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No fio da navalha: a dimensão intersubjetiva do cuidado aos bebês com condições crônicas complexas

The intersubjective dimension of caring for babies with complex chronic conditions

Resumo

Apesar de todos os avanços da medicina moderna, muitas são as doenças e condições crônicas de saúde que não se consegue curar. As situações crônicas de saúde progressivas e limitadoras do tempo de vida são mais comuns no adulto e no idoso, mas podem ocorrer em todas as idades. Os bebês com condições crônicas complexas (CCC) apresentam fragilidades clínicas, altas taxas de morbidade e mortalidade e, portanto, necessidades que demandam transformações dos sentidos sobre o cuidado em saúde. O objetivo do artigo é explorar os desafios advindos do cuidado de bebês cronicamente adoecidos e submetidos à dependência tecnológica na perspectiva dos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem), vistos como sujeitos capazes de elaboração psíquica e transformação de suas práticas profissionais. Abordou-se a experiência de profissionais de saúde a partir de estudo qualitativo em um hospital de referência no Rio de Janeiro no ano de 2015, a partir de entrevistas com 15 profissionais de saúde e observação participante. A análise do material empírico, dialogada entre a abordagem clínica psicossociológica francesa e as contribuições da psicanálise, reconheceu e valorizou os desafios da prática de cuidado e as repercussões psíquicas nos profissionais de saúde. Buscou-se compreender em profundidade a realidade estudada e a singularidade da experiência cotidiana, sendo central a valorização da elaboração psíquica e da produção de sentidos dos sujeitos.

Palavras-chave:
cuidado em saúde; doença crônica; bebês; cuidados paliativos; pediatria

Abstract

Despite all the advances in modern medicine, many diseases and chronic health conditions cannot be cured. Chronic progressive and life-limiting health situations are more common in adults and the elderly, but may occur at all ages. Infants with complex chronic conditions (CCC) have clinical weaknesses, high morbidity and mortality rates and, therefore, demand sensory transformations about health care. This paper aimed to explore the challenges arising from the care of chronically ill babies and those who are subject to technological dependence from the perspective of health professionals (doctors, nurses and nursing technicians), seen as subjects capable of psychic elaboration and transformation of their professional practices. The experience of health professionals was approached from a qualitative study in a referral hospital in Rio de Janeiro in 2015, from interviews with 15 health professionals and participant observation. The analysis of the empirical material, dialogued between the French psycho-sociological clinical approach and the contributions of psychoanalysis, recognized and valued the challenges of care practice and the psychic repercussions on health professionals. We sought an in-depth understanding of the reality studied and the uniqueness of everyday experience, which was central to the appreciation of the psychic elaboration and the production of meanings of the subjects.

Keywords:
health care; chronic illness; babies; palliative care; pediatrics

Introdução

Os avanços biotecnológicos têm possibilitado intervenções no corpo humano de grande profundidade e de forma extremamente veloz, promovendo grandes mudanças na forma de subjetivação da doença e do cuidado em saúde (RABELLO, 2005RABELLO, A. M. Construção subjetiva e prematuridade. Pulsional Rev. Psicanal., v. 18, n. 181, p. 60-68, mar. 2005.; PAEZ; MOREIRA, 2016PAEZ, A.; MOREIRA, M. C. N. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1053-1072, set. 2016.). Apesar de todos os avanços da medicina, muitas são as doenças e situações crônicas de saúde, ou seja, aquelas que não se consegue curar. As condições progressivas e limitadoras do tempo de vida são mais comuns no adulto e no idoso, mas podem ocorrer em todas as idades (HENNEMAN-KRAUSE, 2012HENNEMAN-KRAUSE, L. Ainda que não se possa curar, sempre é possível cuidar. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Rio de Janeiro: Uerj, v. 11, n. 2, p. 18-25, 2012.).

Os bebês com condições crônicas complexas (CCC) apresentam fragilidades clínicas, altas taxas de morbidade e mortalidade e, portanto, necessidades de cuidados intensivos que demandam adequações do atual modelo das ações em saúde (MOREIRA; GOLDANI, 2010MOREIRA, M. E. L.; GOLDANI, M. Z. A criança é o pai do homem: novos desafios para a área de saúde da criança. Ciênc. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 321-327, mar. 2010.). As condições de base comuns são prematuridade, malformações fetais e síndromes genéticas raras, condições que, em outros tempos, seriam fatais. Nos dias atuais, com o avanço da tecnologia e da terapia intensiva neonatal, tem sido possível a sobrevida desses bebês. Seja qual for a condição de base, de modo geral, a maioria delas demanda cuidados intensivos, dependência à tecnologia, uso de múltiplos medicamentos, atenção médica domiciliar, risco de frequentes e prolongadas hospitalizações (MOREIRA; GOMES; SÁ, 2014).

Moreira, Gomes e Sá (2014MOREIRA, M. C. N.; GOMES, R.; SÁ, M. R. C. de. Doenças crônicas em crianças e adolescentes: uma revisão bibliográfica. Ciênc. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 19, n. 7, p. 2083-2094, jul. 2014.) destacam a especificidade da assistência em saúde aos pacientes crônicos pediátricos, pois muitas vezes se prolongam por todo o ciclo vital do indivíduo. Os bebês que sobrevivem graças ao acesso às tecnologias modernas e sofisticadas compõem uma nova clientela que precisa ser atendida nos serviços de saúde, e que demanda um alto nível de cuidado e custo para a família e a sociedade mais ampliada (PAEZ; MOREIRA, 2016PAEZ, A.; MOREIRA, M. C. N. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1053-1072, set. 2016.). Essa nova realidade requer estudos quanto à reorganização necessária às práticas de saúde e também à compreensão do sofrimento a que estão expostos os profissionais.

Nesse contexto, o cuidado ao bebê gravemente enfermo confronta os profissionais de saúde com os limites em curar, demandando transformações de sentidos sobre a sua prática profissional, mediante questões que envolvem a dimensão intersubjetiva do cuidar (SÁ; AZEVEDO, 2015SÁ, M. C.; AZEVEDO, C. Uma Abordagem Clínica Psicossociológica na Pesquisa sobre o Cuidado em Saúde e o Trabalho Gerencial. In: BAPTISTA, T. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2015.). Plastino (2009PLASTINO, C. A. A dimensão constitutiva do cuidar. In: MAIA, M. S. (Org.). Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.), em suas reflexões sobre a dimensão ética do cuidado, caracteriza o cuidar como uma atitude alicerçada no reconhecimento da alteridade e seus correlatos, na diminuição do narcisismo e da onipotência profissional. Para esse autor, o cuidar até mais do que um ato singular, é um modo de ser, a forma como a pessoa se estrutura e se realiza no mundo com os outros. O reconhecimento do outro na sua diferença se exprime na própria etimologia da palavra grega ethos (ética), que remete a dois sentidos: morada e pátria, a primeira se refere a um lugar para se viver; a segunda sublinha os laços sociais através dos quais emergimos.

O encontro assistencial inclui o corpo e a subjetividade de profissionais e usuários. O bebê representa esperança, o olhar para o futuro, portanto, o encontro com o bebê gravemente doente impõe um confronto com a dimensão da realidade em suas possibilidades traumáticas, implicando uma experiência potencialmente desestabilizante e que demanda um trabalho de elaboração psíquica.

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa voltada para o estudo das práticas de cuidado e relações intersubjetivas entre o profissional de saúde e o bebê no contexto de internações prolongadas em uma unidade de cuidados intermediários de um hospital de alta complexidade (PEREIRA, 2016PEREIRA, N. V. P. G. As práticas de cuidado e as relações intersubjetivas entre o profissional de saúde e o paciente pediátrico no contexto de internações prolongadas. Dissertação (Mestrado) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2016.). A análise desta problemática enfocou os desafios advindos da prática profissional na perspectiva dos profissionais de saúde, vistos como sujeitos capazes de elaboração psíquica.

Foram centrais na pesquisa autores que contribuíram para pensar a ética e estética do cuidado (WINNICOTT, 1983_____. Teoria do Relacionamento paterno-infantil (1960). In: WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. ; BIRMAN, 2012BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.; FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar: Novos ensaios de psicanálise contemporânea São Paulo: Escuta, 2009.; BOFF, 1999BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano com paixão pela terra. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.; PLASTINO, 2009PLASTINO, C. A. A dimensão constitutiva do cuidar. In: MAIA, M. S. (Org.). Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.; ONOCKO-CAMPOS, 2005ONOCKO-CAMPOS, R. O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na Saúde Coletiva. Ciênc. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 573-583, set. 2005.). Tal abordagem buscou, então, um diálogo com autores que buscam, através de uma perspectiva psicossocial e psicanalítica, analisar a intersubjetividade e a produção de sentidos no contexto de trabalho (LEVY, 2001LEVY, André. Ciências clínicas e organizações sociais - sentido e crise do sentido. Belo Horizonte: Autencia: FUMEC, 2001.; ENRIQUEZ, 1997ENRIQUEZ, E. A organização em análise. Petrópolis: Vozes, 1997.; SÁ; AZEVEDO, 2010).

Caminhos metodológicos

A pesquisa foi desenvolvida em uma unidade intermediária pediátrica, portanto, de cuidados semi-intensivos, no contexto de cuidado a pacientes crônicos, em um hospital público materno-infantil voltado para a atenção de alta complexidade, no município do Rio de Janeiro. Os sujeitos de pesquisa foram 15 profissionais de saúde. As técnicas de pesquisa adotadas foram observação participante e entrevistas semiestruturadas.

A observação participante se apresentou como uma estratégia essencial por permitir ao pesquisador fazer parte do contexto (MINAYO, 2006MINAYO, M. C. S. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2006. ) e captar diferentes situações e detalhes de rotinas de trabalho. A observação centrou-se nas práticas de cuidado a bebês que tinham entre quatro meses e dois anos de idade, estando internados desde seu nascimento. Destacamos que, ao longo dos seis meses de trabalho de campo, três leitos estiveram ocupados pelos mesmos pacientes. Ao longo dos cinco meses de observação participante, foi possível estar presente em diferentes momentos da rotina, como os banhos, as passagens de medicação, passagem de dieta, avaliação de sinais vitais, aspiração das vias aéreas, entre outros.

Foram entrevistados oito médicos, quatro enfermeiros e três técnicos de enfermagem. Adotamos o critério de saturação, empregado em pesquisas clínico-qualitativas (TURATO, 2003TURATO, E. R. Tratado de Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.), para determinar a quantidade de sujeitos entrevistados. As entrevistas individuais procuraram enfocar a experiência do profissional no cuidado ao paciente pediátrico, buscando explorar seus aspectos subjetivos. A análise teve por referência a abordagem clínica psicossociológica, que busca uma compreensão em profundidade da realidade estudada e a singularidade da experiência cotidiana, sendo centrais a produção de sentidos e elementos de elaboração psíquica dos sujeitos e também a implicação subjetiva do pesquisador compondo a cena estudada (LEVY, 2001LEVY, André. Ciências clínicas e organizações sociais - sentido e crise do sentido. Belo Horizonte: Autencia: FUMEC, 2001.; SÁ; AZEVEDO, 2015SÁ, M. C.; AZEVEDO, C. Uma Abordagem Clínica Psicossociológica na Pesquisa sobre o Cuidado em Saúde e o Trabalho Gerencial. In: BAPTISTA, T. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2015.). De acordo com Levy (2001LEVY, André. Ciências clínicas e organizações sociais - sentido e crise do sentido. Belo Horizonte: Autencia: FUMEC, 2001.), a entrevista leva as pessoas a explorar e a rememorar sua experiência passada, lembranças, impressões, acontecimentos, e a comunicá-la no quadro privilegiado de uma entrevista, em que se é capaz de ter acesso a uma compreensão aprofundada e precisa das situações sociais em relação às quais essas experiências tiveram lugar. Azevedo (2013AZEVEDO, C. A Sociedade contemporânea e as possibilidades de construção de projetos coletivos e de produção de cuidado nos serviços de saúde. In: AZEVEDO, C. S.; SÁ, M. C. (Org.). Subjetividade e Gestão nas Práticas de Saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2013.) realiza algumas considerações valorizando fundamentalmente uma escuta atenta e atenção flutuante do pesquisador. Segundo a autora, o uso do gravador possibilita aumentar o poder de registro, permitindo o acesso permanente à viva voz, proporcionando melhor compreensão da narrativa (AZEVEDO, 2013). Procuramos acessar os momentos críticos que marcaram a prática, os sentimentos e reflexões em torno do cuidado ao bebê cronicamente adoecido. Os nomes citados no artigo são fictícios para garantir o anonimato dos profissionais entrevistados e pacientes observados. Neste artigo, trataremos de três eixos: 1) Temporalidade, ritmos e continuidades no cuidado; 2) Transitando entre a dimensão técnica e intersubjetiva do cuidado ao bebê cronicamente adoecido; 3) Diferentes faces da (im) potência no cuidado: limites e possibilidades

Temporalidade, ritmos e continuidades no cuidado

A unidade possui uma rotina de cuidados orientada pelo planejamento dos processos de trabalho próprios ao contexto de cronicidade e estabilidade clínica dos pacientes. Deparamo-nos com uma clínica em que raramente haveria urgências, o que a diferencia da experiência dos médicos em unidades de terapia intensiva. Se, por um lado, as rotinas hospitalares teriam como risco o enrijecimento das práticas e uma despersonalização do cuidado; por outro, podemos pensar que a rotina traria um ritmo e uma sensação de previsibilidade na perspectiva dos profissionais.

Enfocando as rotinas, a parte da manhã é o momento do banho, dos atendimentos à beira do leito, tanto pelos médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, como pelos fisioterapeutas, realizando avaliações clínicas e propondo condutas terapêuticas. O momento do banho retrata e condensa a complexidade das atividades realizadas pelos cuidadores. Assim, ele envolve não somente ações de higiene de um banho comum, como também a passagem da dieta e da medicação, limpeza das ostomias, aspiração traqueal do bebê, troca do lençol, pesagem do bebê. Uma técnica de enfermagem retrata a cena de um banho:

Você acha que lavou, secou e pronto, mas tem que fazer um monte de coisas. Tudo é feito em cima daquela cama. Limpa a cama, aspira. Às vezes faz cocô, aí troca. Faz as medicações. Passa a dieta. Nesse meio tempo o médico quer entrar. Essa é a rotina da manhã (Úrsula, técnica de enfermagem).

Em relação às atividades noturnas, os profissionais expressaram uma preocupação em diferenciar a rotina do dia e da noite, uma vez que, pelo fato de os bebês ficarem limitados ao leito e não haver luz natural da unidade, os pacientes estariam impossibilitados de perceber a diferença entre o dia e a noite através da luz do sol. Assim, os marcadores de tempo que possibilitariam esta diferenciação seriam a diminuição das intervenções, bem como o apagar das luzes e a tentativa de ter um ambiente silencioso. No relato da enfermeira, essa dinâmica expressa uma tentativa de não interromper o sono do paciente, evitando realizar intervenções que possam ser espaçadas. Apesar deste esforço, percebemos o quanto ainda se mantém uma rotina intensa de cuidados na parte da noite, que envolve aspirar, nebulizar, inerente aos cuidados necessários.

Examinando de modo mais próximo o processo de trabalho, foi possível depreender que, apesar de haver uma rotina de trabalho e uma prescrição precisa do que deve ser feito e da regularidade das atividades, os imprevistos do cotidiano abrem brechas para a sua flexibilização. Assim, uma parte das ações se define em ato, que pode ocorrer tanto como expressão de uma tentativa de se adaptar às necessidades do bebê, como imprevistos e intercorrências que interferem no fluxo de trabalho.

As narrativas tanto dos médicos como dos profissionais de enfermagem evidenciaram a preocupação em coordenar as atividades e em minimizar as intervenções e avaliações, de modo a diminuir a dimensão invasiva dos cuidados. No entanto, na prática, a conduta clínica varia de acordo com a sensibilidade de cada profissional. A própria condição da doença e a internação hospitalar implicam uma rotina de cuidados, que embora necessária, na perspectiva biomédica, pode se apresentar como experiência intrusiva, conforme expressa a fala a seguir:

A criança é aspirada pelo menos a cada três horas. Tem criança que passa por várias nebulizações diferentes ao longo do dia. Muitas vezes, o ventilado crônico é aspirado de quatro em quatro horas. Aí tem os cuidados com a gastro. Passar dieta em quatro em quatro horas. A Fabíola [bebê] às vezes fica ali brincando, aí aspira só se precisar. Agora eu fui examiná-la e ela estava toda vomitada. Deve ser umas dez vezes por dia de aspiração, é um estímulo negativo. A aspiração e punção de veia ou punção para coleta de sangue são estímulos negativos. A punção a gente faz menos vezes. Se está dormindo, eu não faço uma intervenção. Tem gente que fala, ele está dormindo, então vamos aproveitar (Silvia, médica).

A fala da médica acima remete ao excesso de procedimentos potencialmente invasivos. Parece importante marcar que os procedimentos biomédicos seguidamente empregados nos bebês figuram, simultaneamente, como invasivos e restauradores, sugerindo que funcionam quase como próteses que restabelecem o ritmo da vida e cumprem funções psicossomáticas de regulação e restabelecimento de ritmos orgânicos e psíquicos compatíveis com o viver. Podemos pensar que a tecnologia cumpre uma função de suplência, uma vez que o corpo apresenta limites em relação as suas possibilidades de autorregulação; assim, a tecnologia se apresenta como um recurso para proporcionar esse equilíbrio, como no caso do suporte à respiração por ventilação mecânica, presente na maior parte dos pacientes internados. No contexto estudado, o desenvolvimento do bebê depende de um cuidado complexo, humano e tecnológico, visando conquistar a autonomia possível no que se refere às capacidades de autorregulação do próprio corpo. Como exemplo, citamos o “desmame” do respirador, trabalho lento e cuidadoso envolvendo uma equipe multiprofissional.

De modo geral, na perspectiva dos profissionais, a monotonia seria a marca do tempo, em contraponto ao tempo da urgência vivida nas UTIs e nos prontos-socorros. Uma face pesada, de difícil metabolização. Conforme ilustram as falas a seguir:

As mudanças no paciente crônico acontecem muito lentamente, são semanas, meses, para você perceber algum progresso, é tudo mais devagar. Isso, às vezes, é um pouco monótono, porque todo dia que você vai examinar, é mais ou menos o mesmo perfil que você vai encontrar (Silvia, médica).

[...] é monótono, eles têm uma estabilidade clínica, a gente fica com esses pacientes por muito tempo, sem estar demandando algo técnico da gente (Marcela, médica).

De todo modo, podemos apontar que há um ritmo submerso na monotonia e que ela pode também despertar uma sensibilidade e atenção especial dos profissionais, por vezes invisível, expressando a busca de integração da sensibilidade clínica ao trabalho técnico.

Rompendo com a repetição e a monotonia do dia a dia, nas entrevistas, os profissionais apontaram os efeitos nefastos que a morte tem sobre o psiquismo:

Tem muito tempo que não tem nenhum falecimento, mas quando tem, é catastrófico, é um sofrimento pessoal do profissional. A gente tenta tudo e a criança não reage. Tem um caso que eu recebi no plantão e falaram: “eu acho que esse paciente não passa de hoje”. Ele não tinha cartilagem, a cabeça era muito grande... Eu estava sensível naquele dia. No dia que ele morreu eu que estava. Eu tive coragem, parecia que eu que tinha que estar nesse momento dele. A médica chegou e disse para puncionar mais uma veia, para colocar drogas para conforto. Ela chamou os pais. Eles chegaram e a criança faleceu. [...] foi muito difícil para mim, eu não queria preparar o corpo, levar o corpo (Sara, enfermeira).

O espectro da morte ronda o trabalho hospitalar. A fala de Sara expressa a dimensão potencialmente traumática ao lidar com a morte e o processo de morrer na primeira infância. O confronto com os próprios limites se apresenta como um atributo da prática, ao mesmo tempo que a capacidade em os respeitar se apresenta como uma condição para manter a sua saúde mental.

A dificuldade em aceitar a morte e o morrer na criança, contato com a maior angústia existencial humana, poderia remeter os profissionais a sua própria finitude e os sentidos do cuidar. Entra em cena o dilema, cuidar para quê? A morte do bebê abriria brecha para se pensar o sentido do trabalho, questão em permanente elaboração nesse contexto, além de possibilitar o enfrentamento com dilemas ético-existenciais sobre a terminalidade e a temporalidade da vida (AZEVEDO; SÁ, 2013AZEVEDO, C. A Sociedade contemporânea e as possibilidades de construção de projetos coletivos e de produção de cuidado nos serviços de saúde. In: AZEVEDO, C. S.; SÁ, M. C. (Org.). Subjetividade e Gestão nas Práticas de Saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2013.). “Pensar a morte de alguém é sempre repensar a vida” (Marcela, médica). Evidencia-se, assim, no trabalho realizado nesta unidade a intensa exigência de trabalho psíquico elaborativo por parte dos profissionais de saúde.

Entre as dimensões técnica e intersubjetiva do cuidado ao bebê cronicamente adoecido

Como característica da própria doença, ou por consequências de intervenções médicas, os bebês da UI apresentam no corpo marcas das intervenções médicas. São os corpos dos bebês que nascem com malformações, algumas delas demandando múltiplas reparações e instalação de orifícios não naturais - colostomias, gastrostomias etc. (PAEZ; MOREIRA, 2016PAEZ, A.; MOREIRA, M. C. N. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1053-1072, set. 2016.) -, conforme expressa a fala dos profissionais a seguir, ao se referir à mudança do perfil de pacientes pediátricos ao longo do tempo:

São crianças com condições clínicas insolúveis, a gente tem encefalopatas, síndromes genéticas, malformações, isso é novo para todo mundo! O grupo de crianças com malformação na UI é crescente. Essas crianças parecem idosos, é uma mudança que a minha geração pegou (Selma, enfermeira).

O corpo do bebê e seus acessórios tecnológicos podem provocar um desconforto nos seus cuidadores, pois os bebês apresentam uma imagem muito distinta daquela usualmente idealizada para um bebê saudável, segundo o relato de uma enfermeira, narrando a experiência dos profissionais recém-admitidos pelo hospital:

[...] as crianças que têm dependência de um aparato tecnológico fazem parte do nosso cotidiano, é o retrato. Quando a pessoa chega (os profissionais que ingressaram recentemente no hospital) esperam encontrar uma criança que brinque, que fale, que respire pelo buraco normal, que faça cocô pelo buraco normal (Suzana, enfermeira).

Paez e Moreira (2016PAEZ, A.; MOREIRA, M. C. N. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 1053-1072, set. 2016.) mostram que o corpo modificado por cirurgias, portador de novos orifícios, pode parecer aos cuidadores “inumano” no sentido de não natural. O corpo destes bebês oferece um contato com a natureza em seu estado mais bruto. As entranhas, as secreções, tudo que costumeiramente se encontra oculto, é exposto e comparece no campo da interação. O corpo da criança aparece nas narrativas como personagem principal. Este corpo - em lugar de cabeça, tronco e membros - parece ser composto, por exemplo, por intestino (ou simplesmente “alça”, de alça intestinal), “cirurgia” (termo pelo qual as mães se referem à ferida operatória ou cicatriz), “veia”, cateter e estomias. Este ambiente, marcado por corpos em dependência, submetidos ao aparato tecnológico, por uma situação extrema de desamparo psíquico e biológico, coloca todos em contato com os seus limites.

O médico ainda tem o jeito de salvar, o salvador, as pessoas ainda têm essa postura, ‘se for comigo eu vou intervir’. [...] com o tempo, a gente começou a ser um depositório de morte. A gente viu que para equipe era terrível. Aquilo era de uma dor, de uma angústia, um sofrimento. A gente não tinha uma discussão de protocolo, de morte, a gente disse que precisava se fortalecer de alguma forma, se não a gente ia ficar enlouquecido (João, médico).

O desafio para a equipe, além de levar em conta os cuidados e os tratamentos indispensáveis do bebê, será de considerar seu sofrimento, o que, através de sua linguagem, ele tenta lhe dizer, que passa quase sempre pelo seu corpo, e que demanda um entendimento decerto médico, mas também, enquanto um endereçamento ao outro, solicita uma resposta de outra ordem, do campo intersubjetivo (MATHELIN, 1999MATHELIN, C. O sorriso da Gioconda - Clínica psicanalítica com os bebês prematuros. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.). Daí origina-se grande parte do desafio humano do trabalho nesse contexto.

As narrativas expressam questões emblemáticas próprias à situação delicada do cuidado de bebês nessas condições, conforme expressa um médico:

Tem um limite de coisas que você pode fazer por essas crianças. Na verdade, [...] é uma criança que está condenada à ventilação mecânica, ela não é fora de condições terapêuticas, assim o cuidado paliativo é para situar a família em relação às expectativas sobre o seu desenvolvimento. [...] A criança está no fio da navalha, a gente tem muitas surpresas por aqui (Tadeu, médico. Grifo das autoras).

A expressão no “fio da navalha” utilizada pelo médico remete às incertezas, limites e desafios enfrentados pelos profissionais de saúde no cuidado ao bebê gravemente enfermo, no que se refere a lidar com o investimento na vida, mas também com o risco de morte. Situações que podem gerar, simbolicamente, efeitos “cortantes”, utilizando a imagem da navalha, em relação aos furos que a cronicidade impõe ao desejo de curar do especialista em saúde, confrontando-o com a sua própria impotência. Em relação aos cuidados paliativos, o médico acima tenta expressar que também cabe ao membro da equipe trabalhar com a família do paciente, as suas expectativas em relação ao quadro clínico do seu filho.

A gente vive dilemas muito difíceis, de posições, é difícil dizer não vou fazer nada, porque não fazer nada é ajudar. Lidar com essa impotência de transformação é muito ruim (João, médico).

A fala do médico remete às angústias e frustrações em não poder reparar as malformações e limitações colocadas pela doença de base. A expressão “enxugando gelo”, comum no discurso dos profissionais de saúde para se referir a sua prática, é uma imagem útil para pensar o cansaço dos profissionais de saúde nesse contexto. Apesar de todos os esforços e investimentos na direção da garantia da sobrevida do bebê, há um abismo intransponível pela complexidade do quadro clínico, que não permite a cura.

Para compreender esta problemática, vale resgatar as contribuições de Figueiredo (2009FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar: Novos ensaios de psicanálise contemporânea São Paulo: Escuta, 2009.) sobre o cuidado em saúde. De acordo com o autor, os profissionais de saúde estão acostumados a reconhecer a sua prática de trabalho pelo seu fazer, pelas ações que estão ligadas à realização de procedimentos biomédicos. No entanto, há outras funções nas práticas de saúde que envolvem o exercício de uma presença em reserva, em suas funções de reconhecer as leis e os limites (FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar: Novos ensaios de psicanálise contemporânea São Paulo: Escuta, 2009.). Assim, para além de salvar o paciente a qualquer custo, o agente de cuidados pode moderar seus afazeres, reconhecer a finitude e renunciar a sua onipotência. Além disso, a função de reserva permite também abrir espaço e dar um tempo para a manifestação do objeto de cuidado em seu potencial comunicativo. Dessa forma, podemos pensar nas funções de cuidado como uma conjugação de capacidades de implicação e reserva por parte dos agentes de cuidado.

Na clínica com bebês adoecidos, outras questões podem emergir tornando o trabalho de elaboração psíquica ainda mais intenso. Guerra (2013GUERRA, V. A ética dos cuidados: o complexo do arcaico e a estética da subjetivação. In: ARAGÃO, R.; KAHN, I. Do quê fala o corpo do bebê? São Paulo: Ed. Escuta, 2013.) se apropria do termo estética para pensar a experiência de um bebê, pois a estética designa a ciência dos sentidos, das sensações, que provém do grego aisthesis, que significa percepção e se relaciona com as experiências corpo - sensoriais, que se ancoram num sistema de comunicação não verbal. O bebê tem a capacidade de captar os diferentes tons emocionais do contato com o outro, assim como é sensível à presença de cheiros, sons, cores, formas que se tornam parte do ambiente que o estrutura (GUERRA, 2013GUERRA, V. A ética dos cuidados: o complexo do arcaico e a estética da subjetivação. In: ARAGÃO, R.; KAHN, I. Do quê fala o corpo do bebê? São Paulo: Ed. Escuta, 2013.). No ato de cuidar, Guerra identifica de maneira integrada diferentes elementos em jogo, como a forma de comunicação mais primária, a expressão das condições afetivas de sua enunciação, o tom, a melodia da voz, o lugar do corpo e a sensorialidade, para estabelecer o contato com o bebê e o funcionamento psíquico que tem como base as possibilidades do cuidador em se identificar com ele. As entrevistas expressaram como a comunicação com o bebê tem como base a leitura corporal e a tecnológica, seja pelo acesso ao monitor que controla o seu batimento cardíaco e saturação do oxigênio, seja pela compreensão da expressão corporal do bebê, segundo a fala a seguir:

O meu trabalho é chegar, examinar as crianças, avaliar e interferir. Falando assim, parece algo robótico, mecânico, mas não é. São crianças, a gente se apega bastante, por exemplo, o João, não interage, mas ele da forma dele, consegue sinalizar que não está bem. Por exemplo, ele, naturalmente, faz uns abalos, hoje ele estava fazendo um pouco mais grosseiro, mas quando a gente foi ver, eu pensei, ele deve estar com dor de barriga, e logo depois ele evacuou. Como o paciente não chora, ele sinaliza da forma dele, e a gente já conseguiu observar ele. São crianças que não verbalizam, mas a gente consegue perceber. A enfermagem é continuada. Por mais que eu não esteja aqui hoje à noite, a informação é passada. A gente está com a Fabíola, ela está um pouco mais instável, a gente olha o monitor dela, vê se ela está com algum desconforto, alguma dor. Como a gente está acostumado a trabalhar com isso, uma unidade de crônicos, quando tem essas crianças um pouco mais agudizadas, a gente tem um olhar mais crítico para ela (Hélida, enfermeira).

[...] não sei como eu percebo, mas não sei te dizer como eu sinto esse prazer nele. Depois de dar o banho, colocamos ele pronado, ele fica muito bem. A gente sabe quando ele está pedindo para ser mexido, numas microlias que ele faz, a gente sabe que tem que mexer na medicação. Às vezes, está com cocô, xixi... Ele dá a entender que é para ir lá. Ele faz umas faces, uns movimentos no rosto, que dá a entender que ele está chamando (Úrsula, técnica de enfermagem).

As entrevistas também evidenciaram o desafio em não interpretar toda a expressão corporal como uma alteração clínica que demanda uma intervenção médica, mas como uma expressão complexa do corpo, a partir da possibilidade de atribuir outros sentidos para as alterações clínicas, que não seja apenas a biomédica, o que requer dos profissionais que assumam a presença em reserva referida por Figueiredo (2009FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar: Novos ensaios de psicanálise contemporânea São Paulo: Escuta, 2009.), conforme relata a fala de uma médica a seguir:

Teve um plantão comigo, que ele estava com uma frequência cardíaca boa, estava ventilado. A crise convulsiva chama muita atenção visualmente e os profissionais de saúde não sabem lidar com isso. Isso aconteceu comigo. Eu pedi para as pessoas terem um pouco mais de paciência, e disse que a gente ia aspirar ele, mas que a gente não ia deixar de dar cuidado. Dar um remédio, um Diazepam, isso é mais cuidado do que estar do lado do paciente? Entender a sua limitação, eu acho que o ser humano tem que saber da limitação. Nesse dia, as pessoas ficaram nervosas, ansiosas com a situação, e eu me senti na obrigação de tratar a crise. Eu volto a dizer, só porque eu estou dando um remédio eu estou cuidando dele melhor? Às vezes passar um remédio é muito mais cômodo, e escutar é mais difícil (Gabriela, médica).

Percebemos que para desempenharem estas funções, os profissionais precisam ter uma disponibilidade emocional para estar em sintonia com o bebê, conectar-se afetivamente. A prática envolve um investimento afetivo e psíquico dos profissionais no cuidado aos bebês e o desenvolvimento de uma comunicação sensorial bastante refinada.

Diferentes faces da (im) potência no cuidado: limites e possibilidades

Os profissionais se confrontam em sua clínica, por um lado, com a potência da tecnologia em garantir a sobrevida de bebês e crianças que em outros tempos morreriam, mas por outro, deparam-se com sentimentos de impotência, frustração e de certa invisibilidade do cuidado por eles realizado.

[...] o seu trabalho aqui é imperceptível, aqui as coisas são lentas, são crianças que andam pouco para frente. É uma situação que você não consegue resolver. O seu trabalho é imperceptível. Essa é a questão mais complicada. As pessoas reclamam, as coisas não andam, as crianças não mudam... A tônica do trabalho é um pouco por aí (Tadeu, médico).

É muita angústia! Você não consegue enxergar o seu trabalho. Parece que você não está fazendo nada. O desafio é você conseguir se manter motivado (Sandra, médica).

Como ela está hoje, doutor, ela está melhor? Estável é a palavra que mais me irrita! Ontem ela teve uma febre, mas agora não tem mais. Esta situação é cruel com os médicos. É muito o que você se faz, mas na prática parece pouco. Isso é lidar com a criança crônica (Pedro, médico).

Conforme expressa a narrativa dos médicos, no cuidado ao paciente pediátrico crônico no contexto de internações prolongadas, o desafio é lidar com a incapacidade de transformação da realidade, que se apresenta seja na manifestação da doença, seja nos desdobramentos sociais e familiares:

A gente vive dilemas muito difíceis, de posições. Você lida com familiares, lidar com essa impotência de transformação é muito ruim. Os pais [por vezes] não poderem vir porque não têm dinheiro, têm outros filhos para cuidar, não têm dinheiro para passagem, isso é muito ruim (Vitor, médico).

O contato com os limites de toda ordem leva os profissionais à experiência subjetiva da falta, do limite, do não controlável, do entrave e, assim, à experiência de uma interioridade marcada pelo conflito.

A partir desta compreensão, vemos que a capacidade de suportar a frustração inerente à prática profissional e o exercício da criatividade tornam-se fundamentais para encontrar um sentido no trabalho: “curar não é tudo, a gente precisa melhorar a qualidade de vida” (Sandra médica).

Diante da impossibilidade de curar, vemos que os profissionais de saúde voltam o seu olhar para o que denominam “busca de qualidade de vida”, para o conforto, para o respeito e dignidade do paciente, o que podemos pensar como uma forma de instaurar saúde onde, a princípio, a doença ocuparia a cena. Um caminho seria a possibilidade de instaurar o máximo de normalidade à vida do bebê com alguma condição crônica de saúde. Assim, reclamam-se outros sentidos da noção de saúde já que, em muitos casos, ela, como eliminação total dos sintomas, pode ser demorada e complexa ou não ser possível, demandando um cuidado contínuo para o controle dos sintomas (BARSAGLINI, 2013BARSAGLINI, R. A. Adoecimentos crônicos, condições crônicas, sofrimentos e fragilidades sociais: algumas reflexões. In: CANESQUI, A. M. (Org.). Adoecimentos e sofrimentos de longa duração. São Paulo: Hucitec, 2013.).

Como contraponto para o sentimento de impotência advinda da dificuldade de impactar os problemas crônicos, compreendemos que a prática de cuidado também requer o exercício da inventividade, pois muitas vezes, por serem crianças com doenças raras, não haveria nenhum protocolo pronto a ser seguido, demandando que a equipe trace um projeto terapêutico que tenha por base a singularidade de cada paciente e algum nível de experimentação. A capacidade do profissional inventar e pensar novos caminhos para a terapêutica do paciente tem por base a criatividade e o investimento afetivo no seu trabalho.

A partir das narrativas, foi possível apreender uma prática do cuidado que se expande para além da técnica ou do cumprimento de rotinas e protocolos. A busca de conforto do bebê é uma expressão da tentativa de contornar as malformações e representa um investimento singular. Nas entrevistas, diferentes profissionais se referiram a um momento de êxito da equipe, quando construíram uma almofada adaptada para um bebê com onfalocele, conforme expressa a fala a seguir:

A Júlia não conseguia ficar de bruços pela extensão da sua barriga, ela ficava com falta de ar. Então, a gente foi pensar em como a gente poderia colocar ela de bruços. Com a almofada, a gente conseguiu e ela adora aquela almofada! (risos) (Sandra, médica).

A almofada confeccionada especialmente para um bebê, como também a adaptação da máscara de oxigênio que estava incomodando o rosto de outro bebê, ilustram o exercício do potencial criativo dos profissionais. O jogo criativo mostra que o profissional se move ao cuidar do bebê levando em conta sua singularidade e alteridade, despertando para a valorização do outro, compreendido a partir de suas necessidades próprias. O processo criativo livra o profissional de uma postura de submissão à realidade, e do reconhecimento do mundo apenas como algo a ajustar-se ou a exigir adaptação. É a partir de trocas entre o cuidador e o bebê, a partir de uma experiência compartilhada entre eles e a equipe que se institui um jogo inventivo e uma estética do cuidado que favorece a ideia de que a vida vale à pena de ser vivida (WINNICOTT, 1975WINNICOTT, D. W. A criatividade e suas origens. In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.).

Segundo Miranda (2013MIRANDA, L. Criatividade e trabalho em saúde: contribuições da teoria winnicottiana. In: AZEVEDO, C. S.; SÁ, M. C. (Orgs.). Subjetividade, gestão e cuidado em saúde. Abordagens da psicossociologia. 1 ec. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. p. 89-117.), o trabalho criativo requer um esforço de constituição de dispositivos que o facilite, o estimule e o sustente. Em nosso estudo, as narrativas dos profissionais de saúde expressaram o lugar fundamental do trabalho em equipe que atua como uma forma de sustentação para essas transformações.

Um fragmento evidencia o sonho possível:

Esperamos que elas vão para casa ficar com família, para casa com respirador, com bipap, para casa com qualquer desses aparatos, mas vão ter a oportunidade de estar em casa. Isso é qualidade de vida para a família e para a criança (Betânia, enfermeira).

Nesse sentido, ao refletirmos sobre as possibilidades da equipe e do profissional de saúde sonhar, inferimos que, através da alta hospitalar, o que se busca no cuidado é restituir, do ponto de vista simbólico, para as crianças e suas famílias, aquilo que é característico do imaginário social de infância, que é o convívio com a família e o brincar. Este seria, talvez, o projeto comum, possível de ser construído e partilhado intersubjetivamente entre profissionais e familiares. Não é pouca coisa.

Considerações finais

Vislumbramos por meio deste estudo lançar luz sobre os processos intersubjetivos no cuidado ao bebê cronicamente adoecido. O contato com a fragilidade humana e as vivências perante a precariedade e finitude podem favorecer a aceitação dos próprios limites e ressignificações quanto aos sentidos não só do cuidado em saúde, mas talvez da própria vida, evidenciando a natureza do trabalho psíquico que se desenvolve neste cenário. A análise do material empírico evidenciou as diversas contradições que atravessam as práticas em saúde. Dentre elas, destacamos: as ideias de excelência que marcam as práticas biomédicas na contemporaneidade e a impotência em curar; a imagem do bebê que traz esperança e o corpo malformado; excessos de zelo e investimento afetivo e as crises de sentido em relação ao trabalho. Tais contradições, conflitos, tensões, que se revelam nas práticas de cuidado, expressam a condição humana dos profissionais, que não são máquinas, portanto, também têm os seus limites e cometem falhas, confrontando-se em sua prática com a sua condição vulnerável e existencial. Esta pesquisa buscou lançar luz sobre os processos intersubjetivos que ocupam a cena do cuidado, para além das questões técnicas, buscando explorar a exigência de trabalho psíquico e transformações vivenciadas pelos profissionais de saúde no cuidado ao bebê gravemente enfermo.1 1 N. V. P. G. Pereira realizou o trabalho de campo e foi responsável pela concepção da pesquisa, análise e redação do artigo. C. A. Azevedo foi responsável pela concepção da pesquisa, análise e redação do artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2017
  • Revisado
    30 Maio 2019
  • Aceito
    05 Ago 2019
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