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Remédios para viver ou viver para os remédios?

RESENHAS

Remédios para viver ou viver para os remédios?

Rafaela Zorzanelli

Professora adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), Rio de Janeiro, Brasil. Endereço eletrônico: rtzorzanelli@hotmail.com

DUMIT, Joseph.

Drugs for life.

How pharmaceutical companies define our health.

Durham & London: Duke University Press, 2012.

Drugs for life é o novo livro do antropólogo Joseph Dumit, lançado em setembro de 2012 pela Duke University. Dumit, além de professor de Antropologia, é diretor do Departamento de Science and Technology Studies na Universidade da Califórnia, em Davis. O livro é o resultado de mais uma de suas várias incursões sobre os diferentes impactos culturais das biotecnologias em ascensão desde a segunda metade do século XX na vida cotidiana dos indivíduos. Em obras anteriores, o autor já se dedicara às neuroimagens, às técnicas reprodutivas e, nesse estudo mais recente, o tema são os medicamentos.

Grande parte desse trabalho de Dumit diz respeito, por um lado, a uma retomada da literatura recente que trata da intervenção medicamentosa sobre o risco precoce de desenvolver doenças, como por exemplo, Pharmaceutical reason, de Andrew Lakoff (2006), Prescribing by numbers, de Jeremy Green (2007) Medicating race, de Anne Pollock (2012) e When experiments travel: clinical trials and the global search for human subjects (2009), de Adriana Petryna. Por outro, ele se dedica a uma análise exaustiva da lógica dos ensaios clínicos randomizados duplo-cego e do tratamento do risco precoce na cultura americana, por meio de fontes variadas: entrevistas com pessoas que utilizam medicamentos e com médicos, buscando compreender como eles se apropriam dos fatos médicos em seu cotidiano; análise de material de mídia de massa, realizada com uma base de dados de jornais; artigos de revistas com resultados de ensaios clínicos e guidelines médicas; anúncios televisivos e impressos de medicamentos utilizados pelas indústrias farmacêuticas norte-americanas ; etnografia de conferências de marketing farmacêutico e análise de seus periódicos e websites. Seu campo de análise são os Estados Unidos, mas suas reflexões podem muito bem ser aplicadas ao que acontece em outros países, em tempos de globalização do risco e de exportação de categorias médicas em escala global.

Os temas dos capítulos do livro trazem referências cruzadas e grande articulação entre os temas tratados, do início ao fim da obra. O primeiro capítulo, "Responding to facts", é dedicado a detalhar a figura do paciente-especialista, indivíduo que conhece a si mesmo não pela experiência com seu corpo, mas pelas informações médicas; o segundo, "Pharmaceutical reasoning and direct-to-consumer advertising", analisa o quanto o mercado farmacêutico concebe os ensaios clínicos como um investimento para suprir informações e expectativas dos indivíduos em relação a sua própria saúde. O capítulo 3, "Having to grow medicine", debate o problema com o qual a indústria farmacêutica se confronta, que é o de encontrar estratégias para sua sobrevivência, conduzindo pesquisas que produzam grandes mercados. O capítulo 4, "Mass health: illness is a line you cross", analisa como os ensaios clínicos têm ocupado lugar central no modo como pensamos sobre nossa saúde, e o quanto a definição da linha que divide saúde e doença é mais uma escolha sócio-cultural do que técnica. O capítulo 5, "Moving the lines, defining the thresholds", tem o foco no modo como a indústria farmacêutica decide a partir de que momento o risco merece ser tratado. No capítulo 6, "Knowing your numbers, pharmaceutical lifestyles", o autor analisa três "modos biomédicos de viver" pelos quais os indivíduos têm manejado os fatos científicos sobre o risco de adoecer.

Há nessa obra de Dumit clara inspiração dos Social Studies of Science and Technology, demonstrada por seu interesse em analisar forças sócio-históricas que produzem fatos científicos, que os disseminam e os fazem circular como informações aparentemente neutras, a despeito das controvérsias que muitas vezes os sustentam. O principal foco de Dumit, nesse sentido, é a análise do que se pode chamar de vida social de um fato médico, e do modo como os indivíduos redefinem a si mesmos a partir deles. Esse é o tema ao qual o autor tem se dedicado em outras obras: a autoconstrução objetiva de pessoas (objective self fashioning) por meio de fatos médicos. Seu propósito é olhar com estranhamento a aparente naturalidade com que os indivíduos hoje aceitam e tomam para si a responsabilidade e o dever de serem saudáveis for the sake of living longer, bem como o fato de agirmos com base em um conhecimento assumido como natural, lógico e justificado, gerado pelos ensaios clínicos randomizados. Seu olhar de estranhamento e seu foco de análise são dirigidos, por exemplo, ao modo como a colesterolemia, o rastreio de lesões pré-cancerosas, a investigação da taxa de glicose no sangue, o screening de condições potencialmente patológicas são inseridos em nossa lista de preocupações e em nossas agendas pessoais. Seu interesse é a análise de uma nova gramática da doença e do risco, na qual o corpo é inerentemente perturbado e iminentemente doente. Parafraseando René Leriche, para quem a saúde é a vida no silêncio dos órgãos, seria a doença, e não mais a saúde, que se tornaria muda e assintomática.

Tendo essas reflexões como pano de fundo, o autor explora a descrição do que ele denomina de um novo modelo de saúde, a "saúde em massa", em que o estado normal dos indivíduos é o de preocupação com aquilo que não se sabe sobre o próprio corpo: "[s]er normal, portanto, é sentir-se inseguro" (p. 1). Paradoxalmente, a insegurança de cada um aumenta na mesma medida em que aumentam as técnicas de detecção e rastreio dos riscos de desenvolver doenças: "como se quanto mais soubéssemos, mais temêssemos, e quanto mais temêssemos, mais ações preventivas e medicações precisássemos tomar" (p. 1-2).

A análise de Dumit retoma a importância do conceito de fator de risco e o quanto ele contribuiu para a formulação desse novo tipo de saúde que ele se dedica a descrever. O cenário pós-guerra, especificamente depois dos anos 1950, testemunhou a ascensão do valor dos estudos clínicos randomizados duplo-cegos. A produção do conhecimento biomédico transformou os estudos clínicos em padrão-ouro de pesquisa, tendo como exemplo emblemático o Framingham Heart Study, que investigou hábitos de saúde e doença por décadas, em quase cinco mil indivíduos, em Massachusetts (EUA). A produção de evidências de que fumar "causava" câncer de pulmão e aumentava a mortalidade, por exemplo, ajudou a definir a noção do que é uma população de risco e do que são hábitos de risco. Os estudos em larga escala representaram, assim, um movimento importante na saúde pública, que transformou o risco em um padrão generalizado de intervenção médica. Temos com isso uma mudança crucial na saúde pública, bem ilustrada pela luta antitabagista dos anos 1940-1960, que estabeleceu e difundiu para o senso comum a relação entre fumo e risco aumentado de morte por câncer e enfisema.

Dada a importância que os ensaios clínicos adquiriram como modelos de produção de conhecimento biomédico, chama a atenção que Dumit não se dedique a debatê-los em seu contexto mais amplo, como resposta aos grandes desastres relacionados à falta de segurança de certas substâncias, como foi o caso dramático da talidomida, na década de 50; e que tampouco discuta a relação desse modo de produzir conhecimento com a ascensão da medicina baseada em evidências, que, ao que nos parece, está diretamente relacionada ao que o autor chama de nova concepção de "saúde de massa".

Seu foco é debater o quanto os resultados produzidos por esses estudos em massa passaram a determinar a linha tênue a partir da qual uma característica fisiológica é considerada digna de intervenção médica, como é o caso, por exemplo, da pressão arterial, da glicemia e da colesterolemia. Um desdobramento direto dessa nova forma de manejar o risco precoce é que a experiência vivida do corpo – a dor, o incômodo, o mal-estar, a restrição, os sintomas de uma doença em curso – não é mais o alvo exclusivo da atenção médica, mas sim, o indivíduo assintomático, cujos valores fisiológicos desviam dos padrões estabelecidos pelos ensaios clínicos e pelas guidelines que lhe sucedem.

Duas ideias nos parecem os pontos altos do livro de Dumit. Uma delas é a já referida formulação de uma percepção de saúde em voga, a "saúde de massa". Ela operaria por ensaios clínicos e pela produção de evidências, e necessariamente, pela produção de novas prescrições – que se tornam, elas próprias, o sentido da saúde. A saúde de massa nos faz testemunhar a ascensão da intervenção médica sobre a pré-doença, ou seja, uma condição em que não há sintomas experienciados, mas que, ainda assim, passa a ser alvo de tratamento. Essas pré-doenças passam a ser vistas como condições crônicas de longo termo, requerendo predição, vigilância e tratamento, e trazem consigo o dilema da indistinção entre a linha que separa o risco de desenvolver uma doença de uma doença propriamente dita. É nesse sentido que os medicamentos se tornam drugs for life.

O outro ponto alto do livro é uma tipologia soft de alguns modos pelos quais fatos científicos criam formas de relação das pessoas com seus próprios corpos e com sua identidade (novamente, o tema recorrente do object self fashioning). Dumit se pergunta como sobrevivemos à enxurrada de informações sobre saúde, e como delineamos modos de viver diante do que passamos a saber sobre nossos corpos. Já que não é possível voltar a um estado de ignorância depois de que se tenha sido informado sobre uma condição particular, desconhecida ou inesperada sobre o próprio corpo, a apropriação do conhecimento biomédico muda o que cada indivíduo é. Assim, esses "modos biomédicos de viver" revelam como temos nos adaptado à percepção de uma doença sempre à espreita, a ser desvelada a qualquer momento por técnicas de rastreio.

O primeiro desses modos é a condição de "paciente como especialista". O paciente é um expert em viver um estilo de vida autorregulado, em conhecer suas taxas metabólicas, e em se manter em estado de vigilância sobre sua saúde. É um indivíduo que vive para ser saudável, tornando-se o produto ideal da indústria farmacêutica nos últimos 50 anos. Como consumidor de saúde, está sempre em busca de mais informação para que o cuidado médico esteja sob sua responsabilidade do início ao fim (desde o pedido dos exames até o acompanhamento dos resultados). Em suma, "a saúde é um estado que pode nunca ser atingido, mas que organiza uma parte da atenção, da energia e do estilo de vida de alguém" (p. 186).

O segundo modo de viver em tempos de saúde de massa é o que Dumit chama de "sujeitos assustados" (fearful subjects). Nesse caso, temos uma vivência de ansiedade gerada diante do excesso de informação disponível e de não se saber o que fazer com elas, ou qual sua significância clínica ou preditiva. A vida é sentida como um estado de competição com a doença, e em contrapartida, a saúde leva embora a fruição espontânea de experiências comuns do cotidiano. A principal característica desse modo de viver é a ambivalência entre o desejo de ser saudável e a negação dos prazeres da vida, de um lado, e a vontade de gozar a vida, que requer o sacrifício da saúde, de outro. Essa divisão entre o que é saudável e o que é prazeroso acaba sendo resolvida pelo medo, não pela escolha.

O terceiro modo é o de "viver melhor por meio da química". Nele, o consumo de medicamentos ocorre para manter o estilo de vida, e não para mudá-lo. Para garantir, preventivamente, que os hábitos de vida não sejam alterados, mas que os hábitos de vida e as taxas corporais também não: "[s]e eu ingerir medicamentos para o colesterol, posso comer quantos cheeseburgueres quiser?" (p. 195). Desse modo, não seria necessário arcar com a restrição aos prazeres da vida nem abrir mão dos benefícios que certos medicamentos podem trazer. Dumit ressalta o quanto esse terceiro modo sugere a ideia de uma man made biology, isto é, do manejo da biologia pela escolha individual. O consumo de medicamentos é, então, uma estilização da vida. Para lidar com os efeitos colaterais – lado imponderável desse tipo de consumo – cada indivíduo inventa e partilha formas ativas de burlá-los, em nome do ganho trazido pela ingesta frequente de medicamentos. Estamos tratando, então, de "substâncias para tomar quando for o caso" (taken as needed drugs). E é o consumidor/paciente quem define quando é o caso de tomá-las, fazendo do médico alguém que legitima sua necessidade por meio da prescrição.

É interessante refletir, no campo específico do cuidado à saúde mental, o quanto o continuum entre risco e doença traz novos problemas com os quais temos nos confrontado: o apagamento dos limites a partir dos quais um se transforma no outro, e por consequência, a própria noção do que é ser saudável; a reclassificação da doença a partir de medidas estatísticas de massa, e não da dimensão experiencial do adoecimento. Nos dois casos, as pesquisas em torno da intervenção precoce na esquizofrenia e do transtorno de déficit de atenção como fator de risco para outros transtornos na vida adulta são emblemáticas.

Afora o campo da psiquiatria, o fato de que haja um continuum entre saúde e doença dificulta a definição da fronteira entre condições tratáveis e a variação nas formas de corporeidade: "se você está reduzindo seus riscos tomando um medicamento diário para o colesterol, você está doente ou são?" (p. 201). Vemos se desenhar uma alteração importante de certa visão de saúde segundo a qual estar saudável era não tomar remédios, não ir ao médico, não se preocupar com o corpo. No lugar disso, a atitude cultural difusa é de que a tentativa de reduzir o risco é sempre saudável, e quiçá, mandatória. Se, para o filósofo da medicina Georges Canguillem, saúde é adoecer e poder se recuperar, nessa nova visão de saúde nós nunca nos recuperamos, e nosso estado normal é o da vulnerabilidade e o da vigilância constante dos sinais imperceptíveis do corpo. A linha que separa risco e doença é tênue, e não determinada pela patologia em curso, mas pelos resultados dos ensaios clínicos que se transformaram no padrão-ouro para diagnóstico, e em um mandato para o tratamento em massa.

Desdobra-se disso um debate que Dumit sugere, e que nos caberia enfatizar ou retomar detidamente. Essa visão de saúde passa necessariamente pela coerção ao tratamento do risco, e não inclui a liberdade para o não tratamento. Estaríamos diante de uma visão de saúde que não contém em si a possibilidade de não se tratar, isto é, que não inclui o não tratamento como escolha possível. A distinção entre a "saúde como tratamento" e a "saúde como liberdade para o tratamento" (p. 127) se apaga diante da atmosfera cultural que impele a agir sobre o risco precoce, tão logo seja detectado. Seria essa concepção de saúde uma forma de usufruir das possibilidades que o conhecimento biomédico nos oferece, ou uma variante sofisticada de coerção, que nos leva a viver sob o medo constante de adoecer?

Em outras palavras, a não adesão ao tratamento do risco precoce (que dirá em casos nos quais os sintomas já se mostram claramente) é percebida por nossos pares, por nossos amigos, por cada um de nós, como obscurantismo, ignorância e falta de responsabilidade sobre si. Assim, toda informação obtida sobre seu próprio corpo e os riscos potenciais de adoecer se transformam em informação para concordância e adesão às formas de intervenção precoces disponíveis, e não para permitir a escolha, inclusive, de não se tratar.

A visão crítica do autor sobre o mandato ao tratamento do risco precoce, que é hoje parte do senso comum, nos conduz a um debate já encontrado em autores da década de 70, inseridos na chamada crítica à medicalização. Por meio dela, se ressaltam as múltiplas faces do processo de dominância da jurisdição médica sobre um número cada vez maior de características da vida cotidiana, inclusive as que não são ipso facto, patologias, tais como a timidez, a tristeza, o medo do fracasso, o isolamento social, dentre outros. Se por um lado, a oferta de biotecnologias e medicamentos nos permite ganhos incomensuráveis no aumento de nossa expectativa de vida em melhores condições, por outro, nos impõe um clima de coerção ao tratamento médico, na medida em que experimentamos, como o outro lado da moeda, a onipresença da doença e a saúde como objeto compulsório e fetichizado. Como expõe o autor, em um só golpe, a possibilidade de uma surplus health produz também uma surplus illness.

A mais recente obra de Dumit, além de servir para reflexão e crítica dos pressupostos com os quais lidamos sem questionamento a respeito de nossa saúde e de nossos corpos, serve ainda como itinerário e guia de leitura para os interessados em ingressar no estudo do status das drogas farmacológicas na contemporaneidade – tanto no que elas nos permitem ganhar em termos de saúde, quanto em relação às novas formas de aprisionamento também por elas geradas, em um ambiente cultural em que medicamentos se tornaram mais um objeto de consumo ou commodity.

Recebido em: 18/02/2013

Aprovado em: 04/03/2013

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2013
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