possibilitam uma primeira visualização acerca da constituição desse campo da ciência (BOURDIEU, 1983) e da dinâmica que a pesquisa dirigida à Alimentação assume, hodiernamente, na Espanha, no México e no Brasil.
Mabel Gracia Arnaiz discute os estudos no campo da Antropologia da Alimentação na Espanha. Enfatiza o caráter interdisciplinar desse complexo objeto e a necessidade de investimentos no sentido da superação de olhares marcados por paradigmas que o reduzem a alguma especialidade científica e que integrem diversos campos da produção de conhecimentos e saberes para seguir com mais solidez no enfrentamento aos problemas alimentares e nutricionais da vida contemporânea.
Miriam Bertran Vilà nos apresenta um panorama da alimentação no México, particularmente sobre a cidade do México, a partir de uma perspectiva antropológica e considerando aspectos socioculturais e econômicos. Em sua análise, busca refletir sobre o papel que fenômenos macrossociais exercem sobre o perfil nutricional atual, em que a epidemia de obesidade é sua característica principal.
Ainda como parte do Encontro internacional, contamos aqui com a discussão sobre a constituição do campo Alimentação e Cultura no Brasil, empreendida como parte da dissertação de mestrado de Juliana Klotz Silva e com participação das pesquisadoras Shirley Donizete Prado, Maria Claudia Veiga Soares Carvalho e das estudantes Tatiane Freire Silva Ornelas e Patrícia França de Oliveira, todas da equipe do NECTAR.
Agregamos a esses artigos dois trabalhos escolhidos como exemplos de estudos de foco empírico que caminham no sentido da compreensão do fenômeno alimentar, sem perder de vista os problemas de saúde-doença-cuidado no âmbito nutricional com os quais se depara, hoje, a sociedade.
De Maria Soraia Pinto e Maria Lúcia Magalhães Bosi, a investigação qualitativa exploratória com enfoque fenomenológico-hermenêutico crítico visando a compreender percepções e experiências acerca da obesidade entre usuárias de um Centro de Saúde da Família. E finalmente, Ligia Amparo da Silva Santos volta-se para as estratégias educativas utilizadas pelos programas de emagrecimento oferecidos via Internet. Nada mais contemporâneo!
- BOURDIEU, P. Questões de sociologia Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
- CARVALHO, M. C. V. S.; LUZ, M T.; PRADO, S. D. Comer, nutrir e alimentar na perspectiva das Ciências Sociais, 2009. Mimeo.
- CASCUDO, LC. História da alimentação no Brasil São Paulo: Global, 2004.
- FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
- FREYRE, G. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e dos doces do nordeste do Brasil. São Paulo: Global, 2007.
- PLATÃO. O banquete. São Paulo: Abril Cultural, s/d.
- PRADO, S. D. et al. Alimentação e Nutrição como campo científico no Brasil, 2009. Mimeo.
- VIRGÍLIO. Eneida São Paulo: Nova Cultural, 2003.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Ago 2010 -
Data do Fascículo
2010