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Sobre a performance de sofrimento na web: narrativas de mães de crianças com condições crônicas complexas de saúde em uma revista eletrônica

On the performance of suffering on the web: narratives of mothers of children with complex chronic health conditions in an online journal

Resumo

O objetivo deste artigo é discutir a performance de sofrimento a partir das narrativas de mães de crianças com condições crônicas complexas de saúde veiculadas em uma revista eletrônica, seguindo também a pista de alguns links que levam a blogs. A visibilidade dos conteúdos compartilhados na internet, seja qual for a plataforma, e sua crescente função social de construção conjunta levam-nos a voltar nossa atenção especificamente para este espaço contemporâneo. A partir de uma imersão de inspiração etnográfica nos escritos, foram identificados movimentos engendrados pelas narrativas: captura, afirmação de um lugar, constituição de um vetor de forças e luta simbólica. Na forma de um ensaio, buscou-se articular discursivamente o material empírico com questões teóricas. A internet é um importante recurso de aproximação e vinculação ao ensejar a circulação de narrativas contra-hegemônicas. Mostrar o rosto e o nome, próprios e do filho, pode fazer parte de um movimento que afirme uma individualidade sofredora, mas pode também culminar na produção de novos sentidos, ampliando o campo de possibilidades, inclusive simbólicas, para mães e crianças.

Palavras-chave:
doença crônica; criança; narrativas

Abstract

This paper aims discuss the performance of suffering from the narratives of mothers of children with complex chronic health conditions published in a web journal, also following the trail of some links that lead to blogs. The visibility of shared content on the internet, whatever the platform, and its growing social function of joint construction, leads us to turn our attention specifically to this contemporary space. From an immersion of ethnographic inspiration in the writings, movements generated by the narratives were identified: capture, affirmation of a place, constitution of a vector of forces and symbolic struggle. In the form of an essay, we sought to articulate the empirical material discursively with theoretical questions. Internet is an important resource of approximation and linkage in allowing the circulation of counter-hegemonic narratives. Showing their faces and names and their children's can be part of a movement that affirms a suffering individuality, but can also culminate in the production of new senses, expanding the field of possibilities, including symbolic ones for mothers and children with complex chronic health conditions.

Keywords:
chronic disease; child; narratives

Introdução

A existência de crianças com condições crônicas complexas de saúde, tornada possível pelo desenvolvimento da biotecnologia e seus aparatos, impõe-nos o desafio de produzir conhecimentos que instrumentalizem nossas práticas como profissionais de saúde e ampliem o horizonte crítico na concepção de novos caminhos e possibilidades simbólicas. É fundamental que possamos reconhecer estas crianças e seus familiares como protagonistas de suas histórias e destas novas construções, dando relevo à dimensão da experiência.

O presente artigo destaca o protagonismo de mulheres que compartilham suas experiências em uma revista eletrônica norte-americana, Complex Child, escrita pelos pais e para os pais de crianças ditas complexas. Compartilhando seus artigos em língua inglesa, a revista agrega colaboradores residentes nos Estados Unidos, Austrália, Reino Unido e em outros países da Europa.

Nosso olhar busca ultrapassar uma aparente distância cultural. Pressupomos que, transcendendo fronteiras locais, a revista é capaz de amplificar perspectivas comuns sobre a experiência de cuidar de um(a) filho(a) com um corpo alterado por malformações e por tecnologias invasivas, mobilizadoras de outras formas de existência humana. A utilização de um recorte estrangeiro não significa perdermos o contexto nacional no qual estamos inseridos. A realidade brasileira, ainda que muito marcada pelas iniquidades no acesso à saúde, se aproxima da internacional se considerarmos as dependências tecnológicas e a demanda intensiva e rotineira de cuidados complexos, na qual o recurso do home care, ou cuidado domicilar, é cada vez mais acionado com importantes repercussões (MOREIRA et al., 2017______. Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cad Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 33, n. 11, e00189516, 2017. ).

O impacto da vida mediada pelo adoecimento crônico desde o nascimento e na infância vem sendo objeto de estudos que dão relevo à necessidade de reorganização familiar e ao estresse a que os cuidadores estão expostos (ALVES; BUENO, 2018ALVES, S.P.; BUENO, D. O perfil dos cuidadores de pacientes pediátricos com fibrose cística. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 23, n. 5, p. 1451-1457, 2018.; SMITH; CHEATER; BEKKER, 2013SMITH, J.; CHEATER, F.; BEKKER, J. Parents’ experiences of living with a child with a long-term condition. Health Expectations, v. 18, p.452-474, 2013. ; LEITE et al., 2012LEITE, M. F. et al. Condição crônica na infância durante a hospitalização: sofrimento do cuidador familiar. Cienc Cuid Saude, v. 11, n. 1, p. 51-57, 2012.; SWALLOW et al., 2011SWALLOW, V. et al. Fathers and mothers developing skills in managing children's long-term medical conditions: how do their qualitative accounts compare? Child: care, health and development, v. 37, n. 4, p. 512-23, 2011. ; SILVA et al., 2010SILVA, M. A. S. et al. Cotidiano da família no enfrentamento da condição crônica na infância. Acta Paul Enferm, v. 23, n. 3, p.359-365, 2010.; MARCON et al., 2007MARCON, S. S. et al. Dificuldades enfrentadas pela família no cuidado a uma criança com doença crônica. Cienc Cuid Saude, v. 6, n. 2, p. 411-419, 2007. ). No entanto, esse processo de viver e cuidar de uma criança complexa pode se revelar também um território para criações e estabelecimento de redes de relações (MOREIRA et al., 2018MOREIRA, M. C. N., MENDES, C. H. F., NASCIMENTO, M. Zika, protagonismo feminino e cuidado: ensaiando zonas de contato. Interface, v. 22, n. 66, p. 697-708, set. 2018.; PAEZ; MOREIRA, 2016PAEZ, A. S.; MOREIRA, M. C. N. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1053-1072, 2016.), e não somente um viver capturado pela doença e por suas limitações. Dessa forma, torna-se importante discutir felicidade e, portanto, infelicidade, em um contexto simbólico em que a doença e a limitação física são hegemonicamente associadas ao sofrimento, a fim de abrir outras possibilidades para o encontro e o cuidado a essas famílias e crianças.

Ao assumirmos que a doença não captura todos os processos do viver, visamos enfrentar o imaginário prevalente sem ignorar os muitos desafios impostos e sem celebrar uma felicidade compulsória (BIRMAN, 2010BIRMAN, J. Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 27-47.; FREIRE FILHO, 2010FREIRE FILHO, J. O anseio e a obrigação de ser feliz hoje. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010. p. 13-25.).

Os artigos que compõem a revista Complex Child, apesar da diversidade de elementos e recursos mobilizados, apresentam possibilidades de subjetivação da experiência de parentalidade no contexto das condições crônicas complexas para além da assunção do lugar de vítima ou do lugar de “mãe especial”, destinada a dar conta com eficiência de todas as demandas do filho. Optamos por iluminar em nossa discussão a figura da mãe, pois, apesar de não ser este o enfoque da revista, mais de 90% dos artigos foram escritos por mulheres. A visibilidade dos conteúdos compartilhados na internet, seja qual for a plataforma, e sua crescente função social de construção conjunta leva-nos a voltar nossa atenção especificamente para este espaço contemporâneo.

Objetivamos desenvolver uma discussão em torno da performance de sofrimento na internet a partir das narrativas veiculadas na revista, seguindo também a pista de alguns links que levam a blogs, e, na forma de um ensaio teórico, articular discursivamente o material empírico com questões teóricas.

Caminho metodológico

A revista eletrônica Complex Child,1 1 A revista está disponível no endereço <http://complexchild.org/>, sendo que números anteriores a 2012 estão acessíveis em <http://www.articles.complexchild.com/>. lançada em 2008, de acesso aberto, mensal e gratuito, foi idealizada por uma professora universitária estadunidense, mãe de uma menina com múltiplas deficiências. O objetivo manifesto no número de estreia era compartilhar, em linguagem simples, conhecimentos práticos adquiridos a partir do cuidado de uma “criança complexa”. O termo em nenhum momento é definido, pois, segundo a editora, a revista propõe-se como recurso a todos que puderem se beneficiar de seus artigos. Sua página principal é convidativa, colorida e ilustrada com fotos de crianças com deficiências visíveis e/ou em uso de aparelhos diversos para mobilidade ou mesmo funções críticas como respiração. O acesso aos artigos é simples e a busca por conteúdos específicos é facilitada por menus na parte superior da tela. Todos os artigos estão em inglês, o que facilita sua circulação.

Após cada artigo, a maioria das autoras disponibiliza uma breve apresentação pessoal, sem seguir qualquer padrão e sem referências a dados como raça/cor ou situação socioeconômica.

As edições de Complex Child trazem um tema principal, como por exemplo, acessibilidade, estresse do cuidador e o brincar. Os artigos conjugam o compromisso com o caráter informativo - em especial aqueles assinados pela editora - sem perder sua potência envolvente e narrativa. Predomina o conteúdo da experiência, a reflexão sobre as memórias e a construção de uma história pessoal que se quer compartilhar.

Sendo uma revista on-line, links ou atalhos levam o leitor a explorar outros recursos ou conteúdos como, no caso da revista em questão, arquivos de áudio e vídeo e, principalmente, páginas de organizações e blogs pessoais, espécies de diários on-line. Outro atributo fundamental do campo digital é a possibilidade de interação, e a revista reserva um campo de comentários após cada um dos artigos. Esse desenho e linguagem web fazem com que o narrador nos ofereça caminhos, e assim o leitor literalmente é conduzido pela experiência narrativa, com liberdade para ir, vir, parar, seguir a seu gosto e vontade, manejando seus limites. Apesar de não terem sido explorados em sua totalidade, alguns links e comentários pertinentes para nossa análise foram incluídos como fontes.

Como não havia entrevistado as mulheres ou transcrito suas falas2 2 Utilizamos a primeira pessoa do singular quando é o caso de destacar a reflexividade da primeira autora. - mas acessado suas narrativas públicas na revista -, o projeto inicial de trabalharmos com análise temática revelou-se pouco produtivo. Igualmente, a tarefa de traduzir os originais em inglês para o português, a partir de um desejo de gerar fidedignidade, revelou-se infrutífera. Foi lidando com a frustração das traduções imperfeitas - e dos modelos de análise que pareciam não valorizar as narrativas - que pude experienciar um momento de “revelação”: ao emprestar as minhas palavras para essas histórias tão densas, eu as estava tornando um pouco minhas. O encontro verdadeiro com meu campo de pesquisa se deu quando deixei de lado também a preocupação com a contabilização da recorrência de temas e me permiti ser afetada. A dimensão da afetação na pesquisa é abordada por Favret-Saada (2005), que resgata o lugar de uma “sensibilidade” que não se confunde com empatia. Na empatia, para a autora, o lugar do outro é tomado por meio de nossa suposta capacidade de penetrá-lo, mantendo uma dominação do pesquisador sobre as experiências “exóticas”. Na afetação, o que está em jogo é ser tomado pelo desconhecido, ser dominado e experimentar a revisão da própria posição. A partir de uma “crise”, somos enfeitiçados, como Saada, por aqueles que desejaríamos “observar”. A partir deste reposicionamento, os temas puderam emergir da leitura cuidadosa e a análise se deteve na performance do sofrimento abordada através dos movimentos engendrados pela narrativa.

Interpretamos o material que compõe a revista como uma narrativa etnográfica, que remete à experiência de famílias que cuidam de suas crianças em situação de cronicidade e complexidade. Neste contexto, tornar pública a experiência vivida torna-se um meio de se (re)construir e criar redes. Mergulhar nas narrativas desta revista tornou-se um momento de inspiração etnográfica. Por método etnográfico entende-se a atividade de pesquisa no campo, por períodos relativamente prolongados, com contato direto com o objeto de estudo, seguido pela sistematização da experiência (LABURTHE-TOLRA; WARNIER, 1997LABURTHE-TOLRA, P.; WARNIER, J. P. Etnologia antropologia. Petrópolis: Vozes, 1997.). Nesse espaço de comunicação pública da experiência, mesmo não realizando observações off-line e nem mesmo uma abordagem direta aos sujeitos, consideramos que o observador/pesquisador transforma-se pela afetação provocada pelo encontro com as narrativas.

Miller e Slater (2004MILLER, D.; SLATER, D. Etnografia on e off-line: cibercafés em Trinidad. Horizontes antropológicos, ano 10, n. 21, p. 41-65, jan./jun. 2004.) instrumentalizam nossa reflexão sobre as possibilidades de um trabalho etnográfico conduzido em ambiente 100% on-line. Com os autores, estamos considerando que, para um trabalho ser considerado etnográfico, não está em questão se foram pesquisados contextos off-line, mas se se partiu do compromisso maior de relacionar o fenômeno a contextos mais amplos. É possível, e de fato necessário, contextualizar o que é observado em termos de aspectos como, no nosso caso, a exclusão simbólica de mulheres cujas experiências de maternidade se distanciam em muito da norma e os projetos de felicidade que precisam ser inventados.

O campo de pesquisa torna-se, portanto, não um lugar geográfico ou “a internet”, mas o processo, o projeto destas mulheres em relação aos seus filhos. Por uma escolha metodológica e ética, conduzimos uma “observação silenciosa” ou lurking (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011FRAGOSO, S.; RECUERO, R.; AMARAL, A. Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina, 2011. ). Entretanto, cabe considerar que a não influência do pesquisador na produção do conteúdo a ser analisado não exclui a subjetividade do mesmo. A posição de quem observa estará necessariamente em questão no trabalho etnográfico.

Apostamos em um trabalho que, se afastando de uma forma tradicional de reflexão e análise, articula-se como escrita dinâmica na qual ganharão destaque os seguintes eixos, identificados como movimentos narrativos: captura - o leitor na cena, afirmação de um lugar, constituição de um vetor de forças - emoções em diálogo e luta simbólica.

Primeiro movimento: captura - o leitor na cena

Em um dos artigos, escrito por uma mãe, são apresentadas minúcias da cena da morte de uma criança. O pai a encontra pela manhã de bruços na cama, morta. Os outros dois filhos vão para trás do sofá, aterrorizados. A mãe está a quatro horas de distância, e desaba no chão do banheiro da pousada ao receber a notícia (SCHAEFFER, 2017 ______. Lydia: life after death. Complex Child, mar, 2017. Disponível em: http://complexchild.org/articles/2017-articles/march/lydia-life-after-death/ Acesso em: 07/05/2018.
http://complexchild.org/articles/2017-ar...
). Por que ela conta esses detalhes? Por que eu os repito aqui?

A descrição crua de uma cena de intenso sofrimento repercute para além do nível da compreensão de quem lê, mobilizando respostas subjetivas e mesmo corporais. Através da escolha das palavras, é literalmente montada uma cena, para onde o leitor é arrastado. Este seria o primeiro movimento engendrado pelas narrativas. A partir de uma relação inicial de exterioridade, ocorre a captura de quem lê. Quais as consequências para a interação e a construção de vínculos desta demonstração pública de sofrimento nas plataformas digitais? O conceito de performance pode nos ajudar a compreender o que está em questão quando pessoas precisam (ou escolhem) se mostrar publicamente de uma maneira ou de outra.

Para Schechner (2006SCHECHNER, R. O que é performance? In: ______. Performance studies: an introduction. 2a. ed. New York & London: Routledge, 2006. p. 28-51.), performar é mostrar-se fazendo: apontar, sublinhar e demonstrar a ação. Para o autor, fazer e mostrar estão sempre num continuum. Uma performance, portanto, ocorre apenas em ação, interação e relação. A performance não está em nada, mas entre. Quando um indivíduo se apresenta perante outros, ele tem muitos motivos para tentar controlar a impressão que causa. A performance, para Goffman (2002GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. ), pode ser definida como toda atividade de um dado participante da interação que sirva para influenciar de algum modo qualquer outro participante.

A narrativa como performance é um aporte teórico-metodológico que sustenta um diálogo importante com o interacionismo simbólico, assumindo a importância do contexto, microrrelações e agência. A narrativa, nesta forma de entendimento, surge como lugar situado para conhecermos a vida social e os “(...) efeitos discursivos que o ato de contar uma história provoca notadamente na construção de identidades sociais, subjetividades ou sociabilidades”. (MOITA LOPES, 2010). Neste sentido, a narrativa alcança status de prática discursivo-social e, portanto, performance.

Goffman e outros autores interacionistas formulam suas ideias sempre a partir do encontro humano face a face. A interação mediada pela tecnologia possibilita trocas entre pessoas que se encontram distantes no espaço e tempo. Recursos como a publicação de fotos e narrativas de detalhes cotidianos, vinculados ao diálogo via comentários, por exemplo, criam a sensação de “face a face”. É bastante comum, nas mais diversas plataformas digitais, que pessoas testemunhem um sentimento de proximidade e vinculação a outras que nunca encontraram pessoalmente, e talvez nunca venham a encontrar.

Através de suas narrativas, as autoras procuram sair do plano da experiência solitária e levar o outro a experimentar algo de seu sofrimento. Eu sonhei com a cena do falecimento.

Segundo movimento: afirmação de um lugar

Segundo Freire Filho (2010), desde as últimas décadas do século XX, a expansão da capacidade e das possibilidades de ser feliz sobressai como um poderoso fio condutor de nossas vidas. Trata-se de uma ideia fixa tão dominadora que o autor alerta para o risco de sua especificidade histórica passar despercebida. Neste contexto ocidental de exacerbação dos projetos individualizantes e neoliberais, a felicidade vem sendo tratada como bem de consumo (FREIRE FILHO, 2010FREIRE FILHO, J. O anseio e a obrigação de ser feliz hoje. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010. p. 13-25.). Lasch (1983LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago; 1983.), analisando a sociedade americana, aponta conexões entre o narcisismo e certos padrões característicos da cultura contemporânea. Viver para o momento é a paixão predominante - viver para si, não para os outros que virão a seguir, ou para a posteridade. Estaríamos rapidamente perdendo o sentido de continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que se prolongarão no futuro (LASCH, 1983LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago; 1983.).

Neste contexto, a felicidade se insinua, no imaginário popular e científico, como um projeto de engenharia individual (FREIRE FILHO, 2010FREIRE FILHO, J. O anseio e a obrigação de ser feliz hoje. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010. p. 13-25.). A visão meritocrática da felicidade a transforma em algo a ser atingido por um processo de autodesenvolvimento e expansão pessoal. Lendo Lasch (1983LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago; 1983.), podemos dizer que, hoje em dia, as pessoas desejam não a salvação, mas o sentimento, a ilusão momentânea de bem-estar pessoal, saúde e segurança psíquica. E, além de estar bem, torna-se importante aparentar saúde, prosperidade material e felicidade. As plataformas digitais prestam-se bem a este tipo de “exibição”.

O lado perverso desta injunção cultural é a exclusão de pessoas que vivem situações que, a princípio, não parecem abarcáveis por esta construção.

Mesmo para as mães de crianças com condições complexas de saúde, notadamente para as que têm acesso a maiores recursos financeiros e de informação, há a alternativa de se engajarem numa luta para acompanhar a felicidade compulsória reinante nas redes mostrando-se belas e produtivas, cercando os filhos “diferentes” com tudo que a tecnologia pode proporcionar, além de cuidadores pagos e terapias diversas. Entretanto, para a maioria das mulheres resta uma abdicação raivosa ou resignada deste ideal. Para elas, prevalece o velho modelo cultural que cola a maternidade ao padecimento.

O sofrimento, na cultura judaico-cristã, é fortemente associado ao feminino e em especial à maternidade. Desde a bíblica expulsão do Éden, as descendentes de Eva devem parir com dor e seguir “padecendo no paraíso” o exemplo de Maria. A mãe que se sacrifica pelo filho, tema disseminado como valor social, liga, portanto, a figura feminina ao padecimento e à abnegação, formas de sublimar o pecado original de ser mulher. Se este modelo se coloca para todas as mulheres, é ainda maior a carga de sofrimento destinada às mães de crianças doentes.

Pelos motivos acima expostos, não foi surpreendente quando, em trabalho anterior, com mães de crianças com síndrome do intestino curto (condição crônica complexa e de grande gravidade), identificamos um núcleo de significação da maternidade ligado à ideia do cuidado como algo árduo e do sofrimento como presença constante (PAEZ; MOREIRA, 2016PAEZ, A. S.; MOREIRA, M. C. N. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1053-1072, 2016.). Muitas mulheres parecem afirmar-se nesse lugar e nele buscar seu valor como mães.

Há dois anos e meio eu deixei a profissão para a qual passei anos estudando e treinando, e também a carreira que construí nas últimas duas décadas. [...] Eu troquei as salas do tribunal para ser, além de uma mãe que fica em casa, a principal cuidadora de minha filha. (NUPPONEN, 2017NUPPONEN, E. The many jobs of a parent-carer. Complex child, Nov. 2017. Disponível em: <http://complexchild.org/articles/2017-articles/december/many-jobs-carer/>. Acesso em: 7 maio 2018.
http://complexchild.org/articles/2017-ar...
).

Este seria mais um significado da “exibição” de sofrimento, que relacionamos com um segundo movimento narrativo, de afirmação e construção de legitimidade: a delimitação de um campo de desvelo e cuidado feminino. Os relatos de noites sem dormir, exaustão física e mental das mulheres e abdicação de uma vida profissional e social em nome dos cuidados ao filho são recorrentes e podem ser vistos como uma exacerbação das tarefas maternas comuns, relacionadas à criação de filhos típicos. Entretanto, chama-nos a atenção a ausência de reflexão sobre gênero nos artigos da revista.

Terceiro movimento: constituição de um vetor de forças - emoções em diálogo

As narrativas, ao engendrar movimentos de aproximação, captura e afirmação pública, estabelecem um circuito ou vetor de forças. As emoções se colocam em diálogo com o espaço público.

A ideia de que as emoções são indescritíveis, subjetivas e privadas é um obstáculo ao progresso de nossa compreensão ética e científica (SOLOMON, 2015SOLOMON, R. Fiéis às nossas emoções. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.). Rezende e Coelho (2010REZENDE, C.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010.) afirmam que fazer uma “antropologia das emoções” é colocar em xeque essas convicções, tendo como base a verificação de que os sentimentos são tributários das relações sociais e do contexto cultural em que emergem. Sua eclosão seria pautada por “regras de relacionamento”, que os tornam legítimos e esperados em relações governadas por expectativas. Isto não significa negar que as emoções sejam psicológicas, mas afirmar que o psicológico não se equipara com o que está “na” psique, e sim com um conjunto distinto de processos direcionados para o mundo e no mundo (SOLOMON, 2015).

Para Rezende e Coelho (2010REZENDE, C.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010.), os conceitos de emoção devem ser vistos como elementos de práticas ideológicas locais: as emoções passam a ser tomadas como um idioma que define e negocia as relações sociais entre uma pessoa e as outras. Cada cultura tem suas “regras de exibição”. Cada indivíduo, com base na sua experiência e posição social, aprende como deve expressar suas emoções e que emoções devem ser expressas (REZENDE; COELHO, 2010REZENDE, C.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010.).

As regras de exibição são colocadas em disputa quando um grupo de pessoas, no caso as mães de crianças complexas, oferece ao olhar público narrativas e imagens de “corpos anormais”, um mundo que foi mantido desde sempre na penumbra dos quartos fechados e instituições asilares.

Estamos acostumados a pensar nas emoções como experiências na primeira pessoa. No entanto, na medida em que possamos entendê-las como estratégias, vemos que a perspectiva em que melhor aprendemos sobre as emoções é na segunda pessoa, na interação e troca interpessoais (SOLOMON, 2015SOLOMON, R. Fiéis às nossas emoções. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.). Seguindo este mesmo entendimento, Candace Clark aborda a compaixão como uma “emoção social”, que envolve e conecta dois ou mais atores sociais. Não existe um “sentimento puro”, mas emoções vinculadas a ordens negociadas (REZENDE; COELHO, 2010REZENDE, C.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010.).

É importante que nos distanciemos da ideia de ser “natural” que pais de crianças doentes se sintam infelizes.

Caro doutor, você me disse que meu bebê de cinco meses havia nascido com uma doença fatal (…) Você disse que ele se tornaria “vegetativo” e morreria antes de seu segundo aniversário. Você me recomendou não me apegar a ele e, em vez disso, encontrar uma boa instituição que pudesse recebê-lo. (…) Eu te odiei naquele dia. Você, de maneira casual e fria, tentou acabar com toda esperança de amor, felicidade e futuro. Eu não te odeio mais, tenho pena de você. (RANDELL, 2018RANDELL, I. To the doctor who told me not to get attached to my baby. Complex child, Feb. 2018. Disponível em: <http://complexchild.org/articles/2018-articles/february/doctor-attached/>. Acesso em: 7 maio 2018.
http://complexchild.org/articles/2018-ar...
).

A cada dia, mães e pais têm seus filhos diagnosticados com doenças e condições graves, desconhecidas para eles, dramáticas. Ainda escutam para “não se apegar demais”, ainda sentem o peso dos olhares que julgam e apequenam suas escolhas.

Outra mãe relata na revista a discussão com um homem sobre o uso da vaga de estacionamento para deficiente. Este se mostrou indignado quando ela reivindicou o uso da vaga, e lhe disse que pessoas como ela colocam seres incapazes no mundo e ainda exigem privilégios. Apesar das agruras que a realidade impõe, a escolha destas mulheres e de muitas outras tem sido colocar às claras, denunciar, gritar, seguir mostrando seu filho tanto on-line como em pessoa, nos lugares públicos.

O que pensar de uma exibição do sofrimento de ser mãe de uma criança que carrega em si os signos da anormalidade? Rompe-se uma barreira de silêncio em relação ao tema abordado. Falar abertamente sobre corpos doentes, malformados, inclusive mostrando-os em fotos, significaria em outros momentos históricos uma incivilidade imperdoável.

Uma possibilidade de entendimento desta performance de sofrimento na web seria tomá-la como forma de angariar compaixão. Para além de benefícios mais concretos, a compaixão traz compensações por si mesma como, para Clark (2007CLARK, C. Misery and company: sympathy in everyday life. University of Chicago Press, 2007.), um sentido de intersubjetividade, conexão e compreensão. Como outras emoções, a compaixão segue regras culturais implícitas, nem sempre conscientes. Caso “erre a mão” na manifestação de sofrimento, o sujeito pode ser criticado, em lugar de receber apoio. Por exemplo, a mãe de um menino com múltiplas deficiências, que mantém um blog pessoal com muitos acessos e também escreve para a revista eletrônica Complex Child, relatou um movimento no qual algumas mães compartilharam fotos de seus filhos deficientes deitados no chão de banheiros públicos (GEORGE, 2016aGEORGE, R. When this is the best option you have. Ordinary hopes, 2016a. Disponível em: <https://ordinaryhopes.com/2016/06/27/when-this-is-the-best-option-you-have/>. Acesso em: 7 maio 2018.
https://ordinaryhopes.com/2016/06/27/whe...
). O objetivo era atrair visibilidade para a necessidade de banheiros adaptados para pessoas com deficiências severas (que, muitas vezes, precisam realmente ser trocadas no chão); entretanto, as imagens geraram grande desconforto na rede e suscitaram críticas contundentes. Como forma talvez de “contornar” a sensibilidade dos que se sentiram ofendidos, esta mãe específica divulgou uma montagem na qual o rosto de seu filho aparecia num boneco de papel, este deitado no chão de um banheiro público.

Clark (2007CLARK, C. Misery and company: sympathy in everyday life. University of Chicago Press, 2007.) delineia uma “economia da compaixão”, na qual ela pode ser inclusive drenada. Em geral, as pessoas estariam dispostas a manifestar solidariedade e oferecer apoio por um período finito de tempo. Caso o sofrimento de alguém persista, é provável que se “gaste” a compaixão dos outros até o fim.

No primeiro mês após sua morte, as pessoas estavam presentes, escutavam, queriam saber os detalhes. [...] Mas agora, o que eu encontro nas pessoas é uma estranheza. (SCHAEFFER, 2014SCHAEFFER, S. It is not too late. Loving Lydia, 2014. Disponível em: <https://lovinglydiablog.com/2014/07/09/not-too-late/>. Acesso em: 07 maio 2018.
https://lovinglydiablog.com/2014/07/09/n...
).

A formação de outras redes, em muito facilitada pela conectividade digital, seria uma maneira de receber apoio de novas fontes. Uma mulher utilizou-se de um recurso narrativo bastante interessante em uma das postagens de seu blog. Em lugar de dizer que seu filho é totalmente dependente para as atividades da vida diária, o que seria suficiente para a compreensão de quem lê, fez uma descrição minuciosa e repetitiva de todos os cuidados que precisa dispensar ao menino ao longo do dia (GEORGE, 2016b______. Parent or carer? Ordinary hopes, 2016b. Disponível em: <https://ordinaryhopes.com/2016/11/02/parent-or-carer/>. Acesso em: 7 maio 2018.
https://ordinaryhopes.com/2016/11/02/par...
). O texto recebeu muitos comentários de solidariedade. Destacamos aqui a dimensão negociada da compaixão.

As condições crônicas complexas de saúde na infância, por sua novidade, ainda não têm lugar no imaginário social. As mães se veem na necessidade de reivindicar simbolicamente o reconhecimento de seu sofrimento como algo de igual (ou maior) magnitude que, por exemplo, a condição de ser mãe de uma criança com câncer.

[...] Nossa sociedade, como um todo, é mais solidária em relação às chamadas 'crianças normais' que inesperadamente desenvolvem uma doença do que àquelas com condições crônicas e complexas que as acompanham pela vida. Quando uma condição de curso mais agudo, como o câncer, é diagnosticada, a criança será tratada e curada ou morrerá. Em qualquer dos casos, a jornada não será assim tão longa […]. Uma vida inteira vivida nas nuances de cinza de uma doença crônica é um desafio muito maior do que a maioria das pessoas pode começar a compreender. (AGRAWAL, 2016AGRAWAL, S. At least it isn't cancer! Complex child, Mar. 2016. Disponível em: <http://complexchild.org/articles/2016-articles/march/at-least-it-isnt-cancer/>. Acesso em: 7 maio 2018.
http://complexchild.org/articles/2016-ar...
, s.p.)

Quarto movimento: luta simbólica

Num quarto movimento narrativo, o jogo simbólico de expressão e compartilhamento do sofrimento gera aprendizado e deslocamentos.

Veena Das (2008DAS, V. Trauma y testimonio. In: ORTEGA, F. (Org.). Veena Das: Sujetos del dolor, agentes de dignidad. Bogotá: Instituto Pensar, 2008. p. 145-169.) defende que o conhecimento antropológico em relação ao sofrimento esteja atento à violência onde quer que ocorra no tecido da vida, abrindo-se à dor do outro. Abordando tragédias coletivas, a autora se pergunta acerca das tarefas da sobrevivência em que a (re)construção do eu permite habitar novamente o espaço do cotidiano. No Brasil, Vianna e Farias (2011VIANNA, A., FARIAS, J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu, v. 37, p. 79-226, jul-dez 2011.) abordam o sofrimento e luta por justiça de mães de vítimas da violência policial. Apesar da especificidade da vitimização pela violência do Estado, há aproximações possíveis deste trabalho com a questão das mães de crianças com condições crônicas complexas. As autoras nos falam do acionamento da condição de mãe como elemento de autoridade moral no trânsito entre a dor pessoal e causas coletivas. As mulheres performam o que significa a condição materna na necessidade de “luta”. Podemos entender, ainda, que a construção de um lugar de fala como “mães” está em estreita conexão com as construções - sempre em processo - de gênero (VIANNA; FARIAS, 2011VIANNA, A., FARIAS, J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu, v. 37, p. 79-226, jul-dez 2011.).

O sofrimento performado na web, as fotos perturbadoras e os relatos que buscam angariar compaixão podem ser também compreendidos como formas de luta. Moreira, Mendes e Nascimento (2018MOREIRA, M. C. N., MENDES, C. H. F., NASCIMENTO, M. Zika, protagonismo feminino e cuidado: ensaiando zonas de contato. Interface, v. 22, n. 66, p. 697-708, set. 2018.), trazendo experiências de mães de crianças nascidas com a síndrome congênita pelo zika vírus, destacam o protagonismo feminino na construção de denúncias públicas contra um Estado ausente nas ações de prevenção à epidemia. Há também um paralelo entre o uso das fotos de crianças com deficiências ou dependências tecnológicas visíveis e aquelas dos corpos dos jovens vitimados pela violência policial no artigo de Vianna e Farias. Aqui nos lembramos do movimento, citado anteriormente, das mães que divulgaram fotos dos filhos deficientes no chão de banheiros públicos. As imagens chocam, provocam o olhar de quem está “de fora”. De forma similar, a produção de narrativas favorece a tessitura de novos significados, e sua visibilidade na web potencializa o alcance das construções compartilhadas. O modelo cultural que apresenta a equação doença-mal-infelicidade, embora ainda hegemônico, permite alternativas simbólicas. As mães que se veem excluídas das construções de felicidade associadas contemporaneamente à criação de filhos típicos podem, por exemplo, colocar tais padrões de normalidade e felicidade entre parênteses e trilhar novos caminhos para além daqueles de mãe-mártir-sofredora ou mãe-especial-poderosa.

A mãe de uma criança escreve sobre a percepção social da gastrostomia de sua filha.

A mensagem que recebi, muito clara, era de que ter uma criança que usa uma sonda para alimentação não é aceitável na sociedade normal. A gastrostomia dava corpo às diferenças da minha filha. (AGRAWAL, 2013______. Positive tube identity. Complex child, Feb. 2013. Disponível em: <http://complexchild.org/articles/2013-articles/february/positive-tube-identity/>. Acesso em: 7 maio 2018.
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, s.p.).

Falando sobre a criação de uma identidade positiva para as crianças que necessitam desta modificação corporal, a autora diz:

Abrace o tubo. Ele é parte de seu filho, celebre-o! Você pode dar um nome, comprar adesivos para enfeitá-lo ou usar tatuagens temporárias ao redor dele. (…) Deixe que seu filho o exiba quando está nadando ou se alimentando, se for o que ele quiser fazer. Tire fotos sem cobrir a gastro. (AGRAWAL, 2013______. Positive tube identity. Complex child, Feb. 2013. Disponível em: <http://complexchild.org/articles/2013-articles/february/positive-tube-identity/>. Acesso em: 7 maio 2018.
http://complexchild.org/articles/2013-ar...
, s.p.).

Citando Marc Augé, Herzlich (2004HERZLICH, C. Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência privada e a esfera pública. Physis: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 14, n2, p. 383-394, 2004. ) chama-nos a atenção para o grande paradoxo da experiência da doença: ser ela a mais individual e a mais social das coisas. A autora mostra como os laços entre o domínio privado e o público passaram por transformações frequentes no campo da saúde e da doença. A internet reatualiza a discussão dos domínios público e privado. Mulheres marcadas por experiências de sofrimento e cuidado intensas e profundamente pessoais passam a escrever e disponibilizar seus escritos em plataformas digitais.

Honneth (2003HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.) postula ser a luta por reconhecimento a força moral que promove desenvolvimentos e progressos na realidade da vida social do ser humano. Todos temos expectativas profundamente arraigadas de reconhecimento, ligadas à identidade pessoal e a padrões sob os quais um sujeito pode se saber respeitado em seu entorno sociocultural. Se essas expectativas normativas são desapontadas pela sociedade, isso desencadeia sentimentos de lesão. Tais sentimentos podem tornar-se base motivacional de resistência coletiva quando o sujeito é capaz de articulá-los num quadro de interpretação intersubjetiva que os comprova como típicos de um grupo inteiro. Nesse sentido, o surgimento de movimentos sociais depende da existência de uma semântica coletiva que permite interpretar as experiências de desapontamento pessoal como algo que afeta não só o eu individual, mas também um círculo de muitos outros sujeitos. (HONNETH, 2003HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 258.)

A possibilidade de contato entre indivíduos que compartilham experiências semelhantes é extraordinariamente ampliada com o advento das tecnologias de comunicação. Muitos estudos têm abordado comunidades on-line que agregam pessoas com um mesmo diagnóstico ou condição (GILLETT, 2003GILLETT, J. Media activism and Internet use by people with HIV/AIDS. Sociology of Health and Illness, v. 25, n. 6, p. 608-624, 2003.; PEREIRA NETO et al., 2015PEREIRA NETO, A. et al. O paciente informado e os saberes médicos: um estudo de etnografia virtual em comunidades de doentes no Facebook. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 22, supl., p. 1653-1671, dez. 2015.; SOPHIA, 2013SOPHIA, B. Quando a magreza passa a ser considerada um ideal masculino: um olhar socioantropológico acerca dos transtornos alimentares em homens. Revista Intratextos, v. 4, n. 1, p. 119-139, 2013.), demonstrando como a interação propicia construções coletivas sobre os significados de se viver com uma determinada doença ou condição: “A rede mundial de computadores se tornou um grande laboratório, um terreno propício para experimentar e desenvolver novas subjetividades e outras formas de se relacionar com os demais” (SIBILIA, 2016SIBILIA, P. O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.). Construções de identidade baseadas em características biológicas ou sua negação, por exemplo, são assim favorecidas.

Sem a pretensão de desenvolver uma análise linguística das narrativas que compõem a revista Complex Child, importa-nos incorporar esta dimensão da prática discursiva como constitutiva da vida social. Torna-se imprescindível compreender, no discurso das mães, que a própria identidade é um processo intersubjetivo, dialógico e relacional, colocado no território da multiplicidade, do dinamismo, da fragmentação e da contradição (MOITA-LOPES, 2002MOITA-LOPES, L.P. Identidades fragmentadas. Campinas: Mercado de Letras, 2002.). Se consideramos, como Fabricio e Moita-Lopes (2002FABRICIO, B. F.; MOITA-LOPES, L. P. Discursos e vertigens: identidades em xeque em narrativas contemporâneas. Veredas: Rev. Est. Ling. Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 11-29, 2002.), que os efeitos de sentido estão sempre submetidos ao olhar do outro, sendo afetados pelo contexto emergente, podemos ter a dimensão do alcance que um projeto de abertura de si a partir dos meios digitais pode ter.

O nome da revista Complex Child oferece uma pista identitária: uma definição das mulheres a partir de seus filhos complexos ainda que, propositadamente, a editora não defina o que seja uma criança complexa.

A dimensão de projeto aí se insinua. Quando nos distanciamos da idealização de uma felicidade-mercadoria, confundida com fruição de prazeres e com facilidade, e passamos a entendê-la como busca de sentido, a questão deixa de ser se apreciamos nossas vidas, ou mesmo se temos um senso de bem-estar subjetivo. Para Solomon (2015SOLOMON, R. Fiéis às nossas emoções. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), a felicidade é, sobretudo, uma questão de como avaliamos o curso de nossas vidas, dadas nossas aspirações e nossos valores, o que realmente queremos fazer ou realizar em futuros que se constroem no cotidiano. No processo de escrita e compartilhamento de suas experiências na revista, as mães de crianças complexas parecem acessar essa felicidade-sentido sempre de forma dinâmica e instável.

Considerações finais

O acervo da revista Complex Child configura um campo no qual se evidencia uma relação nativa com o sofrimento. Conforme vimos, a performance de sofrimento pode ser instrumento de conexão, veicular significados ligados ao feminino e ao cuidado, bem como buscar canalizar emoções como a compaixão e até chegar a compor uma gramática de luta, afirmação de diferenças e veiculação de denúncias.

A internet é um importante recurso de aproximação e vinculação ao ensejar a circulação de narrativas contra-hegemônicas. Mostrar o rosto e o nome, próprios e do filho, pode fazer parte de um movimento que afirme uma individualidade sofredora, mas pode também culminar na produção de novos sentidos, ampliando o campo de possibilidades, inclusive simbólicas, para mães e crianças com condições crônicas complexas de saúde. Para isso, torna-se necessário, em algum momento, que a dor vinculada numa narrativa individual, privada, íntima, permita uma conexão com outras dores, outras histórias, outras lutas.

A revista se configura como um espaço de construção simbólica de pertencimento, possibilitando que o sentido de projetos de felicidade seja tecido de forma solidária e inclusiva. A realidade internacional é de grande interesse na medida em que antecipa cenários e questões com os quais, ainda que de forma incipiente, já começamos a nos deparar.3 3 A. S. Paez realizou a pesquisa, analisou os resultados e redigiu o artigo. M. C. N. Moreira orientou a pesquisa e a análise dos resultados, e participou da redação do artigo.

Referências

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Notas

  • 1
    A revista está disponível no endereço <http://complexchild.org/>, sendo que números anteriores a 2012 estão acessíveis em <http://www.articles.complexchild.com/>.
  • 2
    Utilizamos a primeira pessoa do singular quando é o caso de destacar a reflexividade da primeira autora.
  • 3
    A. S. Paez realizou a pesquisa, analisou os resultados e redigiu o artigo. M. C. N. Moreira orientou a pesquisa e a análise dos resultados, e participou da redação do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2018
  • Aceito
    19 Nov 2018
  • Revisado
    15 Jan 2019
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