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Saúde indígena potyguara: por outras configurações políticas e estéticas na Saúde Coletiva

Potyguara indigenous health: for other political and aesthetic configurations in Collective Health

Resumo

Desde seu entendimento como ausência de doença, bem-estar, até direito humano, o conceito saúde indígena, na literatura acadêmica, apresenta-se empobrecido de questões que dizem respeito à vida nas aldeias indígenas. São reduzidas as publicações no Ceará, sendo a maior parte, principalmente, de pesquisadores da Antropologia e da História que trabalham com questões sobre territorialização, etnicidade e espiritualidade. Desse modo iniciou-se, em 2008, em uma universidade do Estado do Ceará, um projeto sobre “Saúde Intercultural”, em três etapas, que prosseguiu de 2015 a 2017, com o desenvolvimento de uma tese de doutorado, com o objetivo de provocar uma cartografia dos modos de saúde potyguara em Monsenhor Tabosa, para deslocar a maneira de percebermos a saúde com arte, política e ética na área da Saúde Coletiva. As danças, os cantos, os gritos, o segredo das rezas, o uso das tecnologias são produções que criam rachaduras e desestabilizam as compreensões que temos de saúde, política e estética. As ações políticas indígenas possuem aberturas às inovações, e os potyguara têm possibilitado deslocamentos no que vem sendo reiterado e reificado como saúde indígena através da literatura acadêmica, trazendo novas estéticas que assumem a saúde como produção de vida.

Palavras-chave:
saúde indígena; política; estética; ética; cartografia

Abstract

The concept of indigenous health in the academic literature, from its understanding as an absence of disease, well-being, and a human right, is impoverished by questions concerning life in indigenous villages. The publications in Ceará state, Brazil, are reduced, most of them mainly by researchers of Anthropology and History who work on issues of territorialization, ethnicity and spirituality. In 2008, a project on "Intercultural Health" in three stages, which continued from 2015 to 2017, started at a university in the state of Ceará, with the development of a doctoral thesis, with the aim of provoking a mapping of potyguara health ways in Monsenhor Tabosa, to displace the way we perceive health with art, politics and ethics in the area of Collective Health. The dances, songs, cries, secrets of the prayers, use of the technologies are productions that create cracks and destabilize the understandings that we have about health, politics and aesthetics. Indigenous political actions are open to innovations, and potyguara have made displacements in what has been reiterated and reified as indigenous health through academic literature, bringing new aesthetics that assume health as a production of life.

Keywords:
indigenous health; policy; aesthetics; ethic; cartography

Introdução

Desde seu entendimento como ausência de doença, bem-estar, até direito humano, o conceito saúde indígena, na literatura acadêmica, apresenta-se empobrecido de questões que dizem respeito à vida nas aldeias. A maioria das produções, na área da saúde, que consta nas revistas de maior impacto, revela que a morbidade da população indígena está relacionada a uma alta incidência de doenças infecciosas, crônicas, assim como diz respeito a casos de desnutrição, mas, em menor número, discute as potencialidades do pensamento indígena sobre saúde.

A maior parte das publicações sobre os indígenas no Ceará são, principalmente, de pesquisadores da Antropologia e da História, que trabalham com temáticas referentes à territorialização, etnicidade e/ou espiritualidade. Dada a invisibilidade, o cerco em que a saúde indígena, investida de sua multiplicidade e acontecimento, vem sendo colocada, iniciou-se, em 2008, em uma universidade no Estado do Ceará, um projeto sobre “Saúde Intercultural”, realizado em três etapas com os indígenas da etnia potyguara, das aldeias Mundo Novo e Jacinto no município de Monsenhor Tabosa, que dista 300 km da capital.

A primeira fase do projeto foi de identificação e de formação das lideranças indígenas que demonstraram interesse em pesquisar seus rituais de cura e a relação com o sistema de saúde formal. O segundo momento deu-se com a construção de dados pelas pesquisadoras nativas. Essas realizaram diários de campo, 83 entrevistas e 145 fotografias referentes aos aspectos culturais de saúde e à dimensão etnomédica do cuidado. A última etapa foi a formação, em 2015, dos profissionais de saúde dessas áreas.

O projeto, que respondeu às solicitações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), de acordo com as atribuições definidas na Resolução CNS nº. 466, de 2012, e teve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (CAEE 24316414.5.0000.5534), prosseguiu em 2015 até o ano de 2017, com o desenvolvimento de uma tese de doutorado em Saúde Coletiva intitulada Saúde Indígena Potyguara: travessias entre terras e territórios, com o objetivo de provocar uma cartografia dos mapas de singularidades dos modos de vida potyguara em Monsenhor Tabosa, para pensar uma saúde que não fosse para ou dos indígenas, mas uma saúde com os potyguara, criando deslocamentos no conceito saúde indígena na área da Saúde Coletiva.1 1 O projeto que possibilitou produções, entre as quais a tese que foi base para este artigo, recebeu financiamento do CNPq e não apresentou conflito de interesse.

Este artigo tem o intuito de compartilhar modos de viver a saúde dos potyguara, que expressam relações entre o visível e o invisível, bem como produções de saúde, como rituais, artesanatos, desenhos, danças, cantos, rezas, gritos e experimentações de cormopolíticas que possibilitam a expansão da vida e que possuem forças para deslocar a maneira de percebermos a saúde como política e estética.

Tentativas de viagens a partir de uma tese cartográfica

Produziu-se uma viagem cartográfica pelos encontros com os potyguara em Monsenhor Tabosa, no Ceará, entre os anos de 2015 e 2017, bem como pelos afetos provocados pelos filmes assistidos, músicas escutadas, participações em eventos e grupos, leituras de livros, artigos, jornais, avizinhando-se de autores como Didi-Huberman, Lagrou, Rancière, Deleuze, Guattari, Rolnik, Viveiros de Castro, Kopenawa, Nietzsche, Spinoza, entre outros.

Mesmo fazendo uso de vários autores europeus, brancos, esperamos não ter trabalhado com subserviência, no sentido de reprodução, mas em uma relação de problematização. A escolha por esses pensadores foi devido ao incômodo que eles nos possibilitaram, ao depararmos com a maneira como o termo saúde indígena vem sendo trabalhado na Saúde Coletiva. Procuramos fazer combinações entre os encontros com esses teóricos e os modos de vida dos potyguara, que, desde o início do projeto, foram os que tensionaram as mudanças de direção da pesquisa e apontaram para a existência da vida.

A etnia potyguara no Ceará está presente em Crateús, Poranga, Boa Viagem, Novo Oriente, Quiterianópolis, Tamboril e Monsenhor Tabosa. Esta pesquisa foi um encontro maior com os povos potyguara que habitam a região da Serra das Matas na zona rural do município de Monsenhor Tabosa, especificamente as aldeias do Mundo Novo e Jacinto. A aproximação com os potyguara, nesta pesquisa, possibilitou deslocamentos no que vem sendo reiterado e reificado como saúde indígena na literatura acadêmica na área da Saúde Coletiva.

Pela cartografia não se busca a verdade, mas se perceber como os regimes de verdade são engendrados e o que é feito nas pessoas a partir do que se institui como verdadeiro. Assim, a cartografia não se restringe a um método, mas está ligada a uma convocação de percepções, sensações e afetos vividos, apostando no “entre” do coletivo de forças a partir da desestabilização das “verdades”.

Para Rolnik (2007ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS, 2007. ), a cartografia vai sendo feita a partir do movimento. Logo, é um trabalho de itineração, percurso, deslocamento, ato de mapear mundos e não visões de mundo, mapear o presente com suas circunstâncias no sentido de produzir desvios. A cartografia é uma “ciência nômade” no sentido da errância que se dá em trânsito por uma multiplicidade que não pretende a verdade, a explicação, a precisão. O trabalho é mais de uma pragmática, como criação pela experimentação, do que semântico.

Tornamos visíveis as pessoas pelas falas e sem a utilização de pseudônimos para não relegar ao anonimato povos que têm o direito de existir.

Saúde indígena potyguara

Ver o que não é visível

Rancière (2005RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO/34, 2005.) formula a expressão “partilha do sensível”, aproximando política e estética e, desse modo, mostrando a estética como geradora de plano comum, de vontades coletivas e de confecção do sensível. A estética compõe-se de regimes específicos de afetabilidade, visibilidade e de discursividade, que definem o como e o que pode ser visto e audível, materializando o ver, o sentir, e, assim, criando o sentido do político.

A visibilidade, aqui, trata-se da sensibilidade e da percepção, e não simplesmente da metaforização do conhecimento em sua forma reflexiva, que alcança uma verdade. Com esse autor, a política não se resume ao consenso, contrato nem a algo sistemático, mas envolve o agonístico; e o sensível compreende o estabelecimento do comum (como partilha do incomum, do estranho, do não familiar), em suma, política e estética se entrelaçam, aproximam-se a partir de uma estetização da política (como a proposta por Walter Benjamin) e de uma política da estética.

Mas como se partilha o imanente, já que esse não comporta o número, não se totaliza? O que Rancière (2005RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO/34, 2005.) busca propor é que a experiência da visibilidade é partilhável pelo espectador, incidindo sobre o pressuposto corrente que considera a estética como algo de domínio apenas dos grupos de criação artística, restando para o público absorver as intenções do produtor, que estariam evidentes na obra de arte. Portanto, o autor coloca em perspectiva a experiência da visibilidade do público, salientando a partilha das sensibilidades dos espectadores contra a opressão institucionalizada da experiência estética do olhar.

Por essa violência institucional da experiência estética, o nosso olhar é colocado no campo das certezas. As coisas, porém, não estão na sua evidência, elas evocam várias imagens e sentidos, bem como movem o corpo|pensar, dizendo que muito vaza e escapa do nosso olhar. Os potyguara afirmam, pelo viver, que as forças extrapolam o domínio do perceptível e, também, que eles recusam a ver coisas que nós consideramos como evidentes. É possível, para os potyguara, ver o que não é visível. Operam com outros regimes de visibilidade. As coisas não se esgotam no que é visto, ou no que dizem do que é visto. Eis uma postura de vida que enfrenta aquilo que nosso olhar impõe. É um além da visibilidade, uma relação entre visível e invisível.

Pelas maneiras de olhar é que se produzem doenças como o mau-olhado, mas, também, é por onde são canalizadas as curas. Os curandeiros dizem que há dois tipos de mau-olhado: o do feio e o do bonito. Teka, professora potyguara, em uma das reuniões, enquanto falava das doenças espirituais, disse sobre os dois tipos de mau-olhado: “Existe bem e mau? Eu não sei! Existe o do feio e o do bonito! Existe o diferente!”.

Em outro momento, conversando em um encontro com os pesquisadores da universidade, Teka afirma: “nos somos um olhar de dentro, um olhar sentimental que sente aquilo. O olhar de vocês vem de fora para dentro e vai somar e ter qualidade. Tem a pesquisa da escrita e tem a pesquisa do olhar.” É por essa ação do olhar que ocorre a criação de conhecimentos e a mudança de perspectiva.

No conto “Meu tio o Iauaretê” de João Guimarães Rosa (2001ROSA, G. Meu tio o iauaretê. In: _____. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 191-235.), o mestiço diz ao viajante que enxerga dentro dos matos e escuta com as orelhas no chão. No filme Abraço da serpente, de Ciro Guerra, lançado em 2016, há uma cena, na qual o xamã fala ao pesquisador que, escutando o rio, ele aprenderia como remar. Em outro momento, o xamã diz que o mundo é enorme, mas que o pesquisador só sabe escutar o mapa. Essas falas trazem conhecimentos que se constroem pelo corpo, e deste pelas afecções com outros corpos, como a floresta, a natureza, o cosmos. A visualidade diz de experimentações, e as sensações estabelecem relações com a vida, sendo pelos corpos, pelas relações que se produzem mundos. A visão não se restringe ao conhecimento do que é visível, mas diz de experimentações e relações entre visíveis e invisíveis que produzem transformações.

Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a evidência visível) não obstante nos olha como uma obra (uma obra visual) de perda. Sem dúvida, a experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar alguma coisa. Mas a modalidade do visível torna-se inelutável - ou seja, votada a uma questão de ser - quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí (DIDI-HUBERMAN, 1998DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998., p. 34).

Para Didi-Huberman (1998), o ver não é uma postura de contemplação e de apropriação de um objeto passivo, mas uma relação que surge do, no mínimo, entre dois que provoca aberturas por onde se precipita o olhar inquietado, interrogado, interpelado e preste a se perder na aventura do que lhe escapa.

A colonização, forma de poder que balizou a tessitura da modernidade, impulsionou uma série de imaginações, fantasias e delírios de onipotência da representação que se daria pela materialidade do é visto. Tal compreensão não se separa da captura e da coisificação dos corpos, assim como da valorização da arte e da política que coincidem com um “alterocídio”, conceito trabalhado por Mbembe (2018MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2018.).

Um trabalho de crítica a esse modo de visibilidade genocida não será possível enquanto negligenciarmos diferentes maneiras de olhar, enquanto não percebemos a diferença/alteridade dos sujeitos videntes do que não é visível. O intuito é fomentar e ampliar uma discussão estética e política no campo da saúde indígena a partir de diferentes maneiras de ver nos espaços em que a vida vai sendo artística e politicamente criada.

Artesanatos e desenhos: o olhar entrelaçado com as produções de vida

Os objetos indígenas olham-te, ensinam-te, despertam desejos, sentidos e fascinação. É uma comunicação do singular, em que o espectador é convocado para além do olho/tela a operar na busca do que não está evidente.

O artesanato, para os potyguara, não é uma arte do passado, detentor de um significante, enclausurado dentro de um regime de mediação representacional e que deve estar em museus ou expostos em galerias. Como disse uma liderança indígena, na inauguração do Museu do Jacinto, “museu não é um amontoado de peças antigas, passadas, mas as histórias, os rituais, as plantas, os indígenas. Aquilo que não cabe no museu, também, é arte”.

No planejamento das escolas indígenas de Monsenhor Tabosa, em 2016, uma professora salientou: “nossa arte está em conhecer o canto do sabiá.” Essa construção verbalizada diz de uma arte ligada a modos de viver, modos de produção existencial relacional. A arte é construída pela e na relação com o canto e com o sabiá.

Els Lagrou (2009LAGROU, E. Arte Indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. ) realizou um trabalho com os kaxinawa, através do qual ela percebeu como o grafismo e o xamanismo estavam relacionados, e como a arte e a estética ameríndia, além de diferirem da nossa, pareciam contradizê-la. Pois se nós buscamos decifrar o desenho como um código dentro de uma modelo representativista e simbólico, para os povos, com os quais ela se encontrou, os desenhos, os artefatos, os objetos falavam das relações, movimentos entre-dois, daquilo que se conecta, e do que importa pelo seu valor produtivo e não representativo. Dessa maneira, o desenho tornava-se um importante filtro que possibilitava os cantos, banhos e as intervenções dos rituais penetrarem pela pele. As imagens nos grafismo não eram um símbolo ou ícone do seu modelo, mas índices que orientavam a percepção, facilitando a passagem do visível para o invisível. A agência dos objetos não estava na forma nem nas marcas inscritas pelos símbolos, esperando o desvelamento, mas na fluidez da percepção.

Os artefatos para os indígenas trazem efeitos, ações, forças ao mundo e não uma imagem, uma significação que precisa ser descoberta. A forma não precisa representar a realidade, mas ela age. Segundo Lagrou (2015), os desenhos são caminhos que guiam o espírito do olho ou podem fazer a pessoa se perder. São visualizados na experiência dos “artesãos cósmicos” (xamãs) que, pela dança, pelo canto, pelo contato com alguns tipos de plantas, veem aquilo que normalmente não se vê e usam adornos nos corpos, não como meros enfeites, mas armadilhas. Os desenhos nos corpos capturam o olhar, entrelaçando-o com as produções de vida.

Kopenawa e Albert (2015KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) dizem que o xamã pode fazer viagens entre vários mundos, entre o visível e o invisível, fazendo redes para que o céu não caia. Ele é capaz de sonhar e andar entre fronteiras, desterritorializando o olhar. Nos desenhos potyguara, há vitalidade e eles são considerados vivos, como as pessoas que os fabricam. A fabricação combate a ideia de propriedade. O fabricante dos artefatos e o xamã, ao realizar os rituais, não são proprietários dos objetos nem dos rituais, mas guardiões do saber, para multiplicá-lo.

Fausto (2008FAUSTO, C. Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 329-366, out. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132008000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 6 jan. 2018.
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), ao realizar uma escrita que problematiza o conceito indígena traduzido por “dono” ou “mestre”, diz que essas categorias não se restringem, no caso ameríndio, à relação de propriedade ou de domínio que as empregamos, pelo fato de o “si” não coincidir com o “mesmo”. Assim, o dono de um ritual, de um artefato, diz daquele que cuida, daquele que é responsável.

Os indígenas potyguara são predadores da forma e da figura, das relações de propriedade, e trazem os rituais, as pinturas, os artesanatos, assim como o uso das raízes como arte e modos de produzir saúde, vivendo em relação. Tereza Potyguara, que produz muito cuidado em saúde com as ervas do mato na aldeia Mundo Novo, fala que ela se sente com saúde quando pode trabalhar, andar, ter alegria e vontade de cantar.

Não temos o interesse de afirmar se o que os indígenas fazem é ou não arte, mas o quanto de força essas maneiras de olhar e de viver podem deslocar nossa percepção de saúde de forma artística e política.

Contribuições dos indígenas potyguara para o pensar a saúde como estética e política

Os povos indígenas podem nos ensinar muito sobre saúde com uma percepção de arte que traz um olhar que não se legitima pelo que é visível e uma relação com os objetos que não é da ordem da propriedade. Também não é algo como uma incessante criação de novidades, mas detalhes, microdiferenças.

O corpo e a voz são elementos importantes nos rituais indígenas. O corpo, aqui, não se restringe ao organismo nem à origem das necessidades e dos prazeres. O corpo não é unidade e, no ritual, não temos só uma maior quantidade de corpos. O próprio ritual se faz corpo, quando tomado como agenciamento coletivo de enunciação. As falas se relacionam com o fazer. Os gritos provocam desvios na fala, criam algo distinto do comunicar. O cantar e o dançar valorizam o corpo|pensamento. Alguns pensadores nos aproximam de questões importantes para pensar o corpo, estabelecendo uma reversão na lógica cartesiana e possibilitando uma abertura para novos pensamentos sobre a questão do corpo.

Para Nietzsche, o corpo é um fenômeno mais rico que a noção de consciência, por comportar uma multiplicidade de afetos, forças, desejos, garantindo a potência da mudança e, nesse sentido, a vida. De acordo com o filósofo de Sils-Maria, o corpo pensa! (DELEUZE, 1994DELEUZE, G. Nietzsche. Trad. Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 1994. ).

Segundo Spinoza (2009SPINOZA, B. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. ), as ideias possuem extensão corporal, assim como o corpo possui um caráter ideacional. O corpo espinosiano seria o conatus, isto é, força, potência ou intensidade produzida na relação de afetar e ser afetado. O corpo não tem forma predeterminada, mas uma composição de partículas e afetos, quer dizer, intensidades. A questão espinosiana “que pode o corpo?” não se refere à atividade de um corpo/organismo, mas à intensidade de forças, virtualidades atualizadas pelo agir-com.

A concepção espinosiana de corpo atravessou a ideia de “corpo sem órgãos” (CsO) proposta em o Anti-Édipo, retirada de Artaud. O CsO não é um conceito no sentido tradicional, ele é produção, intensidade, uma potência revolucionária não orgânica nem inorgânica e que comporta limiares, desafia os órgãos a desfazerem a organização produtiva em que foram inseridos para poder criar mundos diferentes.

Deleuze e Guattari (1996DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996, v. 3. ) provocam passagens do corpo como unidade biológica, como produto e mercadoria, para corpo-força-fluxo-criação. O CsO relaciona-se à experimentação, ao nomadismo composto por um povoamento de intensidades que caminha para desfazer a organização dos órgãos, os significantes e buscar o virtual.

Para o CsO, não se admite sujeito, pois ele é concebido como construído por agenciamentos. A subjetividade, assim, é industrial. O ovo é um corpo sem representação, princípio de produção sem imagem e atravessado por vibrações. Os corpos indígenas são montagens de adornos que agem, pinturas condutoras de forças geradas nos encontros. Quando falamos de corpos, falamos de agenciamentos, composições de partículas e afetos que buscam passagem.

Os corpos se compõem de danças e rituais de cura. Esses rituais conectam elementos heterogêneos cristãos, ameríndios, africanos, vozes, olhares, gestos. Os rituais de cura não são simples imitações, identificações, mas uma zona de vizinhança, de diferenciação pela qual não se pode mais ser distinguido o que é da umbanda, do cristianismo ou dos indígenas. Percebemos, nos atuais e alegres encontros com os potyguara, que havia agenciamentos que combinavam saberes africanos, ameríndios, cristãos, e que estas combinações não eram meras semelhanças, justaposições ou fusões entre esses, mas um encontro entre os corpos, afetos e afecções. Eram contaminações de séries heterogêneas que compunham rizomas e que nos impossibilitavam achar uma origem.

Em datas importantes para os potyguara, as comemorações são iniciadas por rituais que acontecem em lugares tidos por sagrados, como debaixo de árvores, e as danças do toré e do maneiro pau são realizadas. A primeira acontece, geralmente, na abertura desses momentos, e o maneiro pau (dança que se diz originária do cangaço e que outros pesquisadores acreditam ter surgido sob influência árabe ou africana) é trazido de maneira lúdica, com muita animação e risada para dançar a luta desse povo pelas terras.

O toré também acontece com alegria e muita diversão combinada com luta política. Com os pés em contato direto com a terra, criam canais para que as energias com a natureza possam fluir. Os pés descalços não dizem que eles são como encanamentos dessas energias, mas essa ação produz canais de conexões com as forças da mata. Novamente se foge da figuração, representação, para caminhar pelas produções.

As danças movimentam e são movimentadas pelos círculos no toré, pelos corpos pintados de vermelho e preto, pelos sons das pisadas e do maracá (feito a partir da cabaça). As cores muitas vezes são produtos de tintas industrializadas, devido à demora que leva o preparo e à falta de tempo para os rituais de fabricação, ou à ausência, na natureza, do jenipapo e do urucum. Esses rituais, além de proporcionarem uma composição de saberes, possibilitam relações entre os vivos e os antepassados, marcando as mudanças históricas e anunciando a abertura de novas atualizações. É um devir-macaco da dança, um dançar entre gestos e risadas improvisando gambiarras, brincadeiras com peças finitas em combinações infinitas. Um macaquear de saltos, movimentos, fluxos.

Essas danças/rituais/brincadeiras também estão presentes em atos públicos, que acontecem debaixo de árvores ou nas escolas, considerados espaços nos processos de luta política. A presença dos professores indígenas e dos alunos opera um estímulo à participação nos rituais, e a qualificação dos professores indígenas é percebida pelos potyguara como aumento da força política para as lutas a fim de garantirem seus direitos.

Olhávamos para as danças como compostos de movimentos condicionados e nossa vontade era ver uma forma, buscar uma origem. Ficávamos olhando para as pessoas dançando o maneiro pau e perguntávamos por que uma dança que não tinha origem indígena, estava ali. Esse nosso olhar não nos fazia perceber as diferenças nos detalhes, o diferir em um multiverso de práticas e de saberes, a partir de ritmos orgânicos, da natureza, dos espíritos em um tempo artesanal e através de corpos intensivos. Bricolagens, artesanatos de gestos, sons, vozes, movimentos que questionaram nosso olhar.

Maneiro pau, maneire! Diminua a intensidade! É muito para mim... Excede-me pensar que me ensinas, que me indagas! Será que me olhas? Movimenta corpos, emite sons, produz danças, instaura sentimentos de luta, faz de mim peça do teu jogo... Poderias ser menos duro! Mas dessa dura madeira dos tecidos de plantas conectas ritmos, leveza, resistência, fibras, mãos, dedos, corpos, danças, pisadas, suor, gritos, espíritos... E o mais precioso: movimentas o que não cabe em mim, o que não preciso, pois não é preciso. O que foge dos signos, imagens, pensamento, números, ciência, arte, filosofia, sujeito, homem... Diz-me o que não posso, o que não pode meu corpo, o que não pode meu pensamento, o que não... Diz-me não e me faz perceber que existem coisas não redutíveis a mim e às minhas prisões. Liberta-me! Sinto uma liberdade em não poder, em não precisar ser precisa! Ufa, parece mais maneiro pensar assim! (Lidiany Tributino)

Através dos rituais, rezas, gritos, canções, danças, temos um uso minoritário da linguagem, dos gestos. As pinturas, os artefatos não representam o mundo material, conectam mundos, potencializam movimentos de fluxos em passagens pelos buracos de visibilidade, movem os conceitos, dizendo que o objeto produzido, a pintura feita, não são a obra ainda, mas algo que ainda está por vir. Eles habitam o virtual que interroga o visível, são artes selvagens, indomadas, e não propriedades de alguém. Com a potência de uma serpente, elas deslizam por entre significados.

As rezas são buscadas pelos Potyguara e também por outros indígenas e pelos brancos. As rezas não se destinam só às pessoas, mas também aos animais, à plantação, aos objetos. Há diversas formas de adoecimento, como: quebranto, vento caído, espinhela caída, doenças nos olhos (dordói), doença no sangue, nos nervos, dor de cabeça, vermelho, quizema, cobreiro, entre outras. Doenças simples e complicadas, envolvendo a necessidade do olhar, de um conhecimento corpóreo, de verbalização de rezas, de posicionar-se diante do sol, de dias, de horas... Essas ações incluem uma sociabilidade de corpos em movimento, espaços, tempos e períodos, processos que desencadeiam maneirismos corporais, para saber das doenças e para operar as curas.

Aí é ótimo! Porque o sol vem trazendo a luz do dia, vem trazendo. Você pode ver que de manhazinha, quando o sol vem nascendo, aquela beleza da natureza, pois aquilo é muito bom, aquele ar, aquele sol que vem nascendo. De tardezinha porque você reza e vai embora com sol. Porque nascer é uma coisa e anoitecer é outra. Que a parte do amanhecer, você sabe que o dia vem raiando, traz uma coisa muito boa pra nós. A natureza, uma coisa muito boa pra nós, a energia da natureza. E o anoitecer e o entardecer é muito bom também que ali já vai embora, você já joga, vai embora com ele. Tudo faz parte da relação! Elas têm sempre um mistério e nós também tem um mistério. Tem o mistério de você rezar com a mão assim só em cima e tem a planta medicinal que ela é bem forte (Bilita, em entrevista às pesquisadoras indígenas).

A força que vem das matas é trazida pelas rezas, tanto de homens como de mulheres, e ativada por vários elementos diferentes (canções e danças e plantas e perfume e água e sal e óleo e...). Quando insistimos com Antônio Vermelho que ele nos explicasse como se diferenciava quebranto de vento caído, ele ofereceu como resposta: “Eu não posso explicar se tem vento caído e se não tem. Só quem pode saber é a pobi da mãe que luta com ele.” E Bilita, mesmo iniciando uma explicação, por persistência nossa, finalizou dizendo: “você olha, você saber.” Sente-se, não se explica! As raízes que são referidas às plantas também nos levam a pensar nas suas ligações com os antepassados, com a natureza e com a vida. Os sentidos de raízes podem ser vários, pois é um conceito rizoma que faz conexões com outros sentidos, como as raízes axiais, que se conectam a outras raízes e radicelas.

Os potyguara conseguem transitar por diferentes universos referenciais, trazendo questões molares e moleculares da saúde nos seus modos de vida. Usam o sistema de saúde formal como um dos recursos, não como O recurso, e trazem, do campo das experimentações, possibilidades de cuidado, como produção de vida, como potência criativa. Nas aldeias, presenciamos relatos da existência de casos de hipertensão, diabetes e outros adoecimentos que são encaminhados para os médicos, pois não “são causa de reza”, como diz Antonio Vermelho.

Antes de procurar os serviços médicos, a maioria dos potyguara costuma buscar os que “sabem da mão direita”. Às vezes, pode acontecer o inverso, procuram os médicos e, quando percebem que os remédios não curam, recorrem aos rezadores das aldeias. Mesmo que saibam que para os problemas espirituais são necessárias as rezas, esse saber não implica diminuição da importância das práticas em saúde do sistema formal.

Percebe-se também a incorporação, na vida indígena, de conceitos não indígenas de identificação e tratamento das doenças, atacando a lógica da propriedade dos saberes. Marli, que faz lambedor para gripe e inflamação, com corama, mastruz, malva, jucá e romã, e é procurada até pelos profissionais de saúde, fala: “eu também sou medicinal”. A articulação e utilização desses dois sistemas estão presentes e a ideia de incompatibilidade é substituída por uma de aumento da força pela vizinhança entre os diferentes saberes.

A saúde dos potyguara diz dos seus antepassados e do seu presente, abrange as relações com as ervas do mato; com o tratamento natural; com a alimentação; com os lugares sagrados; com o sistema formal de saúde e de educação; com o trabalho do pajé, curadores, rezadeiras, mezinheiras e das parteiras; com o cuidado de crianças, idosos, animais e do ambiente, além do seu contato com Deus, Tupã, Mãe Terra, Encantados, Espíritos da Mata. Pelas falas, percebe-se que as doenças, a saúde, a cura dos povos potyguara vão se construindo como efeito das forças em relações que se estabelecem entre eles e terra e alimento e mundo e natureza e organização social e cosmologia e... e... e... Aqui não cabem as dicotomias, mas a multiplicidade, que faz a vida se ramificar em suas extremidades existenciais em uma interseção.

Os indígenas não são apenas minorias por representarem uma expressão numérica de menor quantidade, eles estão em constante devir-minoritário por questionarem o padrão, desestabilizarem, deslocarem a maioria. Problematizam nossa política! Como diz Kopenawa, citado por Viveiros de Castro (2015KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 32):

Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.

Fausto (2008FAUSTO, C. Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 329-366, out. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132008000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 6 jan. 2018.
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) expõe que a instabilidade e a ausência de fidelidade entre os indígenas foram os elementos que possibilitaram a não cristalização de um lugar institucional de poder. Mesmo encontrando formas institucionalizadas de chefia nesses povos, o autor intui que o surgimento de uma figura central de poder deve ter ligação com a limitação das lógicas multiplicatórias e alterantes da guerra e do xamanismo, com pressões que empurravam a passagem dos sistemas xamânicos àqueles de tipo templo-sacerdote.

Outra exposição interessante do autor é a de que comprometemos nossas análises quando ficamos restritos a só procurar, nesses povos, modelos antiestatais ou modelos compostos por um aparelho estatal em miniatura. Como entre os indígenas existem vários domínios de relação, há que se construir uma nova linguagem. Ele sugere a da maestria como dispositivo de produção da potência e como solapamento do poder.

Em um encontro de discussão Política com os potyguara de Monsenhor Tabosa, Crateús e Tamboril, em 2015, sentíamos a presença de um conceito reativo de política e uma espécie de mal-estar se apoderou de nós. Quando o ponto de ata foi sobre política, começaram a falar sobre a candidatura de alguns partidos e o apoio que deviam prestar, se quisessem que os indígenas fossem representados nos municípios. A Política de que falavam parecia resumir-se a questões partidárias, procedimentos jurídicos restritos aos espaços estatais e aos espaços institucionais de representação. Depois, ao longo do encontro, enquanto discutiam outras pautas, como educação, água, cultura, e também durante o tempo que passamos com os Potyguara, percebemos movimentos que criavam novas estratégias de visibilidade política para suas demandas, como rituais festivos, divertidos, combativos, além do uso das redes sociais.

As lideranças potyguara passaram por várias admoestações sobre a utilização das redes sociais, sem que os admoestadores percebessem uma experimentação que impulsionava saídas das repressões que várias instituições impunham a esses povos, dentre elas, as de pesquisa que lançam várias burocracias quanto à pesquisa em aldeias. Pelas redes sociais, as lideranças divulgavam vídeos, fotos e textos atacando o monopólio da comunicação e as redes de códigos de poder. Sabem que a internet é um eficaz sistema de controle e vigilância, mas, também, possibilidade de lutar contra a inaudibilidade e a invisibilidade. Há uma nova apropriação das tecnologias.

A potência indígena está em devir minoritário atravessado por linhas de diferenciação que são de difícil definição, já que apresentam em seus corpos multiplicidades. É um trabalho de resistência face à normatização, ao projeto identitário, a partir da afirmação da vida e da diferença. Uma vida que transporta os acontecimentos, singularidades, virtualidades, e que não se resume a um dever ser, a modelos que se devem imitar, senão a novos modos de vida a produzir.

Através do olhar do xamã, com os modos que ultrapassam o ver e o evidente, produzem ligações rizomáticas que os conectam com animais, com vegetais e com coisas e com espíritos... Através das relações entre danças e cantos e rezas e pinturas e artefatos e gritos e... em que o “e”, que se produz entre os termos, não diz de uma série numerável, mas de ritmos, fluxos de desterritorializações, os potyguaras nos ensinam a produzir vida e saúde com cosmopolíticas, rizoma de corpo e cosmos e política e vida e saúde e... Política é vida! Mas não dentro da lógica capitalística de que tudo é vida, tudo é saúde, tudo é de interesse político, logo de responsabilidade do Estado, agência reguladora e de controle.

As danças, os cantos, os gritos, o segredo das rezas, o uso das tecnologias são produções que criam rachaduras e desestabilizam as compreensões que temos de Saúde, Política e Estética. As ações políticas indígenas possuem aberturas às inovações. Encontramo-nos com a arte para além dos pressupostos da visibilidade, políticas que não se resumiam a mera ampliação de direitos indígenas, mas produção de vida, vida/relacional que escapole aos adjetivos identitários, assumindo indeterminações e errância.

Considerações finais

Na literatura acadêmica, percebemos o conceito saúde indígena como sendo aferido por um fora (saberes científicos) e o termo indígena como categoria genérica. As produções contemplavam aspectos sobre doenças crônicas e infectocontagiosas, assistência aos cuidados em saúde, nutrição, educação sanitária, alcoolismo, suicídio, política de saúde, participação social e interculturalidade, bem como meio ambiente e questões sobre habitação. Desde seu entendimento como ausência de doença, bem-estar, até direito humano, exprime-se que saúde é não ser doente, não estar doente, ou ter acesso a direitos humanos, ou seja, produções de um estado de coisa, incluindo ideias de algo fixo, subsistente e relacionado ao controle pelos programas de saúde. Uma expressão da qual se parte e um limite para além do qual não se pode ir, e do qual não há a garantia de se obter asserções sobre as condições que este conceito é conjecturado nem sobre nosso modo de pensar e agir em relação a ele. Dito de outra maneira, percebemos que o conceito “saúde indígena” não era problematizado, posto em questão.

Percebe-se que a produção acadêmica mutila, massifica e mortifica os modos de vida nas aldeias indígenas, quando oferece uma compreensão de saúde indígena sem dar voz a estes povos, ou sem escutá-los. Buscamos trazer os enunciados e enunciações dessas pessoas, fazer leituras promíscuas de autores e sentir as coisas ditas por indígenas excluídos das nossas opções acadêmicas de leitura. Pessoas às quais não se escuta, por não estarem em ambientes da academia ou por não fazerem parte de espaços e produções legitimados.

A saúde potyguara não se restringe a definições do tipo: “saúde é direito, é bem-estar”, pois eis que o verbo “Ser” remete a um Eu, a um sujeito ou estado de coisas, mas diz de acontecimentos incorporais, aproximados das singularidades, relacionados a um ISSO, que é o acontecimento. Os casos dos potyguara não são indicadores de um sujeito, mas de agenciamentos coletivos de enunciação e maquínicos de corpos. Não se referem a um nome próprio nem a uma pessoa, tampouco a um conjunto ou somatório de indivíduos, mas problematizam o eu totalitário, guardião dos sentidos e das verdades.

Os potyguara mostram-se como resistência aos processos de subjetivação identitários, quando dizem de uma saúde não restrita à esfera semiótica, quando problematizam os agenciamentos coletivos de enunciação sustentados nos eixos de estratificações, quando estabelecem uma crítica a esses entendimentos de saúde que são apresentados como universais, necessários e obrigatórios, fonte de investimentos das concepções tutelares de saúde.

Entre a saúde potyguara e a saúde indígena, as intensidades vibram e não está em questão descrever atributos a priori, universais, essenciais de saúde, mas pontos de ultrapassagem e problematizações das práticas de subjetivação da saúde indígena, a partir dos processos de singularização dos potyguara, que assumem a saúde como produção de vida.2 2 M. L. T. Sousa foi responsável pela pesquisa, análise e redação do artigo. A. Caprara coordenou a pesquisa e foi responsável pela redação e revisão do artigo.

Referências

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  • 1
    O projeto que possibilitou produções, entre as quais a tese que foi base para este artigo, recebeu financiamento do CNPq e não apresentou conflito de interesse.
  • 2
    M. L. T. Sousa foi responsável pela pesquisa, análise e redação do artigo. A. Caprara coordenou a pesquisa e foi responsável pela redação e revisão do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2018
  • Revisado
    03 Mar 2019
  • Aceito
    12 Mar 2019
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