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Editorial

EDITORIAL

Genética e Saúde Coletiva: a persistência das explicações deterministas

Sandra Caponi

Um dos maiores desafios da Saúde Coletiva é poder articular a diversidade de saberes que compõem esse campo disciplinar complexo. Ela deve incitar um diálogo entre as ciências da vida, as ciências humanas e sociais e os estudos estatísticos, que se negue a reduzir a diversidade dos fatos sociais a explicações biológicas ou médicas. Nesse sentido, o texto publicado em 1985 por Lewontin, Rose e Kamin, denominado Not in our genes, continua sendo uma referência inelidível. Apresenta-se ali um extenso argumento de 322 páginas contra essa modalidade, pretensamente científica, de construir explicações reducionistas para um amplo conjunto de ações e comportamentos: desde nossas decisões cotidianas e nossos vínculos sociais, até as distinções raciais e de gênero.

Após 25 anos de sua publicação, e apesar das inúmeras críticas recebidas pelos defensores das explicações genéticas para fatos sociais, os problemas ali apontados permanecem assombrosamente atuais. Os quatro artigos que compõem o tema deste número, dedicado à Genética e à Saúde Coletiva, podem se inscrever nesse mesmo espaço de discussão. Seja adotando uma perspectiva claramente crítica ao reducionismo genético, ou uma perspectiva contrária à posição defendida por Lewontin, os textos exploram as possibilidades e os novos desafios que as pesquisas genéticas e as tecnociências colocam para o campo da Saúde Coletiva e para a gestão pública.

Abrindo o tema, Liliana Acero apresenta uma revisão crítica dos estudos dedicados ao problema da participação pública, da gestão social e da governança nos tempos da Nova Genética, dando especial destaque ao caso das pesquisas com células-tronco (PCT). O texto explora novas formas de regulação das biotecnologias que hoje se impõem, o surgimento de novos atores, de novos desafios e de novas exigências, que configuram espaços de sociabilidade e de defesa de direitos antes inimagináveis. A autora analisa, de maneira competente e muito bem fundamentada, até que ponto as transformações nas biociências aceleraram as manifestações de afirmação do poder cidadão perante os pesquisadores e os profissionais da saúde, possibilitando uma mudança significativa na gestão política da própria vida, que se manifesta de modo díspar em diferentes países. Criam-se assim novos espaços de sociabilidade e novas redes de cooperação e intervenção, muitas vezes opostas e outras vezes aliadas às poderosas estruturas e lobbies das indústrias farmacêuticas e das grandes corporações.

O segundo texto é um estudo polêmico de autoria de Murilo Vilaça e Alexandre Palma. O texto apresenta uma reflexão sobre os conceitos de biodesign e de human enhancement, defendendo a tese de que o melhoramento humano constitui hoje uma realidade antropotécnica tangível. Os autores defendem, demonstrando uma confiança algo excessiva nas possibilidades abertas pela genética, a capacidade de melhoria genética do humano, adotando uma posição crítica em relação aos conceitos de biopolítica e de biossociabilidade, que consideram limitados ao estudo do risco e da promoção da saúde. Afirmam que o conceito de biopolítica pode configurar um recurso analítico para estudos históricos, que é pouco operativo para compreender nossa atualidade. Em relação ao conceito de biossociabilidade, destacam o uso da ideia de artificialização. Os autores consideram que a maior contribuição da nova genética não estaria em sua potencialidade para resolver problemas vinculados à saúde, mas sim na capacidade de self-design dos sujeitos. Para eles, com a nova genética, "o horizonte que se abre é o da eugenia, o da seleção e o da autocriação, algo completamente novo, um transumanismo que colocaria o (velho) humano num estado de obsolescência". Os autores revisam, assumindo uma posição teórica polêmica, as controvérsias atuais que se referem aos temas do determinismo, eugenia negativa e positiva, natureza humana ou biodesign.

O terceiro texto deste número temático é de minha autoria. O artigo explora o uso do conceito de hereditariedade mórbida em diferentes textos de Emil Kraepelin e sua continuidade nos trabalhos dos neokraepelinianos. Kraepelin estuda a hereditariedade mórbida entrevistando seus pacientes e familiares, estudos que serão posteriormente articulados a pesquisas genéticas por seus sucessores, os neokraepelinianos, que participaram ativamente da elaboração do DSM III. Na chamada Era da Genética, uma confiança desmedida nas explicações genéticas e hereditárias parece consolidar-se no campo da psiquiatria. Embora os estudos sobre determinação genética de patologias mentais resultem inconclusivos ou pouco confiáveis até hoje, a aceitação dos postulados da herança mórbida e do determinismo genético contribuiu para legitimar, em contextos históricos diferentes, a exclusão ou a desconsideração, por parte do saber psiquiátrico, das narrativas dos pacientes sobre suas histórias de vida.

Em seguida, o quarto artigo temático aprofunda o problema do determinismo genético, que constituirá um dos eixos articuladores do trabalho. Trata-se do estudo que Kenneth Camargo Junior e Thais Camargo dedicam às representações atualmente existentes sobre o tema da genética e sua correlação com a saúde, a partir da análise de três veículos de grande circulação no Brasil. Tomando como ponto de partida as análises de Fleck, os autores definem três grandes eixos de discussão, denominados núcleos de significação: determinismo, simplificação exagerada e ganhos futuros. Com extrema competência, os autores desvendam de que modo se articulam esses eixos nos documentos analisados, evidenciando que o determinismo genético, a simplificação de conceitos científicos complexos e a suposição de uma aplicação próxima das descobertas científicas geram distorções e impedem uma avaliação crítica que ajuda a reforçar a autoridade dos especialistas em biologia e genética, apresentados nos documentos analisados como sendo os verdadeiros detentores dos segredos últimos da vida e da morte. Assim, o texto de Kenneth e Thais pode ser lido como um exemplo concreto que ilustra os diversos modos em que se manifesta o problema da governança nos tempos da Nova Genética, analisado por Liliana Acero no primeiro artigo que compõe este número temático.

A seção de temas livres traz 15 artigos seguidos pela resenha elaborada por Antonio Rodrigues Ferreira Júnior e Nelson Filice de Barros, sobre o livro organizado por Daphne Rattner e Sonia Ferraz, denominado A medicina tradicional e os sistemas municipais de saúde: humanização do parto sob o enfoque do patrimônio cultural.

Os temas livres iniciam-se com um texto de Thiago Sarti e colaboradores, dedicado à análise da validade dos instrumentos de autoavaliação para melhorar a qualidade de atendimento na Estratégia Saúde da Família. Letícia Masson et al. questionam as condições de trabalho de auxiliares de enfermagem que atuam em uma unidade neonatal, tendo como referência a concepção canguilhemiana de saúde. Andréa Filgueiras e Ana Lúcia Abrahão estudam a emergência de um novo ator no cenário da saúde do Brasil, o agente comunitário de saúde, evidenciando as precariedades da formação por eles recebida para a execução de suas atividades. Debora Ferreira e Cesar Favoreto abordam o problema da adesão terapêutica dos portadores de Sida/Aids a partir da compreensão das narrativas desses pacientes. Alessandra Rivero e Celina Köhler propõem uma abordagem metodológica inovadora como estratégia para ampliar o conhecimento existente sobre os determinantes sociais do processo de desmame.

Dando continuidade aos temas livres, Felipe Addum et al. apresentam estudo referido ao uso de ferramentas de gestão para a redução do risco de contaminação por enteroparasitoses, discutindo as dificuldades de entendimento dos profissionais de saúde em relação ao conceito de meio ambiente. Ruben Lemke e Rosane Neves analisam as potencialidades do conceito de itinerância e sua capacidade tanto para resistir ao mandato social de controle, como para possibilitar a construção de uma nova uma ética do cuidado. Astrid Boehs et al. apresentam um estudo crítico e bem fundamentado referido à percepção dos profissionais sobre o cuidado que as mães realizam com crianças de 0 a 6 anos, concluindo que as estratégias atualmente existentes tendem a tornar as mães mais dependentes dos serviços de saúde, reforçando o processo de medicalização da infância.

Caroline Alcântara e colaboradores comparam a condição de saúde bucal de idosos não-institucionalizados com as metas definidas pela Organização Mundial de Saúde para o ano 2010. Karina Carrascoza et al. analisam a percepção de mães que amamentaram seus filhos até os seis meses de vida. Alice Uchoa et al. apresentam um estudo de avaliação da satisfação dos usuários do Programa de Saúde da Família de dois pequenos municípios do Rio Grande do Norte. George Kornis et al. analisam as interfaces do processo de regulação em saúde no Brasil, com destaque para o setor farmacêutico, utilizando uma abordagem histórica para identificar os atores que participaram desse processo. Carlos Silva et al. estudam a prevalência dos traumas maxilofaciais em crianças e adolescentes, decorrentes da violência urbana em Belo Horizonte, Brasil, reconstruindo a história da violência urbana a partir do estudo desses traumas. Rosângela Cotta et al. propõem-se a analisar uma experiência do controle social via Conselho de Saúde, verificando grande desconhecimento sobre as bases legais e ideológicas da participação social que obstaculiza a participação dos usuários. O último texto que compõe este numero é apresentado por Lenice Reis et al. Os autores abordam com competência e seriedade um problema tão atual quanto inaceitável, a persistência da mortalidade materna, considerada como sendo apenas a face mais visível da persistente precariedade da atenção à saúde das mulheres, apesar das iniciativas para a efetivação do direito à maternidade segura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2011
  • Data do Fascículo
    2011
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