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A mudança de modelo assistencial de cuidado ao idoso na Saúde Suplementar: identificação de seus pontos-chave e obstáculos para implementação

The change of care model to elderly care in Supplementary Health: identification of its key points and obstacles to implementation

Resumo

A partir de uma análise crítica sobre os atuais modelos de atenção à saúde para idosos, este artigo apresenta uma proposta de linha do cuidado para este segmento etário, tendo como foco a promoção e a prevenção da saúde, de modo a evitar a sobrecarga do sistema de saúde. Enfatiza-se o setor suplementar, pois como um quarto da população utiliza este sistema, uma discussão mais minuciosa se faz necessária. O conhecimento científico já identificou corretamente os fatores de risco para a população idosa, mas isso não basta. É prioritário utilizar esse conhecimento para efetuar a necessária transição do modelo assistencial clínico para o preventivo. Este precisa se configurar como um fluxo de ações de educação, promoção da saúde, prevenção de doenças evitáveis, postergação de moléstias, cuidado precoce e reabilitação de agravos. Não se nega a importância das instâncias pesadas (hospital, instituições de longa permanência, entre outras), mas estamos particularmente preocupados com uma abordagem contemporânea, que cuide de forma adequada o idoso e diminua custos. Se não for deste modo, o sistema se torna inviável.

Palavras-chave:
envelhecimento humano; idoso; prevenção de doenças; doença crônica; percurso assistencial; linha de cuidado.

Abstract

From a critical analysis of current models of health care for the elderly, this article proposes a care line for this age group, focusing on the promotion and health prevention in order to avoid overloading the health system. It emphasizes the supplementary sector, since a quarter of the population uses this system, a more thorough discussion is needed. Scientific knowledge has correctly identified the risk factors for the elderly, but this is not enough. It is a priority to use this knowledge to make the necessary transition from the clinical care to preventive model. This needs to be configured as a stream of education initiatives, health promotion, prevention of preventable diseases, postponement of diseases, early care and rehabilitation of injuries. There is no denying the importance of heavy bodies (hospital, long-term care facilities, etc.), but we are particularly concerned about an approach that improves the quality of life and decrease costs. If not so, the system becomes impractical.

Keywords:
human aging; elderly; diseases’ prevention; chronicle diseases; care pathway; care line.

Introdução

O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial, largamente reconhecido, e o aumento da expectativa de vida pode ser entendido como uma das principais conquistas das sociedades nas últimas décadas. Menos de 10% das pessoas de 65 anos ou mais estão livres de algum tipo de agravo crônico à saúde, e mais de 10% referem pelo menos cinco doenças crônicas concomitantes (BANCO MUNDIAL, 2011BANCO MUNDIAL. Population aging: is Latin America ready? Directions in development. Washington, DC: The World Bank, 2011.).

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a nova realidade demográfica e epidemiológica brasileira aponta para a urgência de mudanças nos paradigmas de atenção à saúde da população idosa (KALACHE; KICKBUSCH, 1997KALACHE, A.; KICKBUSCH, I. A global strategy for healthy ageing. World Health, v. 50, n. 4, p. 4-5, jul-ago 1997.), com estruturas criativas e inovadoras, acompanhadas de ações diferenciadas para que o idoso usufrua integralmente os anos proporcionados pelo avanço da ciência (OMS, 2008ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial de Saúde: atenção primária em saúde. Agora mais do que nunca. Brasília: OMS, 2008.). É provável que os gastos em saúde aumentem substancialmente (CONNER, 2013CONNER, D. A. Quality and cost evaluation of a medical financial assistance program. The Permanent Journal, v. 17, n. 1, p. 31-37, 2013.). De fato, os cuidados em saúde tendem a emergir como um dos maiores desafios fiscais nas próximas décadas no Brasil. Existem duas forças por trás da projeção de aumento desses gastos: a proporção crescente de idosos na população e a intensidade do uso dos serviços de saúde pelos idosos (VERAS, 2011).

O envelhecimento da população gera novas demandas para os sistemas de saúde. Os idosos possuem particularidades bem conhecidas: mais doenças crônicas, mais custos, mais fragilidades, menos recursos sociais e financeiros; têm necessidades específicas, advindas das características clínico-funcionais e sócio-familiares peculiares a esse grupo etário. Os problemas de saúde dos idosos - maiores vítimas dos efeitos de sua própria fragilidade - desafiam os modelos tradicionais de cuidado (VERAS, 2013VERAS, R. P.; CALDAS, C. P.; CORDEIRO, H. de A. Modelos de atenção à saúde do idoso: repensando o sentido da prevenção. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro , v. 23, n. 4, p. 1189-1213, dez. 2013.).

Como consequência de uma população mais envelhecida, a promoção e a educação em saúde, a prevenção e o retardamento de doenças e fragilidades, a manutenção da independência e da autonomia são ações que precisam ser ampliadas. Afinal, não basta simplesmente viver mais; é essencial que os anos adicionais sejam desfrutados com qualidade, dignidade e bem-estar (VERAS, 2015aVERAS, R. P. A urgente e imperiosa modificação no cuidado à saúde da pessoa idosa. Rev. Bras. Geriatr. Gerontol. Rio de Janeiro , v. 18, n. 1, p. 5-6, 2015a.). Urge, com isso, reformatar o modelo de assistência à saúde dos idosos, de forma a abarcar as diferenças nas condições de saúde desse contingente populacional, sem perder de vista suas especificidades e peculiaridades (VERAS, 2008VERAS, R. P. et al. A assistência suplementar de saúde e seus projetos de cuidado para com o idoso. Ciênc. saúde coletiva . Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 1119-1126, ago. 2008. ).

O objetivo da assistência à saúde em uma sociedade que envelhece é aumentar a qualidade de vida dos idosos através do aumento do tempo vivido com saúde e do envelhecimento saudável. Com isso, o impacto do envelhecimento nos sistemas de saúde é um assunto que ocupa grande espaço nas discussões e preocupações de gestores em todos os países, especialmente no que contempla questões como a promoção da saúde e prevenção dos riscos e doenças (PORTER; TEISBERG, 2009PORTER, M. E.; TEISBERG, E. O. Repensando a saúde: estratégias para melhorar a qualidade e reduzir os custos. Porto Alegre: Artmed, 2009.). Essa discussão é primordial também no setor de saúde suplementar brasileira, uma vez que afeta diretamente a sustentabilidade econômico-financeira e assistencial do setor (BONFADA, 2015BONFADA, D. Gasto com a internação de idosos em unidades de terapia intensiva. 2015. 105 f. Tese de doutorado (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências da Saúde. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Natal/RN, 2015. ). Para que o envelhecimento deixe de ser um “problema” e se torne uma “oportunidade”, como propõem alguns estudiosos do tema, é preciso reformatar com urgência o modelo assistencial vigente, com um cuidado diferenciado, sobretudo para o idoso (LIMA-COSTA; VERAS, 2003LIMA-COSTA, M. F.; VERAS, R. P. Saúde pública e envelhecimento. Cadernos Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, jun. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000300001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 02 out. 2015.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). O cuidado com a saúde dos idosos inclui o tratamento psicológico e físico dos problemas rotineiros dos idosos com o objetivo de prevenir as doenças e incapacidades, além de promover o bem-estar dos indivíduos sempre que possível (MORAES, 2012MORAES, E. N. Atenção à saúde do idoso: aspectos conceituais. Brasília: OPAS, 2012. ).

Este artigo de opinião se propõe apresentar um breve retrospecto da assistência à saúde do idoso no setor suplementar, além das medidas adotadas nos últimos dez anos para a mudança do modelo vigente. A seguir serão apresentadas as questões basilares para a estruturação de um novo modelo de cuidado ao idoso na saúde suplementar. Os principais obstáculos a serem enfrentados são detalhados em um segmento específico. Por fim, são traçados alguns comentários sobre o imperativo de se buscar a reformatação da assistência à saúde dos idosos no setor suplementar, sob pena de não se avançar na qualidade da assistência à saúde prestada, com importantes prejuízos para o bem-estar da população atendida por planos privados de atenção à saúde.

Breve retrospecto do modelo de assistência à saúde do idoso no setor suplementar

O modelo assistencial hegemônico na saúde suplementar caracteriza-se pelo enfoque biologicista da saúde/doença, desconsiderando seus determinantes sociais, com ações desarticuladas, desintegradas, pouco cuidadoras, centradas na assistência médico-hospitalar especializada e com incorporação acrítica de novas tecnologias, constituindo um modelo pouco eficiente, pouco eficaz e pouco efetivo (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à Saúde. Saúde Brasil 2004: uma análise da situação de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.). Nesse modelo assistencial, os indivíduos são atendidos a partir da demanda espontânea, suscitada pela presença de sintomas ou doenças. Há concentração crescente de consultas médicas especializadas, exames diagnósticos, terapias, internações e cirurgias, que nem sempre se traduzem em maior resolutividade e recuperação da saúde (HERNANDES, 2012HERNANDES, E. S. et al. Idosos com e sem plano de saúde e características socioepidemiológicas associadas. Rev. Saúde Pública, v. 46, n. 6, p. 1030-1038, 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102012000600013>. Acesso em: 02 out. 2015.
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102012...
).

As demandas na área de saúde dos idosos requerem análise especial, já que seus padrões de morbimortalidade diferem dos observados para a população jovem e se caracterizam por enfermidades crônicas, cujos custos diretos e indiretos são mais elevados. Muito idosos apresentam múltiplas patologias e frequentam inúmeros especialistas, tornando a questão da iatrogenia um problema de saúde para o próprio indivíduo e para o sistema, com consequências indesejáveis para ambos (VERAS, 2003).

Evidências demonstram que, para que o modelo de atenção à saúde do idoso seja eficiente, é necessário que ele compreenda atividades organizadas em um fluxo hierarquizado, de forma que mesmo sendo as atividades executadas de forma independente, elas se inter-relacionem. O atendimento ao idoso de forma fragmentada, sem avaliação da sua funcionalidade e sem a compreensão das repercussões do envelhecimento nos processos saúde-doença, repercute negativamente na sua saúde (VERAS, 2013VERAS, R. P.; CALDAS, C. P.; CORDEIRO, H. de A. Modelos de atenção à saúde do idoso: repensando o sentido da prevenção. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro , v. 23, n. 4, p. 1189-1213, dez. 2013.).

Em função dessa situação, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) vem estudando e propondo ações que visam mudar essa lógica de prestação de serviços através da introdução de um novo modelo de assistência, que seja mais efetivo nos resultados assistenciais e nos custos.

Nos últimos dez anos, a ANS avançou nas políticas indutoras, buscando um modelo de assistência à saúde menos fragmentado e mais preocupado com a atenção às multipatologias que são característicos do processo de envelhecimento (VERAS, 2013VERAS, R. P.; CALDAS, C. P.; CORDEIRO, H. de A. Modelos de atenção à saúde do idoso: repensando o sentido da prevenção. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro , v. 23, n. 4, p. 1189-1213, dez. 2013.). A primeira iniciativa empreendida pela Agência consistiu na publicação, em março de 2005, da Resolução Normativa (RN) nº 94, estabelecendo critérios para a prorrogação dos prazos para a integralização da cobertura com ativos garantidores das provisões de risco, pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde que desenvolvessem programas de promoção da saúde e prevenção de riscos e doenças.

Em 2008, a ANS aprovou novos incentivos para estimular o desenvolvimento de programas de promoção da saúde e prevenção de riscos e doenças, por meio da Instrução Normativa (IN) conjunta nº 01 DIPRO/DIOPE. De acordo com essa norma, as operadoras de planos privados de assistência à saúde que desenvolvam e cadastrem os mesmos na ANS passam a contar com a possibilidade de contabilizar os valores neles aplicados como investimentos no Plano de Contas Padrão, que deve ser enviado periodicamente à ANS. O entendimento da Agência foi que os recursos utilizados nesses programas consistem em investimentos, pois podem gerar benefícios futuros às operadoras e a seus beneficiários (ANS, 2009AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (Brasil). Atenção à saúde no setor suplementar: evolução e avanços do processo regulatório. Rio de Janeiro: ANS, 2009.).

Tendo em vista o acelerado processo de envelhecimento da população brasileira, a ANS constituiu, em setembro de 2010, um grupo de trabalho voltado para a incorporação do conceito de Envelhecimento Ativo, como definido pela OMS, em consonância com as políticas empreendidas pelo Ministério da Saúde (MS), ressalvando, no entanto, as diferenças e particularidades existentes para o setor suplementar da saúde no Brasil. A proposta, baseada no conceito de envelhecimento ativo, consiste em buscar melhorias na qualidade de vida e manutenção da capacidade funcional de toda a população, na medida em que a mesma envelhece. É grande o desafio enfrentado pela ANS, no sentido de induzir uma reorganização no setor de saúde suplementar para um modelo de atenção à saúde mais voltada para o cuidado integrado das condições crônicas, que leve à racionalização dos recursos e produza melhoria da saúde. Essa não é uma questão fácil, pois envolve mudanças culturais e comportamentais dos vários segmentos sociais que atuam na saúde suplementar - beneficiários, operadoras e prestadores.

Em 2011, foi aprovada a RN no 265/2011, que estabeleceu a opção por oferta da bonificação e premiação para beneficiários que aderissem a programas de promoção do envelhecimento ativo, voltados para todas as faixas etárias. A estratégia foi testada e utilizada em outros países com a capacidade de aumentar a adesão a esses programas (ANS, 2011a______. Resolução Normativa nº 264, de 19 de agosto de 2011, da Diretoria de Normas e Habilitação de Produtos- DIPRO. Rio de Janeiro, 2011a.; 2011b______. Resolução Normativa nº 265, de 19 de agosto de 2011, da Diretoria de Normas e Habilitação de Produtos- DIPRO. Rio de Janeiro, 2011b.). Em 2012, a ANS propôs o conceito de plano de cuidado do idoso na saúde suplementar, que engloba os conceitos de linha de cuidado e projeto terapêutico (MALTA; MERHY, 2010MALTA, D. C.; MERHY, E. E. O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface. Botucatu, v. 14, n. 34, p. 593-606, 2010.). Assim, o plano de cuidado engloba a avaliação do beneficiário desde sua entrada no sistema, com a estratificação do seu risco, avaliação do estado funcional e definição da melhor linha de cuidado a ser seguida, como o caminho a ser percorrido a partir de então. Esse caminho inclui procedimentos fundamentais para seu sucesso, tais como hierarquização de rede, programas de promoção da saúde e prevenção dos riscos e doenças, além de todas as ações articuladas e integrados aos cuidados.

Essas propostas apresentam, em seu conjunto, esforços para reorientar o modelo assistencial vigente. Mas interessa-nos saber quais pontos seriam pilares importantes dentro desta concepção e quais seriam as dificuldades a serem enfrentadas e que pudessem ser obstáculos para sua implementação.

Os pilares da nova estrutura proposta para o cuidado ao idoso na saúde suplementar

Uma importante característica do contingente idoso é sua heterogeneidade. O mesmo subgrupo populacional é composto tanto por indivíduos hígidos e autônomos, quanto por aqueles com dificuldades para realizar as atividades básicas do cotidiano, como tomar banho sozinho ou alimentar-se. A mudança do modelo de assistência à saúde dos idosos passa, dessa forma, por formular novas concepções de atenção à saúde capazes de abarcar as diferenças nas condições de saúde dos idosos que respeitem suas especificidades e peculiaridades. Ao estudarmos as propostas da ANS, ressaltamos algumas questões imprescindíveis para a efetivação do modelo:

  1. 1

    ) Hierarquização do cuidado: fundamental para a organização da gestão dos pacientes e para que se possa utilizar o sistema de saúde em sua plenitude, de maneira mais ágil, sem duplicidade de cuidados e diminuindo a iatrogenia do sistema.

  2. 2

    ) Organização da demanda baseada em identificação do perfil de risco: ação extremamente importante para conhecer a carteira dos usuários e de organizar a prestação de serviços focada nas suas necessidades e visando reduzir danos e riscos à saúde.

  3. 3

    ) Busca ativa e informação ao paciente: proposta bem diferente da forma como se dá o cuidado hoje na saúde suplementar, visa promover a saúde e não somente tratar da doença no momento em que esta já se instalou, muitas vezes de forma grave. A informação ao paciente e sua família também é essencial para se promover o autocuidado e a consciência sanitária.

  4. 4

    ) Reorientação do foco da ausência de doença pelo foco no cuidado da saúde: com o avançar da idade, é cada vez mais difícil que os indivíduos não apresentem doenças crônicas, o que não necessariamente implica deterioração da qualidade de vida dos mesmos, pois o cuidado adequado pode minimizar os problemas decorrentes dessas doenças.

  5. 5

    ) Busca de adesão e participação dos beneficiários através de incentivos: proporciona corresponsabilização e maior fidelização aos projetos de cuidado integral à saúde.

Essas questões são interdependentes. Projetos voltados para a mudança do foco da ausência de doença pelo foco no cuidado da saúde, por exemplo, funcionam melhor quando articulados com projetos voltados para a busca ativa e informação ao paciente. Da mesma forma, é possível pensar a organização da demanda com base no perfil de risco, a partir das ações voltadas para a busca ativa da população idosa (CALDAS et al., 2013CALDAS, C. P. et al. Rastreamento do risco de perda funcional: uma estratégia fundamental para a organização da Rede de Atenção ao Idoso. Ciênc. saúde coletiva, v. 18, n. 12, p. 3495-3506, dez. 2013.).

Os obstáculos a serem enfrentados

A proposta também contém alguns obstáculos que precisam ser debatidos e vencidos, muitos deles em uma discussão com a sociedade. Dentre eles, destacamos:

  1. 1

    ) A expectativa do usuário do direito ao consumo ao invés de cuidado. Esse é um dos pontos que merece destaque. Hoje, em nossa sociedade, a saúde se tornou um bem de consumo associado ao uso de alta tecnologia, sem nenhuma relação com o resultado assistencial que se venha ter. Ter acesso a um plano de saúde significa, no imaginário das pessoas, ter acesso ilimitado a um conjunto de procedimentos possíveis de serem realizados. Não há educação em saúde ou orientação aos indivíduos sobre autocuidado ou estratégias de promoção e prevenção. Ninguém espera comprar um plano de saúde para ter acesso a um cuidado organizado e planejado, mas ter acesso ilimitado, a seu bel prazer, na rede de serviços de saúde, na hora que que desejar. A inversão dessa lógica é de extrema relevância para o melhor funcionamento do modelo, mas se trata de assunto de difícil construção e multifacetado, que precisa ser enfrentado com urgência.

  2. 2

    ) Necessidade de redesenhar a prestação de serviço, hoje orientada pela produção focada na alta complexidade, na fragmentação do cuidado através de múltiplas especialidades, totalmente desarticuladas, que não se falam e que não registram em um prontuário único as múltiplas opiniões, além dos inúmeros fármacos e exames prescritos.

  3. 3

    ) Necessidade de ofertar serviços resolutivos, pautado em modelos onde haja hierarquização dos cuidados, em protocolos validados e na gestão focada na atenção básica.

  4. 4

    ) Necessidade de capacitação profissional, voltada para uma lógica de atenção primária e pautada na busca ativa de casos e voltada para atender às necessidades integrais do indivíduo.

  5. 5

    ) Medo, por parte das operadoras de planos de saúde, de possíveis “processos agregados”, como a possibilidade de introdução de cuidador, homecare e assistência social à cobertura obrigatória ou aumento de judicialização dessas demandas.

  6. 6

    ) Cultura da desconfiança na prestação de serviço entre os atores da saúde suplementar brasileira.

  7. 7

    ) Necessidade de organização da gestão da operadora, hoje ainda muito focada na área financeira e não na assistencial.

  8. 8

    ) Necessidade de mudança do modelo de alta produção de procedimentos como forma remuneratória, sem nexo com a produção de resultados assistenciais.

Em suma, este artigo aponta a necessidade de se rever a forma como se dá o cuidado ao idoso hoje na saúde suplementar brasileira, perpassando diferentes pontos a serem trabalhados. A reformatação desse modelo, pouco eficiente e com resultados assistenciais bastante aquém dos ideais, precisa ser tratada em diferentes esferas, sob diferentes óticas, tanto assistenciais, econômicas e socioculturais (VERAS et al., 2015bVERAS, R. P. Garantir a saúde e o bem-estar dos idosos: desafios de hoje e amanhã. Rev. Bras. Geriatr. Gerontol. , v. 18, n. 3, p. 73-474, jul.-set. 2015b.).

Sabemos que o idoso tem muitas doenças e, naturalmente, utiliza muito os serviços de saúde. Portanto, deveria-se oferecer um cuidado em instâncias mais leves, sempre que possível em caráter preventivo, preferencialmente fora do ambiente hospitalar. Envelhecer, ainda que sem doenças crônicas, envolve alguma perda funcional, que é expressa por diminuição de vigor, força, prontidão, velocidade de reação sistêmica e eficiência metabólica (VERAS; CALDAS; CORDEIRO, 2013VERAS, R. P.; CALDAS, C. P.; CORDEIRO, H. de A. Modelos de atenção à saúde do idoso: repensando o sentido da prevenção. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro , v. 23, n. 4, p. 1189-1213, dez. 2013.).

Considerações finais

Apesar de difíceis, as mudanças apontadas precisam ser implementadas o mais breve possível. A prestação de serviços de saúde, atualmente, fragmenta a atenção ao idoso, com multiplicação de consultas de especialistas, inúmeros fármacos, exames e outros procedimentos. Sobrecarrega o sistema, provoca forte impacto financeiro em todos os níveis e não gera benefícios significativos para a qualidade de vida (NERI et al., 2004NERI, M.et al. Inflação e os idosos brasileiros. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Os novos Idosos brasileiros: muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA, 2004.).

Nossa proposta é que o modelo de atenção ao idoso tenha como foco a identificação de riscos potenciais. Ao monitorarmos a saúde em vez da doença, direcionamos o investimento dos recursos do sistema de saúde para uma intervenção precoce, que resulta em chances mais generosas de reabilitação e redução do impacto na funcionalidade (VERAS et al., 2014VERAS, R. P. Integração e continuidade do cuidado em modelos de rede de atenção à saúde para idosos frágeis. Rev. Saúde Públ. São Paulo, v. 48, n. 2, p. 357-365, abr. 2014. ).

Qualquer política contemporânea para o setor deve valorizar o envelhecimento saudável, com manutenção e melhoria da capacidade funcional, prevenção de doenças e recuperação da saúde e das capacidades funcionais. Sem uma abordagem preventiva e integral, que associe reflexão epidemiológica e planejamento sistemático de ações de saúde, não há saída possível para a crise de financiamento e reestruturação do setor.1 1 M. R. de Oliveira, R. P. Veras, H. A. Cordeiro e M. T. Pasinato participaram igualmente da redação do artigo, revisão crítica do conteúdo intelectual e aprovaram a versão final a ser publicada. Não há conflito de interesses.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2015
  • Aceito
    06 Fev 2016
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