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Referência e contrarreferência entre os serviços de reabilitação física da pessoa com deficiência: a (des)articulação na microrregião Centro-Sul Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

Reference and counter-reference between physical rehabilitation services of Persons with Disabilities: (dis) articulation in the Fluminense Central-South region, Rio de Janeiro, Brazil

Resumo

Com a organização das Redes de Atenção à Saúde, o sistema de referência e contrarreferência entre os diferentes níveis tecnológicos é importante ferramenta para articular seus pontos de atenção.

Objetivo:

Identificar como ocorrem a referência e a contrarreferência entre o serviço de reabilitação física, a unidade hospitalar e a Atenção Primária à Saúde como um pressuposto para consolidação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência na Microrregião 1 da Região Centro-Sul Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil.

Método:

Pesquisa exploratória, descritiva, com abordagem quali-quantitativa, utilizando o método do Discurso do Sujeito Coletivo. Dados foram coletados através de entrevistas individuais, com utilização de roteiro semiestruturado e participação de 27 sujeitos, realizadas no primeiro semestre de 2014, analisados à luz do Qualiquantisoft(r) (QQsoft) versão 1.3c.

Resultados:

Da análise dos dados, emergiu a Ideia Central (IC), por parte da maioria dos gestores, de que as referências e contrarreferências entre os serviços pesquisados são realizadas por encaminhamentos médicos através de uma ficha própria para este fim. Outra IC foi a de que o gestor não soube informar esse fluxo.

Conclusão:

Conclui-se que, embora instituída a referência para articulação efetiva entre unidades e serviços em rede de saúde, identificou-se que ela é ineficiente, assim como constatada inexistência da contrarreferência.

Palavras-chave:
reabilitação; referência e contrarreferência; gestão em saúde; atenção secundária à saúde; regionalização

Abstract

With the organization of the Health Care Networks, the system of reference and counter-reference, between the different levels of technology, is characterized as an important tool to articulate their points of attention.

Objective:

To identify how does the reference and counter-between physical rehabilitation service, hospital and primary care as a prerequisite for consolidating Care Network to Persons with Disabilities in the micro-region 1 of Fluminense South-Center, Rio de Janeiro state, Brazil.

Method:

Exploratory, descriptive research with qualitative-quantitative approach, using the collective subject discourse method. Data collected through individual interviews, using semi-structured, with participation of 27 subjects, conducted in the first half 2014, analyzed the light of Qualiquantisoft(r) (QQSoft) version 1.3c.

Results:

Data analysis emerged the Central Idea (CI), by most managers, the references and counter-references among surveyed services are performed by medical referrals through its own record for this purpose. Another CI was that the manager could not say this flow.

Conclusion:

We conclude that although established the reference for effective coordination between units and services in the health system, it was identified that it is inefficient, as evidenced absence of counter-reference.

Key words:
rehabilitation; reference and counter-reference; health management; secondary care; regional health planning

Introdução

A Política Nacional de Saúde das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Portaria MS/ GM nº 1.060, de 05 de junho de 2002 (BRASIL, 2002), vem contribuindo para que o Estado assuma sua parcela de responsabilidade quanto ao incremento de ações e serviços de saúde para as pessoas com deficiência (PcD), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Essas ações se traduzem em resgate da dignidade comparado ao que, tradicionalmente, o sistema público lhes oferecia através de estruturas e contextos precários, dispostos em serviços ofertados por instituições com base na caridade (MALFITANO; FERREIRA, 2011MALFITANO, A. P. S.; FERREIRA, A. P. Saúde pública e terapia ocupacional: apontamentos sobre relações históricas e atuais. Rev. ter. ocup. Universidade de São Paulo, v. 22, n. 2, p. 102-109, 2011. ).

Cabe ressaltar que a Carta Magna, em seu art. 196, enfatiza que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantida à população mediante políticas sociais e econômicas que objetivem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988). Nesse sentido, a Carta Magna ainda avança, um pouco mais, em seu inciso II do art. 23, citando que é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas com deficiência (BRASIL, 1988). Destarte, as ações e serviços de saúde do SUS estão organizados de maneira regionalizada e hierarquizada em níveis crescentes de complexidade tecnológica, do primário e secundário ao nível terciário. Essa estruturação tem como objetivo alcançar a integralidade da assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos (BRASIL, 1990).

A Atenção Primária à Saúde (APS), conforme denominação internacional, constitui o nível de atenção à saúde que se encontra mais próximo dos cidadãos e tem suas ações desenvolvidas nas unidades básicas de saúde (UBS). Ela representa a principal porta de entrada e centro de comunicação com toda a Rede de Atenção à Saúde, devendo se pautar nos princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social (BRASIL, 2012a).

Já aos níveis secundário e terciário, competem o planejamento e a execução de ações de média e alta complexidades, desenvolvidas nos ambulatórios de especialidades e em serviços hospitalares, normalmente utilizados em casos que requeiram atenção de profissionais especializados, recursos tecnológicos de maior densidade no apoio diagnóstico e terapêutico, não disponíveis na APS (FINKELSZTEJN et al., 2009FINKELSZTEJN, A. et al. Encaminhamentos da Atenção Primária para Avaliação Neurológica em Porto Alegre, Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 731-741, 2009. ; AGUILERAI et al., 2014AGUILERAI, S. L. V. U. et al. Iniquidades intermunicipais no acesso e utilização dos serviços de atenção secundária em saúde na região metropolitana de Curitiba. Rev. bras. epidemiol, v. 654, p. 667, 2014. ).

Importante destacar o relevante papel da APS como política estruturante para todo o sistema, incidindo sobre ela a capacidade de estabelecer articulações com a atenção secundária e terciária, incrementando o potencial deste nível e favorecendo o acesso universal das pessoas aos serviços disponíveis na comunidade (VENANCIO et al., 2011VENANCIO, S. I. et al. Referenciamento regional em saúde: estudo comparado de cinco casos no Estado de São Paulo, Brasil. Ciênc. saúde coletiva, v. 16, n. 9, p. 3951-3964, 2011. ). Ademais, destaca-se o potencial conquistado pelas ações da APS, cujos resultados revelam sua expressiva capacidade de resolver 85% dos problemas de saúde da população (SERRA; RODRIGUES, 2010SERRA, C. G.; RODRIGUES, P. H. DE A. Avaliação da referência e contrarreferência no Programa Saúde da Família na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Ciênc. saúde coletiva, v. 15, n. 3, p. 3579-3586, 2010. ).

Cabe pontuar, no entanto, que o potencial de resolubilidade da APS ainda não tem alcançado números tão expressivos no que tange aos atendimentos de reabilitação, especificamente aqueles dependentes da atenção da fisioterapia na APS. Essa assertiva foi evidenciada no estudo realizado no município do Rio Grande-RS por Baena e Soares (2012BAENA, C. P.; SOARES, M. C. F. Subsídios reunidos junto à equipe de saúde para a inserção da fisioterapia na Estratégia Saúde da Família. Fisioter. mov. [online], v. 25, n. 2, 2012. ), no qual apontam como obstáculos para ampliar a resolubilidade a ausência de profissionais do campo da reabilitação na composição da equipe, dentre os quais o fisioterapeuta.

A despeito do exposto, predomina a compreensão de que o encaminhamento do usuário do SUS para atendimento em outro nível de atenção (ou complexidade) da mesma estrutura depende de um efetivo sistema de referência e contrarreferência, que pode ser compreendido como um mecanismo articulado e eficaz de fluxo para encaminhamento bem-sucedido dos usuários entre os diferentes níveis de atenção (FINKELSZTEJN et al., 2009FINKELSZTEJN, A. et al. Encaminhamentos da Atenção Primária para Avaliação Neurológica em Porto Alegre, Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 731-741, 2009. ).

A referência se caracteriza pelo encaminhamento das UBSs para os níveis de maior grau de complexidade (média e alta). A contrarreferência configura-se pelo retorno do usuário da média ou alta complexidade para a APS, ou seja, quando a continuidade do tratamento requeira menos recursos tecnológicos e terapêuticos, como os disponíveis nas UBSs (SILVA et al., 2010SILVA, A. C. et al. Promoção da Contra-referência no Ambulatório Com Uso do Prontuário Eletrônico pela Neurologia Clínica Pediátrica do Hospital da Criança Conceição. Monografia [Especialização em Gestão de Projetos de Investimentos em Saúde] - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010. ).

A propósito, vale ressaltar que, no universo de práticas terapêuticas interdisciplinares da reabilitação, as avaliações dos ganhos funcionais são sistemáticas e determinantes para progressão ou regressão das pessoas que integram seus programas, em particular, no âmbito da reabilitação física, cuja porta de entrada é compreendida como demanda de referência e seu mecanismo de alta segue o fluxo da contrarreferência.

Ocorre que os sistemas estruturados em diferentes níveis de atenção têm sido alvos de críticas no sentido de serem incapazes de se articularem, resultando em um cuidado fragmentado. A proposta é que o SUS se estruture em Redes de Atenção à Saúde (RAS), através do vínculo de um conjunto de serviços de saúde com missões e objetivos comuns, desenvolvendo ações através da atenção contínua e integral a partir da APS. As RAS preconizam a colaboração entre os diferentes pontos de atenção, caracterizando-os como de equivalente importância no processo do cuidado que deve ser contínuo entre os níveis primário, secundário e terciário (MENDES, 2010MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Ciênc saúde coletiva, v. 15, n. 5, p. 2297-305, 2010. ).

Nesse sentido, ressalta-se que, tanto para os sistemas organizados em diferentes níveis de atenção quanto para os estruturados em RAS, prevalece a necessidade de um efetivo sistema de referência e contrarreferência para viabilizar seus fluxos entre as diversas esferas que os compõem. Nas RAS, esse sistema é parte constitutiva de um componente estruturante das redes, denominado "sistema logístico". Sabe-se que o sistema logístico, ancorado na tecnologia da informação, garante uma organização racional dos fluxos e contrafluxos de informações, produtos e pessoas, permitindo um processo dinâmico de referência e contrarreferência ao longo dos pontos de atenção (MENDES, 2011MENDES, E. V. As redes de atenção a saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2011. ).

O referencial teórico adotado neste estudo foi a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, norteado pela Rede de Cuidados a Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2012), parâmetro de articulação dos serviços de saúde e reabilitação em rede, operacionalizado para a comunidade em pontos de atenção ou unidades de atendimentos específicos. A organização dessa Rede perpassa a identificação de deficiências físicas que necessitam ser encaminhadas da APS para níveis de média e alta complexidade. De acordo com o referencial teórico, as deficiências decorrentes de amputações, ostomias, paralisia cerebral, tetraplegia entre outros, são situações que devem ser referenciadas para unidades de atendimentos específicos, com possíveis desdobramentos para a área de tecnologia assitiva correspondente.

Destaca-se, para este estudo, um dos pilares gerais para as redes, que sejam os de garantir a articulação e a integração entre os pontos de atenção no território (BRASIL, 2012). Para o cumprimento desse fundamento, identifica-se uma estreita relação com a operacionalização de um sistemático e eficiente fluxo de referência e contrarreferência atuante e que envolva os pontos de atenção da microrregião.

Isto posto, este estudo buscou identificar como ocorre a referência e a contrarreferência entre o serviço de reabilitação física, a unidade hospitalar e a atenção básica na Microrregião 1 da Região Centro Sul Fluminense como um pressuposto para consolidação de uma rede.

Método

Trata-se de pesquisa exploratória, descritiva, com abordagem quali-quantitativa, realizada entre janeiro e março de 2014, na Microrregião 1 da Região Centro Sul Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Essa microrregião é composta de cinco municípios, com um total de 155.644 habitantes de acordo com o Censo 2010: Areal (11.423 hab.), Comendador Levy Gasparian (8.180 hab.), Paraíba do Sul (41.084 hab.), Sapucaia (17.525 hab.) e Três Rios (77.432 hab.) (BRASIL, 2012).

Três Rios é o município-polo e sede do Centro Especializado de Reabilitação que oferece serviços de reabilitação aos demais municípios da Microrregião 1, tais como: protetização a amputados; atenção, dispensação de equipamentos coletores e orientação ao autocuidado aos ostomizados; reabilitação decorrente de paralisia cerebral, tetraplegia, hemiplegia, paraplegia e naninsmo.

Casos que demandam a confecção de próteses e monitoração de tecnologias assistivas são encaminhados para as referências no município do Rio de Janeiro e Niterói, ou seja, para oficinas ortopédicas credenciadas pelo SUS da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação e da Associação Fluminense de Reabilitação, respectivamente. E os casos que necessitam de intervenções cirúrgicas são encaminhados para o Hospital de Traumaortopedia Dona Lindú, em Paraíba do Sul. A contrarreferência de cada caso é encaminhada para os municípios da Microrregião 1 onde suas capacidades instaladas permitem serviços de acompanhamento e manutenção dos ganhos obitdos, próprios do programa de reabilitação em longo prazo.

A propósito da terminologia quali-quantitativa, cabe destacar o recomendado por Lefèvre e Lefèvre (2012, p. 14), quando o autor esclarece a obrigatoriedade da presença de uma questão aberta, pois só assim será gerada uma nova substância ou qualidade. A partir do momento em que as qualidades forem descritas, será possível quantificá-las. Por isso falamos em pesquisas quali-quantitativas e não quanti-qualitativas, pois não teríamos como quantificar algo que não foi a priori qualificado.

Foram selecionados intencionalmente 27 participantes no total, por desempenharem funções na gestão pública de saúde da esfera municipal (coordenadores, chefes de serviços, gerentes, secretários e subsecretário) em seus respectivos municípios, envolvidos com fluxos dos serviços de reabilitação, da atenção primária, do setor de regulação (ambulatorial e de leitos).

Para o município de Três Rios, foram indicados 14 participantes, entendendo-se que esse é o município-polo da Microrregião 1, e considerando ainda ter a maior população, além de uma maior rede de serviços próprios sendo referência para os demais municípios. Os setores e serviços estão relacionados com a quantidade de seus respectivos representantes dentro dos parênteses. Nesse sentido, foram incluídos profissionais da atenção básica (1), dos serviços de reabilitação (6), da atenção domiciliar (2), do setor de regulação, controle e avaliação (1), do setor de projetos (1), Comissão Intergestores Regionais - CIR (1), gestão do sistema (1) e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF (1).

Para os demais municípios, estipulou-se um mínimo de três e o máximo de seis sujeitos dentro da mesma lógica dos de Três Rios, sendo que Comendador Levy Gasparian apresentou quatro: da atenção básica (1), da gestão do sistema (1) e da reabilitação (2). Os demais apresentaram três sujeitos, de forma que: Areal indicou da atenção básica (1), do setor de regulação, controle e avaliação (1) e da reabilitação (1). Paraíba do Sul apresentou da atenção básica (1) e do NASF (2). Sapucaia foi da atenção básica (2) e da gestão do sistema (1).

Para os demais municípios, estipulou-se um mínimo de três e o máximo de seis sujeitos dentro da mesma lógica dos de Três Rios, sendo que Comendador Levy Gaspariam apresentou quatro: da atenção básica (1), da gestão do sistema (1) e da reabilitação (2). Os demais apresentaram três sujeitos, de forma que: Areal indicou da atenção básica (1), do setor de regulação, controle e avaliação (1) e da reabilitação (1). Paraíba do Sul apresentou da atenção básica (1) e do NASF (2). E Sapucaia foi da atenção básica (2) e da gestão do sistema (1).

O método do DSC não recomenda a utilização do critério saturação para definir o número de sujeitos a serem entrevistados. De acordo com Lefèvre e Lefèvre (2012), a fundamentação teórica do DSC é a Teoria das Representações Sociais; portanto, pretende-se alcançar a identificação das ideias socialmente compartilhadas. Nesse sentido, este método pretende conhecer o quanto as ideias se repetem entre os entrevistados. Assim, pretende resgatar todas as ideias existentes e não apenas as que são mais presentes em um campo, e se o pesquisador parar suas entrevistas no momento em que julgar que as ideias começarem a se repetir, a sua chance maior é de obter as respostas mais compartilhadas deixando de lado a menos compartilhadas (LEFEVRE; LEFEVRE, 2012LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo: a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. 2. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2012. , p. 47).

Os participantes do estudo foram entrevistados em seus ambientes de trabalho, cenário propício para que se sentissem à vontade para a realização das entrevistas. Utilizando um roteiro semiestruturado, composto de pergunta aberta [Como ocorrem a referência e contrarreferência entre o serviço de reabilitação física, a unidade hospitalar e atenção primária de saúde?], as entrevistas foram gravadas com aparelho IC Recorder ICD-PX 333 Sony(r), buscando identificar o fluxo de encaminhamentos dos usuários entre o nível primário, secundário e terciário.

Para os procedimentos de análise dos dados, utilizou-se o método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), de acordo com o programa QualiQuantiSoft(r) versão 1.3c, que contribuiu para a organização das Expressões-Chave (ECH) e as Ideias Centrais (ICs), elementos indispensáveis para a elaboração do Discurso do Sujeito Coletivo - DSC (LEFEVRE; LEFEVRE, 2012LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo: a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. 2. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2012. ).

As ECHs são representadas por trechos ou segmentos que revelam a essência dos depoimentos selecionados pelo pesquisador. As ICs compreendem a expressão ou nome dado aos sentidos das ECHs (LEFEVRE; LEFEVRE, 2012LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo: a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. 2. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2012. ).

Após a leitura de cada entrevista, foi possível selecionar as ECHs e organizá-las em categorias de acordo com as ICs. Para cada IC, foi construído o DSC que expressa empiricamente o conjunto de opiniões/pensamentos do grupo entrevistados, que culmina em "discursos-sínteses", reunindo respostas de diferentes pessoas, com conteúdos discursivos de sentido semelhante. O DSC representa, então, um conjunto, e não um ser individual, caracterizando um ente pensante coletivo com voz sobre o tema da pergunta na população pesquisada (LEFEVRE; LEFEVRE, 2012LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo: a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. 2. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2012. ).

O atributo "Intensidade/força" do método do DSC corresponde ao número de pessoas que contribuem com suas ECHs relativas às ICs, semelhantes ou complementares, para a elaboração do DSC (LEFEVRE; LEFEVRE, 2012LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo: a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. 2. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2012. ). Através desse atributo, foi possível identificar o grau de compartilhamentos dos pensamentos/opiniões reveladas na população desta pesquisa e apresentadas em percentual para cada IC identificada.

O estudo foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, via Plataforma Brasil, e aprovado com o parecer de nº 502.802 em 19 de dezembro de 2013, consoante com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

Em relação ao perfil sociodemográfico, identificaram-se características dos participantes quanto à escolaridade, ao sexo e o tempo de atuação na área de reabilitação apresentados na tabela 1.

Tabela 1
Características sociodemográficas dos gestores da microrregião I da região Centro-Sul Fluminense-RJ, 2015

Relevante destacar que, embora nove pessoas tenham declarado nunca ter atuado no campo da reabilitação, essa afirmativa é referente ao período de atuação anterior ao planejamento de implantação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. De acordo com o preconizado por esta Rede, a estruturação de serviços em Rede de Atenção à Saúde deverá ser composta por agentes sociais/gestores de diversos setores nela envolvidos, tais como: do serviço de reabilitação, da atenção primária, do setor de regulação (ambulatorial e de leitos).

No concernente à análise dos dados na perspectiva do DSC, emergiram duas categorias: uma representada pela maioria dos participantes, que apontaram que a referência e a contrarreferência ocorrem mediante uma ficha própria, a qual acompanha os usuários nos encaminhamentos. E outra categoria, na qual apenas um participante não soube informar como acontece esse fluxo.

Quadro 1
Síntese das ideias centrais emergidas na questão aberta: "Como ocorrem a referência e a contrarreferência entre o serviço de reabilitação física, a unidade hospitalar e a atenção primária de saúde?"

IC 1.1: Através do encaminhamento do usuário com uma ficha própria [96,3%].

[DSC 1.1] - Nós temos, hoje, um cartão de referência e contrarreferência. A pessoa vai referenciada por um médico, normalmente médico da família ou especialista que atendeu. O paciente que percorre as unidades para ele conseguir os atendimentos, não há nenhum serviço informatizado ou comunicação entre os três níveis de atenção para que isso seja feito. A referência não vai, às vezes, tão explicada ao serviço de reabilitação, vai muito sucinta. E a única coisa que a gente faz para as unidades hospitalares, é os médicos preencherem um formulário para esses pacientes serem encaminhados para lá. A contrarreferência ninguém responde. A gente não tem essa contrarreferência do serviço de atenção secundária para atenção básica.

IC 1.2: Não soube informar [3,7%].

[DSC 1.2]- Isso daí eu não sei.

O desconhecimento sobre o fluxo de encaminhamentos dos usuários pelo sistema de saúde na Microrregião 1, apontado na IC 1.2, pode estar relacionado ao curto período de atuação desse gestor na área de reabilitação, até porque não se pode esperar que gestores com pouco tempo de atuação em setores da administração municipal de saúde dominem conhecimento de política pública tão recente, como a que implantou a Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência.

Discussão

Como pode ser observado no teor do DSC 1.1, a referência e a contrarreferência entre unidades e serviços que compõem a Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência ocorrem de forma desarticulada, até certo ponto informal, em função dos habituais instrumentos de comunicação utilizados para encaminhamentos dos clientes de um nível para outro. Constata-se também a inexistência de elo entre a APS aos serviços de nível terciário, uma vez identificado que não há contrarreferência ou retorno monitorado.

Na Microrregião 1 do Centro-Sul Fluminense, a estruturação dos serviços públicos de saúde, no contexto dos municípios ou no âmbito intermunicipal, ainda não se encontra organizada em redes, mas em diferentes níveis de atenção. Os casos que necessitam de intervenções especializadas são encaminhados do nível primário para os níveis secundários e terciários. Nesse sentido, o mesmo ocorre quando se trata de encaminhamentos da APS para os ambulatórios de instituições especializadas em reabilitação física ou unidades hospitalares, sejam estas próprias dos municípios ou para referências pactuadas na região Centro-Sul Fluminense.

Sabe-se que a prática de encaminhar os usuários para os diferentes níveis é conhecida como referência e contrarreferência, que implica corresponsabilização do cuidado, devido ao compartilhamento de informações sobre a história clínica, dados do exame físico, resultados laboratoriais e as suspeitas diagnósticas, as necessidades e intervenções realizadas nos diferentes níveis de atenção (FINKELSZTEJN et al., 2009FINKELSZTEJN, A. et al. Encaminhamentos da Atenção Primária para Avaliação Neurológica em Porto Alegre, Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 731-741, 2009. ). Deveras expressiva é a constatação de que 96,3% dos gestores citaram a utilização da referência quando da necessidade de se encaminhar o usuário para outros níveis de atenção. A referência é realizada através do encaminhamento do médico da ESF ou do ambulatório especializado, utilizando ficha própria para esse fim e direcionando-os aos diversos serviços do sistema.

Identifica-se, contudo, uma ineficiência no uso das fichas de referência e contrarreferência em relação a seu preenchimento no sentido de relatar informações importantes sobre as possíveis intervenções realizadas na UBS e motivações que justificam seu encaminhamento: "[...] a referência não vai, às vezes, tão explicada ao serviço de reabilitação, vai muito sucinta. [DSC 1.1]".

O uso do sistema de referência e contrarreferência configura-se como um dispositivo normativo que carece de esforços mútuos entre os níveis de atenção, para garantir o acesso dos usuários a todas as esferas de cuidado, de acordo com suas necessidades (VARGAS et al., 2010VARGAS, K. D. et al. A (des) articulação entre os níveis de atenção à saúde dos Bororo no Polo-Base Rondonópolis do Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá-MT. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 1399-1418, 2010. ). Nessa perspectiva, Donabedian (1973DONABEDIAN, A. Aspects of medical care administration: specifying requirements for health care. [s.l.] Harvard University Press Cambridge, 1973. ) contribui para ampliar a abrangência do conceito de acesso, para além do simples ingresso do usuário ao serviço. Para ele, a acessibilidade caracteriza-se pelo grau de aspectos, inter-relacionados e complementares, que contribuem para facilitar a obtenção dos cuidados de saúde, organizados em duas dimensões: a sócio-organizacional e a geográfica (AGUILERAI et al., 2014AGUILERAI, S. L. V. U. et al. Iniquidades intermunicipais no acesso e utilização dos serviços de atenção secundária em saúde na região metropolitana de Curitiba. Rev. bras. epidemiol, v. 654, p. 667, 2014. ; TRAVASSOS; MARTINS, 2004TRAVASSOS, C.; MARTINS, M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde A review of concepts in health services access and utilization. Cad. saúde pública. Rio de Janeiro, v. 20, n. Sup 2, p. S190-S198, 2004. ).

Destarte, partindo do princípio de que a dimensão sócio-organizacional ou funcional envolve aspectos que contribuem ou restringem o acesso caracterizado pela disponibilidade de serviços, oferta de atividades e horários de atendimentos, a modalidade de agendamento das consultas, os critérios formais ou informais adotados para selecionar a demanda, o sistema de referência e contrarreferência, o grau de ajuste entre as necessidades dos pacientes e os recursos utilizados na assistência à saúde (TÔRRES et al., 2011TÔRRES, A. K. V. et al. Acessibilidade organizacional de crianças com paralisia cerebral à reabilitação motora na cidade do Recife. Rev. bras. saude mater. Infant, 11, n 4, p. 427-436, 2011. ).

Neste estudo, fica explícita a lacuna da dimensão sócio-organizacional, considerando os aspectos operacionais identificados no fluxo desordenado para o acesso dos usuários aos serviços públicos de saúde disponíveis na microrregião. Isso pode ser confirmado através do [DSC 1.1], que afirma essa evidente descaracterização de seus fluxos, a saber: "[...] O paciente que percorre as unidades para ele conseguir os atendimentos [...]", reiterando a omissão da administração em garantir o acesso do usuário a outros pontos de atenção, contradizendo pressupostos da dimensão sócio-organizacional.

É imperativo destacar que esforços sejam feitos para eliminar as dificuldades de acesso dos usuários aos serviços públicos, bem como que seus gestores invistam na garantia de acesso dos usuários a outros níveis de cuidado, sobretudo quando no bojo das discussões estejam serviços destinados às pessoas com deficiência. Dimensionado ao plano prático do acesso dos usuários aos serviços de saúde e reabilitação, quando o tratamento ocorre em tempo hábil, com intervenções precoces, resultados positivos são observados. Do contrário, o atraso no acesso contribui para potencializar seus agravos, diminuindo sua qualidade de vida, comprometendo níveis de dependência funcional e, consequentemente, acarretando o aumento dos custos sociais e financeiros por demandar cuidados em níveis de atenção cada vez mais complexos (TÔRRES et al., 2011TÔRRES, A. K. V. et al. Acessibilidade organizacional de crianças com paralisia cerebral à reabilitação motora na cidade do Recife. Rev. bras. saude mater. Infant, 11, n 4, p. 427-436, 2011. ).

Chama-se atenção para experiências exitosas apontadas em estudo que objetivou avaliar as estratégias locorregionais de articulação entre os níveis de cuidado à saúde dos Bororos em Rondonópolis e em Cuiabá-MT. Identificou-se que, através dos esforços dos profissionais de enfermagem da Casa de Saúde Indígena, era garantido o agendamento dos pacientes através da articulação direta com o Centro de Reabilitação ou em uma Clínica de Fisioterapia conveniada ao SUS quando os usuários precisavam desses serviços (VARGAS et al., 2010VARGAS, K. D. et al. A (des) articulação entre os níveis de atenção à saúde dos Bororo no Polo-Base Rondonópolis do Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá-MT. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 1399-1418, 2010. ).

Na Microrregião 1, confirmaram-se dificuldades da articulação entre os níveis de atenção, pautadas no sistema de referência e contrarreferência, cujas maiores dificuldades reportam os encaminhamentos para as unidades hospitalares. Fica clara a utilização de um formulário estranho à ficha habitualmente empregada para encaminhamentos aos ambulatórios de especialidades, além da ausência de qualquer outro mecanismo que possa proporcionar algum tipo de comunicação:

[...] não há nenhum serviço informatizado ou comunicação entre os três níveis de atenção [...] a única coisa que a gente faz para as unidades hospitalares é os médicos preencherem um formulário para esses pacientes serem encaminhados para lá. [DSC 1.1]

Essa predominância do informal também foi revelada em estudo realizado em Recife, que tinha por objetivo analisar os serviços de reabilitação. Na oportunidade, os gerentes das unidades avaliaram como precária a articulação e a comunicação entre os níveis de atenção, revelando uma desarticulação inter-setorial entre os atendimentos pré-hospitalar, hospitalar e de reabilitação com as equipes do Programa de Saúde da Família (denominação usada anterior a ESF), segundo Lima et al. (2009LIMA, M. L. C. et al. Análise diagnóstica dos serviços de reabilitação que assistem vítimas de acidentes e violências em Recife. Ciênc. saúde coletiva, v. 14, n. 5, p. 1817-1824, 2009. ).

Estudo realizado no Estado da Paraíba constatou que seu sistema de referência e contrarreferência encontra-se com expressiva fragilidade na articulação entre suas instâncias gestoras, identificada entre os serviços de saúde e os de apoio diagnóstico e terapêutico. Da mesma forma, constatou-se fragilidade entre as práticas clínicas desenvolvidas por diferentes profissionais de um ou mais serviços voltadas a um mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos, o que sinaliza a descontinuidade do cuidado (PROTASIO et al., 2014PROTASIO, A. P. L. et al. Avaliação do sistema de referência e contrarreferência do estado da Paraíba segundo os profissionais da Atenção Básica no contexto do 1o ciclo de Avaliação Externa do PMAQ-AB. Saúde debate, v. 38, n. esp., p. 209-220, 2014. ).

Maiores comprometimentos neste estudo, porém, foram identificados em relação ao retorno dos usuários da média e alta complexidade para a APS: "A contrarreferência ninguém responde. A gente não tem essa contrarreferência do serviço de atenção secundária para atenção básica. [DSC 1.1]". Essa prática não permite a troca de informações através de sistemáticos registros entre os profissionais, acerca das medidas terapêuticas utilizadas para recuperar o estado de saúde do usuário, implementadas no nível secundário ou terciário, assim como recomendações cruciais para a continuidade do cuidado na APS.

Estudo similar revelou que, em duas áreas da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro - Área Programática 3.1, do Município do Rio de Janeiro, e no Município de Duque de Caxias -, também foram constatadas dificuldades em se manter um fluxo de contrarreferência entre os níveis de atenção (SERRA; RODRIGUES, 2010SERRA, C. G.; RODRIGUES, P. H. DE A. Avaliação da referência e contrarreferência no Programa Saúde da Família na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Ciênc. saúde coletiva, v. 15, n. 3, p. 3579-3586, 2010. ). Constatou-se que em 85,7% na Área Programática 3.1 e 91,7% no município de Duque de Caxias, raramente acontecia a contrarreferência, levando os autores a concluir que, em um sistema que tem foco na integralidade, a inexistência da contrarreferência implica descontinuidade do cuidado, além de comprometer o fluxo do sistema quanto aos serviços e atendimentos que deveriam ser prestados na atenção primária.

Como estamos tratando de contrarreferência, subentende-se, no caso anteriormente citado e no presente estudo, tratar-se de encaminhamentos diretos dos serviços de internação hospitalar ou ambulatorial para pontos de atenção primária de saúde, o que garantiria a continuidade do processo de reabilitação dos usuários da rede.

Outro estudo que visou identificar limites e potencialidades do trabalho do enfermeiro para a integralidade do cuidado, na articulação entre atenção primária e hospitalar, no processo de alta hospitalar da criança/família (SILVA; RAMOS, 2011SILVA, R. V. G. O.; RAMOS, F. R. S. Processo de alta hospitalar da criança: percepções de enfermeiros acerca dos limites e das potencialidades de sua prática para a atenção integral. Texto & contexto enferm, v. 20, n. 2, p. 247-254, 2011. ), identificou a ausência de comunicação entre a atenção hospitalar e a primária no pós-alta da criança. Nesse caso, os enfermeiros que atuam nesses níveis de atenção reconheceram a fragilidade do sistema, pela falta de integração entre os dois serviços de saúde tão complementares, concluindo que essa lacuna reflete uma fragmentação do cuidado e gera descompasso no processo de preparo da alta hospitalar.

Os autores afirmam, ainda, que as equipes de saúde atuantes nas instituições hospitalares poderiam contribuir mais para que o sistema de saúde alcançasse a integralidade do cuidado, uma vez que seus profissionais compreendessem o relevante processo de referência e contrarreferência indissociável de suas práticas terapêuticas, considerando que a efetividade do cuidado integral depende de uma combinação de ações colaborativas, articuladas e contínuas, envolvendo tecnologias duras, leve-dura e leves (SILVA; RAMOS, 2011SILVA, R. V. G. O.; RAMOS, F. R. S. Processo de alta hospitalar da criança: percepções de enfermeiros acerca dos limites e das potencialidades de sua prática para a atenção integral. Texto & contexto enferm, v. 20, n. 2, p. 247-254, 2011. ).

Cabe destacar que o tema da referência e contrarreferência ultrapassa fronteiras geográficas quando aborda sua relevância para os sistemas de saúde, a exemplo do que ocorre no sistema de saúde chileno (VERGARA; BISAMA; MONCADA, 2012VERGARA, M.; BISAMA, L.; MONCADA, P. Competencias esenciales para la gestión en red. Rev. Med. Chile, v. 140, n. 12, p. 1593-1605, 2012. ). Dificuldades no sistema de referência e contrarreferência também foram observadas em cujo objetivo foi discutir a problemática dos tempos de espera, a partir do estudo do Sistema Nacional de Salud (SNS) espanhol. Os autores identificaram que as práticas das referências eram inapropriadas, seguidas de baixa contrarreferência (CONILL; GIOVANELLA; ALMEIDA, 2011CONILL, E. M.; GIOVANELLA, L.; ALMEIDA, P. F. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Ciênc. saúde coletiva, v. 16, n. 6, p. 2783-2794, 2011. ).

No estudo sobre as competências essenciais para gerenciamento de rede do sistema de saúde no Chile, a referência e contrarreferência foram recomendadas como prerrogativas para desenvolver competências organizacionais essenciais para a gestão, entendendo que medidas norteadoras das competências gerenciais do sistema de saúde contribuem sobremaneira para o atendimento das necessidades de saúde da grande maioria da população chilena, em especial, quando focadas no sistema público de saúde como um todo (VERGARA; BISAMA; MONCADA, 2012VERGARA, M.; BISAMA, L.; MONCADA, P. Competencias esenciales para la gestión en red. Rev. Med. Chile, v. 140, n. 12, p. 1593-1605, 2012. ).

Relevante apresentar o estudo realizado em 1973, que tinha por objetivo analisar certas características do sistema de referência entre uma unidade sanitária com características de centro de saúde e um hospital universitário, ambos localizados na zona urbana da cidade do Salvador--BA (PUGLIESE, 1973PUGLIESE, C. Estudo operacional do sistema de referência entre uma unidade sanitária e o Hospital Universitário Prof. Edgard Santos. Rev Saúde Pública. São Paulo, v. 7, n. 2, p. 73-92, 1973. ). Na oportunidade, embora longínqua em termos de produção de conhecimento, mas apenas para se estabelecer parâmetro sobre como essa pauta é recorrente, foi instituída uma folha de referência pela unidade sanitária, instrumento que serviu como excelente meio de comunicação entre o médico da unidade sanitária e o consultor-médico ou especialista do hospital de ensino. No entanto, observou-se que o valor da folha foi apenas unidirecional, isto é, do médico da unidade sanitária para o hospital, de maneira que o profissional médico do hospital de ensino em nenhum momento preocupou-se em fazer retornar esta folha à unidade sanitária.

Conclusão

A Rede de Cuidados a Pessoa com Deficiência pretende superar lacunas assistenciais e organizacionais no que tange à dispensação de cuidados integrais à saúde das pessoas com deficiência. A consolidação desta rede, em parte, pauta-se em seu principal pilar, que seja a capacidade de articulação entre os pontos de atenção (Atenção Primária à Saúde, Atenção Especializada e Atenção Hospitalar). Nesse propósito, esforços devem ser direcionados para a efetivação do mecanismo de referência e contrarreferência, entendendo a capacidade desse sistema em contribuir como um canal de comunicação aproximando os pontos de atenção na busca de um cuidado resolutivo e integral.

Ocorre, de acordo com o identificado neste estudo, que a Microrregião 1 do Centro Sul Fluminense encontra-se em total desarticulação entre os serviços, a depender do praticado em relação à referência e contrarreferência. Identificou-se a existência de um mecanismo de encaminhamento, que seja a instituição de uma ficha própria para este fim. No entanto, apenas cumpre-se uma formalidade instituída, vez que se apurou a ineficiência do seu preenchimento com informações que possam ter motivado tal encaminhamento, assim como a terapêutica utilizada no nível de origem. Cabe ressaltar que o encaminhamento não garante o acesso aos serviços de referência, de modo que recai sobre o usuário a responsabilidade na busca por vagas, caracterizando uma barreira do tipo organizacional para o acesso.

Dificuldades maiores foram identificadas no momento do retorno do usuário do nível de maior complexidade para a APS. A inexistência da contrarreferência implica descontinuidade do cuidado, e consequentemente, baixa resolubilidade dos casos. A inexistência da contrarreferência parece estar consolidada nos meios dos serviços públicos de saúde. Essa afirmação vai ao encontro de quando comparamos os resultados obtidos com os de outros estudos, sobretudo o realizado no ano de 1973, que já apontava para este problema.

Por fim, expectativas por dias melhores são sustentadas com a implantação da Rede, de modo que esta possa implicar melhorias para além das questões organizacionais, assim como na mudança do paradigma cultural estabelecido entre os profissionais médicos, em relação à dificuldade apresentada em estabelecer vínculos comunicacionais com outras esferas do cuidado, em particular, no que concerne ao uso do sistema de referência e contrarreferência, considerando a capacidade deste em contribuir positivamente para o processo de continuidade do cuidado, conforme apontado nas bibliografias. Decerto que, do que hoje é praticado na microrregião, pouco ou quase nada contribuirá para a consolidação da Rede de Cuidados a Pessoa com Deficiência.

Este estudo não pretende esgotar a questão, embora represente uma contribuição para a área do conhecimento, no sentido de dar luz ao assunto frente às poucas publicações sobre a temática nas bases de dados.1 1 J. S. Pereira participou da concepção do projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo e revisão crítica do conteúdo intelectual. W. C. A. Machado participou da concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada. Não há conflito de interesses.

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  • 1
    J. S. Pereira participou da concepção do projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo e revisão crítica do conteúdo intelectual. W. C. A. Machado participou da concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada. Não há conflito de interesses.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2015
  • Aceito
    07 Jun 2016
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