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Para defender a ciência, é necessário torná-la acessível, inteligível e significativa

Para Bachelard, toda ciência se origina num ato fundante, uma ruptura epistêmica com o senso comum (BACHELARD, 1967BACHELARD, G. La formation de L’Esprit Scientifique. Paris: Vrin, 1967.[1938]). A essa ideia, acrescentou Boaventura de Souza Santos a proposta de uma segunda ruptura, por meio da qual a nova ciência formaria um novo senso comum (SOUZA SANTOS, 1989). A explosão da internet desde fins do século passado, sobretudo com o advento de novas tecnologias de interação que permitiriam qualquer pessoa com acesso à rede expressar e comunicar suas ideias, além de interagir e debater com todos os demais, acenou com a possibilidade de concretizar essa perspectiva, um admirável mundo novo que se desdobrava em infinitas possibilidades.

Teria, contudo, a aposta otimista de Souza Santos se concretizado? Em que pese o desejo de responder positivamente a essa pergunta, há mais evidências do contrário. Em tempos de “pós-verdade”,1 1 “Adjetivo: Relacionado a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência na conformação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal. Disponível em: <[https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth>. Acesso em: 28 abr 2018. em que “bolhas” se formam nas diversas plataformas interativas, isolando os participantes de visões alternativas, a contribuição da ciência cada vez mais se perde em meio ao ruído de fundo das convicções estabelecidas.

Bruno Latour já havia soado o alarme, ao perceber que a perspectiva crítica da ciência estava sendo cooptada por interesses políticos e econômicos diametralmente opostos àqueles que a desenvolveram, dizendo que “[…] o perigo não viria de uma excessiva confiança em argumentos ideológicos posando como matéria de fato […] mas de uma excessiva desconfiança de boas matérias de fato disfarçadas como maus vieses ideológicos!”, completando: “Por que a minha língua queima para dizer que o aquecimento global é um fato, quer você goste ou não?” (LATOUR, 2004LATOUR, B. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical inquiry, v. 30, n. 2, p. 225-248, 2004., p. 227).

Essa questão também foi explorada por McGarity e Wagner, em um livro dedicado especificamente à dissecção da distorção deliberada da ciência. Eles analisaram duas vias específicas de distorção: por um lado, criar falsas pesquisas para alcançar um resultado desejado: “[e]nquanto filósofos e sociólogos da ciência podem debater algumas das qualidades precisas que definem a ciência, todos concordam que pesquisa conduzida com um desfecho predeterminado não é ciência” (MCGARITY; WAGNER, 2008MCGARITY, T. O.; WAGNER, W. E. Bending science: How special interests corrupt public health research. Cambridge (Mass): Harvard University Press, 2008., p. 7). Por outro lado, a desestabilização deliberada da ciência estabelecida, criando a aparência de uma controvérsia onde ela não existe, caracterizando o que Latour chamou de “manufactrovérsia” (uma contração de “controvérsia manufaturada”):

Desafios financiados e gerenciados por proponentes interessados [advocates] também não são dirigidos a facilitar a emergência de um consenso científico sobre uma verdade estabelecida. Ao contrário, eles pretendem prolongar a percepção de dissenso tanto dentro quanto fora da comunidade científica (McGARITY; WAGNER, 2008, p. 135).

Como denunciam Collins e Evans em seu livro mais recente, a ciência está sob ataque em várias frentes:

Os ataques à ciência provêm de várias fontes. De fora, a ciência é assediada por análises pós-modernas que não veem nenhuma verdade, apenas “relatos”; é assediada por críticas ambientalistas que veem a ciência como instrumento de desastres ecológicos; e é assediada por regimes políticos que veem valor apenas em termos econômicos, ou, nos Estados Unidos, podem gerar capital político contrastando a ciência desfavoravelmente com a religião (COLLINS; EVANS, 2017COLLINS, H.; EVANS, R. Why democracies need science. New Jersey: John Wiley & Sons, 2017., p. 17).

Esses mesmos autores consideram que a ciência também está sob atraque internamente, pela estratégia de determinados cientistas atrelarem sua defesa à produção de bens materiais e culturais, em aliança como o capitalismo, alertando que “[o] perigo é que em breve a ciência só vai ser valorizada pelo seu valor material e de entretenimento.” (COLLINS; EVANS, 2017COLLINS, H.; EVANS, R. Why democracies need science. New Jersey: John Wiley & Sons, 2017., p. 18).

O ataque à credibilidade científica para avançar determinadas agendas não é um fato novo, em especial com relação à saúde pública. Essa foi (é?) a estratégia paradigmática da indústria do tabaco, por exemplo, por décadas (CAMARGO JR, 2012CAMARGO JR, K. R. How to identify science being bent: The tobacco industry’s fight to deny second-hand smoking health hazards as an example. Social Science & Medicine, v. 75, n. 7, p. 1230-1235, 2012.). Mais recentemente, a expansão do “mercado da saúde”, fronteira do imperialismo sanitário (CAMARGO JR, 2013), encontrou na internet um poderoso veículo publicitário, difundindo intervenções (preventivas ou terapêuticas) que variam do cômico ao horrorífico - como propostas de “tratamento” do autismo pela ingestão de um alvejante industrial (NISSE et al., 2010); do inútil ao perigoso, com legiões crescentes de adeptos cada vez mais hostis ao discurso científico - um exemplo particularmente preocupante é o do crescimento de movimentos anti-vacina em todo mundo, alavancados pelas redes sociais mediadas pela internet (CAMARGO; GRANT, 2015).

Adicionalmente, a descrença na ciência é particularmente danosa num momento como o que vivemos no Brasil - e em diversos outros países - no qual os recursos para a pesquisa e desenvolvimento tecnológico se tornam cada vez mais escassos pela miopia econômica das políticas de austeridade. A tentativa de buscar aliados em meio à população geral por meio de mobilizações públicas, como a “Marcha pela Ciência”, infelizmente não parece estar alcançando a repercussão que seria necessária.2 2 “Pesquisadores denunciam situação crítica em 2ª Marcha Pela Ciência no Brasil”. Disponível em: <http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/pesquisadores-denunciam-situacao-critica-em-2a-marcha-pela-ciencia-no-brasil/>. Acesso em: 29 abr 2018.

A desqualificação da ciência torna mais fácil estrangular seu financiamento, mas ambos movimentos são estuários de várias razões, que produzem essa lamentável situação. A partir daqui gostaríamos de focar num aspecto que nos parece estrategicamente relevante e, esperamos, solucionável: o relativo isolamento social do empreendimento científico, encarnado pela metáfora da “torre de marfim”.

Enquanto temos sido estimulados a publicar cada vez mais, o que inegavelmente tem aspectos positivos, tais estímulos têm produzido efeitos imprevistos - e indesejáveis. Por um lado, a ênfase na competição entre grupos e indivíduos leva à concentração de recursos, dificultando o estabelecimento de ações cooperativas e coordenadas, contra aspectos fundamentais do próprio ethos científico, tais como identificados no acrônimo clássico de Merton, CUDOS: comunalismo, universalismo, desinteresse, ceticismo organizado (MERTON, 1973MERTON, R. K. The Normative Structure of Science. In: ______. The sociology of science: Theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago press, 1973.). Vale lembrar que Collins e Evans, na obra já citada, defendem a ideia de que o mérito e, portanto, o cerne da estratégia de defesa da ciência, está em seus valores compartilhados (incluindo os definidos por Merton), e não nos seus métodos ou resultados (COLLINS; EVANS, 2017COLLINS, H.; EVANS, R. Why democracies need science. New Jersey: John Wiley & Sons, 2017.).

Por outro lado, o incentivo à publicação enfatiza o diálogo de cientistas com seus pares, deixando a população em geral relegada, na melhor das hipóteses, a uma consideração menor e tardia. É inegável que a tarefa de disseminação da ciência enfrenta desafios peculiares no nosso país; como pensar em “science literacy” em um país que até hoje não deu conta adequadamente do acesso à educação básica de qualidade à sua população? De todo modo, a dificuldade não pode ser justificativa para inação.

Em conclusão, a deslegitimação da ciência tem permitido, por um lado, a subtração de recursos públicos indispensáveis para a pesquisa, atrelando-a cada vez mais a valores do “mercado”; por outro, a proliferação de concepções bizarras - “terra plana”, por exemplo - muitas das quais ameaças potenciais à saúde das populações. O enfrentamento desses problemas requer uma estratégia de formação de alianças internas à ciência, entre cientistas, e externas, com a população em geral, o que demanda um investimento considerável na tarefa de tradução entre a linguagem da ciência e a de uso comum, concretizando a proposta de Souza Santos. Isso significa, entre outras coisas, uma revisão da lógica “publish or perish” e um retorno aos valores centrais do empreendimento científico tais como definidos por Merton.

References

  • BACHELARD, G. La formation de L’Esprit Scientifique. Paris: Vrin, 1967.
  • CAMARGO JR, K. R. How to identify science being bent: The tobacco industry’s fight to deny second-hand smoking health hazards as an example. Social Science & Medicine, v. 75, n. 7, p. 1230-1235, 2012.
  • CAMARGO JR, K. R. de. Medicalização, farmacologização e imperialismo sanitário/Medicalization, pharmaceuticalization, and health imperialism. Cadernos de saude publica, v. 29, n. 5, p. 844-846, 2013.
  • CAMARGO JR, K.; GRANT, R. Public health, science, and policy debate: being right is not enough. American Journal of Public Health, v. 105, n. 2, p. 232-235. doi: 10.2105/AJPH.2014.302241, 2015.
    » https://doi.org/10.2105/AJPH.2014.302241
  • COLLINS, H.; EVANS, R. Why democracies need science. New Jersey: John Wiley & Sons, 2017.
  • LATOUR, B. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical inquiry, v. 30, n. 2, p. 225-248, 2004.
  • MCGARITY, T. O.; WAGNER, W. E. Bending science: How special interests corrupt public health research. Cambridge (Mass): Harvard University Press, 2008.
  • MERTON, R. K. The Normative Structure of Science. In: ______. The sociology of science: Theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago press, 1973.
  • NISSE; P.; GUYODO, G.; MANEL, J. Evaluation des risques liés à la consommation de produit dénommé “Solution Minérale Miracle” (MMS). Paris: Association Française des Centres Antipoison et de Toxicovigilance. Available at: <http://www.centres-antipoison.net/CCTV/Rapport_CCTV_Solution_minerale_miracle_2010.pdf>. Accessed on: 3 jun 2017, from, 2010.
    » http://www.centres-antipoison.net/CCTV/Rapport_CCTV_Solution_minerale_miracle_2010.pdf
  • SOUSA SANTOS, B. de. Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto: Edições Afrontamento, 1989.
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    “Adjetivo: Relacionado a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência na conformação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal. Disponível em: <[https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth>. Acesso em: 28 abr 2018.
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    “Pesquisadores denunciam situação crítica em 2ª Marcha Pela Ciência no Brasil”. Disponível em: <http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/pesquisadores-denunciam-situacao-critica-em-2a-marcha-pela-ciencia-no-brasil/>. Acesso em: 29 abr 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018
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