Introdução
A trajetória da descentralização, um dos princípios organizativos do SUS, tomou corpo por meio de normas legais instituídas pelo Ministério da Saúde, como a Normas Operacionais Básicas (NOB), a Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS) e o Pacto pela Saúde. Tal princípio foi marcado pelo processo de municipalização, incentivando os municípios a ampliarem seus serviços de saúde com o objetivo de garantir a universalidade do sistema (LIMA; VIANA; MACHADO, 2014; LOUVISON; MENDES, 2015).
No entanto, tais normas não foram capazes de se adequar às diversas realidades dos territórios, uma vez que a desconsideração do papel das esferas estaduais acentuou as atribuições dos municípios na execução dos serviços. A partir desse contexto, a homologação do Decreto 7.508/2011 alguns anos depois foi uma das principais estratégias que permitiram uma nova roupagem para a descentralização, a qual passou a se conformar sob um espaço de gestão regional formada pelo ente estadual e os municipios límitrofes definidos por Planos Diretores de Regionalização. A partir desse cenário, a conformação das regiões de saúde foi pautada no território e na cooperação entre atores envolvidos, tomando como premissa a coordenação de políticas que integrassem as pautas de planejamento e de gestão para as dinâmicas territoriais (LIMA; VIANA; MACHADO, 2014; SANTOS, 2017).
Nessa seara, o reflexo da descentralização do SUS garantiu maior autonomia dos entes municipais e estaduais nos processos decisórios. Permitiu que a governança fosse trilhada, a partir de arranjos que compartilhassem objetivos comuns, ancorados na tutela do acesso universal à saúde. Essa concepção admite que a governança no SUS possa ser aportada em um modelo de rede colaborativa (MILAGRES; SILVA; REZENDE, 2016).
A condução dessa governança pode ser compreendida pelo termo “governança territorial”, que expressa as iniciativas ou ações territoriais organizadas pelos municípios, estados, regiões e união para conduzir temáticas de interesses coletivos, a partir do envolvimento conjunto e cooperativo de diferentes atores sociais, econômicos e institucionais. O presente estudo utiliza essas reflexões como arcabouço teórico relativo à governança (DALLABRIDA, 2011). Desse modo, as Regiões de Saúde, uma vez fortalecidas, tornaram-se um dos principais locais para a governança, que envolve a saúde do território, com a possibilidade de promover novos arranjos mediante as necessidades e especificidades. Esse fortalecimento requer das regiões de saúde um processo de planejamento regional, por meio de uma capacidade de contribuir para melhor alocação e distribuição de recursos na região (MEDEIROS, 2013; SANTOS; GIOVANELLA, 2014; VIANA; LIMA, 2013).
As regiões de saúde devem ser estruturadas para promoverem as ações e serviços de saúde. Institucionalizados pela política pública em determinado espaço regional, representando o encontro da esfera local com a regional como instância resolutiva, abrangente e com potencialidades para o desempenho da condução e oferta do cuidado para além dos limites municipais (ALMEIDA et al., 2016; SANTOS, 2017). Nessa perspectiva, os gestores precisam estar preparados para atuar em um ambiente complexo, considerando a necessidade de tecnologias apropriadas e de competências coordenadas entre os entes federativos e precisam estar conectados com os saberes da sociedade, responsabilizados pela alocação dos recursos e insumos, de forma efetiva, que traduzam em uma boa prestação de serviço aos usuários (SANTOS; LEITE; SILVA, 2018).
A partir dessa perspectiva relativa à governança quanto à condução do sistema de saúde local, reforça-se o entendimento para a abertura de mecanismos capazes de ofertar respostas às demandas de saúde com relevantes aspectos regionais. Assim, a tomada de decisão nas regiões de saúde pode gerar um grande impacto, uma vez que envolve estrutura, processos de produção e ações e serviços de saúde por meio de ações coordenadas entre os níveis de complexidade (atenção primária, média complexidade e alta complexidade) que visam ao atendimento às demandas de saúde da população com a prestação adequada dos serviços (SANTOS, 2017; MENDES, 2010; SILVA; SANTOS; MENDES, 2012).
Dentre os aspectos que devem ser considerados, a partir da necessidade de pautar a efetividade dos espaços de participação, chama a atenção aqueles de atendimento aos objetivos embasados no planejamento, influenciando diretamente os processos de tomada de decisão dos gestores (RICARDI; SHIMIZU; SANTOS, 2017). Nesse contexto, o planejamento em saúde busca contemplar as necessidades humanas, orientando a identificação e a resolução de problemas que afetam a sociedade. Para Paim e Teixeira (2006), esses problemas podem ser denominados de “estado de saúde” e “serviços de saúde”. O primeiro se refere aos agravos, doenças, acidentes e outras adversidades que atingem os usuários. O segundo se relaciona às situações que envolvem infraestrutura, organização, gestão, financiamento e outros. Assim, o planejamento lida com contextos que se relacionam diretamente às necessidades humanas e dos serviços para seu atendimento.
Para tanto, o planejamento deve partir da formulação de um processo ascendente e participativo, o qual se aproxime do conceito de processo de trabalho e permita abordá-lo como organizador de saberes e práticas. E, então, extrapolar o próprio arcabouço normativo e contribuir diretamente para o exercício da cidadania, permitindo o posicionamento do usuário como coparticipante do processo de planejamento e das políticas de saúde de seu território (SILVA et al., 2015). Porém, os significativos avanços no processo de regionalização e de planejamento não são, por si sós, suficientes para garantir um processo de descentralização de recursos que gere maior autonomia para as regiões de saúde e dos municípios. Além disso, as tentativas legais, para formação das regiões de saúde, não foram satisfatórias para acabar com o caráter clientelista, privatista e ineficiente do Estado brasileiro (SANTOS et al., 2015; SANTOS; CAMPOS, 2015).
Nesse sentido, o presente estudo tem o objetivo de analisar a configuração da governança e do planejamento em saúde na esfera da II Região de Saúde do Estado de Pernambuco.
Metodologia
A tipologia selecionada foi um estudo de caso, o que possibilitou a imersão na realidade regional de saúde, a partir de seus aspectos e peculiaridades, quanto ao planejamento e governança em saúde (YIN, 2005). O estudo foi realizado na II Região de Saúde do Estado de Pernambuco, composta por 20 municípios. Para a realização das entrevistas, adotou-se como critério de inclusão gestores municipais de saúde que estivessem exercendo a função na II Região de Saúde de Pernambuco. E como critério de exclusão, gestores que apresentassem episódios de afastamento da função no periodo de seis meses anterior a realização da entrevista.
O estudo considerou 20 gestores municipais de saúde da II Região de Saúde. Após a aplicação dos critérios de elegibilidade, foram habilitados 14 gestores municipais de saúde com uma perda, totalizando 13 entrevistados. Foi utilizada a técnica da entrevista a partir de instrumento/roteiro não estruturado, sobre a percepção do sujeito acerca do planejamento em saúde, entraves e facilidades, governança e tomada de decisão. Após a validação do instrumento, foram realizadas as entrevistas com os sujeitos. O procedimento durou cerca de 40 minutos e foi aplicado in loco nas respectivas Secretarias Municipais de Saúde. Os dados coletados, a partir das entrevistas, foram interpretados por meio de uma planilha de acordo com as seguintes categorias de análise: governança, planejamento, regionalização e financiamento. As falas mais frequentes ou que obtiveram maior destaque na percepção do pesquisador foram comparadas com a literatura existente sobre o tema.
A técnica se baseou na metodologia proposta por Bardin (2011), que estabelece três grandes etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados e interpretação. A análise de conteúdo das entrevistas com os gestores municipais de saúde permitiu identificar os aspectos que estes emitem sobre os principais desafios e potencialidades para o exercício do planejamento e governança na região de saúde. Além disso, o estudo utilizou a sistematização da análise documental das atas e pautas das reuniões da CIR, conforme o quadro explicativo, composto por colunas, associando o documento ao procedimento de coleta de dados e o instrumento para registro. A análise documental é considerada uma operação ou um conjunto de operações com o objetivo de representar o conteúdo de um documento com um olhar diferente do original, de modo que facilite, posteriormente, sua consulta e sua referência (BARDIN, 2011).
Quadro 1 Sistematização da análise documental. Recife-PE, 2018
Documento | Procedimento De Coleta | Instrumento para Registro e Análise |
---|---|---|
Atas/Pauta | Extração De Núcleo De Sentido | Matriz de Registro |
Fonte: elaboração própria.
Procedeu-se à avaliação preliminar de cada documento sob o olhar dos seguintes elementos: contexto, autores, interesses, confiabilidade, natureza do texto e conceitos-chave. A apuração foi realizada por meio de leitura detalhada, utilizando a análise crítica dos documentos com sua caracterização, descrição e comentários, assim como efetuando o levantamento de assuntos recorrentes, codificação, decodificação, interpretação e inferência. Todas as ações relacionadas ao objeto de estudo, identificadas nos documentos, foram destacadas. Operou-se uma releitura dos parágrafos acentuados e uma organização numa planilha de registro. Os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram gravadas com consentimento dos entrevistados e, posteriormente, transcritas. O estudo observou as normas da Resolução n° 466/2012 e foi aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa sob o CAEE: 90828718.7.0000.5208.
Resultados e Discussão
O reconhecimento da potencialidade da CIR como espaço para governança em saúde foi percebido na maioria das respostas dos entrevistados, sinalizando sua relevância para governança e fortalecimento da regionalização em saúde. Segundo Silveira Filho et al. (2016), a CIR representou um importante espaço para a governança regional. Santos e Giovanella (2014) seguem a mesma linha, ao afirmar que a CIR foi a principal estratégia da governança regional, reunindo diferentes sujeitos responsáveis pela tomada de decisão, negociação e distribuição de recursos.
A partir da fonte de dados das atas, foi possível observar uma alta assiduidade dos secretários municipais e de representantes e técnicos municipais. Mendes et al. (2015) reforçam essa evidência, ao concluírem que a participação de outros atores denota a capacidade de apoio técnico na condução das reuniões, favorecendo o diálogo para o reconhecimento e o enfrentamento das necessidades de saúde dos territórios. As entrevistas revelaram a ocorrência de trocas de gestores, resultante de atravessamento político-partidário, constatando dessa forma, forte influência política na região.
A clara experiência da cooperação regional e de solidariedade entre os entes garante autonomia e governabilidade com maior coordenação central. Por outro lado, a baixa autonomia dos secretários influenciados por incipiência técnica, atravessamento político-partidário e recursos financeiros insuficientes, dificulta a consolidação da governança na região (GIOVANELA, 2014; MOREIRA; RIBEIRO; OUVERNEY, 2017).
As análises permitiram identificar forte tendência para negociações marcadas por atravessamento de poder. Esse diferente arranjo de governança pode estar associado ao interesse político de um serviço regionalizado no território e à deficiência técnica dos atores envolvidos. Com efeito, Moreira, Ribeiro e Ouverney (2017) afirmaram que a institucionalização da CIR gerou conflitos próprios das relações interfederativas entre o governo estadual e municipal, com visível favorecimento aos interesses do ente que detivesse mais poder, gerando pautas fragilizadas e maior preponderância estadual.
Para Lima et al. (2017), as formas como se distribuem as funções e os recursos expressam relações de poder que envolvem gestores e prestadores de serviços, condicionadas por dinâmicas regionais específicas. Dourado e Elias (2011) vão além, ao criticar, nas pactuações na CIR, o que chamam de consensualismo, sem a lógica de decisões coletivas, marcada pelos poderes estabelecidos. Esse cenário aponta desafios para a democratização do poder em nível local no SUS, que são marcados pelas antigas tradições do clientelismo (FLEURY, 2014). Ainda, as reuniões de CIR revelam dificuldades comuns e buscam estratégias para superação dos problemas na oferta e no acesso aos serviços entre os municípios, sendo um importante instrumento de debate e de fortalecimento da região (SILVEIRA FILHO et al., 2016).
Com relação ao tempo no cargo de gestão, mais de 80% dos gestores na região ocupam há menos de dois anos a função. As constantes trocas de gestores municipais de saúde refletem a descontinuidade nos processos de trabalho estabelecidos e podem condicionar modelos de gestão pautados na centralização, hierarquização e burocratização, reduzindo a capacidade gerencial do SUS (LORENZETTI et al., 2014). Considerando a complexidade da gestão do SUS, é fundamental que o gestor municipal possua um perfil com conhecimento e capacidade de gestão, pois cabe aos atributos da função prover os serviços de saúde com eficiência e eficácia à população (ARCARI et al., 2018). Nesse sentido, a materialidade da governança em saúde deve ser compreendida em meio à capacidade dos gestores integrantes da política. O quadro institucional deve favorecer a participação e a negociação dos atores, a gestão de conflitos e, por fim, o estabelecimento de uma ação coordenada, voltada à direção de ações pautadas no alcance de metas e objetivos já definidos (GOYA et al., 2017).
Outra evidência quanto ao perfil dos gestores municipais diz respeito ao seu grau de escolaridade, mais de 85% dos gestores tinham formação na área da saúde e quase 70% possuíam pós-graduação. Arcari et al. (2018) afirmam ainda que a evolução nas demandas da gestão pode estar elevando o grau de exigência no processo de trabalho do gestor, fato provavelmente associado com a escolaridade dos secretários que, em sua maioria, possuem curso superior. Fleury e Ouverney (2006) identificaram que grande parte dos secretários municipais de Saúde não havia ocupado esse cargo anteriormente, o que apenas reforça a necessidade de apropriação técnica desses gestores para assumirem a função.
As dificuldades relacionadas à infraestrutura e aos processos de trabalho apenas corroboram os desafios para a sustentação e articulação de parcerias entre ensino e serviço, educação e trabalho, agravadas, ainda, pela burocratização e indefinição de formas de gestão financeira, aplicada à Política de Educação que permeia as estruturas regionais (FRANÇA et al., 2017). A Comissão Integrada de Ensino e Serviço tem sido uma estratégia utilizada para o desenvolvimento da educação permanente em saúde nas regiões. Contudo, desafios ainda precisam ser superados para propor uma ideologia que seduza pela sua eficiência e aparência de novidade pedagógica (LEMOS, 2016; FRANÇA et al., 2017). É preciso, portanto, que mecanismos de incentivo à participação e à apropriação de gestores sobre os temas levantados, possam subsidiá-las quanto aos desafios postos na gestão do SUS regional.
Foi possível identificar, neste estudo, a importância da articulação interfederativa para superação dos problemas regionais de saúde, com uma relação direta entre as dificuldades do processo de planejamento e de tomada de decisão. Espaços como a CIR desenvolvem os mecanismos de coordenação e de cooperação para a regionalização do SUS. Essa interdependência federativa deve ser uma mola propulsora para a autonomia e a capacidade de negociação entre os entes.
A proposta de descontruir a herança da municipalização no processo de regionalização se fortalece por meio de uma regionalização solidária que deverá abarcar uma força conjunta dos atores para a superação dos desafios imbricados. Assim, somente decisões consensuais entre os entes federativos implicados “nesse fazer” estão legitimadas para definir, em detalhes, as responsabilidades postas (VIANA; LIMA, 2011; SANTOS; ANDRADE, 2012). Por isso, é necessário que a articulação interfederativa seja uma aliada para a consolidação da regionalização e dos espaços de governança, ainda que o pacto federativo do Brasil e os arranjos organizativos do SUS com base municipal gerem dificuldades, justamente para sua organização (MIRANDA; MENDES; SILVA, 2017; SOUZA; SANTOS, 2018).
No estudo, as evidências constatam que a predominância na discussão e no monitoramento dos instrumentos normativos de planejamento é uma marca na região. O Plano Municipal de Saúde, o Relatório Anual de Gestão e a Programação Anual de Saúde demonstraram um cumprimento burocrático desses instrumentos de pactuação de metas e indicadores regionais, conforme a figura 1.

Fonte: elaboração própria.
Figura 1 Mapa da II Região de Saúde-PE: municípios e instrumentos de planejamento. Recife-PE, 2018
Gil, Luiz e Gil (2016) apontam que essa forma de trabalho tem tido baixa eficácia quando comparada ao planejamento estratégico, pois este consegue mobilizar e envolver todos os indivíduos inseridos no processo de saúde. No mesmo direcionamento, Silveira Filho et al. (2016) relatam que as reuniões de CIR foram marcadas por debates quanto aos atrasos na elaboração e entrega dos instrumentos normativos de planejamento. Ainda segundo os autores, quanto aos atrasos, o fato compromete a execução de um bom planejamento e a avaliação de ações e serviços no âmbito municipal.
Albuquerque e Martins (2017) ratificam que o monitoramento e a pactuação de indicadores na região podem ter se tornado uma atividade meramente burocrática com baixa aderência às ações prioritárias de saúde. A baixa institucionalização do monitoramento e da avaliação nas práticas de saúde reforça a necessidade de qualificação dos atores, intensifica a pouca integração entre sistemas de informação e a permanência de ciclos viciosos, que geram praticas fragmentadas, as quais dificultam a institucionalização dos processos (CARVALHO et al., 2012). No estudo, o planejamento na região é visto pelos gestores como importante ferramenta, embora ainda frágil e incipiente, com uma nítida necessidade de aprimoramento em seu uso. Nesse aspecto, ficou evidente a ausência de um instrumento específico de planejamento para a aplicação na região. O resultado similar de Bretas Júnior e Shimizu (2015) confirma que os gestores de saúde, apesar de reconhecerem o valor de planejar, praticam ações mais voltadas para a manutenção do sistema vigente do que para gerar modificações, com vistas à consolidação do SUS.
Ainda que a CIR e sua respectiva câmara técnica reforcem a necessidade de apropriação de técnicos e gestores quanto ao planejamento, verificou-se que a carência desse setor nas secretarias municipais de Saúde acarreta em dificuldades na formulação e execução do planejamento no nível local. Em suas evidências, Medeiros et al. (2017) confirmam não haver verificado o conhecimento dos gestores sobre a realidade regional, prevalecendo, ainda, as decisões com embasamento mais político do que técnico. No mesmo sentido, Martins e Waclawovsky (2015) corroboram a existência de uma insuficiência nos ciclos de planejamento dentro das estruturas de saúde.
É válido destacar que a constante repactuação, quanto à recomposição da Câmara Técnica, pode indicar um comprometimento da condução técnica de assessoramento destas reuniões, acarretando descontinuidade das construções técnico-políticas que comprometem o processo de governança no sistema regionalizado. Mendes (2011) coloca que, apesar da grande importância, a CIR e a Câmara Técnica, por si sós, não são suficientes para garantia de uma boa governança, considerando que não há um sistema gerencial permanente que conduza a tomada de decisão.
Diante das evidências, o triângulo de ferro de Matus (1996), composto pelo projeto de governo (a proposta de meios e objetivos de mudança para uma situação desejada), a capacidade de governo (a habilidade para alcance dessas mudanças) e a governabilidade (o caminho que o governo deve percorrer para o sistema de direção e planejamento), reforça a noção de problemas relevantes, prioritários e estratégicos que deve ser adotada pelos gestores na região (MATUS, 1996).
Por meio da análise de documentos e das respostas dos sujeitos entrevistados, foram categorizadas as forças, as oportunidades, as fraquezas e as ameaças na região (quadro 2). O uso da ferramenta SWOT permite uma análise sistemática por meio da identificação dessas variáveis que, quando confrontadas se tornam um importante mecanismo para o diagnóstico e tomada de uma decisão.

Fonte: elaboração própria.
Quadro 2 Aplicação da ferramenta SWOT no diagnóstico situacionnal da região. Recife-PE, 2018
Na categoria ameaças, chama atenção à ênfase dada pelos gestores, quanto à concentração dos serviços de média e alta complexidade na capital e seu entorno, bem como no polo regional que situa a gerência regional. Com evidências semelhantes no estado de Pernambuco, Lemos (2014) já tinha observado forte centralização da oferta de serviços especializados na I Macrorregião de Saúde, onde se localiza a capital do estado, e para onde se destina parte expressiva dos usuários do estado.
Com a melhoria nas condições de vida da Região Nordeste e na oferta de serviços concentrados em poucas regiões, houve grande variação de fluxos de pacientes com deslocamentos entre macrorregiões e estados do país para a obtenção de determinados serviços, gerando vazios assistenciais. Uma das possíveis explicações estaria relacionada aos investimentos e à expansão de atividades econômicas que mantiveram a tendência histórica de concentração nas capitais e em tradicionais polos regionais (ALBUQUERQUE et al., 2017; OLIVEIRA et al. 2004).
Esses resultados permitiram visualizar a forte atuação dos serviços complementares na região, sobretudo nos exames e diagnósticos, que mesmo regionalizados e regulados pelo estado, por meio da Gerência Regional de Saúde, ainda apresentam filas de espera e absenteísmo nas consultas. Para Santos e Giovanella (2014), a atuação dos serviços complementares, aqueles contratualizados com prestadores, ganham maior envergadura nos territórios com menor capacidade gestora para atuar na regulação assistencial ou em municípios cujos serviços conveniados se tornaram parceiros das correntes políticas que exercem o poder, ao ponto de privilegiarem os interesses particulares em detrimento do interesse público.
Mesmo que a forte atuação da gestão estadual de saúde tenha atuado na conformação de um complexo regulador compartilhado com os municípios, o acesso equânime e integral aos usuários ainda parece ser um desafio a ser superado. Nessa seara, a geografia pode ser um fator decisivo para uma correta operacionalização regional dos serviços de saúde. Quando não levada em consideração, pode gerar regiões dissonantes com as realidades locais (ALBUQUERQUE et al., 2017; DUARTE et al., 2015). Pode-se identificar um amplo debate sobre a organização e pactuação dos serviços regionalizados com foco na ampliação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), a partir da qual alguns equipamentos se tornaram referência na oferta de serviços e consultas, pois permitem, aos municípios da região, o acesso de seus munícipes aos serviços não ofertados no seu território.
As regiões de saúde ainda são fortemente marcadas pela expansão da RAS, com maior intensidade na atenção especializada, que concentra atualmente boa parte dos recursos necessários para a assistência à saúde (ERDEMANN; ANDRADE; MELLO, 2013; SANTOS et al., 2015). Ainda que exista uma tentativa do fortalecimento das redes regionalizadas para possíveis reduções de custos, frente à racionalidade e à garantia das condições de integralidade da atenção, os desafios são grandes, como as relações entre governos, os aspectos da descentralização dos serviços de saúde e a integração de um modelo assistencial, tendo a Atenção Básica como ordenadora do cuidado (GOMES, 2014).
Para além, o mapa da saúde tido como importante instrumento de delineamento da RAS, que deveria subsidiar o planejamento integrado e o estabelecimento de metas de saúde, não foi observado na região. A ausência desse instrumento ratifica os desafios postos à conformação dos serviços regionalizados. A região precisa ser um espaço potente de cooperação, baseado no cumprimento de metas e resultados, sobretudo nas tomadas de decisão por meio do monitoramento e da avaliação dos serviços de saúde. Ademais, precisa se constituir como um espaço importante para a integralidade, já que é no território que a saúde tem início e fim (VIANA et al., 2018; MENDES, 2011).
A análise realizada reacende a necessidade de buscar novos caminhos e metodologias para o fortalecimento da gestão, considerando o ambiente interno e o ambiente externo que envolve a região. Apesar da importância conferida pelos gestores, neste estudo, sobre a temática do financiamento, observou-se uma descontinuidade na discussão sobre a execução dos recursos referentes à pactuação dos serviços de saúde na região. Os gestores consideraram a aplicação da Programação Pactuada Integrada (PPI) desgastada, o que promove uma regulação discrepante das reais necessidades dos municípios.
Moreira e Tamaki (2017), com resultados semelhantes, observaram que a PPI não está desempenhando seu papel de instrumento garantidor do acesso da população a serviços de maior complexidade. Os municípios não acompanham sua execução, desconhecendo a realidade e impedindo a realização de cobranças.
A discussão esteve mais associada ao financiamento e à própria desatualização da PPI do que, especificamente, às centrais de marcação de consultas ou à regulação dos fluxos. Nesse sentido, as ações de saúde acabam apresentando divergências e dificuldades na definição das prioridades, o que torna evidente as dificuldades em prover o acesso aos serviços de saúde (SILVEIRA FILHO et al., 2016; SANTOS et al., 2015; GOYA et al., 2017). Verificou-se a preocupação dos gestores quanto ao subfinanciamento do SUS e do comprometimento do pacto federativo no custeio de Ações e Serviços Públicos de Saúde, que interferem no processo de governança na região. Nessa lógica, a concessão de financiamento do governo federal para alguns programas de saúde, sem o devido compromisso com os estados e municípios, acaba favorecendo a ampliação dos serviços de saúde e o recebimento de um custeio que nem sempre tem sido garantido, forçando os municípios a investirem mais. Esta é uma ampla questão, sobretudo em relação ao acesso, quando a abertura de novos serviços não o garantem (DAVID; SHIMIZU; SILVA, 2015; MENDES; MARQUES, 2014).
Estudos realizados demonstram que à medida que as contrapartidas do ente estadual e federal decaem, exige-se do ente municipal a aplicação superior ao percentual mínimo determinado pela legislação, ainda que esse fato não gere uma garantia para execução integral desses recursos (LOUVISON; MENDES, 2015; FUNCIA; SANTOS, 2019; MAZON et.al, 2018).
Outro fator que merece destaque é o novo regime fiscal brasileiro advindo da Emenda Constitucional n° 95 de 2016, que limitou os gastos públicos pelo período de 20 anos, interferindo diretamente no planejamento e na governança do SUS (ROSSI; DWECK, 2016; REIS et al., 2016). O financiamento deveria representar um aspecto importante para o fortalecimento da descentralização da política de saúde, com vistas à maior autonomia municipal no uso dos recursos financeiros, mas sua recente forma de operacionalização resultou na ampliação de uma transferência de recursos fragmentada e condicionada em forma de incentivo, sobretudo para ações de saúde de média e alta complexidade (DUARTE; MENDES; LOUVISON, 2018).
Considerações finais
Percebeu-se a potencialidade da CIR como um espaço fundamental para a governança na região. Suas reuniões ocorrem com boa assiduidade e participação dos gestores na arena de decisões. Em contraponto, ficou clara a necessidade de maior apropriação técnica aos gestores, uma vez que seus relatos reacendem a necessidade de se buscar novos caminhos para o fortalecimento da gestão.
O papel e a atuação da CIR evidenciam que as relações interfederativas se tornaram um mecanismo fundamental para o fortalecimento da governança em saúde. A expressão “parceria”, comungada entre os gestores, demonstra uma realidade já perpetrada dentro da região de saúde, reforçando o aspecto da gestão solidária entre os entes para enfrentamento dos desafios e a consolidação da regionalização em saúde. Em contrapartida, a mudança de gestores, os atravessamentos políticos-partidários e os aspectos relativos às pactuações, envolvendo o financiamento das ações e serviços, interferem no processo decisório e dificultam a governança na região.
Em relação ao planejamento em saúde, a região é estritamente marcada por instrumentos normativos de planejamento. A ausência da construção acerca das causas e consequências dos problemas, por meio de instrumentos de planejamento estratégico, apenas ratifica a necessidade da busca de cálculos que precedem e presidem a ação.
Outro aspecto importante diz respeito à morosidade relativa à implantação dos dispositivos previstos no Decreto 7.508/11. A afirmação de que não existe dinheiro novo, da inexecução da PPI e da falta de atualização da tabela SUS apenas corrobora os desafios no tocante aos pactos interfederativos que interferem no planejamento e na governança em saúde. Mesmo que se verifiquem diversos aspectos acerca do planejamento e da governança regional, é imprescindível que novos estudos sejam realizados sobre o tema, para que possam subsidiar gestores e estudiosos no enfrentamento de desafios postos para sua consolidação na política pública de saúde brasileira.
A negociação pode ser vista como uma poderosa ferramenta para auxiliar a gestão na região, pois permite a mediação dos interesses dos atores envolvidos e o desenvolvimento de um projeto cujo objetivo é a melhoria do acesso aos serviços e da qualidade prestada à população. Além disso, a criação de estratégias no processo de educação permanente, como grupos de trabalhos vinculados à CIES, pode ser um importante instrumento para o fortalecimento da educação em saúde voltada para a prática do planejamento e da governança na região por meio de uma metodologia baseada na problematização das práticas cotidianas com equipes multidisciplinares, permitindo reflexões críticas e a articulação de soluções estratégicas coletivas.1