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A amplitude teórica nos primeiros trabalhos do campo da Saúde Coletiva

BLANK, Nelson. O raciocínio clínico e os equipamentos médicos. . . Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: 1985

O autor desta dissertação é Nelson Blank, professor na Universidade Federal de Santa Catarina. O trabalho foi orientado por Hesio Cordeiro, e a dobradinha revelou-se extremamente produtiva, como veremos. Nelson Blank dedicou-se principalmente à Epidemiologia, com um doutorado pelo Karolinska Institute (Suécia), do qual se tornou fellow senior posteriormente. Nelson é elogiado pela Abrasco como alguém com muitas contribuições relevantes, principalmente para a área de Epidemiologia, mas que sempre agiu com notável humildade e discrição. Ele faleceu aos 62 anos, em junho de 2016.

A tese trata de um tema especialmente caro à tradição de pesquisa do IMS: as questões epistemológicas, de história e sociologia do conhecimento médico e suas relações com o restante da sociedade. É de 1985 e traz a marca de sua idade. É original. Trabalha um tema complexo, ambicioso, conceitual teórico, está vazada em linguagem clara e correta, mas... é uma dissertação de mestrado! Era assim, hoje seria de doutorado, e das melhores.

Trabalho difícil de resumir, pois possui argumentação cerrada, apertada, densa. O autor conceitua com rigor todas as suas categorias de trabalho, todas; é um momento em que não há uma tradição que dê nada por suposto ou assentado no campo. Todos os posicionamentos necessitam explicitação e justificação argumentativa. Os teóricos escolhidos para embasar as conceituações utilizadas também imprimem uma marca temporal ao trabalho. São um testemunho eloquente de um momento na construção do campo da Saúde Coletiva que definitivamente estabeleceu alguns alicerces teóricos sobre os quais se construiu tudo que segue. Marx, Canguilhem, Foucault, tríade heterodoxa, sincrética, mas clássicos de conceituações teóricas mais gerais, são pouco ou quase nada citados hoje, assim como não se veem os alicerces de uma casa depois de pronta. Ler esta tese é como fazer uma escavação e encontrar lá a base do prédio, como foi construída, em que sapatas se apoia. As marcas da idade não a tornam datada: não está superada, é um clássico e merece visita.

O trabalho está dividido em seis capítulos: "A medicina e o raciocínio clínico", "A razão médica do equipamento de auxílio diagnóstico e terapêutico", "A razão produtiva do equipamento médico", "Crise do discurso médico ou o discurso médico na crise", "Crise na medicina" e "Considerações finais".

No primeiro capítulo, o autor desenvolve a noção de que a medicina trabalha com base em uma teoria geral do sofrimento humano, que o mesmo é orgânico e origina-se no corpo. A construção da doença é realizada por meio de progressivas abtrações de casos e somas de casos, de modo que a teoria apresenta doenças ideais que o médico então vai confrontar com o quadro do paciente específico a cada vez.

O verdadeiro instrumento de trabalho do médico é o raciocínio clínico, que lhe permite fazer o transporte entre o seu saber teórico, sua própria experiência e as experiências singulares de sofrimento. É no atendimento a esse sofrimento que a teoria se encontra com a experiência tanto do médico como do paciente; e é nesse encontro que se verifica o caráter ideológico da construção deste saber, pois ele só é plenamente adequado à prática liberal e, do mesmo modo, muitas propostas terapêuticas não são exequíveis em ambientes de pobreza. A ideia de cura só é viável para quem tenha determinadas condições de vida.

Esse capítulo está construído sobre as noções de Canguilhem de valoração do que é normal ou patológico, de como o sofrimento cria a demanda por um saber médico, mas como este saber é contraditório com cada sofrimento individual ao se constituir como um modelo teórico de doença. A noção de que a construção de doença como algo restrito a uma localização orgânica é apontada como ideológica, um reducionismo. É a despolitização do sofrimento, manobra executada pelo saber médico que se politiza ao desqualificar sofrimentos de origem externa ao organismo e assim elimina discussões possíveis sobre condições de vida, motivos básicos para o adoecimento, etc. As noções de modo de produção capitalista, relações de produção, relações entre conhecimento científico e ideologia estão calcadas em autores marxistas, como Gramsci, e a nossa pioneira Cecilia Donnangelo.

O segundo capítulo se ocupa em demonstrar o quanto o equipamento médico é produzido segundo a lógica do raciocínio clínico, tornando-se uma expansão do saber médico, cuja aplicação ou resultado depende inteiramente de um sujeito médico. Os resultados dos exames não fazem sentido em si, e necessitam sempre ser interpretados à luz do quadro clínico dos pacientes. O autor demonstra a indiscutível coerência entre a lógica do raciocínio clínico e o desenvolvimento de instrumentos diagnósticos ou terapêuticos, e a impossibilidade de fazer uso produtivo dos mesmos sem a interpretação clínica propriamente médica.

No terceiro capítulo, o autor vai esclarecer o paradoxo de o médico ser o controlador do uso do equipamento e socialmente parecer subordinado a ele, analisando a trajetória do equipamento como mercadoria. Coloca-a submetida às regras do jogo do mercado capitalista, com acesso diferenciado por classe social, objeto de estudo da Economia. O equipamento como mercadoria ainda está sob controle operativo do médico, sem o qual ele se torna inútil. Isto não impede, porém, que a prática termine por definir o acesso e o uso do equipamento segundo a lógica distributiva vigente. Há conflito entre as lógicas de uso da tecnologia com vistas a diminuir sofrimentos e a lógica capitalista da lucratividade, que termina por orientar o uso desse mesmo equipamento. Vários aspectos são considerados na relação do equipamento e este valor de uso, seu valor de mercadoria e sua possibilidade de ser máquina.

O autor entende como máquina algo capaz de impor o ritmo de trabalho ao médico e substituir a presença médica, como um computador, algo capaz de operar o raciocínio clínico. Conclui que o equipamento não substitui o médico e não se constitui ainda como máquina. No entanto, seu valor como mercadoria e sua mediação entre o médico e o paciente imprimem certas características específicas à medicina contemporânea que dificultam o exercício considerado ideal pela tradição liberal. Todo um trabalho conceitual com base em Marx é desenvolvido aqui para mostrar o que é o trabalho médico, a mercadoria e seu valor de uso e troca e o equipamento / mercadoria influenciando o processo de trabalho do médico.

A crise dos médicos, no quarto capítulo, fala da dificuldade da medicina liberal, que reluta em aceitar qualquer tentativa externa de regular seu trabalho e atribui aos custos crescentes do equipamento tanto sua perda de autonomia como a perda da possibilidade de manter clientela liberal. O mesmo equipamento elaborado a partir de necessidades definidas por um saber clínico afeta esse saber: operar o equipamento pode ser uma nova subespecialidade, o equipamento caro inviabiliza o antigo consultório individual e as determinações de mercado que tanto influenciam o uso do equipamento tornam inseguras as bases do trabalho médico. Essa é a crise dos médicos.

Os contornos da crise são políticos, pois é da perda de autonomia que os médicos estão mais ciosos naquele momento. Blank é sarcástico ao falar dos médicos e dos apelos, recentes à época, por uma humanização da medicina e uma medicina baseada na relação médico-paciente. Segundo ele, estão a tentar uma ressignificação da pessoa do médico como decisiva para a recuperação do paciente, espantando o espectro de uma máquina capaz de fazer diagnóstico e elaborar terapêuticas e torná-los obsoletos.

E assim, o autor se estende sobre a teoria da medicina e seu instrumento, o raciocínio clínico, discute a avaliação dos equipamentos médicos e seu atrelamento à lógica da ciência médica, aponta o lado mercadoria desse equipamento, discute o conceito de trabalho para definir trabalho médico, e a noção de crise capitalista para "desespecificar" a crise da medicina como parte de algo intrínseco ao modo de produção capitalista em suas contradições e embates constantes. Toda a discussão dos primeiros três capítulos apoia sua argumentação em exemplos clínicos, seja de como se elaboram critérios diagnósticos, seja de como se avaliam a sensibilidade e especificidade de exames.

O quinto capítulo se dedica a explicar, então, as relações da prática médica e sua crise ao contexto mais amplo de crise econômica dos anos 1980, a mostrar que a medicina em crise é apenas um aspecto da crise mais geral do capitalismo. Do mesmo modo, os custos crescentes não se devem apenas a uma complexificação crescente, e sim ao aumento da utilização dos equipamentos já existentes. O autor faz uma apresentação detalhada da crise econômica, aspectos detalhados das crises fiscais dos estados, e fornece uma lógica, a do capital monopolista em vias de se tornar capital financeiro, para explicar a chamada crise da medicina.

Nas considerações finais, ele retraça sua trajetória com um ótimo resumo do encadeamento lógico de um texto que começa nos apresentando a teoria da medicina com Canguilhem e se encerra em discussões sobre hegemonia com Poulantzas. Causa realmente espécie tal amplitude, tal abrangência na abordagem. É a ousadia da juventude, do campo em formação. Canguilhem, em sua reapresentação do O Normal e Patológico, comenta que a ousadia do livro o espantou: era a capacidade enorme da juventude de ousar e imprimir suas normas ao meio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2016
  • Aceito
    08 Fev 2017
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