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A Saúde Coletiva e a Criança com Comportamentos Externalizantes: uma revisão de literatura

The Public Health and the Child Externalizing Behavior: a revision of literature

Resumo

Os comportamentos externalizantes dizem de um conjunto de reações impulsivas que, exteriorizadas por crianças (ou adolescentes), produzem conflitos e, em padrão repetitivo e persistente, são associados a síndromes psicopatológicas e transtornos. Este artigo tem o objetivo de revisão de literatura sobre o tema, nos três eixos disciplinares da Saúde Coletiva. Segue o método de revisão sistemática, com enfoque empírico e formato narrativo, tomando a ciência como prática social e levantando aspectos qualitativos de literatura produzida entre 2009 e 2019. Os conhecimentos produzidos trazem recortes importantes sobre o tema, porém, o panorama alcançado revela um distanciamento discursivo entre os eixos da epidemiologia e das ciências sociais em saúde, aproximados precariamente no eixo da política, planejamento e gestão em saúde. Os modos de considerar a criança nas pesquisas se dão com o silenciamento infantil, priorizando percepções dos adultos sobre as crianças. Chega-se a considerações sobre a importância de uma efetiva interdisciplinaridade e de uma pedagogia da transdisciplinaridade capaz de transcender o lugar das especialidades e de reconhecer a criança, com a valorização das suas práticas e saberes, como ator central do conhecimento acerca de si mesma.

Palavras-chave:
saúde mental; comportamento infantil; epidemiologia, ciências sociais; política de saúde

Abstract

The externalizing behaviors refer to a set of impulsive reactions that exteriorized by children (or adolescents) produce conflicts and, in a repetitive and persistent pattern, are associated with psychopathological syndromes and disorders. This article has the objective of empirical review on the subject, in three disciplinary axes of Public Health. It follows the systematic review method, with an empirical focus and narrative format, taking science as social practice and raising qualitative aspects of literature produced between 2009 and 2019. The knowledge produced brings important cuts on the subject, however, the panorama reached reveals a discursive distance between the axes of epidemiology and of the social science, precariously approximated in the axis of health planning. The ways of considering the child in the research are with child silencing, prioritizing adults' perceptions about children. We come to considerations about the importance of effective interdisciplinarity and a pedagogy of transdisciplinarity capable of transcending the place of specialties and of recognizing the child, with the appreciation of his practices and knowledge, as the central actor of knowledge about himself.

Keywords:
mental health; child behavior; epidemiology; social sciences; health policy

Introdução

A Saúde Coletiva é um campo de saberes e práticas que entende a saúde como um fenômeno social e atua para o bem do interesse público em saúde, privilegiando a coletividade em relação aos indivíduos e priorizando a promoção da saúde, além da prevenção e cuidado de doenças e agravos à saúde da população (PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2014PAIM, J. S. ALMEIDA-FILHO, N., (org.). Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014.). A produção de conhecimento na Saúde Coletiva se dá em pelo menos três eixos disciplinares: a epidemiologia; as ciências sociais em saúde e a política, planejamento e gestão em saúde (PPGS).

À epidemiologia cabem estudos sobre o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando os padrões de distribuição, os fatores de risco causais e etiológicos, os efeitos sobre a saúde coletiva etc., de modo a fornecer indicadores e propostas que colaborem com o planejamento ou a avaliação de políticas, programas e tecnologias de saúde (ROUQUAYROL; ALMEIDA-FILHO, 2003ROUQUAYROL, M. Z.; ALMEIDA-FILHO, N. Epidemiologia & Saúde, 6º edição, Rio de Janeiro: Ed. MEDSI, 2003.). O eixo das ciências sociais em saúde volta-se ao levantamento de discussões teóricas e críticas relacionadas com o universo das situações e práticas sociais do processo saúde-doença-cuidado; também colaborando com o planejamento e a avaliação de políticas, programas e tecnologias de saúde (PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2014PAIM, J. S. ALMEIDA-FILHO, N., (org.). Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014.).

Já o eixo da PPGS contempla um ramo de estudos com ênfase na política de saúde, voltado às relações Estado-sociedade e às reações a condições de saúde e seus determinantes, através de prioridades e propostas para a ação pública, o que inclui a relação com políticas econômicas e sociais, controle social, economia da saúde e financiamento (PAIM; TEIXEIRA, 2006PAIM, J. S.; TEIXEIRA, C. F. Política, Planejamento e Gestão em Saúde: balanço do estado da arte. Rev Saude Publica, v.40, n.esp., p.73-78, 2006.). Outro ramo, com ênfase no planejamento e gestão em saúde, volta-se a estudos sobre o estabelecimento de conjuntos coordenados de ações que visam ao alcance de objetivos sobre a saúde da população, incluindo estratégias, planejamento e avaliação de políticas, programas e tecnologias de saúde e a gestão de sistemas, serviços, recursos humanos, qualidade e financiamento (PAIM; TEIXEIRA, 2006).

A Saúde Coletiva se desenvolveu com uma proposta interdisciplinar, que pressupõe o esforço de ir além da mera justaposição de contribuições específicas, estabelecendo um intercâmbio entre os seus eixos disciplinares fundamentais e, quiçá, com outras áreas de conhecimento (PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2014PAIM, J. S. ALMEIDA-FILHO, N., (org.). Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014.). Não obstante, vários pesquisadores no campo da Saúde Coletiva vêm empreendendo diálogos com pensadores epistemológicos em busca de novos paradigmas que, para além de um diálogo interdisciplinar, ajudem a dar melhor conta da complexidade presente em muitos dos seus problemas de pesquisa (ALMEIDA-FILHO, 2005; ROQUETE et al, 2012ROQUETE, F. F.; AMORIM, M. M. A.; BARBOSA, S. P.; SOUZA, D. C. M.; CARVALHO, D. V. Multidisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade: Em busca de diálogo entre saberes no campo da Saúde Coletiva. R Enferm Cent O Min, v.2, n.3, p.463-474, 2012.). Nesse sentido, tem se discutido bastante o pensamento complexo, que se vincula à proposta de uma pedagogia da transdisciplinaridade e tem o filósofo francês Edgard Morin como um dos seus principais expoentes (ALMEIDA-FILHO, 2005; ROQUETE et al, 2012). Morin (2002) acredita que:

Para promover uma nova transdisciplinaridade precisamos de um paradigma que, certamente, permite distinguir, separar, opor e, portanto, disjuntar relativamente estes domínios científicos, mas que, também, possa fazê-los comunicarem-se entre si, sem operar a redução. O paradigma da simplificação (redução-disjunção) é insuficiente e mutilante. Torna-se necessário um paradigma de complexidade que, ao mesmo tempo disjunte e associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem reduzi-los às unidades elementares e às leis gerais (MORIN, 2002MORIN, E. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002., p.53).

O esforço para a constituição de uma pedagogia da transdisciplinaridade, com a contribuição de diversos autores, vem elencando pressupostos que vão além da superação de fronteiras e hierarquizações entre áreas do conhecimento científico, para considerar pragmaticamente as possibilidades de produção do conhecimento (D’AMBRÓSIO, 2001D’AMBRÓSIO, U. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.; MORIN, 2002MORIN, E. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.; ALMEIDA-FILHO, 2005ALMEIDA-FILHO, N. Transdisciplinaridade e o Paradigma Pós-Disciplinar na Saúde. Saude Soc, v.14, n.3, p.30-50, 2005.). Assim, mantendo a atenção ao método, mas com abertura aos múltiplos sistemas de explicação das realidades, se propõe considerar a incerteza e abrir mão da necessidade de ignorar, invalidar e/ou excluir os saberes populares tradicionais e de populações em estudo (D’AMBRÓSIO, 2001; MORIN, 2002; ALMEIDA-FILHO, 2005).

Os comportamentos externalizantes e a infância

Os chamados comportamentos externalizantes têm aparecido com destaque entre os estudos contemporâneos sobre os problemas comportamentais na infância. Tal destaque se deve à elevada relação dessa classe de comportamentos com queixas, sobretudo escolares, que têm sido associadas a síndromes psicopatológicas e a possíveis diagnósticos e terapias para crianças e adolescentes, com crescentes índices de prevalência (D’ABREU, 2012D’ABREU, L. C. F. O Desafio do Diagnóstico Psiquiátrico na Criança. Contextos Clinicos, v.5, n.1, p.2-9, 2012.; LIMA, 2012LIMA, R. C. Três Tópicos sobre a Relação entre DSM e Política. In: KYRILLOS-NETO, F. CALAZANS, R. (orgs.). Psicopatologia em Debate: controvérsias sobre os DSMs. Barbacena: EdUEMG, 2012, p.95-111.).

O termo comportamentos externalizantes surgiu no âmbito de estudos empregando técnicas psicométricas com o objetivo de verificar problemas comportamentais e emocionais em crianças e adolescentes em idade escolar e classificar sintomas psicopatológicos (ACHENBACH, 1966______. The Classification of Children’s Psychiatric Symptoms: a factor-analytic study. Psychological Monografhs: general and applied, v.80, n.7, p.1-37, 1966.; ACHENBACH; ELDEBROCK, 1978). Com uma série de estudos realizada nos EUA por uma equipe multidisciplinar coordenada pelo psiquiatra Thomas Achenbach, foi desenvolvido o Achenbach System of Empirically Based Assessment (ASEBA), uma bateria de instrumentos de avaliação psicológica para múltiplos informantes, bastante utilizada atualmente em mais de cem países, incluindo o Brasil (ACHENBACH, 2017). No que tange aos problemas de comportamento em crianças e adolescentes, a bateria ASEBA é hoje composta pelos instrumentos Child Behavior Checklist (CBCL), voltado a pais/cuidadores; Teacher's Report Form (TRF), voltado a professores - com versões para crianças em idade pré-escolar (18 meses a 5 anos) e crianças e adolescentes em idade escolar (6 a 18 anos) e Youth Self-Report (YSR), voltado a crianças/adolescentes entre 11 e 18 anos (ACHENBACH, 2017).

A categoria comportamentos externalizantes classifica um conjunto de reações impulsivas que são exteriorizadas pela criança ou adolescente de modo a proporcionar conflitos com o ambiente, tais como inquietude, desobediência, desatenção, agressividade, contestação, provocação, ruptura de regras etc. (ACHENBACH, 2017ACHENBACH, T. M. ASEBA - Achenbach System of Empirically Base Assessment [página da web] 2017. Disponível em: <http://www.aseba.org/dsm5.html>. Acesso em: 20/03/2018.
http://www.aseba.org/dsm5.html...
). Tais comportamentos em um padrão repetitivo e persistente são tomados como base para o diagnóstico de pelo menos três transtornos psiquiátricos chamados de transtornos externalizantes por diversos autores: o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) e o Transtorno de Conduta (TC) (D’ABREU, 2012D’ABREU, L. C. F. O Desafio do Diagnóstico Psiquiátrico na Criança. Contextos Clinicos, v.5, n.1, p.2-9, 2012.; LIMA, 2012LIMA, R. C. Três Tópicos sobre a Relação entre DSM e Política. In: KYRILLOS-NETO, F. CALAZANS, R. (orgs.). Psicopatologia em Debate: controvérsias sobre os DSMs. Barbacena: EdUEMG, 2012, p.95-111.).

O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria (APA), em sua quarta edição (DSM-IV), traz os chamados transtornos externalizantes classificados como transtornos disruptivos (APA, 1997). Em sua quinta e mais recente edição (DSM-V), o TDAH teve a sua classificação alterada e passou a constar entre os transtornos do neurodesenvolvimento, juntamente com os transtornos do espectro autista, entre outros (APA, 2014). Já a décima edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS), o TDAH, o TOD e o TC estão classificados entre os códigos F-90 e F-91, que correspondem, respectivamente, a transtornos hipercinéticos e transtornos de conduta (OMS; CBCD, 2008).

Esse conciso panorama histórico-conceitual dos comportamentos externalizantes demonstram sua concepção no campo psi de modo bastante imbricado com a categoria infância. Segundo Sarmento e Pinto (1997SARMENTO, M. J.; PINTO, M. As Crianças e a Infância: Definindo conceitos, delimitando o campo. In: SARMENTO, M. J.; PINTO, M. (orgs.). As Crianças: contexto e identidades. Braga, Portugal: Universidade do Minho, Centro de Estudos da Criança, 1997.), a infância pode ser tomada como uma categoria social construída em processos sócio-históricos para referir um grupo de indivíduos, com distinção em relação a outros grupos, não somente pela faixa etária ou fase de desenvolvimento, mas também por uma série de significações e condições atribuídas que pressupõem homogeneidade e a caracterizam como um grupo minoritário, ou seja, com status social e identitário inferior.

Diversos estudos entre a Filosofia, a História, as Ciências Sociais e a Psicologia do Desenvolvimento trazem registros importantes das ideias que vêm constituindo a concepção de infância no Ocidente desde a antiguidade até a modernidade tardia (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Tradução: Dora Plasmam. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.; DONZELOT, 1986DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.; SARMENTO, 2018SARMENTO, M. J. A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporânea, v. 8, n. 2, p. 385-405, 2018.; SARMENTO; PINTO, 1997; MONTANDON, 2001MONTANDON, C. Sociologia da Infância: Balanço dos trabalhos em língua inglesa. Cad Pesqui, v.112, p.33-60, 2001.; SIROTA, 2001SIROTA, R. Emergência de uma Sociologia da Infância: evolução do objeto e do olhar. Cad Pesqui, v.112, p.07-31, 2001.; KOHAN, 2008KOHAN, W. O. Infância e Filosofia. In: SARMENTO, M. J.; GOUVEA, M. C. S.(orgs.). Estudos da Infância: educação e práticas sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p.40-61.; PROUT, 2010PROUT, A. Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Tradução: Fátima Murad. Cad Pesqui, v.40, n.141, p.729-750, 2010.; VALENÇA, 2017VALENÇA, V. L. C. A participação das crianças no cotidiano: da progressão individual às reproduções coletivas. Educação Unisinos, v.21, n.1, p.3-11, 2017.). As significações da infância no trânsito da história social e das ciências vêm se diversificando, desde a atribuição de incapacidade e passividade à criança, chegando à identificação da criança ativa e portadora de desejos, até a mais recente significação da criança como coprodutora e constituinte da sociedade e da cultura (ARIÈS, 1981; KOHAN, 2008; PROUT, 2010; VALENÇA, 2017). No entanto, nas práticas sociais do Ocidente, entre as quais se inclui a ciência (LATOUR; WOOLGAR, 1988LATOUR, B; WOOLGAR, S. A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Tradução: Ângela R. Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1988.), a criança ainda tende a passar por atos rigorosos e naturalizados de controle e silenciamento (SARMENTO, 2005). Entende-se por silenciamento infantil o ato de ignorar, invalidar e/ou excluir a fala e o entendimento da criança, em face da inferiorização do seu status social e identitário, privilegiando o discurso do adulto, sejam pais/responsáveis, profissionais do cuidado e/ou especialistas (SARMENTO, 2005; FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.).

A presente revisão de literatura se justifica pela ausência de estudos anteriores que tenham discutido o tema conforme a proposição deste artigo. Portanto, sua importância está em problematizar, com vistas à interdisciplinaridade, à transdisciplinaridade e ao pensamento complexo, o modo como a Saúde Coletiva tem produzido conhecimento acerca de um importante tema de saúde mental referente à infância, uma categoria historicamente silenciada.

Método

Contemplando os três eixos disciplinares fundamentais da Saúde Coletiva, este trabalho se define como uma revisão sistemática qualitativa, com enfoque empírico, isto é, voltado a recuperar como vem se dando as pesquisas sobre um tema, sem a pretensão de determinar o “estado da arte” (BRASILEIRO, 2013BRASILEIRO, A. M. M. Manual de Produção de Textos Acadêmicos e Científicos. São Paulo: Atlas, 2013.). Adota-se o formato narrativo, indicado para estudos amplos de descrição e discussão de produção científica, com ênfase teórica ou contextual, a partir do levantamento de aspectos qualitativos estabelecidos pelo autor (ROTHER, 2007ROTHER, E. T. Revisão Sistemática X Revisão Narrativa. Acta Paul Enferm, v.20, n.2, p.v-vi, 2007.).

Logo, o estudo é orientado pelas seguintes questões: Como tem se desenvolvido, no campo da Saúde Coletiva, a produção de conhecimento acerca da problemática da criança com comportamentos externalizantes? Com os três eixos disciplinares da Saúde Coletiva, como têm se dado o diálogo interdisciplinar e os modos de considerar a criança nas pesquisas sobre problemas de comportamento e saúde mental infantil? A escolha por abranger os três eixos da Saúde Coletiva se deve ao zelo pela interdisciplinaridade, tomando a ciência como prática social que, na mediação com pesquisadores, sujeitos/objetos e referenciais de estudo, em diversas realidades, produz saberes entre os quais se espera diálogo (LATOUR, WOOLGAR, 1988LATOUR, B; WOOLGAR, S. A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Tradução: Ângela R. Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1988.).

As buscas por referências foram realizadas de modo sistemático nas bases do Portal de Periódicos CAPES/MEC (Google Acadêmico; PsycINFO), em 12 de janeiro de 2020, a partir dos seguintes parâmetros: a) Período de Publicação: de 2009 a 2019; b) Tipo de Material: artigos; c) Idioma: qualquer; d) Descritores: “mental health”; “child”; “problem behavior”; “disorders”; “public health” - pesquisados conjuntamente. Com vistas ao refinamento, acionando o botão ‘AND’, foram acrescentados para cruzamento referente a cada eixo disciplinar, respectivamente, os descritores “epidemiology”; ou “social sciences”; ou “health policy”.

Os critérios de inclusão foram: estudos nacionais ou internacionais incluindo o Brasil; sobre comportamento(s) externalizante(s); e/ou sobre transtorno(s) externalizante(s); e/ou sobre estratégia(s), programa(s) e/ou serviço(s) público(s) que atendem a crianças (de até 12 anos) a quem se atribui a referida condição de saúde mental. Excluíram-se publicações que: a) se definiam como estudos de revisão; cartas ao editor ou anais de eventos; b) não se referiam ao território brasileiro; c) o periódico não constava na classificação Qualis/CAPES (2013-2016) da área de Saúde Coletiva; d) não foram localizados na íntegra. Os critérios de relevância para a escolha dos artigos descritos e discutidos nesta revisão, como representativos da amostra, entre si, foram a variedade de foco, metodologia, resultados e âmbito/local do estudo.

Nos resultados das buscas foram listadas para o eixo da epidemiologia 471 publicações, das quais foram selecionadas 175 pela leitura do título e/ou resumo, 31 pelos critérios de inclusão, chegando à amostra final de 9 pelos critérios de exclusão. Para o eixo das ciências sociais em saúde listaram-se 301 publicações, das quais foram selecionadas 103 pela leitura do título e/ou resumo, 27 pelos critérios de inclusão e 7 pelos critérios de exclusão. Para o eixo da PPGS, de 298 publicações listadas, 96 foram selecionadas pela leitura do título e/ou resumo, 29 pelos critérios de inclusão e 6 pelos critérios de exclusão.

Da amostra final, 5 artigos de cada eixo disciplinar foram escolhidos para a análise pelos critérios de relevância, com atenção à forma e conteúdo, de modo a constituir um panorama empírico das pesquisas sobre o tema no campo da Saúde Coletiva. Na discussão, adota-se a linguagem da complexidade, da multiplicidade e das mediações do mundo social, no qual a ciência se insere como prática (LATOUR; WOOGAR, 1988LATOUR, B; WOOLGAR, S. A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Tradução: Ângela R. Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1988.; PROUT, 2010PROUT, A. Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Tradução: Fátima Murad. Cad Pesqui, v.40, n.141, p.729-750, 2010.; LATOUR, 2012).

Resultados e discussão

Literatura em Epidemiologia

No tocante à criança com comportamentos externalizantes, a epidemiologia tem realizado estudos descritivos diversos, que têm por objetivo caracterizar a distribuição do problema ou condições relacionadas, de modo a responder onde, quando, com o quê e quem o problema alcança (ROUQUAYROL; ALMEIDA-FILHO, 2003ROUQUAYROL, M. Z.; ALMEIDA-FILHO, N. Epidemiologia & Saúde, 6º edição, Rio de Janeiro: Ed. MEDSI, 2003.). Assim, a epidemiologia descritiva busca traçar as variações da incidência (casos novos) ou da prevalência (casos existentes) de uma dada condição de saúde de acordo com certas características, sejam sociodemográficas, familiares, habituais etc., que possam representar fatores de risco (ROUQUAYROL; ALMEIDA-FILHO, 2003). Nesta revisão foram selecionados, da epidemiologia descritiva, um estudo nacional do tipo ecológico, dois nacionais do tipo transversal de prevalência e dois do tipo longitudinal prospectivo, ou de coorte, sendo um internacional e outro nacional, conforme expostos em resumo no Quadro 1.

Quadro 1
Resumo dos estudos da epidemiologia acerca da criança com comportamentos externalizantes.

Os estudos epidemiológicos descritivos acerca da criança com comportamentos externalizantes têm produzido conhecimentos importantes, com recortes expressivos dessa complexa problemática. No entanto, tais conhecimentos podem ser tomados e atuados de diferentes formas, a depender dos pressupostos teóricos ou de ação, ou das abordagens aos quais passam a ser associados, podendo gerar influências diversas na formulação de políticas públicas em saúde mental para a infância. Trata-se de informações quantitativas, com viés de generalidade, que ao serem associadas, por exemplo, a pressupostos biomédicos podem ser atuadas de modo a corroborar teorias neuropsiquiátricas individualizantes que embasam psicodiagnósticos e abordagens terapêuticas farmacológicas, ou, nomeadamente, as práticas de medicalização e medicamentalização do comportamento infantil (CONRAD, 2007CONRAD, P. The Medicalization of Society: on the transformation of human conditions in to treatable disorders. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2007.; NGOUNDO-MBONGUE et al, 2005NGOUNDO-MBONGUE, T. B.; SOMMET, A.; PATHAK, A.; MONTASTRUC, J. L. “Medicamentation” of Society, Non-diseases and Non-medications: A point of view from social pharmacology. Eur J Clin Pharmacol, v. 61, n. 43, p. 309-313, 2005.; SIQUEIRA; GURGEL-GIANERTTI, 2011SIQUEIRA, C. M.; GURGEL-GIANERTTI, J. Mau Desempenho Escolar: uma visão atual. Rev Ass Med Bras, v.57, n.1, p.78-87, 2011.; VINOCUR; PEREIRA, 2011VINOCUR, E.; PEREIRA, H. V. F. S. Avaliação de Transtornos de Comportamento na Infância. Rev Hosp Univ Pedro Ernesto, v.10, n.2, p.26-34, 2011.). Entende-se por medicalização o processo que fixa como problemas patológicos e individuais as condições que expressam desvio da normalidade e/ou experiências de sofrimento social ou intersubjetivo, impondo classificações e tratamentos concebidos em linguagem biomédica (CONRAD, 2007). Já o termo medicamentalização diz do processo que envolve a produção de medicamentos e a demanda por terapias farmacológicas como recurso único ou prioritário para prevenção ou tratamento de problemas que foram medicalizados (NGOUNDO-MBONGUE et al, 2005).

As mesmas informações da epidemiologia, ao serem associadas a abordagens críticas das ciências sociais e humanas, podem ser atuadas de modo a propor a compreensão qualitativa de determinantes socioambientais, com a problematização dos processos psicodiagnósticos, ou opondo-se diretamente ao enfoque biomédico e aos atos medicalizantes (BRZOZOWSKI, CAPONI, 2012BRZOZOWSKI, F. S.; CAPONI, S. Determinismo Biológico e as Neurociências no Caso do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade. Physis, v.22, n.3 p.941-961, 2012.; STOLKINER, 2012STOLKINER, A. Infancia y Medicalización en la Era de la Salud Perfecta. Propuesta Educativa, v.37, n.1, p.28-38, 2012.). Vale ainda acrescentar que, no campo da Psicologia, as informações epidemiológicas referentes à criança com comportamentos externalizantes tendem a mediar direta ou indiretamente principalmente duas linhas de produção de conhecimento. Uma, nos trabalhos da Análise do Comportamento e da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), em diálogo com teorias psicopatológicas e psicoterápicas, atuam de modo a produzir ou corroborar métodos de abordagens clínicas e de treinamento infantil, parental/familiar e de profissionais que atuam com as crianças (BARROS; SILVA, 2006BARROS, P.; SILVA, F. B. N. Origem e Manutenção do Comportamento Agressivo na Infância e Adolescência. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, v.2, n.1, p.55-66, 2006.; CALEIRO; SILVA, 2012CALEIRO, F. M.; SILVA, R. S. Técnica de Modificação de Comportamento de Crianças com Treinamento de Pais. Encontro: Revista de Psicologia, v.15, n.23, p.129-142, 2012.). Outra linha, nos trabalhos da Psicologia Escolar e Educacional, em diálogo com as abordagens críticas das ciências sociais e humanas e com a Psicologia do Desenvolvimento, atua de modo a problematizar os processos de escolarização, a queixa escolar e as práticas de medicalização associadas, também propondo novas formas de atuação profissional nos contextos intersetoriais da comunidade escolar (SOUZA, 2007SOUZA, B. P. (org.). Orientação à Queixa Escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.; ANGELUCCI; SOUZA, 2010ANGELUCCI, C. B.; SOUZA, B. P. (org.). Medicalização de Crianças e Adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. 1ª Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.).

Em suas considerações, os estudos da epidemiologia descritiva sobre os problemas de comportamento na infância têm enfatizado desde a afirmação de fatores de risco até a necessidade de novos estudos ou a recomendação de ações e de políticas públicas pontuais ou intersetoriais. Entretanto, em se tratando de estudos produzidos no contexto paradigmático da Saúde Coletiva, faz falta que haja ao menos uma sinalização para o diálogo interdisciplinar com estudos das ciências sociais em saúde que problematizem qualitativamente os determinantes sociais verificados para os comportamentos externalizantes na infância e as suas circunstâncias mais profundas. Isso porque, é de certo arriscado permitir que, por exemplo, a cor da pele preta da criança, ou a pobreza, ou o modelo familiar, ou a baixa escolaridade dos pais sejam simplificados como fatores de risco para problemas de comportamento. Com isso, seria importante considerar a provável vulnerabilidade da criança a alguns tipos de violência intersubjetiva relacionadas, como racismo e discriminação identitária, cultural e de classe.

Se os estudos epidemiológicos descritivos são realizados com ênfase ou a partir do contexto escolar, pelos riscos de restrição ou individualização do problema, é importante sinalizar a necessidade de diálogo com estudos que discutem os modelos escolares, considerando o processo de escolarização e as práticas cotidianas na comunidade escolar. Considerar o “processo de escolarização” significa enfatizar a escola como “o espaço em que relações sociais e individuais se articulam em uma rede de relações complexas” (ANGELUCCI; SOUZA, 2010ANGELUCCI, C. B.; SOUZA, B. P. (org.). Medicalização de Crianças e Adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. 1ª Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010., p.60). Assim, os problemas que emergem no contexto escolar podem ser analisados como efeitos de questões relacionais mais profundas que, provavelmente, não se limitam aos muros da escola (ANGELUCCI; SOUZA, 2010). A falta de tais sinalizações para o diálogo interdisciplinar pode aparentar, por implícito, um viés biomédico.

Os modos de considerar a criança nas pesquisas da epidemiologia descritiva, tomando por base a representação dos estudos nesta revisão, apresentam em graus diferenciados o componente de silenciamento infantil. Silenciamento este que, em geral, se dá associado à priorização das percepções do adulto sobre os comportamentos da criança e/ou ao uso exclusivo de instrumentos de avaliação psicológica que aferem construtos teóricos elaborados por “especialistas”, com viés biomédico, na lógica do checklist e de modo distanciado de fatores circunstanciais. Nos estudos transversais de prevalência e nos longitudinais prospectivos é privilegiado o uso de instrumentos de avaliação das crianças dirigido para os pais/cuidadores, sendo que a criança não é avaliada diretamente. Apenas o estudo V (MURRAY et al, 2015MURRAY, J.; MENEZES, A. M. B.; HICKMAN, M.; MAUGHAN, B.; GALLO, E. A. G.; MATIJASEVICH, A.; GONÇALVES, H.; ANSELMI, L.; ASSUNÇÃO, M. C. F.; BARROS, F. C.; VICTORA, C. G. Childhood behaviour problems predict crime and violence in late adolescence: Brazilian and British birth cohort studies. Soc Psychiatry Epidemiol, v.50, p.579-589, 2015.) indica a aplicação direta de um instrumento de produção de dados para os atores centrais do estudo, que foram avaliados desde o nascimento, porém, a entrevista de autorrelato somente foi utilizada quando aqueles sujeitos já haviam completado 18 anos.

Literatura em Ciências Sociais em Saúde

Os estudos relativos à problemática da criança com comportamentos externalizantes, inscritos no eixo das ciências sociais em saúde, apresentam metodologias qualitativas diversas e, em geral, são pouco voltados aos processos de constituição dos comportamentos infantis considerados problemáticos em si. O foco principal desses estudos têm sido a problematização da psicopatologia da infância com críticas aos processos psicodiagnósticos e às práticas de medicalização e medicamentalização do comportamento infantil. Nesse sentido, se opõem direta ou indiretamente ao discurso biomédico, não se referindo à categoria comportamentos externalizantes e raramente utilizando o termo transtornos externalizantes. Para tratar dos processos de medicalização e medicamentalização dos problemas de comportamento infantil, é tomado especialmente como mote o diagnóstico do TDAH, devido à sua popularização e prevalência crescentes nas últimas décadas. Dos estudos qualitativos das ciências sociais em saúde foram selecionados dois internacionais de revisão sócio-histórica e três nacionais, sendo um documental, um de práticas discursivas e produção de sentidos e um de inspiração etnográfica, conforme descritos em resumo no próximo Quadro 2.

Quadro 2
Resumo dos estudos das ciências sociais em saúde acerca da criança com comportamentos externalizantes.

Os estudos das ciências sociais em saúde acerca da criança com comportamentos externalizantes também têm produzido uma gama de conhecimentos bastante importantes, com os seus recortes dessa problemática. Tais conhecimentos tendem à aproximação discursiva com as áreas críticas ou socialmente sensíveis da Psicologia e da Educação. A representação dos estudos sociais analisados é expressiva na polarização das chamadas ciências leves (ou sociais e humanas), de viés qualitativo, com as “ciências duras” (ou naturais), de viés biológico e quantitativo. O panorama apresentado fica marcado por uma fraca disposição ou dificuldade para o diálogo interdisciplinar, especialmente com as ciências médicas e farmacêuticas.

Ainda que os dados epidemiológicos, as teorias neuropsiquiátricas e os produtos psicofarmacológicos apareçam nos estudos, muitas vezes de modo transversal, em geral, são situados com oposição discursiva e tratados em termos de práticas hegemônicas, dispositivos de controle, biopolítica, biopoder, medicalização, medicamentalização etc. Não obstante, em se tratando de uma polarização tão marcada, é importante atentar para os riscos da “sociologização” ou “antropologização” (KLEINMAN; KLEINMAN, 1991KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its Professional Transformation: Toward an ethnography of interpersonal experience. Cult Med Psychiatry, v.15, n.3, p.275-301, 1991.) do tema - além dos riscos de “psicologização” ou “pedagogização”, bastante semelhantes à “biologização”, comumente apontada nas ciências duras. Ou seja, é preciso estar sempre vigilante para a inconveniente ancoragem de temas relativos aos processos de saúde-doença-cuidado como problema prioritário ou de domínio exclusivo de certa disciplina ou “especialidade”, o que é passível de ocorrer nas diversas áreas de conhecimento.

As considerações trazidas nos estudos das ciências sociais em saúde sugerem reflexividade e enfatizam a crítica negativa ao poder da medicina e da indústria farmacêutica e às suas relações com instituições como o Estado, o mercado, a escola e a família. Esse discurso crítico opositor pode recair na controversa tendência a hierarquizações e a duras generalidades, que comprometem o diálogo interdisciplinar caro à Saúde Coletiva, com prejuízo para o alcance do pensamento complexo e para ações políticas mais acertadas. Toda a polarização presente nas ciências sociais e humanas em relação ao biomédico e às ciências naturais, em geral, também pode estar comprometendo a produção de estudos sociais que explorem a complexidade das redes em que é constituído o comportamento infantil tomado como problemático.

Há de se reconhecer a importância histórica do discurso opositor das ciências sociais e humanas, politicamente necessário para fragilizar a hegemonia do discurso biomédico na saúde mental, que vem produzindo diversos problemas referentes aos processos de cuidado (SANCHES; AMARANTE, 2014SANCHES, V. N. L.; AMARANTE, P. D. C. Estudo sobre o Processo de Medicalização de Crianças no Campo da Saúde Mental. Saude Debate, v.38, n.102, p.506-514, 2014.; DOMITROVIC; CALIMAN, 2017DOMITROVIC, N.; CALIMAN, L. V. As Controvérsias Sócio-Históricas das Práticas Farmacológicas com o Metilfenidato. Psicol Soc, v.11, p.1-12, 2017; LORENZI; RISSATO; SILVA, 2012LORENZI, C. G.; RISSATO, G. B.; SILVA, S. P. Sentidos Construídos por Educadores sobre Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade e Implicações para a Prática Educativa. Saude Transform Soc, v.3, n.2, p.84-95, 2012.; NAKAMURA; BARBARINI, 2019NAKAMURA, E.; BARBARINI, T. Comportamentos infantis problemáticos, perturbadores e não conformes: Conceitos e demandas de cuidado relacionados à agitação em crianças em Santos e Campinas, Brasil. Saude Soc, v.28, n. 1, p.12-26, 2019.). No entanto, diferentemente do passado, as controvérsias da psicopatologia, dos critérios psicodiagnósticos e da terapêutica psiquiátrica, com os seus efeitos iatrogênicos, não são mais abordadas criticamente apenas por sociólogos, antropólogos e filósofos. Com o tempo, as abordagens interdisciplinares ampliaram a discussão para outros campos, como a Psicologia e a Educação. Hoje, seja de modo geral ou especialmente em relação aos problemas de comportamento infantil, os “abusos” da psiquiatria são razoavelmente discutidos no próprio campo da medicina em estudos críticos de psiquiatras influentes, como Frances (2016FRANCES, A. Voltando ao Normal. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2016.) e Landman (2015LANDMAN, P. Tous hyperactifs? L´incroyable épidémie de troubles de l’attention. Paris: Éditions Albin Michel, 2015.), no âmbito internacional, e como Amarante (2017AMARANTE, P. Teoria e Crítica em Saúde Mental: textos selecionados. 2. ed. São Paulo: Editora Zagodoni, 2017.) e Lima (2012LIMA, R. C. Três Tópicos sobre a Relação entre DSM e Política. In: KYRILLOS-NETO, F. CALAZANS, R. (orgs.). Psicopatologia em Debate: controvérsias sobre os DSMs. Barbacena: EdUEMG, 2012, p.95-111.), no âmbito nacional. Então, não seria tempo de as ciências sociais e humanas em saúde passarem a consolidar a produção de estudos com enfoque nos fenômenos relativos às práticas humanas que se dão no contexto das redes, com a complexidade e a heterogeneidade das relações, quebrando dicotomias e deixando em suspenso as teorias e as práticas hegemônicas e contra-hegemônicas na saúde mental? No que tange aos problemas do comportamento infantil, há carência de estudos com essa proposição.

Os modos de considerar a criança nas pesquisas das ciências sociais em saúde, tendo por referência a representação dos estudos nesta revisão, também apresentam de modo geral, modulações de silenciamento infantil. As pesquisas sociais em saúde também têm apresentado metodologias que priorizam a percepção dos adultos, sejam pais, professores ou “especialistas”, sobre as crianças. Ainda são poucos os estudos nas ciências sociais em saúde que utilizam observação e entrevista com a criança sobre si mesma, de modo a considerar e destacar a sua atuação em seus ambientes de desenvolvimento, com os sentidos e a cultura que produz. Nesta revisão, uma proposta menos hierarquizante de pesquisa em relação aos saberes da infância aparece apenas no estudo X (NAKAMURA; BARBARINI, 2019NAKAMURA, E.; BARBARINI, T. Comportamentos infantis problemáticos, perturbadores e não conformes: Conceitos e demandas de cuidado relacionados à agitação em crianças em Santos e Campinas, Brasil. Saude Soc, v.28, n. 1, p.12-26, 2019.), no qual as crianças foram abordadas diretamente em apenas um dos locais de pesquisa.

Literatura em Política, Planejamento e Gestão em Saúde

Nesta parte da revisão de literatura, com o eixo da PPGS, não foram encontrados estudos internacionais, incluindo o Brasil. O Estado brasileiro não possui política ou programa de saúde mental direcionado especificamente para crianças com problemas de comportamento ou com transtornos externalizantes. Contudo, o tema aparece transversalmente nos estudos que se referem à saúde mental infantil, dada a alta prevalência de diagnósticos relacionados a comportamentos externalizantes na rede de atenção, conforme descrito nos estudos epidemiológicos nacionais (GARCIA, SANTOS; MACHADO, 2015GARCIA, G. Y. C; SANTOS, D. N.; MACHADO, D. B. Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil no Brasil: Distribuição geográfica e perfil dos usuários. Cad Saude Publica, v.31, n.12, p.2649-2654, 2015.; SANTOS et al, 2016). Os estudos acerca da temática nesse eixo se concentram no ramo do planejamento e gestão em saúde, com pesquisas sobre o estabelecimento de conjuntos coordenados de ações, que incluem estratégias, planejamento e avaliação de políticas, programas e tecnologias de saúde, a gestão de sistemas, serviços, recursos humanos, qualidade etc. Os estudos selecionados da PPGS foram três qualitativos dos tipos hermenêutico, de significação e descritivo; um qualitativo-quantitativo do tipo avaliativo educacional; e um quantitativo do tipo avaliativo transversal; todos nacionais, conforme expõem os resumos no seguinte Quadro 3.

Quadro 3
Resumo dos estudos da política, planejamento e gestão em saúde acerca da criança com comportamentos externalizantes.

Os estudos na área da PPGS tangenciam a problemática da criança com comportamentos externalizantes ao avaliar de modo geral ou em recortes a política de saúde mental para a infância e adolescência no Brasil. A representação dos trabalhos aqui tratados busca dar conta do estado de desenvolvimento e consolidação de programas e estratégias em saúde mental para o público infanto-juvenil no Brasil. Tais estudos têm sido voltados principalmente para os serviços do CAPSi e da Atenção Primária, com ênfase sobre a qualidade, os recursos humanos, a formação continuada, a intersetorialidade e a integralidade. Nesse sentido, é possível perceber algum esforço de aproximação dialógica com a epidemiologia e com as ciências sociais em saúde, na medida em que trata de respostas em políticas públicas dadas a demandas apresentadas por aqueles outros dois eixos disciplinares da Saúde Coletiva. Entretanto, não se encontram facilmente nos estudos da PPGS referências nítidas à epidemiologia e às ciências sociais em saúde, de modo a explicitar um diálogo interdisciplinar, seja com a confrontação de dados, seja com a indicação da necessidade de novos estudos.

Em termos de considerações, os estudos da PPGS apontam para a necessidade de investimentos públicos na expansão da rede de atenção à saúde mental para a infância e adolescência, na efetivação de ações intersetoriais e na formação continuada de profissionais, tanto da atenção primária como da atenção psicossocial. Ademais, sugerem ainda uma formação profissional atenta à melhoria da comunicação intersetorial e comunitária, com usuários e familiares em suas necessidades singulares, bem como à quebra de hegemonia do discurso biomédico, com vistas à integralidade e à superação da lógica dos encaminhamentos.

Os modos de considerar a criança nas pesquisas acerca da saúde mental para a infância e adolescência na PPGS têm trazido o componente do silenciamento infantil, de modo semelhante aos demais eixos disciplinares. Em se tratando de uma área específica relacionada a políticas públicas, é algo a se chamar especialmente a atenção, considerando os diversos estudos das ciências sociais e humanas, desde pelo menos a década de 1990, acerca dos “direitos participação” de crianças e adolescentes (SARMENTO, 2018SARMENTO, M. J. A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporânea, v. 8, n. 2, p. 385-405, 2018.; SARMENTO; PINTO, 1997; MONTANDON, 2001MONTANDON, C. Sociologia da Infância: Balanço dos trabalhos em língua inglesa. Cad Pesqui, v.112, p.33-60, 2001.; SIROTA, 2001SIROTA, R. Emergência de uma Sociologia da Infância: evolução do objeto e do olhar. Cad Pesqui, v.112, p.07-31, 2001.; KOHAN, 2008KOHAN, W. O. Infância e Filosofia. In: SARMENTO, M. J.; GOUVEA, M. C. S.(orgs.). Estudos da Infância: educação e práticas sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p.40-61.; PROUT, 2010PROUT, A. Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Tradução: Fátima Murad. Cad Pesqui, v.40, n.141, p.729-750, 2010.; VALENÇA, 2017VALENÇA, V. L. C. A participação das crianças no cotidiano: da progressão individual às reproduções coletivas. Educação Unisinos, v.21, n.1, p.3-11, 2017.).

Considerações Finais

Cumprindo o objetivo proposto, esta revisão de literatura termina por apresentar, de modo narrativo, um panorama empírico de estudos acerca da saúde mental da criança com problemas de comportamento. Pensando numa relação não dicotômica-opositora entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanas, e entre o simples e o complexo, buscou-se sinalizar lacunas e controvérsias nos estudos aqui analisados, desenvolvidos no campo da Saúde Coletiva, o qual se pretende ao menos interdisciplinar, senão transdisciplinar (ALMEIDA-FILHO, 2005ALMEIDA-FILHO, N. Transdisciplinaridade e o Paradigma Pós-Disciplinar na Saúde. Saude Soc, v.14, n.3, p.30-50, 2005.; ROQUETE et al, 2012ROQUETE, F. F.; AMORIM, M. M. A.; BARBOSA, S. P.; SOUZA, D. C. M.; CARVALHO, D. V. Multidisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade: Em busca de diálogo entre saberes no campo da Saúde Coletiva. R Enferm Cent O Min, v.2, n.3, p.463-474, 2012.).

Os estudos epidemiológicos analisados, de importância inequívoca acerca da distribuição dos problemas e dos fatores de risco relativos à criança com comportamentos externalizantes, aparecem marcados por: 1) ausência de referência a estudos das ciências sociais em saúde ou, ao menos, de sinalização sobre a importância de problematizar qualitativamente as realidades descritas e, especialmente, os determinantes sociais verificados para os problemas de comportamento na infância; 2) falta de sinalização das diversas possibilidades de mediação das informações epidemiológicas produzidas acerca do tema, o que pode indicar, implicitamente, um viés para a mediação biomédica.

A análise dos estudos nas ciências sociais em saúde, muitos de fundamental importância política no enfrentamento ao poder hegemônico do discurso biomédico em saúde mental, aponta principalmente: 1) uma maciça polarização discursiva em relação às ciências médicas e farmacêuticas; 2) a ausência de objetivos voltados a compreender os modos de constituição social dos comportamentos considerados inadequados para crianças, em diálogo com a epidemiologia descritiva.

A literatura em análise do eixo PPGS, que tangencia a problemática da criança com problemas de comportamentos em avaliações da política de saúde mental para a infância e adolescência no Brasil, teve como principais características observadas: 1) a aproximação dialógica precária com os demais eixos disciplinares, com falta de referências nítidas e capazes de explicitar um diálogo interdisciplinar com a epidemiologia e as ciências sociais em saúde; 2) articulação insuficiente no sentido de sugerir o potencial de ampliar o foco do paradigma da intersetorialidade, visando alcançar a interdisciplinaridade efetiva ou a transdisciplinaridade.

O desencontro discursivo entre os eixos da epidemiologia e das ciências sociais em saúde sobre as crianças com problemas de comportamento dificilmente deixaria de gerar efeitos negativos sobre a formulação e a avaliação das políticas, programas e tecnologias voltadas para a saúde mental na infância e adolescência. Talvez seja essa a razão de não haver, por exemplo, uma política ou programa de saúde mental, formulado pelo Estado brasileiro, especificamente para crianças e adolescentes com problemas de comportamento ou com transtornos externalizantes. Com uma melhor integração entre os eixos disciplinares da Saúde Coletiva é provável que haja contribuições mais férteis para a planificação, gestão e a avaliação de políticas, programas e tecnologias em saúde mental para a infância e adolescência, ou mesmo voltadas especificamente à problemática dos comportamentos externalizantes, com seus altos índices de prevalência e os controversos diagnósticos e terapêuticas (GARCIA; SANTOS; MACHADO, 2015GARCIA, G. Y. C; SANTOS, D. N.; MACHADO, D. B. Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil no Brasil: Distribuição geográfica e perfil dos usuários. Cad Saude Publica, v.31, n.12, p.2649-2654, 2015.; SANTOS et al, 2016; MURRAY et al, 2015MURRAY, J.; MENEZES, A. M. B.; HICKMAN, M.; MAUGHAN, B.; GALLO, E. A. G.; MATIJASEVICH, A.; GONÇALVES, H.; ANSELMI, L.; ASSUNÇÃO, M. C. F.; BARROS, F. C.; VICTORA, C. G. Childhood behaviour problems predict crime and violence in late adolescence: Brazilian and British birth cohort studies. Soc Psychiatry Epidemiol, v.50, p.579-589, 2015.; SANCHES; AMARANTE, 2015; DOMITROVIC; CALIMAN, 2017DOMITROVIC, N.; CALIMAN, L. V. As Controvérsias Sócio-Históricas das Práticas Farmacológicas com o Metilfenidato. Psicol Soc, v.11, p.1-12, 2017).

Ressalta-se, portanto, o valor de estudos que enfatizem a superação das oposições dicotomizadas, tendo como ponto de partida a linguagem da complexidade, da multiplicidade, da instabilidade, do hibridismo, das redes e das mediações do mundo social, no qual a ciência se insere como prática (LATOUR; WOOLGAR, 1988LATOUR, B; WOOLGAR, S. A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Tradução: Ângela R. Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1988.; D’AMBRÓSIO, 2001D’AMBRÓSIO, U. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.; MORIN, 2002MORIN, E. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.; ALMEIDA-FILHO, 2005ALMEIDA-FILHO, N. Transdisciplinaridade e o Paradigma Pós-Disciplinar na Saúde. Saude Soc, v.14, n.3, p.30-50, 2005.; PROUT, 2010PROUT, A. Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Tradução: Fátima Murad. Cad Pesqui, v.40, n.141, p.729-750, 2010.; LATOUR, 2012). Logo, reforça-se a importância, para a Saúde Coletiva, de abordagens ampliadas sobre as múltiplas realidades referentes aos processos saúde-doença-cuidado, com efetivo diálogo entre áreas de conhecimento.

É salutar persistir em trazer à luz o pensamento complexo alinhado com ideia de uma pedagogia da transdisciplinaridade, com potência para superar hierarquizações e fronteiras entre sistemas de explicação diversos, eliminar oposições dicotomizadas e transcender o lugar das especialidades. Somente a partir de um esforço coletivo e cooperativo, baseado em uma ética livre de vaidades, arrogâncias e prepotências, será possível vislumbrar para além de uma “utopia”, no fértil campo da Saúde Coletiva, uma transdisciplinaridade capaz de disjuntar e associar, de modo a conceber níveis de emergência das realidades sem reduzi-los a unidades elementares e a leis gerais (D’AMBRÓSIO, 2001D’AMBRÓSIO, U. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.; MORIN, 2002MORIN, E. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.).

As noções de complexidade e transdisciplinaridade permitem aproximar e, quiçá, incluir as diversas epistemologias e metodologias, as chamadas ciências duras (ou naturais) e as ciências leves (ou sociais e humanas), os estudos quantitativos e os qualitativos, os estudos dos agregados sócio-históricos e os das práticas cotidianas etc. (D’AMBRÓSIO, 2001D’AMBRÓSIO, U. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.; MORIN, 2002MORIN, E. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.; ALMEIDA-FILHO, 2005ALMEIDA-FILHO, N. Transdisciplinaridade e o Paradigma Pós-Disciplinar na Saúde. Saude Soc, v.14, n.3, p.30-50, 2005.). Inúmeras vezes, seja nas ciências naturais ou nas ciências sociais e humanas, o paradigma da simplificação, com os princípios da generalidade (do particular para o geral), da redução (do todo para partes) e da abstração (do objeto empírico descolado de fatores relacionados) (D’AMBRÓSIO, 2001; MORIN, 2002; ALMEIDA-FILHO, 2005), se mostra útil a aspectos didáticos e à indicação/introdução de bases importantes para ações ou para estudos mais complexos. A própria epistemologia da complexidade dificilmente teria emergido antes que o paradigma da simplificação da ciência moderna tivesse se consolidado e indicado, por seus produtos e aplicações, que se fazia necessária uma nova atitude intelectual diante de múltiplos entendimentos para realidades cada vez mais complexas (D’AMBRÓSIO, 2001; MORIN, 2002; ALMEIDA-FILHO, 2005).

No entanto, com essas colocações, não se pretende declinar aqui para uma defesa do perspectivismo. De acordo com a linguagem da complexidade e da multiplicidade que se busca aplicar na totalidade deste estudo, é possível entender as práticas científicas como relações entre actantes humanos e não humanos, que atuam e são atuados nas redes, constituindo versões de realidades com as mediações do mundo social (LATOUR; WOOLGAR, 1988LATOUR, B; WOOLGAR, S. A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Tradução: Ângela R. Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1988.; PROUT, 2010PROUT, A. Reconsiderando a Nova Sociologia da Infância. Tradução: Fátima Murad. Cad Pesqui, v.40, n.141, p.729-750, 2010.; LATOUR, 2012). Ou seja, as práticas científicas se dão no encontro de humanos-pesquisadores com humanos-pesquisados e/ou com não-humanos-pesquisados, referenciais e instrumentos de pesquisa, todos actantes (pessoas, elementos da natureza, arranjos geográficos, registros, máquinas, ideias, discursos, dispositivos, instituições etc.), sempre dotados de historicidade e de saberes implícitos ou explícitos (LATOUR; WOOLGAR, 1988; D’AMBRÓSIO, 2001D’AMBRÓSIO, U. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.; MORIN, 2002MORIN, E. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.; ALMEIDA-FILHO, 2005ALMEIDA-FILHO, N. Transdisciplinaridade e o Paradigma Pós-Disciplinar na Saúde. Saude Soc, v.14, n.3, p.30-50, 2005.; LATOUR, 2010).

Retornando ao panorama apresentado neste estudo, o silenciamento infantil incorre como uma constante na literatura revisada dos três eixos disciplinares fundamentais da Saúde Coletiva acerca da criança com comportamentos externalizantes. Assim sendo, tal resultado faz reavivar a ideia de que, para além da abertura de fronteiras entre as áreas de conhecimento, transcendendo especialidades, o paradigma da transdisciplinaridade também implica considerar os sujeitos-objetos da pesquisa, com a valorização dos seus saberes, práticas e vivências, como atores centrais do conhecimento sobre si (D’AMBRÓSIO, 2001D’AMBRÓSIO, U. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 2001.; MORIN, 2002MORIN, E. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.; ALMEIDA-FILHO, 2005ALMEIDA-FILHO, N. Transdisciplinaridade e o Paradigma Pós-Disciplinar na Saúde. Saude Soc, v.14, n.3, p.30-50, 2005.; LATOUR, 2010). Ou seja, a criança deve ser reconhecida como ator central nas pesquisas sobre temas que lhe digam respeito, como os seus comportamentos considerados problemáticos, com atenção a tudo o que possa mediar os conflitos que só se produzem nas relações. Para além de uma pedagogia, a transdisciplinaridade precisa ser alcançada como uma práxis cotidiana em processos coletivos e cooperativos de produção de conhecimento, de modo a garantir participação efetiva das crianças e de outros grupos inferiorizados nessas dinâmicas.

Nesse sentido, a superação das práticas de silenciamento infantil nas pesquisas científicas não pode se restringir à mera inclusão das crianças em procedimentos de entrevista, aplicação de testes e questionários ou observações dialogadas. O silenciamento persiste se a expressão da criança continua submetida a crivos de pretensas hierarquias e especialidades que buscam o “porquê”, ou as causas das diferenças e desvios da normalidade, e afastam o “como”, ou os processos que constituem as diferenças, algo que só pode ser substancialmente acessado através da compreensão dos saberes e práticas da criança consigo e com o mundo. Portanto, se faz necessário que a produção científica sobre a infância se dê em uma relação de intercâmbio horizontal e reflexivo do ator-pesquisador com os atores-pesquisados, dimensionando gerações, lugares de saber-fazer-dizer, territórios e culturas, sem (re)produzir atos colonizadores sob a suposta justificativa de domínio de uma área ou “especialidade” (GUIMARÃES, 2018GUIMARÃES, A. L. P. Fios que Urdem Tecituras: práticas e sentidos constituindo versões da criança com comportamentos externalizantes. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Saúde Comunitária) - Instituto de Saúde Coletiva - UFBA, Salvador, 2018.).

Estudos futuros de revisão de literatura sobre essa temática podem abordar as práticas de silenciamento infantil e as barreiras ao pensamento complexo e transdisciplinar na relação com o discurso científico que embasa as normas de publicação dos periódicos em Saúde Coletiva, no sentido de analisar como a política editorial adotada tende a corroborar um modelo específico e hegemônico de produção científica, legitimando certas práticas e impedindo outras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2021
  • Aceito
    03 Jun 2021
  • Revisado
    05 Out 2021
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