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40 anos de epidemia de HIV/Aids: reconfigurações de uma agenda político-acadêmica

A rememoração dos 40 anos da epidemia de HIV/Aids, marcados pela aparição dos primeiros casos da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida em 1981, se deu no Brasil em um momento de singular tensão, dor e indignação perante a proposital inação oficial frente à pandemia de Covid-19. Cumpre lembrar que, durante a crise sanitária, atores da sociedade civil e acadêmicos do campo do HIV insistiram no valor dos aprendizados da resposta à emergência da Aids e sua pertinência para pensar e agir no enfrentamento da Covid-19 (ABIA, 2020ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ABIA). Dossiê HIV/AIDS e COVID-19 no Brasil. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://abiaids.org.br/dossie-abia- hiv-aids-e-covid-19-no-brasil/34379
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). Da mesma forma que o uso do preservativo - usado só como método anticoncepcional até a década de 1980 - foi vocalizado pelo ativismo da época como uma prática fundamentada na “ética da solidariedade”, na pandemia da Covid-19 alguns atores da sociedade civil incentivaram o uso de máscaras como uma estratégia comunitária de proteção e de politização, e não apenas de preservação individual. Seguindo o princípio de evitar o “desperdício da experiência”, também foram elencadas reflexões sobre os potenciais usos segregacionistas da testagem da Covid com base em infelizes experiências observadas no início da resposta à Aids (PARKER, 2020PARKER, R. COVID-19 e HIV/Aids: paralelos e lições. In: Dossiê HIV/Aids e Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ABIA, 2021.).

Neste momento de balanço das repercussões da pandemia da Covid-19 nas esferas social, política e econômica também se faz necessário identificar as reconfigurações, e, sobretudo, os apagamentos em torno a uma epidemia ainda distante de controle no cenário global. Esta urgente revisão precisa atentar para a trajetória da resposta à Aids, particularmente na década mais recente, pois singulares transformações já estavam em curso e algumas muito possivelmente se intensificaram durante a crise sanitária mundial. Por um lado, o silenciamento de corpos e identidades não heteronormativos, somado ao predomínio de uma linguagem abstrata e esquemática nas mensagens oficiais de prevenção entre 2016 e 2019, certamente cristalizaram a dessexualização da resposta à epidemia (MORA; NELVO; MONTEIRO, no preloMORA, C.; NELVO, R.; MONTEIRO, S. Peças de comunicação governamentais sobre as profilaxias pré (PrEP) e pós-exposição (PEP) ao HIV (2016-2019): análise de seus conteúdos e circulação entre gays, mulheres trans/travestis e trabalhadoras sexuais. (no prelo)). Por outro, o apagamento da memória de uma política pública de incontestável sucesso mundial parece se consolidar com a renomeação em 2019 do antigo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais pelo atual Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI), bem como a paulatina retirada do ar dos repositórios oficiais (website e redes sociais) do antigo Departamento. Isso, paradoxalmente, em um período em que a sociedade civil vinha realizando um emotivo exercício de reconstrução da memória e da história do ativismo brasileiro HIV/Aids face às ameaças à sua própria continuidade (VALLE, 2018VALLE, C. G. do. Memórias, histórias e linguagens da dor e da luta no ativismo brasileiro de HIV/Aids. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 30, p. 153-182, 2018.).

Outro processo que não se pode perder de vista é a eliminação da educação sexual baseada nos direitos humanos concomitante à propagação da abstinência sexual como única estratégia possível de prevenção, cuja ineficácia e inadequação ética já foram amplamente discutidas (MACKLIN, 2005MACKLIN, R. Scaling up HIV Testing: Ethical Issues. Health and Human Rights. Emerging Issues in HIV/AIDS, Cambridge, v. 8, n. 2, p. 27-30, 2005.). A erosão dos efeitos duradouros das mensagens com foco no uso do preservativo e na abordagem da sexualidade certamente vem potencializar a transmissão do vírus (PAIVA et al., 2020PAIVA, V.; ANTUNES, M. C.; SANCHEZ, M. N. O direito à prevenção da Aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, 2020.). Portanto, o cenário vindouro trará desafios ainda mais complexos e preocupantes do que os vivenciados nas décadas passadas.

No período inicial da pandemia da Covid-19, a pesquisa on-line desenvolvida por Cunha et al. (2022CUNHA, C. C. da, et al. Na encruzilhada de duas pandemias: a experiência de redes de apoio social de jovens e adultos vivendo com HIV/Aids durante a pandemia de Covid-19. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, 2022.) revelou o temor dos jovens vivendo com HIV e Aids perante a potencial escassez de medicamentos e pelas dificuldades de acesso aos mesmos em decorrência do lockdown. Nessa conjuntura, atravessada por múltiplos sofrimentos e incertezas, observamos a recriação de pânicos morais em torno do vírus e dos sujeitos que convivem com ele em pelo menos dois momentos. O primeiro, através das declarações do presidente Jair Bolsonaro, em fevereiro de 2020, que pretendiam argumentar a favor de uma campanha em prol da abstinência sexual protagonizada pela então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, sustentando que pessoa com HIV é despesa para todos no Brasil. O segundo também se relaciona às palavras do primeiro mandatário do país, que disseminou em outubro de 2021 a falsa informação de que tomar a vacina da Covid-19 aumentaria o risco de uma pessoa se infectar com o vírus que causa a Aids.

Deste modo, o recrudescimento do estigma e, portanto, da morte social, se realiza face a iminentes ameaças à vida das pessoas vivendo com HIV e Aids (PVHA) devido à mais recente notícia: a redução do orçamento federal em mais de 400 milhões de reais destinados à aquisição de medicamentos para a Aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais. Ademais, frente à implementação, no Brasil, de políticas internacionais pautadas na dispensação de medicamentos antirretrovirais - como Testar e Tratar, Tratamento como Prevenção e Prevenção Combinada (especialmente as profilaxias Pré e Pós exposição, Prep e Pep, e o controle das ISTs) - os impactos dessa decisão colocam em xeque não apenas as chances de evitar novas infecções, mas significam o esvaziamento de qualquer política de prevenção entendida como um direito cidadão.

Após 40 anos de epidemia de HIV/Aids no país, quais as reconfigurações da agenda político-acadêmica? Particularmente na perspectiva das ciências sociais e humanas, se vislumbram singulares desafios no sentido de identificar marcos teórico- metodológicos suficientemente robustos para dar conta da regressão em termos das políticas, e do acirramento de visões conservadoras em galopante expansão e legitimação. Trata-se de um exercício atento tanto aos modos de rememorar o passado de enfrentamento da epidemia de Aids e da pandemia da Covid-19, quanto aos sentimentos de desamparo ligados à erosão das políticas públicas entre diversos grupos sociais e seus atravessamentos de classe, gênero, geração, sexualidade e raça. Este balanço diz respeito à reatualização da tensão, elencada por Seffner e Parker (2016SEFFNER, F.; PARKER, R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface - Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 20, n. 57, p. 293-304, 2016.) há menos de uma década, entre as políticas do fazer viver (ampliação da testagem e oferta universal da medicação antirretroviral) e o deixar morrer (reforço do estigma e discriminação).

Torna-se, pois, imperativo identificar as estratégias de luta e sobrevivência por parte de ativistas de distintas gerações, bem como de pesquisadores, profissionais e gestores atuantes na comunicação, prevenção e gestão pública, frente ao desmantelamento de uma política pública de histórica relevância no âmbito do SUS.

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Aproveitamos o último número de 2022 para enfatizar o caráter também coletivo das publicações científicas e agradecer a colaboração dos pareceristas que generosamente contribuíram com seu tempo e sua expertise para viabilizar as edições publicadas neste ano e cujos nomes vêm abaixo em ordem alfabética.

Adelaide Antunes Adriana Figueiredo Adriana Leão Adriana Molas Adriano Santos

Alba Benemérita Vilela Alcindo Ferla Alessandra Pereira Alicia Navarro

Aline Feltrin Aline Massaroli

Almária Mariz Batista Amanda Ornela

Ana Angélica Martins da Trindade Ana Claudia Rodrigues

Ana Ligia Passos Andreza Rodrigues Arthur Chioro Beatriz Klimeck Bettina Ruppelt

Bruno Ferrari Emerich Camila Borges

Carla Guedes Carla Soares

Carolina Nogueira Carolina Parreiras

Cassius Schnell Palhano Silvia Catharina Matos

Catia Guimarães Clarice Portugal

Clarisse Daminelli Borges Machado Cláudia Braga

Claudia Helena Soares de Morais Freitas

Claudia Martiniano Claudia Mora Claudia Rezende Cristal Aragão Daniel Faustino Silva

Daniela Priscila Oliveira do Vale Tafner Daniele Guerra

Dario Pasche Deivisson Santos Denise Siqueira Denise Yoshie Niy Doris Gomes

Edclécia Reino Carneiro de Morais Edlaine Faria de Moura Villela Eduardo Vasconcelos

Elaine Rabello Éllen Cristina Ricci

Erica Renata e Souza Fabiana Sousa

Fábio Malcher Fabio Silva Fátima Tavares

Fernanda Martinhago Fernanda Metelski Filipe Degani-Carneiro Flavia Campos

Flavia Freire Francisco França

Gabriel Rodrigues Martins de Freitas Gabriela Macedo Hugues

Herton Helder Rocha Pires Ilana Katz

Inara Nascimento

Irene Kalil Jaqueline Lepsch Jimena Carrasco

Karina Franco Zihlmann Katia Lerner

Larissa de Lima Trindade Ledson Kurtz de Almeida Lenaura Lobato

Leticia Batista Ligia Rangel Lisiane Tuon Luciana Surjus

Luiz Felipe Rocha Benites Luz Gonçalves Brito Maiara Bordignon

Marcela Martins Furlan de Leo Marcela Moniz

Marcos Carvalho Marcos Nascimento

Margareth Cristina Gomes Maria Carolina Anholeti Maria Cláudia Carvalho Maria Claudia Coelho Maria de Araújo Dias Maria de Fátima Tavares Maria Luiza Garnelo

Mariangela Ribeiro Resende Marina Nucci

Melissa Pereira Melissa Ribeiro

Milena Dórea de Almeida Monica Franch

Monica Martins Oliveira Viana Monica Senna

Oswaldo Yamamoto Pablo Rocon

Pamela Pigozi Lamarca Patrícia Iacabo

Paulo Barbato Pedro Abreu Pedro Macdowell Rachel Passos Rafael Dias Rafael Pinto Raphael Amorim Raphaella Daros

Ricardo Burg Ceccim Ricardo Rodrigues Teixeira Richard Miskolci

Rodrigo Monteiro Rogério Lerner Ronaldo Teodoro Rosa Rocha

Rozane Marcia Triches Rúbia Mara Maia Feitosa Sabrina Ferigato

Sabrina Paiva Sabrina Stefanello Sandra Caponi

Saulo Ferreira Feitosa Sheila Lachtim

Sílvia Portugal Susane Castro

Suzane Frantz Krug

Tânia Maria Rocha Guimarães Taniele Rui

Thaís Fávero Alves Valeria Lima Vanda Rodrigues

Vanessa Lorena Sousa de Medeiros Freitas Vera Lucia Mendes

Victor José Machado de Oliveira Vilma Beltrame

Wania Fernandes Wiliam Machado

Referências

  • ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ABIA). Dossiê HIV/AIDS e COVID-19 no Brasil. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://abiaids.org.br/dossie-abia- hiv-aids-e-covid-19-no-brasil/34379
    » https://abiaids.org.br/dossie-abia- hiv-aids-e-covid-19-no-brasil/34379
  • MACKLIN, R. Scaling up HIV Testing: Ethical Issues. Health and Human Rights. Emerging Issues in HIV/AIDS, Cambridge, v. 8, n. 2, p. 27-30, 2005.
  • CUNHA, C. C. da, et al. Na encruzilhada de duas pandemias: a experiência de redes de apoio social de jovens e adultos vivendo com HIV/Aids durante a pandemia de Covid-19. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, 2022.
  • MORA, C.; NELVO, R.; MONTEIRO, S. Peças de comunicação governamentais sobre as profilaxias pré (PrEP) e pós-exposição (PEP) ao HIV (2016-2019): análise de seus conteúdos e circulação entre gays, mulheres trans/travestis e trabalhadoras sexuais. (no prelo)
  • PAIVA, V.; ANTUNES, M. C.; SANCHEZ, M. N. O direito à prevenção da Aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, 2020.
  • PARKER, R. COVID-19 e HIV/Aids: paralelos e lições. In: Dossiê HIV/Aids e Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: ABIA, 2021.
  • SEFFNER, F.; PARKER, R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface - Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 20, n. 57, p. 293-304, 2016.
  • VALLE, C. G. do. Memórias, histórias e linguagens da dor e da luta no ativismo brasileiro de HIV/Aids. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 30, p. 153-182, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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