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O ambulatório no discurso dos médicos residentes: reprodução e dinâmica do campo médico

The ambulatory in the speech of resident doctors: reproduction and dynamics of the medical field

Resumos

O objetivo deste estudo é compreender a função do ambulatório na dinâmica das relações de poder e construção de identidade da profissão de terapeuta da medicina ocidental contemporânea. Para a realização do trabalho, foram coletados dados através de entrevistas abertas e observações diretas, em duas unidades hospitalares da cidade do Rio de Janeiro (Hospital Pedro Ernesto, Posto de Atendimento Médico São Francisco Xavier), com 12 médicos. O ambulatório surge no discurso dos profissionais em início de carreira como instância negativa e monótona que impede o diagnóstico de novas patologias. Surge também como espécie de rito de passagem formador da identidade médica. Marcado pela frequência de pacientes oriundos dos estratos sociais mais baixos, esta dimensão pública das instituições médicas repercute relações de classe e dominação inerentes à nossa sociedade, mas também apresenta sinais de uma dinâmica no campo médico que pode contribuir para a compreensão dos processos sociais.

ambulatório; medicina ocidental contemporânea; relações de poder; serviço público de saúde; sociologia médica


This study aims to understand the role of ambulatory in the dynamics of power relations and construction of identity of the therapist's profession of the Western contemporary medicine. Data were collected through open interviews and direct observations in two nosocomial unities of the Rio de Janeiro city (Hospital Pedro Ernesto, Posto de Saúde São Francisco Xavier) with 12 doctors. The ambulatory appears in the speech of the professionals in beginning of career like negative and monotonous persistence that obstructs the diagnosis of new pathologies. It appears also like sort of forming rite of passage of the medical identity. This public dimension of the medical institutions was marked by the frequency of patients from the lowest social strata, transmitting relations of class and domination inherent to our society, but it also presents signs of a dynamics in the medical field that can help understand social processes.

outpatient department; Western contemporary medicine; relations of power; civil service of health; medical sociology


TEMAS LIVRES

O ambulatório no discurso dos médicos residentes: reprodução e dinâmica do campo médico

The ambulatory in the speech of resident doctors: reproduction and dynamics of the medical field

Cesar SabinoI; Madel T. LuzII

ISociólogo; Doutor em Ciências Humanas (PPGSA/IFCS/UFRJ). Professor Adjunto do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Endereço eletrônico: cesarsabino@hotmail IISocióloga. Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutora pelo Cermes/Inserm, França. Professora titular aposentada do Instituto de Medicina Social da UERJ. Líder do Grupo CNPq Racionalidades Médicas e Práticas de Saúde. Endereço eletrônico: madelluz@superig.com.br

RESUMO

O objetivo deste estudo é compreender a função do ambulatório na dinâmica das relações de poder e construção de identidade da profissão de terapeuta da medicina ocidental contemporânea. Para a realização do trabalho, foram coletados dados através de entrevistas abertas e observações diretas, em duas unidades hospitalares da cidade do Rio de Janeiro (Hospital Pedro Ernesto, Posto de Atendimento Médico São Francisco Xavier), com 12 médicos. O ambulatório surge no discurso dos profissionais em início de carreira como instância negativa e monótona que impede o diagnóstico de novas patologias. Surge também como espécie de rito de passagem formador da identidade médica. Marcado pela frequência de pacientes oriundos dos estratos sociais mais baixos, esta dimensão pública das instituições médicas repercute relações de classe e dominação inerentes à nossa sociedade, mas também apresenta sinais de uma dinâmica no campo médico que pode contribuir para a compreensão dos processos sociais.

Palavras-chave: ambulatório, medicina ocidental contemporânea, relações de poder, serviço público de saúde, sociologia médica.

ABSTRACT

This study aims to understand the role of ambulatory in the dynamics of power relations and construction of identity of the therapist's profession of the Western contemporary medicine. Data were collected through open interviews and direct observations in two nosocomial unities of the Rio de Janeiro city (Hospital Pedro Ernesto, Posto de Saúde São Francisco Xavier) with 12 doctors. The ambulatory appears in the speech of the professionals in beginning of career like negative and monotonous persistence that obstructs the diagnosis of new pathologies. It appears also like sort of forming rite of passage of the medical identity. This public dimension of the medical institutions was marked by the frequency of patients from the lowest social strata, transmitting relations of class and domination inherent to our society, but it also presents signs of a dynamics in the medical field that can help understand social processes.

Keywords: outpatient department, Western contemporary medicine, relations of power, civil service of health, medical sociology.

Introdução

Este trabalho1 1 Financiamento: CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Processo: 151803/2007-2 Pós-Doutorado Jr. teve por objetivo analisar o discurso dos médicos em início de carreira a respeito do significado de suas experiências em ambulatórios, basicamente no período de residência médica em hospitais públicos de formação, buscando interpretações para suas representações e estratégias face a este período de um a três anos de formação.

A questão da formação dos profissionais médicos – e do campo da saúde como um todo, frente a sua contínua expansão – tem sido um nó político institucional de difícil resolução para o sistema de saúde, sobretudo após o advento do Sistema Único de Saúde (SUS). Há pelo menos meio século são propostas reformas que não passam, na maioria das vezes, de simples rearranjos de currículos disciplinares, com distribuições de cargas horárias de disciplinas variando de acordo com sua importância para a área médica (LUZ, 1979, 2009), sem que a questão básica da dicotomia entre a estrutura do ensino e as necessidades de cuidado da população seja resolvida. Do nosso ponto de vista, esta permanece uma das questões centrais do campo da Saúde Coletiva, face ao aumento constante da demanda por serviços, por um lado, e a radicalização da formação fortemente especialista e tecnológica, de outro (LUZ, 2009).

A metodologia empregada nesta pesquisa consistiu em observações etnográficas (diretas e participantes) em três hospitais públicos da cidade do Rio de Janeiro, no período de 14 meses entre os anos de 1997 e 1998. Os dados, embora remanescentes da segunda fase de pesquisa do Projeto Racionalidades Médicas, permanecem atuais2 2 A Linha de Pesquisa Racionalidades Médicas e Práticas em Saúde Coletiva foi iniciada no Instituto de Medicina Social da UERJ em 1992, pela Professora Madel Therezinha Luz, com um estudo qualitativo empírico-analítico comparativo de quatro sistemas médicos complexos (Biomedicina, Medicina Tradicional Chinesa, Medicina Homeopática e Medicina Ayurvédica). As novas Práticas em Saúde Coletiva (da fitness à wellness), bem como as práticas terapêuticas, incluindo as formas artísticas, em grande expansão atualmente na sociedade civil, e mesmo nas instituições e serviços de saúde (hospitais, enfermarias, ambulatórios, serviços municipais etc.), ocuparam um espaço temático importante nas atividades desta linha de pesquisa. . Poderíamos mesmo dizer que se agudizaram, tendo em vista a progressiva implantação do SUS.

Utilizamos, na operacionalização metodológica do projeto, entrevistas abertas e diretas (gravadas) com 12 terapeutas em seus locais de trabalho, entrevistas informais durante o trabalho de campo, observação participante, e também participamos de consultas – como pacientes – nestes serviços públicos de saúde. Esta é, portanto, uma pesquisa inserida no campo das ciências sociais em saúde, que busca compreeder e interpretar fenômenos sociais, sem preocupação com causalidade ou generalizações, próprias das disciplinas das biociências. Busca, acima de tudo, interpretar relações e práticas sociais. No caso em questão, referentes a um grupo específico, os jovens médicos em processo de formação profissional pós-graduada em lato senso.

A busca de destaque

O discurso dos jovens médicos – ainda hoje atual, como sublinhamos acima – sugere a existência de concepções de práticas e relações de poder que nos remetem ao conceito de campo de poder. O campo constitui, segundo Bourdieu, o espaço em que se manifestam as relações hierárquicas de poder simbólico, organizando-se a partir da distribuição desigual de capital, que pode ser econômico, simbólico (prestígio, status, autoridade), de competência, social e cultural. A quantidade de capital que um indivíduo detém, em geral, determina a posição e a trajetória que ocupará no interior do campo, sendo este um espaço social de constantes disputas e competição (BOURDIEU, 1986; 2004). No caso específico da biomedicina, assim como em outros sistemas de cura, este capital se refere à disputa travada entre os médicos em torno do reconhecimento, pela comunidade científica, da legitimidade e eficácia de seus saberes e procedimentos. Aqueles que conseguem sucesso nos seus empreendimentos passam a desfrutar de posições hierarquicamente superiores, dispondo de maior "capital científico" e, em consequência, de maior status e prestígio, conseguindo impor a outros agentes do mesmo campo a definição do procedimento profissional "que melhor se conforma a seus interesses específicos" (BOURDIEU, 1976, p. 91), convertendo também este capital em outros como o econômico, por exemplo.

Entre os médicos pesquisados (em início de carreira), percebemos a aspiração à conquista de capital social e de competência específica, que exige respeito a regras e normas de consenso do campo, e sua aceitação assumida fisicamente nos procedimentos práticos cotidianos realizados. A questão é como perceber neste espaço social de disputa de poder – disputa inconsciente – o estatuto da relação com o paciente no trabalho do ambulatório, e de que forma a mesma se traduz na diagnose e na terapêutica inscrevendo-se nas relações médico-paciente através dos procedimentos institucionais.

O ambulatório, no discurso dos médicos residentes, surge como local sem prestígio, no qual a aquisição de capital simbólico e de competência está de certa forma ausente, por não apresentar novidades (patologias incomuns), não permitindo que os novatos aprendam procedimentos diferenciados, já que os pacientes apresentam com frequência as mesmas queixas: "é só diabetes, hipertensão, diabetes, hipertensão, nada de novo", conforme o relato de um médico.

Esta concepção aparece no discurso não oficial, descontraído, dos médicos residentes – aquele ouvido pelo pesquisador já considerado pelos "nativos", parte do contexto durante o trabalho de campo, e, portanto, pessoa a quem se pode "contar segredos" ou deixar escutá-los (MALINOWSKI, 1978). Termos como "esculhambatório" (local onde só há pessoas "esculhambadas"), "molambatório" (alusão a molambos ou a pessoas pobremente vestidas), "embromatório" (local onde se perde tempo "embromando" os outros), local de "marcar passo" profissional são sinônimos de ambulatório. Essa instância institucional constitui-se como etapa-empecilho a ser necessariamente superada, visando à construção identitária do profissional; ritual de instituição no qual o sofrimento do aprendiz, em estado de "suspensão" – pois não é um médico consagrado e nem mais um estudante apenas – deve ser suportado objetivando a aceitação do grupo como alguém merecedor de seu papel e função social (TURNER, 1974; VAN GENNEP, 1978; BOURDIEU, 1996). Nesse ritual, o ambulatório dos hospitais e postos de saúde públicos que atende às camadas mais baixas da população é considerado instância de provação. Estado necessariamente passageiro (como toda dimensão liminar), no qual o status ainda não é pleno devido à baixa probabilidade de surgimento de doenças singulares a serem diagnosticadas e tratadas, e à quase inexistência de procedimentos inusitados a serem aprendidos e empreendidos. O relato abaixo, de uma médica residente, é exemplo do que ela considera interessante realizar em seu trabalho: "a gente vê que alguém está com alguma patologia diferente, então, interna a pessoa que a gente não sabe o que tem. A gente então vai investigar. A coisa de não gostar de ambulatório está ligada ao fato de ele não ser valorizado, porque nele não há patologia nova, nada, nada a ser feito".

Nota-se apreensão dos residentes por novos casos de difícil resolução que requerem acuidade maior e aprofundamento prático e teórico, o que remete, de acordo com Luz (2003), à perda, pela biomedicina, de seu papel terapêutico milenar, conforme relato de um entrevistado: "o que gosto é de uma enfermaria variada com um pouco de cada coisa. Às vezes a enfermaria está mais para uma especialidade, às vezes para outra. Eu prefiro paciente geriátrico, portador de coisas novas e interessantes." Ambulatório e enfermaria formam dois lados complementares de uma instância médica de aprendizado e construção identitária; porém, dimensões burocráticas nas quais a rotina desencanta a profissão, surgindo como instância de trânsito inevitável.

A especialidade médica aparece como fato fundamental para a formação profissional, e a ambição de tornar-se bom especialista transparece no desejo de tratar "novos casos"; daí a maior preferência por enfermarias com patologias variadas em detrimento dos casos repetitivos do ambulatório. Não raro há desprezo por portadores de diagnóstico previsível ou conhecido, considerados "caso perdido". Por não trazerem "novidade" para a economia simbólica das patologias, estes pacientes não valem muito o investimento da atenção ou cuidado:

Quando não tem leito vago, às vezes a gente segura um paciente que até poderia ir pra casa, mas a gente deixa um, dois dias, para poder puxar outro mais interessante, em vez de internar um que não é interessante. Volta e meia aparece gente aqui, às vezes até mesmo funcionário, pedindo internação de AVC, a gente foge, né? Faz tudo para não internar...

Como percebido, ao menos neste caso, a não internação do paciente nestas instituições públicas passa não apenas pela carência de leitos ou falta de recursos, mas pode estar relacionada também ao desinteresse, por parte dos médicos, em portadores de patologias que apresentam em seu universo sócio-profissional significado desprezível, inferior, sem valor. Uma doença sem perspectiva de cura, ou uma cura previsível, não traz status ao residente, não contribui para seu aprendizado e também não permite demonstrar talento; por conseguinte, não há por que despender tempo e esforço com casos que não trazem lucro nessa economia simbólica, por exemplo: "Aí, fica aí... tem uma AVC num leito... que fica aí, mas não tem nada pra fazer com ela, é uma paciente que a gente diz que não é interessante, porque a gente não vê o que fazer..."

Percebe-se que, neste caso, o corpo do indivíduo só interessa como suporte da doença ou disfunção biomecânica. A existência de uma dimensão psicológica que sofre, carece de atenção, é singular e humana sequer é aventada e não há qualquer capacitação ou instrumental científico para lidar com a pessoa do paciente. Para o agente biomédico, neste contexto, a única realidade concreta deve ser a da doença, não havendo interesse pela subjetividade do paciente. Isto é notório quando é dito pela médica entrevistada: "tem um AVC no leito..." É a patologia que está no leito e não uma pessoa (CAMARGO, JR.1994; LUZ, 2003).

Foucault (2004) ressalta que, a partir do século XIX, a medicina moderna passa a justificar sua singularidade ao apresentar-se como medicina científica. Realizando ruptura com a tradição anterior calcada na ars curandi nesse momento, ela muda seus objetos, conceitos e métodos produzindo novas formas de conhecimento e práticas institucionais eivadas por racionalidade específica caracterizada por olhar e linguagem pautadas no aspecto empírico de localização da doença como objeto presente no corpo individual. Nesta anátomo-clínica surgida ocorre abstração do doente para que surja a doença essencializada. O paciente atrapalha, compromete a neutralidade classificatória científica. A doença torna-se objeto ontológico, forma patológica da vida, devendo ser classificada em gênero e espécies. Nasce a anatomia patológica. O portador, com sua subjetividade, torna-se empecilho, distorção a ser superada em direção ao objeto principal do olhar médico.

Ascensão social e conhecimento teórico

Outro fator que desvaloriza o ambulatório, além do consenso da falta de status que o métier lhe impõe, é a pouca possibilidade de demonstrar o conhecimento teórico adquirido na faculdade de medicina. A concepção de médico eficiente para os iniciantes na carreira pode ser vista da seguinte maneira:

o bom médico é aquele que nunca deixa de estudar, tanto medicina, mas não só, quanto a cultura. Acho que tem muita competição, cobram muita teoria, muita coisa [..]. mas eu acho que um bom médico tem que ter muita teoria, tem que estar sempre se atualizando, lendo revistas, livros [...] na linha da última edição da New England, o último caderninho, a última revista. É isso que dão valor aqui, chegar aqui [no hospital] dizendo: ah, você leu aquele artigo da New England que saiu ontem? Aí, eles valorizam!

A força que o poder do campo exerce sobre o residente e as características que este campo expressa através do discurso e práticas de seus componentes são percebidas através da valorização desse conhecimento abstrato. O "médico bom" ou o residente de destaque é o que conhece e expressa um sempre renovado conhecimento teórico. O conhecimento prático, a princípio não apresenta a importância que seu contraposto ficando a arte da cura submetida à ciência da doença e desta, divorciada, pois é a racionalidade científica que empresta legitimidade às práticas profissionais dos médicos. O eixo explicativo é o mais valorizado, devido a sua inclusão no domínio das ciências experimentais, e o eixo semiológico, próximo da prática – e, portanto da arte – é relativamente depreciado como método de produção de conhecimento (CAMARGO JR., 1993; 1994; 1994a). Há, contudo, a percepção dos próprios médicos da existência simultânea do bom teórico e mau terapeuta: "Tem muito médico que eu conheço no ambulatório e na enfermaria, que você sabe que na teoria ele é excelente, mas pra lidar com paciente, é horrível, Nossa Senhora!"

A alusão à ausência de ensino da terapêutica nas faculdades biomédicas também está presente no discurso dos entrevistados, reiterando a valorização da teoria em detrimento da prática. Foram unânimes em dizer que no terceiro ano da faculdade estudam semiologia e no quarto a terapêutica, contudo esta última não existe, de fato. Nenhum professor explica ou expõe, de acordo com eles, o que vem a ser o conteúdo deste saber. O aprendizado é feito na prática e é quase solitário. Dosagens de remédio são testadas em pacientes, além dos métodos e procedimentos, enfim o terapeuta em início de carreira "se vira como pode" para realizar sua tarefa. Notamos que não raro o residente sozinho se depara com um caso para ele totalmente desconhecido. Deixa o paciente esperando e busca o responsável do momento para perguntar os procedimentos a serem feitos retorna para o paciente, e, ao se deparar com mais complicações retorna ao instrutor buscando se informar, retorna em seguida ao paciente e assim quatro a cinco vezes em cada caso:

A gente ganha prática assim das coisas ali [...] de funcionar! De pegar uma veia, de saber fazer uma coisa assim de mais urgência, até pra ficar tranquilo mesmo; o paciente quase morrendo na sua frente, você fica estressado [...] mas não dá pra aprender. No quarto ano você tá começando a ver terapêutica [...] às vezes andava quilômetros, ia lá, atendia, voltava, corria e perguntava para o médico [supervisor], ele [dizia] : Ah, sei. Faz isso! Aí, não era aquilo que ele disse; voltava lá e perguntava de novo e ele dizia: Ah, faz não sei o que... e assim ia, na marra.

A formação do profissional médico é constituída pela necessidade imposta pelo campo da aquisição de capital teórico, já que os rituais reguladores da ascensão profissional e social impõem avaliações e provas de extenso conteúdo abstrato e não prático. Se quiser ascender na estrutura do campo, galgando papéis de prestígio o neófito, terá que atravessar todas as especificidades dos rituais de instituição (provas e concursos) para ser admitido na comunidade dos doutores, de fato. A importância conferida ao conhecimento teórico aparece constantemente no discurso dos entrevistados que concebem o ambulatório como âmbito de alguma aquisição da prática terapêutica, mas também como etapa e situação que atrapalha a aquisição de teoria. O conhecimento livresco é valorizado em vista das provas que os profissionais devem prestar para serem aprovados em concursos. Como disse um entrevistado: "prova é teoria, é ler livro. Tem que ir pra casa mesmo estudar e não ficar aqui!"

Como consequência da hipervalorização teórica, as faculdades de medicina que formam profissionais com grande "bagagem teórica" (de acordo com as palavras dos informantes) são as mais prestigiadas por aqueles que querem conquistar status na profissão através da admissão em concursos. Estas faculdades detêm elevado conceito entre os entrevistados:

Eu acho que a federal é melhor em teoria, né? Eles dão muita teoria, e a teoria é muito boa. Meses antes da prova liberam os alunos internos pra estudar. Porque você tem que se especializar, passar por provas, poucas vagas [...]

A desvalorização do ambulatório, e, por vezes, da enfermaria, também passa pelo aspecto da impaciência com diálogos e perguntas excessivas de pacientes e pela sobreposição da diagnose sobre a terapêutica (LUZ, 1998; FOUCAULT, 2004). Em sua concepção, as atividades ambulatoriais estariam ligadas à "perda de tempo", devido à extensão da consulta, pois a anamnese deve ser resumida ao estritamente necessário, já que existem recursos técnicos para a obtenção de exames diagnósticos, não havendo necessidade de o médico despender tempo com conversas:

Uma coisa é a recomendação técnica: tem que ver da ponta do cabelo à ponta do pé; o pessoal todo fala isso, mas eu faço ideia que isso não deve ser não... não devem examinar direitinho, talvez até pelo movimento, muita gente pra atender, muita procura, aí não dá, né?! A pessoa senta já diz o que tem, nem é examinada, a gente já prescreve alguma coisa, já pede um exame [...]. Outra coisa é que às vezes a gente não tem paciência mesmo! O doente ideal é aquele que chega fala só o que tem, vai embora e não perturba. O acesso a recursos técnicos à mão facilita, a pessoa se adapta e pula aquela etapas todas de, primeiro raios-x, depois TC etc., e vai logo para o TC, não examina direito. A maioria dos médicos não gosta disso não! Paciente pra conversar, bater papo; não tem paciência não! Pô, eu realmente ia cortar porque isso atrapalha muito.

A descartabilidade relacional da biomedicina

A desagregação da relação entre terapeuta e pacientes pode estar radicada no processo histórico de racionalização pelo qual passou a cultura ocidental da qual a biomedicina é parte. Segundo Mauss, foi preciso a vitória do racionalismo para a noção de lucro tornar-se um princípio, transformando o homem ocidental em um animal econômico e máquina de calcular (MAUSS, 1974, p. 176). No seu clássico estudo sobre a dádiva, o autor indicou tipos diversos de economia não alicerçados na busca do lucro calculista. Este estudo marcou a face do pensamento sociológico, ao ressaltar a troca e a reciprocidade como o alicerce da coesão social. O dom ou dádiva seria uma "economia antieconômica", sendo o contrário dele a economia monetária do lucro a todo custo. A dádiva estaria baseada na negação do interesse e do cálculo; mesmo que essa prática transporte ambiguidade na rejeição deste interesse denegado, atualizando um tipo de retribuição (na qual conta o tempo em sua extensão) baseada na consideração, no vínculo social estabelecido na solidariedade e no respeito. Dito de outra forma, no espaço de tempo entre a dádiva e seu retorno (dom e contradom) se oculta a intenção não retribuidora, a qual "nunca exclui completamente a consciência da lógica da troca generosa e seu caráter impositivo e custoso" (BOURDIEU, 1996a, p. 11), que de certa forma obriga o contradom, mas que se realiza na dimensão da solidariedade, expressa não raro em frases: "Faço porque quero fazer não espero nada em troca".

Por não poder se radicar no cálculo racional do lucro objetivado e veloz (uma relação de negócios é onde de fato não deve haver o dom: "amigos, amigos; negócios à parte"), o mesmo se encontra no capitalismo sempre diante do perigo de ser subsumido a este cálculo, ausentando das relações o aspecto solidário constitutivo da coesão social. Clássicos do pensamento sociológico apontaram para o risco representado pela transposição da lógica do cálculo e lucro para a dimensão das relações sociais solidárias, tornando contatos sociais descartáveis e voláteis. Simmel, em 1898 escreveu:

Assim que o dinheiro torna-se a medida de todas as outras coisas, ele mostra uma ausência de qualidade [...] que em certo sentido desvaloriza tudo aquilo de que é o equivalente [...] tratando das relações inter-humanas, que buscam a duração, o dinheiro nunca poderá ser o mediador adequado. (SIMMEL, 1993, p. 51).

O autor apontava para a ausência característica de laços duráveis e solidários nas relações travadas apenas na dimensão monetária, sendo a prostituição contemporânea o melhor representante deste processo:

No relacionamento de pessoas que dependem da duração e integridade, quando uma das partes paga em dinheiro torna-se completamente isenta, da mesma maneira como alguém que deixa a prostituta após ter conseguido satisfazer-se. (SIMMEL, 1964, p. 121).

Marx, preocupado com a mesma questão escreveu em 1844:

O dinheiro é a inversão geral das individualidades que as transforma em seu contrário e que adiciona às suas propriedades, propriedades contraditórias [...] obrigando aquilo que se contradiz a beijar-se [...] se pressupõe o homem como homem e sua relação com o mundo como relação humana, só se pode trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. (MARX, [1844]1974, p. 28-32).

Para este Marx, ainda um jovem hegeliano, quando aquilo que constitui a essência do ser humano é trocado pela essência do objeto essencial no capitalismo (o dinheiro), transforma-se em objeto aquilo que é, de fato, o seu contrário: a própria essência humana. Nessa troca, esta perde suas características e possibilidades. Também Weber, em 1915, deu sua contribuição à problemática da solidariedade e das trocas:

O dinheiro é o elemento mais abstrato e impessoal que existe na vida humana. Quanto mais o mundo da economia capitalista moderna segue suas próprias leis imanentes, tanto menos acessível é qualquer relação imaginável com uma ética [...] de fraternidade. Quanto mais racional, e, portanto impessoal, se torna o capitalismo, tanto mais ocorre isto. (WEBER, 1974, p. 247).

Ao expandir-se da dimensão monetária para a dimensão simbólica, as relações radicadas no interesse e no lucro retiram ou restringem o dom da cena social, transformando as relações, despersonalizando-as e produzindo a representação do outro como objeto e objetivo para o lucro, seja este lucro monetário ou simbólico. A infindável busca da vantagem invade a esfera na qual antes imperava o desinteressado interesse da dádiva. O racionalismo economicista escoa, desta forma, para o âmbito da racionalidade médica (LUZ, 1995; 1997; 1998; 2003).

A transformação do dom em domínio do monetário estabelece a regência do campo biomédico pela maximização do lucro, criando aquilo que poderíamos definir como um paradoxo do serviço médico, que consiste na persistência da concepção do dever de servir ao outro, salvar-lhe a vida desinteressadamente, ou melhor, apenas com o interesse profissional de ter exercido da melhor forma o seu papel social de "salvador" da vida humana, cumprindo uma "missão apostólica" (LAPLANTINE, 2004) e, por outro lado, sofrer a imposição, também social, de "ganhar dinheiro", ter o status que a sociedade exige da profissão de médico. Este paradoxo pode ser vislumbrado nos relatos dos entrevistados. Quando perguntados sobre o que esperam de sua profissão, disseram esperar "servir da melhor forma possível", "não morrer de fome" e "ter boa condição econômica".

A frase "não morrer de fome" compareceu em todas as respostas. Proferida por um grupo de pessoas egressas, em sua maioria, da classe média ou alta, a hipérbole "não morrer de fome" pode significar por um lado, a crítica aos baixos salários que o serviço público paga – e cada vez mais as empresas de medicina – e, por outro, a preocupação destes em não perder a condição herdada dos pais, ou mesmo superar essa condição que em geral permitiu tornarem-se médicos:

O sistema é muito duro com a gente, te exige muito [...] você não pode ficar andando de ônibus, tem que se vestir bem, ter uma posição [...] espero corresponder à expectativa dos pacientes e também não passar fome, porque a gente não pode viver na caridade [...] o dinheiro é fundamental, por isso é difícil fazer ambulatório, quem tem condições, tudo bem [...] mas é difícil.

Como exercer uma profissão percebida como altruísta que supõe uma determinada ação desinteressada de salvar o outro (dom), e ao mesmo tempo lucrar de acordo com a mercado-lógica, paradoxo que impõe o interesse aplicado na ação para com o outro? Se o modelo do mercado autonomizou-se invadindo as outras esferas, como tornar possível a convivência de tais opostos no âmbito da profissão médica, sobretudo nos serviços públicos e na crescente transformação das práticas e serviços médicos em mercadoria e o próprio médico em empregado assalariado de empresas hospitalares, diagnósticas e clínicas?

Para que seja possível um mínimo de compreensão do que constitui um aspecto do paradoxo atual dos serviços médicos (e também do equívoco presente nas teorias liberais e neoliberais do egoísmo individual como força de justiça social), é necessário perceber os mecanismos que articulam o aprendizado e a socialização do médico no espaço de aprendizagem no qual se insere. O próprio esquema funcional do campo biomédico, as relações travadas nesse espaço de exercício da ontologia profissional produzem no neófito a corporificação (CSORDAS, 1994) da profissão – comportamentos, visões de mundo e práticas professadas em palavras e atos. Esta corporificação pode ser compreendida como habitus da biomedicina, ou seja: estruturas de cognição, percepção, sentimentos e organização de realidades socialmente reguladas e que funcionam como estruturantes das ações dos agentes e que por elas são simultaneamente estruturadas (BOURDIEU, 1973). Logo ao ingressar na corporação, o aprendiz toma contato com as representações e práticas do seu campo profissional, sua hierarquia e lógica de poder, os sentidos e sentimentos que afetam os jogadores no campo médico estruturando suas ações e levando-o a aderir a estas práticas e visões de mundo frequentemente (re)produzindo-as.

Valor-doença

Nesse jogo no qual os agentes disputam capitais específicos que devem ser convertidos – de preferência rapidamente – em espécie, a doença é o objeto de importância fundamental e instância na qual as práticas e visões de mundo dos agentes biomédicos respaldam sua própria existência e eficácia no campo ou no jogo. Para os residentes, a doença "desconhecida", os novos casos patológicos apresentam-se como possibilidade e desafio de conquista do destaque necessário para o reconhecimento dos pares e superiores, apresentando mais alto valor quanto mais "desconhecida" for. Nesse processo, o ambulatório, com sua ausência crônica de novidades – doenças comuns e/ou crônicas que não apresentam valor algum –, parece emperrar ou desacelerar esta dinâmica de ascensão ou, no mínimo, representar um estágio liminar no rito de instituição no qual o sofrimento ambulatorial deve ser enfrentado para a construção da pessoa médica e aquisição de status necessário ao papel social da mesma.

A busca do destaque que permite a projeção e com ela a oportunidade de reconhecimento no meio significa a busca por boa colocação social (bons salários, bons empregos, convites para reuniões e futuras participações em pesquisas ou cargos e prestígio). Dentro deste esquema, o dom só pode ser de alguma forma exercitado entre pares, na troca de favores por colegas de profissão. Dificilmente o paciente e sua subjetividade são considerados no esquema de ascensão no campo profissional. Destarte, o paciente não existe no sentido ontológico do termo, como escrito anteriormente, é apenas uma peça em um jogo, com a qual se estabelece contato, não relação. Objeto descartável, invólucro e portador daquilo que realmente interessa à racionalidade da biomedicina atual: a doença; de preferência aquela com alto valor no contexto – a rara.

A sociologia, porém, não pode descartar a exceção, já que é na inflexão da diferença que a mudança ou a dinâmica das séries pode se consolidar (TARDE, 2003). Percebemos, em algumas narrativas dos jovens médicos, o sentimento de "que alguma coisa está errada com isso tudo...". No tom, na modulação da voz no olhar desanimado de alguns poucos entrevistados, configura-se um sentimento de insatisfação e frustração com as práticas institucionais hegemônicas da biomedicina. Alguns sentem que "algo não vai bem" e refletem isso. Outros já têm clareza discursiva sobre dos problemas relacionais da prática médica que "não leva em conta a humanidade das pessoas". Conforme disse uma residente:

uma coisa é o que a gente aprende toda essa teorização [...] outra é prática, ambulatório. Eu tenho que atender às pessoas [frisando], eu me coloco no lugar dessa gente, os colegas tratam essa gente como se fosse boi, vaca, sabe? E eles reclamam: "Pô, a médica nem olhou na minha cara... Parece que tem nojo de pobre..."

Em uma conversa informal sobre a situação da relação médico-paciente, outro pesquisado falou:

Ando um pouco insatisfeito com o que tenho visto [...]. Tenho uma tia veterinária e acho que ela trata bem melhor os animais dela no consultório... Ando pensando em fazer homeopatia [...]. Às vezes os pacientes também irritam, mas "tá tudo virando negócio'. Os médicos estão trabalhando demais pra sobreviver, tenho colegas que trabalham em quatro, cinco lugares; eles mesmos [os médicos] estão adoecendo. Quando a gente começa o curso, não imagina essa situação [...] chega cheio de sonhos e esperança.

Dinâmica do campo

O investimento que o agente (no caso o médico jovem e/ou residente) faz no jogo, suas esperanças e expectativas nem sempre é realizado ou alcançado. Esse investimento, denominado por Bourdieu de illusio (2001, p. 201), é a manifestação prática pelo interesse no jogo em determinado espaço social, aplicação de desejos e libido em práticas relacionais delimitadas visando ao reconhecimento dos pares. Destarte, como procura pela aprovação do outro, a illusio é o que confere sentido à vida e à existência dos agentes engajados em suas práticas, levando-os a investir sua existência no futuro (BOURDIEU, 2001, p. 204, 254).

De acordo com o autor, esse processo talvez surja na infância na dimensão familiar quando a criança, por intermédio do trabalho pedagógico de socialização das pulsões, aprende a renunciar e se sacrificar em troca de reconhecimento, consideração e admiração:

Essa troca é altamente carregada de afetividade, na medida em que mobiliza por inteiro a pessoa de ambos os parceiros, sobretudo a criança, é claro, mas também os pais. A criança incorpora o social sob a forma de afetos, mas socialmente coloridos, qualificados, as injunções, prescrições ou condenações paternas sendo decerto inclinadas a exercer um "efeito de Édipo (para falar como Popper)" (BOURDIEU, 2001, p. 202).

A criança sacrifica seu "amor próprio" investindo em outro objeto de desejo (investimento libidinal), absorvendo disposições duráveis e corporificadas que a levarão a apostar, a partir daí, nos jogos sociais. Esta dinâmica executada na instância familiar estará na base de todos os investimentos sociais ulteriores, resumidos na busca de reconhecimento como recompensa, construção identitária e aceitação (base do capital simbólico: glória, honra crédito, reputação, notoriedade, etc.). Aproximando-se da psicanálise nesta fase de sua obra,3 3 "De que maneira se efetua a passagem, descrita por Freud, de uma organização narcisista da libido, na qual a criança toma a si mesma (ou seu próprio corpo) como objeto de desejo, para um outro, no qual ela se orienta para um outra pessoa, tendo acesso ao mundo das 'relações de objeto', sob a forma do microcosmo social originário, e dos protagonistas do drama que aí se desenrola? (BOURDIEU, 2001. p. 201). Bourdieu ressalta o papel da frustração e do descontentamento na articulação de estratégias de subversão do jogo. Se os grupos sociais são estruturados, com todo seu peso de reprodução das relações e representações sociais, eles também podem apresentar (mesmo que em alguns momentos mais que outros) margens de estratégias calcadas no saber prático ou nas reflexividades produzidas pelos agentes. Lutas e frustrações relacionais podem provocar-lhes (mesmo que em alguns apenas) a presença de espírito, a consciência ou reflexividade em situação e em ação, permitindo-os (re)avaliar o lance e a dinâmica das disputas e relações de poder.

Essa reflexividade permite retomar posições, reconstruir concepções, buscar linhas de fuga, recuar, avançar, mesmo enfrentar as estruturas tradicionais, produzindo dinâmica no contexto social (BOURDIEU, 2001, p. 198). Há, portanto, para o agente social, "certa margem de liberdade" (p. 286). Para que as disposições encontrem harmonia com a estrutura do campo, a illusio (o interesse no jogo social) deve estar em sintonia com a lusiones (oportunidades e recompensas, mas também o acaso propício). Dito de outra forma: as expectativas criadas pelo sistema no agente devem encontrar no campo o ajuste e as chances de sua realização. Quando este processo não ocorre, os desajustes estimulam tensões e frustrações, colocando em desarmonia todo o universo no qual deveriam coincidir tendências objetivas e expectativas subjetivas. O autor ressalta que essa sensação de "falta de futuro", característica mais difundida entre os "danados da terra", tem sido "uma experiência cada vez mais ampliada" na sociedade globalizada (2001, p. 286). E acrescentaríamos: entre os profissionais liberais médicos, mas não apenas. É no âmbito do desajuste e da insatisfação que grupos e agentes articulam reflexividades, produzindo novos sentidos, através de novas práticas ou linhas de fuga que apresentam a possibilidade de gradativamente mudar certos aspectos de conformação dos campos (HERZLICH, 1991; DE CERTEAU, 2002; TARDE, 2003; MATTOS; LUZ, 2009).

Este aspecto da dinâmica social vem sendo demonstrando há mais de uma década pelo alentado número de estudos (teses, livros, artigos, dissertações) do Grupo Racionalidades Médicas e Terapêuticas Alternativas. A produção desse grupo tem sugerido que, se a ordem simbólica, (memória social, ou estrutura subjetiva ou mesmo objetiva) apresenta autonomia face à estrutura econômica e à ordem política e social, esta é relativa, pois em quaisquer circunstâncias, e sobretudo nos períodos de desajuste entre illusio e ludens, os sujeitos das ações articulam práticas que configuram novas weltanschauungen, através da produção de (a) reflexividades menos conscientes (práticas), que conferem novos sentidos por intermédio de estratégias de ação ao mundo e a existência; (b) reflexividades mais conscientes (discursivas) produtoras de novos significados sobre mundo social, o que politicamente reabre os espaços dos possíveis (LUZ, 2003; 2009; DOMINGUES, 2004).

No entanto, este movimento se realiza no interior e por intermédio dos recursos que a própria ordem social apresenta aos agentes (GIDDENS, 1991; BOURDIEU, 2001; DE CERTEAU, 2002). Esses recursos são "trabalhados" em um processo de bricolagem (LÉVI-STRAUSS, 2002; LUZ, 2003), que remete à racionalidade do pensamento selvagem (não-racionalista) sugerido pelo trabalho antropológico de Lévi-Strauss como presente em qualquer sociedade, e não apenas em sociedades ditas "primitivas". Remetem, também, ao "paradigma indiciário" esboçado por Ginzburg (1989). É nessa margem de liberdade produzida dinamicamente entre o que se convencionou denominar nas ciências sociais ação e estrutura, indivíduo e sociedade, que se escora a autonomia das lutas dos agentes pela autoridade, de conferir sentido ao mundo social e aos campos de saberes e práticas que o constituem.

Considerações finais

Este estudo teve como objetivo analisar o discurso dos médicos residentes sobre sua passagem pelo ambulatório, interpretando os sentidos e significados das práticas, as representações institucionais e a construção da identidade do recém-formado ou do terapeuta em início de carreira.

Percebemos que o ambulatório é visto como dimensão negativa, na qual apenas doenças conhecidas e recorrentes são diagnosticadas, reiterando o fato de a medicina ocidental contemporânea tratar patologias e não pessoas ou singularidades. Esses tipos de patologia não trazem interesse para os médicos, pois não representam desafio de aprendizado ou demonstração de talento para os pares, revelando, desta forma, signos de uma economia que tem a doença como valor, vendo-a como mais positiva quanto mais rara for. O cálculo frio e a assepsia relacional presentes no contexto tornam insatisfeitos não apenas os pacientes, mas também terapeutas frustrados com a lógica antissolidária do campo biomédico. Isso sugere que, se este processo de reprodução da ordem institucional médica tem sido hegemônico em nossa sociedade, existem também exceções e descontentamentos por parte de agentes que buscam estratégias de subversão e linhas de fuga, apresentando uma possível mudança dos sentidos, significados e práticas. Em outras palavras: é neste âmbito (mas não apenas) de adequação dos neófitos e de produção das disposições incorporadas e, portanto, de reprodução das relações sociais do campo da biomedicina, que surgem as inadequações e frustrações, as (des)ilusões e (des)contentamentos de alguns agentes, levando-os à reflexividade prática e à contestação dos saberes e ações tradicionais da Biomedicina.

Insatisfeitos, tendem a buscar em outras racionalidades médicas, alternativas para as práticas institucionais com as quais não concordam e que os incomodam. Essa dinâmica, que atravessa parte das relações no campo médico permite, assim, por outro lado, a articulação de novos saberes e práticas em saúde coletiva.

Notas

Recebido em: 04/08/2009.

Aprovado em: 03/05/2010.

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  • 1
    Financiamento: CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Processo: 151803/2007-2 Pós-Doutorado Jr.
  • 2
    A Linha de Pesquisa Racionalidades Médicas e Práticas em Saúde Coletiva foi iniciada no Instituto de Medicina Social da UERJ em 1992, pela Professora Madel Therezinha Luz, com um estudo qualitativo empírico-analítico comparativo de quatro sistemas médicos complexos (Biomedicina, Medicina Tradicional Chinesa, Medicina Homeopática e Medicina Ayurvédica). As novas Práticas em Saúde Coletiva (da
    fitness à
    wellness), bem como as práticas terapêuticas, incluindo as formas artísticas, em grande expansão atualmente na sociedade civil, e mesmo nas instituições e serviços de saúde (hospitais, enfermarias, ambulatórios, serviços municipais etc.), ocuparam um espaço temático importante nas atividades desta linha de pesquisa.
  • 3
    "De que maneira se efetua a passagem, descrita por Freud, de uma organização narcisista da libido, na qual a criança toma a si mesma (ou seu próprio corpo) como objeto de desejo, para um outro, no qual ela se orienta para um outra pessoa, tendo acesso ao mundo das 'relações de objeto', sob a forma do microcosmo social originário, e dos protagonistas do drama que aí se desenrola? (BOURDIEU, 2001. p. 201).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      04 Ago 2009
    • Aceito
      03 Maio 2010
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