Acessibilidade / Reportar erro

Sobre o presente e o futuro da epidemia HIV/Aids: a prevenção combinada em questão

On the present and future of the HIV/Aids epidemic: combination prevention in question

Resumo

Muito se discute sobre o atual estágio da epidemia de HIV/Aids no Brasil. Dados oficiais do Ministério da Saúde apontam para estabilização da epidemia; no entanto, pesquisadores e organismos internacionais apontam para sua reemergência. Em nível mundial, a ONU afirma ser possível erradicar a epidemia até 2030. Neste artigo apresentamos o trabalho de tradução de práticas que abrange diálogos entre as narrativas oficial, global e nacional. Foram adotadas duas estratégias metodológicas centrais: entrevistas e pesquisa documental. A análise e discussão dos resultados foram realizadas com base nos procedimentos sociológicos: sociologia das emergências e ecologia de saberes, referenciados em Boaventura de Sousa Santos, para identificar o que emerge na diversidade de experiências, globais, nacionais e locais, como resposta à epidemia de HIV/Aids, com o recorte sobre as análises e reflexões sobre a prevenção combinada. Identificamos que a prevenção foi a etapa mais negligenciada do cuidado, e que há divergências entre as expectativas das instituições e dos atores locais sobre as possibilidades de erradicação da epidemia. Concluímos pela insuficiência do modelo de Prevenção Combinada proposto pelo Ministério da Saúde no diagrama “Mandala de Prevenção Combinada” e propomos uma representação gráfica alternativa, a partir das possibilidades que emergiram do trabalho de tradução.

Palavras-Chave:
HIV/Aids; Narrativas; Experiências; Histórias de vida; Cuidado

Abstract

Much is discussed about the current stage of the HIV/Aids epidemic in Brazil. Official data from the Ministry of Health points to the stabilization of the epidemic; however, researchers and international organizations point to its reemergence. At a global level, the UN claims that it is possible to eradicate the epidemics by 2030. In this article, we present the work of translating practices that encompasses dialogue between the official, global and national narratives. Two central methodological strategies were adopted: interviews and documentary research. The analysis and discussion of the results were carried out based on sociological procedures: sociology of emergencies and ecology of knowledge, referenced in Boaventura de Sousa Santos, to identify what emerges in the diversity of experiences, global, national and local, as a response to the epidemics of HIV/Aids, with a focus on analysis and reflections on combined prevention. We identified that prevention was the most neglected stage of care, and that there are divergences between the expectations of institutions and local actors about the possibilities of eradicating the epidemics. We conclude that the Combined Prevention model proposed by the Ministry of Health in the “Combined Prevention Mandala” diagram is insufficient and we propose an alternative graphic representation, based on the possibilities that emerged from the translation work.Resumo: Muito se discute sobre o atual estágio da epidemia de HIV/Aids no Brasil. Dados oficiais do Ministério da Saúde apontam para estabilização da epidemia; no entanto, pesquisadores e organismos internacionais apontam para sua reemergência. Em nível mundial, a ONU afirma ser possível erradicar a epidemia até 2030. Neste artigo apresentamos o trabalho de tradução de práticas que abrange diálogos entre as narrativas oficial, global e nacional. Foram adotadas duas estratégias metodológicas centrais: entrevistas e pesquisa documental. A análise e discussão dos resultados foram realizadas com base nos procedimentos sociológicos: sociologia das emergências e ecologia de saberes, referenciados em Boaventura de Sousa Santos, para identificar o que emerge na diversidade de experiências, globais, nacionais e locais, como resposta à epidemia de HIV/Aids, com o recorte sobre as análises e reflexões sobre a prevenção combinada. Identificamos que a prevenção foi a etapa mais negligenciada do cuidado, e que há divergências entre as expectativas das instituições e dos atores locais sobre as possibilidades de erradicação da epidemia. Concluímos pela insuficiência do modelo de Prevenção Combinada proposto pelo Ministério da Saúde no diagrama “Mandala de Prevenção Combinada” e propomos uma representação gráfica alternativa, a partir das possibilidades que emergiram do trabalho de tradução.

Keywords:
HIV/Aids; Narratives; Experiences; Life stories; Care

Introdução

A epidemia global de HIV/Aids tem mobilizado autoridades sanitárias, pesquisadores, profissionais de saúde e sociedade civil em torno do seu enfrentamento ao longo de quase 40 anos. A partir de 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (UNAIDS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmaram que é possível, em âmbito global, pôr fim à epidemia de HIV/Aids até 2030 e apresentaram meta intermediária à erradicação para o ano de 2020, a Meta 90-90-90 (UNAIDS, 2015UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). 90-90-90: uma meta ambiciosa de tratamento para contribuir para o fim da epidemia de Aids. 2015. Disponível em: <http://unaids.org.br/wp-content/uploads/2015/11/2015_11_20_UNAIDS_TRATAMENTO_META_PT_v4_GB.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://unaids.org.br/wp-content/uploads/...
; ONU, 2016; OMS, 2016ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). Estrategia mundial del sector de la salud contra el VIH 2016-2021. 2016. Disponível em: <http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021/ghss-hiv/es/>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021...
). Esta previu que neste ano 90% de todas as pessoas vivendo com HIV saberiam que têm o vírus, que 90% dessas pessoas estariam em terapia antirretroviral ininterrupta, e que 90% das pessoas em tratamento teriam carga viral indetectável (UNAIDS, 2017aUNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). HIV Prevention 2020 Road Map. 2017a. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf. Acesso em: 05 abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
).

A publicação do UNAIDS “2020 Global AIDS Update — Seizing the moment — Tackling entrenched inequalities to end epidemics” afirmou que muito se avançou no desenvolvimento de estratégias para o enfrentamento do HIV, mas os serviços e as ações de saúde se distribuem de maneira desigual, principalmente na expansão do acesso à terapia antirretroviral. Diante dessa desigualdade, sabe-se que dentro dos países e entre eles, as metas para 2020 não serão alcançadas e que os ganhos obtidos até agora podem ser perdidos e o progresso interrompido, exigindo nesse momento ações para afirmação de direitos das pessoas vivendo com HIV e das populações mais vulneráveis (UNAIDS, 2020UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). 2020 Global AIDS Update — Seizing the moment — Tackling entrenched inequalities to end epidemics, 2020. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2020_global-aids-report_en.pdf. Acesso em: 05 Abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
).

O relatório destaca ainda a necessidade de estratégias promotoras de respostas eficazes ao HIV, tais como acesso equitativo à educação e saúde, e às leis e sistemas de justiça que protegem os direitos dos mais marginalizados na sociedade, que permanecem negligenciados em dezenas de países em várias regiões do mundo (UNAIDS, 2020UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). 2020 Global AIDS Update — Seizing the moment — Tackling entrenched inequalities to end epidemics, 2020. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2020_global-aids-report_en.pdf. Acesso em: 05 Abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
).

No Brasil, em 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Cuidado integral às pessoas que vivem com HIV pela atenção básica: manual para a equipe multiprofissional. Brasília: Ministério da Saúde, 2015b., dados epidemiológicos apresentados por documentos oficiais indicam que a epidemia está estabilizada (BRASIL, 2015aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemilógico Aids, ano 4, n. 1. 2015a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/boletim-epidemiologico-hivaids-2015>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/bo...
). No entanto, o Relatório Global do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS), o Prevention Gap Report, lançado em julho de 2016, destaca que na América Latina, assim como no Brasil, o número anual de novas infecções pelo HIV em adultos vem aumentando lentamente desde o ano 2000 (UNAIDS, 2016UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Prevention gap report. 2016. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2016-prevention-gap-report_en.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.unaids.org/sites/default/file...
).

Em 2016, o Brasil adotou as metas para 2020 e 2030, ações e estratégias recomendadas pelo Sistema ONU e, a partir delas, reorientou a Política Nacional de enfrentamento do HIV/Aids (BRASIL, 2016aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico Aids, ano 5, n. 1, 2016a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/boletim-epidemiologico-de-aids-2016>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/bo...
). O Ministério da Saúde impulsionou as abordagens de Prevenção Combinada, englobando o Tratamento como Prevenção (TcP) e a Profilaxia Pré-exposição (PrEP) entre as estratégias de prevenção (BRASIL, 2016aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico Aids, ano 5, n. 1, 2016a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/boletim-epidemiologico-de-aids-2016>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/bo...
; 2018, 2017).

O relatório da UNAIDS lançado no segundo semestre de 2019, Power to the people, indica que na América Latina o número de novas infecções por HIV aumentou 7% entre 2010 e 2018, embora alguns países tenham apresentado declínios significativos. As maiores altas ocorreram no Brasil (21%), Costa Rica (21%), Bolívia (22%) e Chile (34%) (UNAIDS, 2019UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Power to the people. 2019. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/power-to-the-people_en.pdf. Acesso em: 05 Abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
).

No Brasil, desde 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Relatório de monitoramento clínico do HIV. Brasília: Ministério da Saúde, 2016b. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/es/node/59424>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.aids.gov.br/es/node/59424...
, o que se identifica é um quadro de reemergência da epidemia, de diminuição dos investimentos internacionais e de acirramento de setores conservadores junto às políticas públicas e de refreamento da abordagem da resposta ao HIV/Aids com base nos direitos humanos (SEFFER; PARKER, 2016; GRANJEIRO, 2016GRANJEIRO, A. Da estabilização à reemergência: os desafios para o enfrentamento da epidemia de HIV/Aids no Brasil. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS. Mito vs realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids em 2016. Rio de Janeiro: ABIA, 2016.). Segundo Granjeiro (2016) essa reemergência fica ainda mais evidente quando se observa o comportamento da epidemia por geração, com tendência de aumento da incidência entre homossexuais jovens.

Ressalta-se que foi criada uma atmosfera de “sucesso completo” da resposta brasileira, supondo-se que a aids seria um problema resolvido e reforçando o modelo de cuidado às pessoas que vivem com HIV fortemente centrado em medicamentos (SEFFNER; PARKER, 2016SEFFNER, F.; PARKER, R. A neoliberalização da Prevenção do HIV e a resposta brasileira à aids. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS. Mitos vs realidade: sobre a resposta Brasileira à epidemia de HIV e Aids em 2016. Rio de Janeiro: ABIA, 2016. p. 24-32.). Diante do discurso global sobre uma iminente erradicação da epidemia, Richard Parker interroga: “E porque o Brasil parece, pelo menos em alguns discursos, estar caminhando na contramão?” (PARKER, 2015PARKER, R. O fim da Aids? Rio de Janeiro: ABIA, 2015., p.1).

A Coalizão Global de Prevenção do HIV em 2017 lançou o “Roteiro de Prevenção do HIV até 2020” (UNAIDS, 2017aUNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). HIV Prevention 2020 Road Map. 2017a. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf. Acesso em: 05 abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
), contendo plano de ação com dez pontos que estabelecem medidas imediatas e concretas a serem tomadas pelos países para acelerar programas e ações de prevenção visando reduzir novas infecções por HIV em 75%, combinadas com ampliação do teste e tratamento do HIV. É dada ênfase na abordagem local, baseada na população e nas pessoas, para garantir planejamento e programação eficazes e eficientes e dar respostas às necessidades das populações com maior risco de se infectar pelo HIV (UNAIDS, 2017aUNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). HIV Prevention 2020 Road Map. 2017a. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf. Acesso em: 05 abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
).Embora um progresso significativo tenha sido alcançado ao longo da resposta global de enfrentamento do HIV/Aids, ainda permanecem lacunas, mesmo que a Prevenção Combinada tenha sido apontada como importante caminho para atingir as metas para erradicação da epidemia do HIV.

Neste artigo apresentamos parte da pesquisa (LUCAS, 2018LUCAS, M. C. V. De onde vem para onde vai SIDA? Caminhos possíveis para erradicação do HIV a partir do tempo presente. 2018. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.) realizada com base nos procedimentos sociológicos da sociologia das emergências, do trabalho de tradução e da ecologia de saberes, referenciados em Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.; 2002bSANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev. Crít. Cienc Soc., n. 63, p. 237-280, 2002b. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/10810/1/Para%20uma%20sociologia%20das%20aus%C3%AAncias.pdf>. Acesso em: 02 set. 2017.; 2007) para identificar o que emerge na diversidade de experiências, globais, nacionais e locais, como resposta à epidemia de HIV/Aids, com o recorte sobre as análises e reflexões produzidas no referido estudo sobre a Prevenção Combinada.

Percurso metodológico

Tratou-se de pesquisa com abordagem qualitativa realizada para compor tese de doutorado em Saúde Coletiva, cujo objetivo geral foi conhecer e analisar experiências de pessoas que vivenciam a epidemia HIV/Aids no contexto de adoção de estratégias terapêuticas para alcançar metas nacionais e internacionais de erradicação de novos casos até 2030.

Na referida tese (LUCAS, 2018LUCAS, M. C. V. De onde vem para onde vai SIDA? Caminhos possíveis para erradicação do HIV a partir do tempo presente. 2018. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.), apresentamos o trabalho de tradução de práticas que abrange diálogo entre a narrativa oficial, global e nacional, sobre a erradicação da epidemia de HIV/Aids até 2030, e narrativas de profissionais e usuários da saúde que vivem e convivem com o HIV/Aids no seu cotidiano. Foram adotadas duas estratégias metodológicas centrais: entrevistas e pesquisa documental. O estudo ocorreu entre os anos de 2016 e 2018.

As entrevistas foram realizadas com foco em histórias de vida, na perspectiva da história oral temática a partir das quais elaboramos uma versão da história mais complexa, compondo um texto polifônico (ACEVES, 1999ACEVES, J. Un enfoque metodológico de las histórias de vida. En Proposiciones, Santiago de Chile, v. 29, 1999.; SALTALAMACCHIA, 1992SALTALAMACCHIA, H. La historia de vida: reflexiones a partir de una experiencia de investigación. Costa Rica: Cijup, 1992.), com objetivo de conhecer a experiência dos sujeitos que vivem com HIV e daqueles que atuam no cuidado dessas pessoas, para compreender como vivem com a doença e convivem com a epidemia diante da perspectiva global de erradicação da mesma. Na realização das entrevistas, participaram cinco profissionais de saúde e quatro usuários (Figura 1).

Figura 1
Descrição de informações das pessoas entrevistadas e temas comuns identificados entre usuários e profissionais

A análise documental foi realizada a partir de documentos produzidos pelo Sistema ONU que tratam da política global de enfrentamento da epidemia no período de 2000 a 2016, totalizando 26 documentos. Foram explorados também documentos oficiais sobre a Política Brasileira de Controle e Erradicação da epidemia, no período de 1999 a 2016, e os Boletins Epidemiológicos de HIV/Aids, entre 2001 e 2016, somando 24 documentos.

A interpretação documental constitui-se em análise do conteúdo para determinação de unidades de análise, de registro e de contexto, de eleição de categorias e de elaboração do quadro de dados (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDA, C. D.; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Rev. Bras. Hist. Ciênc. Soc., ano 1, n. 1, p. 1-15, 2009.).

A aproximação que estabelecemos com os procedimentos da sociologia das emergências e do trabalho de tradução possibilitou-nos identificar nos discursos global, nacional e local as divergências sobre o futuro da epidemia de HIV/Aids e, sobretudo, as motivações convergentes para o seu enfrentamento e erradicação.

A pesquisa seguiu as recomendações do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com parecer de aprovação número 1.908.896, de 02 de fevereiro de 2017.

Um novo olhar sobre o problema a partir do desassossego

Durante a pesquisa, após a primeira aproximação com os discursos globais, nacionais e com as entrevistas realizadas foi possível perceber uma sintonia entre os discursos oficiais e uma divergência quase unânime entre estes e as narrativas dos atores locais sobre o presente e o futuro da epidemia.

Foi no caminho dessa inquietação que me reencontrei com Boaventura de Sousa Santos, em sua obra “A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência”, um guia, não para obter sossego nesse percurso metodológico, mas para apelar para aquilo que o autor chama de “racionalidade ativa”, que, desinstalada de certezas paradigmáticas, é inquieta e movida por um desassossego que deve ser por ela potencializado (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.).

A aids é considerada uma doença da modernidade e, portanto, sujeita às suas formulações e estratégias. Grandes promessas da modernidade permanecem não cumpridas e, em alguns casos, redundaram em efeitos perversos evidenciados nas violações recorrentes dos direitos humanos, entre eles a violência sexual contra mulheres, a discriminação contra usuários de drogas, portadores de HIV e homossexuais (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.).

Para Santos (2002a) a ciência moderna alcançou uma grande capacidade de agir que não encontrou correspondência na capacidade de prever as consequências das suas ações e, hoje, é muito comum aplicar o conhecimento produzido escapando às suas consequências.

“Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla do tempo entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não nasceu” (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a. p. 41). Vivemos em uma sociedade de transição paradigmática e que nesse momento de transição, na emergência de novos paradigmas, a razão criticada é a indolente, ou preguiçosa, e ocorre por duas vias, a razão inerte e a razão displicente. Em uma fase de transição paradigmática, as experiências fundadas na razão indolente são particularmente limitadas, correspondendo também a um grande desperdício de experiência (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.).

A razão cosmopolita é apresentada pelo autor como uma crítica à razão indolente, essa última correspondente ao modelo de racionalidade ocidental. Nessa razão cosmopolita são três os procedimentos sociológicos que constituem um modelo de pesquisa sociológica: (1) sociologia das ausências, (2) sociologia das emergências e (3) trabalho de tradução. A proposta da sociologia das ausências é expandir o presente e a da sociologia das emergências é contrair o futuro (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.).

Pensando o trabalho de tradução a partir da sociologia das emergências

Na pesquisa, adotamos o procedimento da sociologia das emergências (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.) que é a investigação das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas, juntando ao real, que é amplo, possibilidades e expectativas futuras que ele comporta. Uma análise do presente que se projeta para uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências de futuro. Ela possui dois objetivos: (1) conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança e (2) definir princípios de ação que promovam a realização dessas condições.

O Trabalho de Tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, as disponíveis e as possíveis, que a sociologia das emergências revela. O trabalho de tradução incide sobre os saberes, sobre as práticas e sobre os seus agentes. Quando incide sobre as práticas, a tradução visa criar inteligibilidade recíproca entre formas de organização e entre objetivos de ação. O trabalho de tradução visa esclarecer o que une e o que separa os diferentes movimentos e as diferentes práticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulação ou agregação a partir de baixo, a única alternativa possível a uma agregação a partir de cima, imposta por uma grande teoria ou por um ator social privilegiado (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.).

Segundo Santos (2002a), as condições e procedimentos do trabalho de tradução são elucidados a partir das respostas às seguintes questões: (1) O que traduzir? (2) Entre quê? (3) Quem traduz? (4) Quando traduzir? (5) Como Traduzir? cuja adaptação realizada para esta pesquisa está demonstrada no Quadro 01.

Quadro 1
Questões para os procedimentos de tradução descritas por Santos (2002a) e na pesquisa desenvolvida por Lucas (2018).

A ecologia de saberes como aporte epistemológico do trabalho de tradução

O conhecimento alcançado pelas pesquisas científicas sobre o HIV e a aids é de grande importância para a sociedade, quanto a isso parece não haver divergência. No entanto, o conhecimento da ciência moderna relativiza a força dos conhecimentos que com ela se confrontam, ou rivalizam. Assim, para fortalecer a possibilidade de diversidade e pluralidades de saberes, Santos (2008) propõe uma ecologia de saberes, cuja reflexão epistemológica ocorre no âmbito das práticas de conhecimento e na repercussão destas em outras práticas sociais. Nessa abordagem, a ecologia de saberes se apresenta como uma “ecologia de práticas de saberes”. É próprio da ecologia de saberes o surgimento de perguntas constantes e de respostas incompletas, em favor de um conhecimento prudente (SANTOS, 2007SANTOS, B.S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo, n. 79, 2007, http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004).

A ecologia de saberes:

[...] procura dar consistência epistemológica ao saber propositivo. Trata-se de uma ecologia porque assenta no reconhecimento da pluralidade de saberes heterogêneos, da autonomia de cada um deles e da articulação sistêmica, dinâmica e horizontal entre eles (SANTOS, 2007SANTOS, B.S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo, n. 79, 2007, http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004, p. 157).

Apostamos no fato de que um futuro melhor não é parte de um plano, ou meta, localizado em um futuro distante, mas sim na reinvenção do presente. Propomos ampliar essas possibilidades através da sociologia das emergências e torná-lo coerente pelo trabalho de tradução, que permite criar sentidos concretos ao cruzar motivações convergentes entre as diferentes narrativas, de uma maneira ecológica, para fazer emergir diferentes práticas de saberes.

Resultados

Considerações sobre a política global de combate à aids

A Declaração de Compromisso na luta contra o HIV/Aids de 2001 (ONU, 2001ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração de compromisso sobre o VIH/Sida: sessão extraordinária da assembleia geral sobre VIH/SIDA. 2001. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_compromisso.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declara...
) é considerada um marco histórico dos esforços mundiais contra a crise gerada pela epidemia de aids. Na sequência da Declaração de 2001, foram emitidas outras declarações, com intervalo de cinco anos entre cada uma: (I) Declaração de Compromisso na luta contra o HIV/Aids: cinco anos depois, de 2006; (II) Declaração Política sobre o HIV/Aids: intensificação do nosso esforço para eliminar o HIV e a aids, de 2011; e a (III) Declaração Política sobre HIV e AIDS: acelerar a resposta para lutar contra o HIV e acabar com a epidemia de AIDS até 2030, de 2016. Tais Declarações atualizam dados sobre a epidemia e a atenção às pessoas em relação ao HIV e à aids e renovam recomendações e metas frente às transformações no contexto da pandemia (ONU, 2006ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Asamblea General. Declaración de compromiso en la lucha contra el VIH/Sida: cinco años después. 2006. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/sub_landing/files/20060324_sgreport_ga_a60737_es.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.unaids.org/sites/default/file...
; 2011, 2016).

Na análise documental, identificou-se que desde a Declaração de 2001, o sucesso obtido no desenvolvimento de ferramentas de prevenção, de tratamento e de apoio às pessoas que vivem com HIV e aids, o aumento no conhecimento sobre a dinâmica da epidemia e a mobilização frente à epidemia geraram respostas tecnicamente mais embasadas e aceitas mundialmente. Outro ganho de importância fundamental para avançar no controle e erradicação da epidemia foi o aumento no acesso ao tratamento, ao diagnóstico e ao monitoramento, que se encontram em um estágio de maior eficiência e mais manejáveis, assim como a diversificação das estratégias preventivas, com destaque para a Prevenção Combinada e o Tratamento como Prevenção (TcP) bastante enfatizados nos documentos mais recentes (UNAIDS, 2014; 2015; ONUSIDA, 2010PROGRAMA CONJUNTO DE LAS NACIONES UNIDAS SOBRE EL VIH/SIDA (ONUSIDA). Llegar a cero: estrategia del programa conjunto de las Naciones Unidas sobre el VIH y el sida (ONISIDA) para 2011-2015. 2010. Disponível em: <http://www.unaids.org/es/resources/documents/2010/20101221_JC2034_UNAIDS_Strategy>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.unaids.org/es/resources/docum...
; ONU, 2011ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Asamblea General. 65/277: Declaración política sobre el vih y el sida: intensificación de nuestro esfuerzo para eliminar el VIH y el Sida. 2011. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/sub_landing/files/20110610_UN_A-RES-65-277_es.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.unaids.org/sites/default/file...
; OMS, 2016ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). Estrategia mundial del sector de la salud contra el VIH 2016-2021. 2016. Disponível em: <http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021/ghss-hiv/es/>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021...
).

Tais avanços culminaram na redução da mortalidade decorrente do HIV/Aids, da transmissão vertical, das novas infecções e no aumento da expectativa de vida das pessoas diagnosticadas com HIV. A infecção pelo HIV alcança o contexto de uma doença crônica, tratável, passível de controle e até mesmo possibilitado o estabelecimento de uma meta ousada de erradicação da epidemia (UNAIDS, 2017aUNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). HIV Prevention 2020 Road Map. 2017a. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf. Acesso em: 05 abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
).

A análise documental demonstrou que as situações que aumentam a vulnerabilidade das pessoas ao HIV, o isolamento das ações e programas, o modelo biomédico de atenção, as iniquidades no acesso aos serviços de saúde e de suporte social, a crise financeira mundial, e a persistência de posturas de preconceito e discriminação relacionados ao HIV, não foram suficientemente superados para promover uma maior inclusão das pessoas HIV positivas e das populações-chave nas políticas sociais e de saúde. Tais questões impedem sucessivamente o alcance de metas estabelecidas mundialmente, que, uma vez alcançadas, possibilitariam uma resposta rumo à erradicação da epidemia.

Mesmo ao propor a meta de erradicação da epidemia até 2030, a Declaração de 2016 e os documentos que tratam dessa meta e das metas para 2020 (ONU, 2016; OMS, 2016ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). Estrategia mundial del sector de la salud contra el VIH 2016-2021. 2016. Disponível em: <http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021/ghss-hiv/es/>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021...
; UNAIDS, 2017aUNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). HIV Prevention 2020 Road Map. 2017a. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf. Acesso em: 05 abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
; 2016UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Fast-track ending the aids epidemic by 2030. 2014. Disponível em: <http://www.unaids.org/en/resources/documents/2014/JC2686_WAD2014report>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.unaids.org/en/resources/docum...
; 2015; 2014) levantam questões referentes ao risco de retomada epidêmica, às lacunas nunca superadas relativas à inconsistência das ações de prevenção no que se refere à população jovem, à permanência dos HSH, das profissionais do sexo e dos usuários de drogas injetáveis como populações mais vulneráveis e à concentração da epidemia em países de média e baixa renda. Destacam ainda resistência microbiana como questão importante que já repercute na resposta ao tratamento, além da crise iminente de acesso e disponibilidade de medicamentos.

Identificamos nesse estudo que a aposta que se delineia desde a Declaração de 2001, que se confirma na Declaração de 2016 e nos documentos estratégicos que tratam da resposta à epidemia rumo às metas de 2020 e 2030, é na expansão da cobertura das ações de enfrentamento da epidemia, incorporando os programas de HIV/Aids à Atenção Primária em Saúde (APS) e nos diversos equipamentos comunitários. Desse modo, para atingir a meta 90-90-90 frente à diversidade de epidemias existentes, as comunidades terão de estar no centro da resposta (UNAIDS, 2017aUNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). HIV Prevention 2020 Road Map. 2017a. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf. Acesso em: 05 abr. 2018.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
).

Reflexões sobre a Política Brasileira de Enfrentamento do HIV/Aids

Passadas mais de duas décadas desde a elaboração da Política Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde (BRASIL, 1999BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Política nacional de DST/Aids princípios, diretrizes e estratégias. Brasília: Secretaria de Políticas de Saúde, 1999.), é possível identificar na terceira década da epidemia que as expectativas de feminização e heterossexualização não se concretizaram conforme projeções dos primeiros anos da década de 2000, caracterizando-se atualmente como uma epidemia concentrada em populações de maior vulnerabilidade, com destaque para a população jovem (15 a 24 anos) (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico Aids, ano 8, n. 1. 2011. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/es/node/64626>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.aids.gov.br/es/node/64626...
; 2014a, 2015a).

A Política Nacional amplia suas ações e define suas diretrizes, tomando a Atenção Básica como coordenadora do cuidado, com objetivo de expandir a oferta do diagnóstico, do tratamento e de estratégias preventivas na perspectiva da prevenção combinada (BRASIL, 2015aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemilógico Aids, ano 4, n. 1. 2015a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/boletim-epidemiologico-hivaids-2015>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/bo...
). A expansão do tratamento para adultos com diagnóstico positivo para HIV (Estratégia “Testar e Tratar”) impulsiona o tratamento das pessoas vivendo com HIV na Atenção Básica e a diversificação das tecnologias e pontos de atenção que realizam diagnóstico do HIV, incluindo as testagens realizadas por Organizações Não Governamentais com foco nas populações-chave (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em adultos. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.).

O Brasil adotou a Mandala da Prevenção Combinada como referência das estratégias preventivas, com indicação de práticas de sexo seguro (uso de preservativos feminino e masculino), testagem regular de HIV, testagem no pré-natal, adesão ao tratamento antirretroviral, redução de danos, diagnóstico e tratamento das IST, profilaxia pós-exposição (PEP) e Profilaxia Pré-Exposição (BENZAKEN, 2016BENZAKEN, A. S. Diretrizes atuais da resposta brasileira à aids: situação epidemiológica do HIV/Aids. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. Disponível: <http://www.aids.gov.br/system/tdf/pub/2016/62998/dra_adele_benzaken_diretrizes_atuais_da_resposta_b_80915.pdf?file=1&type=node&id=62998&force=1>. Acesso em: 17 jun. 2017.).

O Brasil adota as metas estabelecidas em âmbito global para 2020 e 2030. No contexto da meta 90-90-90, o Monitoramento Clínico empreende uma nova era na resposta brasileira frente à epidemia de HIV/Aids, que toma como base o impacto da estratégia “Testar e Tratar”, mas que não incorpora com a mesma relevância o monitoramento das ações de prevenção de cunho comportamental e estrutural, que expressa lacuna importante na expansão das ações de prevenção em perspectiva integral, para além do TcP (BRASIL, 2014aBRASIL. Ministério da Saúde. 5 passos para a implementação do manejo da infecção pelo HIV na atenção básica: guia para gestores. 2014a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2014/5-passos-para-implementacao-do-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-na-atencao-basica>. Acesso em: 17 jun. 2017.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2014/5-...
; 2015a; 2016ª).

Experiências e expectativas das pessoas que vivem e convivem com HIV/Aids

O exercício interpretativo das narrativas de profissionais e usuários entrevistados, durante a pesquisa aqui relatada (LUCAS, 2018LUCAS, M. C. V. De onde vem para onde vai SIDA? Caminhos possíveis para erradicação do HIV a partir do tempo presente. 2018. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.), foi produzido buscando uma construção textual polifônica para dar visibilidade às experiências das pessoas que vivem e convivem com HIV/Aids, as suas diversas perspectivas e as suas expectativas de futuro no que se refere à meta de erradicação da epidemia até 2030.

Inspiramo-nos em Santos (2007), buscamos abranger a valorização de intervenções no real que não somente àquelas tornadas possíveis pela produtividade tecnológica da ciência moderna. Identificamos três questões comuns nas experiências narradas por profissionais e usuários quanto suas expectativas em relação à meta de erradicação da epidemia de HIV até 2030: (1) a experiência relacionada ao modelo de cuidado ao HIV e à aids; (2) a experiência relacionada ao estigma e ao preconceito; e (3) as expectativas das pessoas sobre a erradicação da epidemia a partir da experiência de viver e conviver com o HIV/Aids.

As experiências dos profissionais e usuários em relação ao cuidado dão pistas sobre os modos como foi construído o modelo de atenção ao HIV/Aids numa perspectiva local, e como esse modelo tem contribuído para o enfrentamento da epidemia.

Os profissionais relatam que a atenção à aids se inicia no ambiente hospitalar. Depois do isolamento do agente etiológico da doença e a partir da disponibilidade do medicamento para controlar a infecção pelo HIV, a atenção à pessoa vivendo com HIV/Aids continua a orbitar em torno do hospital, mas já se delineiam ações para a organização das ações no contexto ambulatorial especializado, estabelecendo um novo desafio: a expansão do acesso às ações de controle do agravo.

A dificuldade atual de acesso às ações de saúde é relatada, tanto por profissionais quanto usuários, como questões inerentes às dificuldades gerais da rede e relacionadas ao “boom” do tratamento, a partir da estratégia TcP, e dificuldades de acesso aos serviços para obter informações e apoio para intercorrências decorrentes da nova estratégia “Testar e Tratar”. Suas falas sinalizam piora na atenção à saúde das pessoas vivendo com HIV e relacionam algumas questões à demanda crescente de atendimento e internação dessas pessoas aliado a um esvaziamento gradativo das ações preventivas realizadas pelos serviços de saúde, aquelas de caráter intersetorial, como as parcerias com a educação, e as ações desenvolvidas pelas organizações não governamentais.

A proposta de descentralização do cuidado às pessoas vivendo com HIV para a atenção básica, que pretende alterar o modelo centrado na atenção ambulatorial especializada, aparece nas narrativas dos profissionais como desconfiança da capacidade daquele nível de atenção para realizar o cuidado a essas pessoas. Nesse sentido, alega-se que o manejo do tratamento poderá ser inadequado, dado o conjunto de efeitos colaterais desencadeados pelo uso de medicamento que carecem de controle laboratorial contínuo e apoio especializado, deficientes na rede de saúde como um todo.

Outros aspectos identificados nas narrativas são o preconceito e o estigma que marcaram intensamente a atenção às pessoas vivendo com HIV/Aids de maneiras variadas, no campo da saúde e, de uma maneira mais ampla, no campo social. No âmbito dos serviços de saúde, as falas apontam que, desde o início da epidemia, há recusa de profissionais em atenderem essas pessoas para ações de saúde bucal, cirurgia e até mesmo de atendimentos realizados pelos infectologistas, atitudes que persistem até hoje, mesmo com todo o conhecimento atual sobre biossegurança e sobre o HIV.

No campo social, persiste o medo da revelação para a sociedade em geral, principalmente amigos e parentes. Nesse sentido, manter-se saudável é condição para preservar o segredo sobre sua condição de pessoa vivendo com HIV, situação narrada por um dos entrevistados. Esse medo tem consequências na própria descentralização do cuidado para a Atenção Básica pelo fato de que o usuário não querer se identificar na sua comunidade como portador do HIV e temer ter o seu diagnóstico revelado.

A expectativa das pessoas entrevistadas em relação ao futuro da epidemia não se alinha com as metas propostas pelo Sistema ONU, sob a alegação de que as condições sociais das pessoas vivendo com HIV/Aids e, mais especificamente, as condições da rede de saúde, tornam o alcance das metas inviável.

A prevenção aparece como preocupação recorrente dos entrevistados a partir de diferentes abordagens, mas sempre numa perspectiva de que se vivencia redução e inadequação das atividades preventivas no atual contexto da epidemia, identificada como uma importante contribuição para o seu crescimento em âmbito local. As narrativas dos usuários identificam lacunas na prevenção relacionadas às campanhas de testagem, à disponibilidade de camisinha feminina e à própria prevenção realizada pelas organizações não governamentais.

Dentro da abordagem da prevenção, as estratégias de uso do preservativo, da PEP e da PrEP foram referidas por profissionais e usuários como recursos que usados isoladamente não funcionam, apontando a necessidade de articulação entre as estratégias de diagnóstico, tratamento e prevenção de uma forma efetiva como possibilidade de alcance das metas propostas.

As experiências narradas pelas pessoas entrevistadas indicam que o conhecimento construído sobre a aids culminou com a consolidação de um modelo de cuidado centrado no desenvolvimento de um conjunto de recursos tecnológicos e não nas pessoas. Tal modelo tem sido implantado com dificuldades de ordem estrutural do setor saúde e de ordem social. Além disso, estigma e preconceito ainda persistem e acarretam consequências negativas no acesso das pessoas às conquistas tecnológicas disponíveis, inviabilizando o alcance das metas propostas para 2020 e 2030.

A tradução entre práticas de Prevenção Combinada

Para recuperar e articular argumentações, no sentido de disputar discursos e incidir sobre abordagens tecnológicas, políticas e sociais em resposta à epidemia de HIV/Aids, propomos o diálogo entre saberes relativos ao HIV/Aids que operam em diferentes perspectivas. Para isso recorremos aos conceitos de Prevenção Combinada abordados na lógica de múltiplos atores: governamental, não governamental e local (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2017.; UNAIDS, 2010UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Combination HIV prevention: tailoring and coordinating biomedical, behavioural and structural strategies to reduce new HIV infections. A UNAIDS Discussion paper. 2010. Disponível em: <http://files.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/unaidspublication/2010/JC2007_Combination_Prevention_paper_en.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2018.
http://files.unaids.org/en/media/unaids/...
; 2017bUNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Prevenção combinada do HIV. 2017b. Disponível em: <https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2017/08/2017_08_15_preven%C3%A7%C3%A3o_combinada_FINAL.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2018
https://unaids.org.br/wp-content/uploads...
; ABIA, 2014ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ABIA). Prevenção Combinada: Barreiras ao HIV. Rio de Janeiro: ABIA, 2014.), e ao de Pedagogia da Prevenção desenvolvida por entidades não governamentais (GAVIGAN et al., 2015).

Iniciamos essa articulação resgatando a afirmação presente nas narrativas dos profissionais e usuários sobre a necessidade de fortalecer e resgatar as ações e programas de prevenção, como condição para controle e erradicação da epidemia de HIV e sobre a compreensão de que as tecnologias “mais antigas” de prevenção devem ser utilizadas de forma combinada com as “novas tecnologias”, o que nos remete à estratégia de Prevenção Combinada adotada pelo UNAIDS, pelo governo brasileiro e trabalhada no âmbito da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA).

Em 2010, o UNAIDS lançou o documento intitulado “Combination HIV Prevention: Tailoring and Coordinating Biomedical, Behavioural and Structural Strategies to Reduce New HIV Infections” no qual afirma que a prevenção combinada trata de:

Programas baseados em direitos, informados por evidências e controlados por comunidades que usam um conjunto de intervenções biomédicas, comportamentais e estruturais priorizadas para atender as necessidades atuais de prevenção de HIV de indivíduos e de comunidades, no intuito de ter o maior impacto sustentado na redução de novas infecções (UNAIDS, 2010UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Combination HIV prevention: tailoring and coordinating biomedical, behavioural and structural strategies to reduce new HIV infections. A UNAIDS Discussion paper. 2010. Disponível em: <http://files.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/unaidspublication/2010/JC2007_Combination_Prevention_paper_en.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2018.
http://files.unaids.org/en/media/unaids/...
p. 8).

O documento afirma que o HIV continua a ser uma prioridade de saúde global urgente, que embora haja disponibilidade de grande variedade de ferramentas de prevenção de eficácia comprovada, elas estão desconectadas e sem metas claras, desarticuladas de outros programas intra e intersetoriais, possuem baixo investimento, sem sistemas de planejamento, acompanhamento e avaliação das ações e a maioria das respostas à epidemia não priorizam as populações sob maior risco de infecção.

O Ministério da Saúde (MS) define “Prevenção Combinada do HIV” como:

[...] uma estratégia de prevenção que faz uso combinado de intervenções biomédicas, comportamentais e estruturais aplicadas no nível dos indivíduos, de suas relações e dos grupos sociais a que pertencem, mediante ações que levem em consideração suas necessidades e especificidades e as formas de transmissão do vírus (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2017., p. 18).

No Brasil, a Prevenção Combinada incorpora estratégias de prevenção identificadas como “novas tecnologias de prevenção” que surgiram nos últimos anos, principalmente aquelas estruturadas a partir dos ARV, e se estrutura a partir das abordagens indicadas pelo UNAIDS (biomédica, comportamental e estrutural) considerando as singularidades dos sujeitos e as especificidades do meio em que habitam (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2017.).

O MS adota uma representação gráfica da Prevenção Combinada por meio de "mandala", indicando a ideia de integração entre as estratégias disponíveis para prevenção do HIV (Figura 2).

Figura 2
Mandala da Prevenção Combinada

Anteriormente à publicação sobre prevenção combinada do Ministério da Saúde, em 2014, a ABIA lançou a cartilha Prevenção Combinada: barreiras ao HIV 27. Nela a Prevenção Combinada é associada “com uma série de métodos de barreira que podem ser utilizados em conjunto ou individualmente para que as pessoas tenham menor risco de contrair o vírus da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS) em suas práticas sexuais” (ABIA, 2014ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ABIA). Prevenção Combinada: Barreiras ao HIV. Rio de Janeiro: ABIA, 2014., p. 6). Ela apresenta um recorte da Prevenção Combinada que abrange exclusivamente as práticas sexuais e as estratégias de prevenção a elas associadas.

A ABIA (2014) afirma que os novos métodos de prevenção recentemente descobertos e de eficácia comprovada trazem novas possibilidades para o campo da prevenção, somando-se ao uso do preservativo, método de barreira mais eficaz para a prevenção do HIV que não pode continuar como a única ferramenta para se prevenir da infecção pelo HIV durante as relações sexuais, o que está em consonância com as narrativas de profissionais e usuários entrevistados, e os documentos nacionais e internacionais sobre o tema.

No documento intitulado Pedagogia da Prevenção (GAVIGAN, 2015GAVIGAN, K. et al. Pedagogia da Prevenção: Reinventando a prevenção do HIV no século XXI. Perspectiva política, v. 1, p. 3-15, 2015. Disponível em: http://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2015/11/PolicyBrief_portugues_jan2016.pdf. Acesso em: 05 Abr. 2018.) são destacadas diversas práticas sexuais com possiblidade de combinação: abstinência sexual, posicionamento estratégico (assumir papéis sexuais que potencialmente envolvem menos risco de transmissão tais como praticar apenas sexo oral ou apenas sexo anal insertivo), serosorting (escolha de parceiros com conhecimento do estado sorológico para praticar sexo com indivíduos que possuem o mesmo estado sorológico), segurança negociada (pacto entre parceiros sobre quais práticas sexuais são permitidas dentro e fora do relacionamento), sexo com parceiros exclusivos e sexo anal ou vaginal sem troca de fluidos corporais. Ressalta-se que essas práticas têm limitações quanto à efetividade, mas também podem reduzir algum nível de risco.

Sistematizamos as informações descritas nos diferentes documentos produzidos pelo (UNAIDS 2010; BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2017.; ABIA, 2014ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ABIA). Prevenção Combinada: Barreiras ao HIV. Rio de Janeiro: ABIA, 2014.) para identificar ações, estratégias e insumos associados às intervenções biomédica, comportamental e estrutural propostas na prevenção combinada no Quadro 2. A partir deste, foi elaborada a Mandala Ecológica de Prevenção Combinada (Figura 2) que permitiu identificar as convergências e divergências entre as propostas, contemplando ainda as estratégias de prevenção identificadas pelos usuários e profissionais de saúde: camisinha, feminina e masculina; PEP, PreP, ações educativas intersetoriais, campanhas de mídia e ações sobre saúde sexual e reprodutiva.

Quadro 2
Ações, estratégias e insumos associados às intervenções no âmbito da prevenção combinada

A Mandala Ecológica de Prevenção Combinada

A partir da ecologia de saberes, identificamos os limites do modelo de prevenção combinada proposto na Mandala do MS que tem abordagem restrita com forte determinação das estratégias biomédicas em relação às comportamentais e estruturais, inclusive pouco aparentes na imagem.

O êxito técnico dos ARV orienta um processo de medicalização da prevenção que reporta à afirmação de Arouca (1975)AROUCA, A. S. S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. 1975. 197f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) – UNICAMP, Campinas, 1975. Disponível em: <https://teses.icict.fiocruz.br/pdf/aroucaass.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2018. de que essa é uma das características da medicina contemporânea, a partir da qual se amplia cada vez mais o espaço de controle sobre a vida e o cotidiano das pessoas. A produção do cuidado cria um modo de consumo de cuidados preventivos sob influência do setor industrial, que produz tecnologias que passam a ser incorporadas como práticas preventivas.

Entendemos que tal incorporação tecnológica na prevenção biomédica do HIV sobrepuja a relevância das intervenções comportamentais e estruturais na redução da incidência da infecção, e é questionada pelos usuários e profissionais principalmente em relação à estrutura dos serviços de saúde e às ações intersetoriais.

Seffner e Parker (2016) alertam que, ao mesmo tempo em que os avanços na terapêutica do HIV/Aids devem ser saudados com entusiasmo, podem também produzir estreitamento da resposta nacional que, aliada à atuação das forças conservadoras, pode caracterizar uma nova fase marcada pela compreensão biomédica da doença.

Nesse sentido, apontamos a necessidade da construção de uma nova imagem do modelo de Prevenção Combinada, contemplando a diversidade de intervenções e práticas potenciais no campo da prevenção mencionadas nos discursos de diferentes atores institucionais e corroboradas pelas falas sobre prevenção nas narrativas das pessoas entrevistadas.

A construção da Mandala Ecológica de Prevenção Combinada se inspirou no referencial de Santos (2007) sobre a ecologia de saberes e, dessa forma, é fruto de um inconformismo frente a uma carência que tem possibilidades de satisfação factíveis, é fundada em um processo de conhecimento aberto, constantemente em criação e renovação, portanto, reconhecidamente provisório (SANTOS, 2002aSANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.; 2007SANTOS, B.S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.), buscando a ampliação simbólica de saberes, de práticas e dos agentes envolvidos no cuidado com o HIV.

O objetivo dessa nova Mandala (Figura 3) é expressar a viabilidade de ofertar e garantir um conjunto de intervenções biomédicas, comportamentais e estruturais para prevenção do HIV, passíveis de combinação, para promover a redução de vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas com base nos direitos humanos e centrados nas pessoas e nas comunidades.

Figura 3
Mandala Ecológica de Prevenção Combinada

Nessa proposta de Mandala entram para o cenário da prevenção combinada: (1) as pessoas que compartilham o cuidado para se juntar às pessoas as quais o cuidado se destina, independente da condição sorológica; (2) as estratégias de prevenção comportamentais, biomédicas e estruturais em uma perspectiva horizontal e diretamente vinculadas aos atores; (3) as estratégias comportamentais englobando o detalhamento de práticas sexuais, para ampliar o debate e a viabilidade sobre elas no cotidiano das pessoas, dos serviços e das comunidades; (4) as intervenções de base comunitárias e de abordagem intersetorial para se integrarem ao elenco de intervenções estruturais disponíveis, tendo em vista a imensa gama de experiências que se desenvolvem no território e que são ignoradas como estratégias não científicas de prevenção.

A Mandala Ecológica da Prevenção Combinada emergiu como necessidade de dar visibilidade ao “real suprimido” que se encontra escondido no “real dado” e, ao incorporar a noção ampliada de prevenção, possibilitar compartilhar conhecimento e influenciar práticas. Ao mesmo tempo ela tem sentido de contribuir para responder às perguntas sobre a viabilidade das metas de erradicação da epidemia de HIV/Aids, mesmo conscientes da incompletude e incerteza da proposta.

Conclusão

As narrativas oficiais dos atores globais e nacionais e dos atores locais sobre a perspectiva de controle e erradicação da epidemia de HIV/Aids possibilitaram dar visibilidade à diversidade e pluralidades de saberes, permitindo identificar em nível local a insuficiência da imagem associada à prevenção combinada apresentada pelo Ministério da Saúde.

Seguindo as trilhas da ecologia dos saberes, como contribuição do presente para a erradicação futura da epidemia, apostamos na proposição de uma nova imagem de mandala com potencial de conciliação entre os diversos saberes para contemplar as práticas recomendadas pelos diferentes atores e as tecnologias desenvolvidas em âmbito comunitário, trazendo a comunidade e as pessoas para o centro da resposta ao HIV.

Desse modo, esperamos contribuir para a efetivação e ampliação do diálogo entre diferentes saberes, a partir de um exercício imaginativo para reinventar o presente, mais que projetar um futuro.

Referências

  • ACEVES, J. Un enfoque metodológico de las histórias de vida. En Proposiciones, Santiago de Chile, v. 29, 1999.
  • AROUCA, A. S. S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. 1975. 197f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) – UNICAMP, Campinas, 1975. Disponível em: <https://teses.icict.fiocruz.br/pdf/aroucaass.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2018.
  • ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS (ABIA). Prevenção Combinada: Barreiras ao HIV. Rio de Janeiro: ABIA, 2014.
  • BENZAKEN, A. S. Diretrizes atuais da resposta brasileira à aids: situação epidemiológica do HIV/Aids. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. Disponível: <http://www.aids.gov.br/system/tdf/pub/2016/62998/dra_adele_benzaken_diretrizes_atuais_da_resposta_b_80915.pdf?file=1&type=node&id=62998&force=1>. Acesso em: 17 jun. 2017.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pré-exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV. Brasília-DF: Ministério da Saúde, 2018.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção Combinada do HIV/Bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2017.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico Aids, ano 5, n. 1, 2016a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/boletim-epidemiologico-de-aids-2016>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/boletim-epidemiologico-de-aids-2016
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Relatório de monitoramento clínico do HIV. Brasília: Ministério da Saúde, 2016b. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/es/node/59424>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.aids.gov.br/es/node/59424
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemilógico Aids, ano 4, n. 1. 2015a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/boletim-epidemiologico-hivaids-2015>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2015/boletim-epidemiologico-hivaids-2015
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Cuidado integral às pessoas que vivem com HIV pela atenção básica: manual para a equipe multiprofissional. Brasília: Ministério da Saúde, 2015b.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. 5 passos para a implementação do manejo da infecção pelo HIV na atenção básica: guia para gestores. 2014a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2014/5-passos-para-implementacao-do-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-na-atencao-basica>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2014/5-passos-para-implementacao-do-manejo-da-infeccao-pelo-hiv-na-atencao-basica
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em adultos. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico Aids, ano 8, n. 1. 2011. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/es/node/64626>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.aids.gov.br/es/node/64626
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Política nacional de DST/Aids princípios, diretrizes e estratégias. Brasília: Secretaria de Políticas de Saúde, 1999.
  • GAVIGAN, K. et al. Pedagogia da Prevenção: Reinventando a prevenção do HIV no século XXI. Perspectiva política, v. 1, p. 3-15, 2015. Disponível em: http://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2015/11/PolicyBrief_portugues_jan2016.pdf. Acesso em: 05 Abr. 2018.
  • GRANJEIRO, A. Da estabilização à reemergência: os desafios para o enfrentamento da epidemia de HIV/Aids no Brasil. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS. Mito vs realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids em 2016. Rio de Janeiro: ABIA, 2016.
  • LUCAS, M. C. V. De onde vem para onde vai SIDA? Caminhos possíveis para erradicação do HIV a partir do tempo presente. 2018. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração política sobre HIV e Aids: acelerar a resposta para lutar contra o HIV e acabar com a epidemia de AIDS até 2030. 2016. Disponível em: <http://unaids.org.br/wp-content/uploads/2016/11/2016_Declaracao_Politica_HIVAIDS.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://unaids.org.br/wp-content/uploads/2016/11/2016_Declaracao_Politica_HIVAIDS.pdf
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Asamblea General. 65/277: Declaración política sobre el vih y el sida: intensificación de nuestro esfuerzo para eliminar el VIH y el Sida. 2011. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/sub_landing/files/20110610_UN_A-RES-65-277_es.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.unaids.org/sites/default/files/sub_landing/files/20110610_UN_A-RES-65-277_es.pdf
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Asamblea General. Declaración de compromiso en la lucha contra el VIH/Sida: cinco años después. 2006. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/sub_landing/files/20060324_sgreport_ga_a60737_es.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.unaids.org/sites/default/files/sub_landing/files/20060324_sgreport_ga_a60737_es.pdf
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração de compromisso sobre o VIH/Sida: sessão extraordinária da assembleia geral sobre VIH/SIDA. 2001. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_compromisso.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_compromisso.pdf
  • ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). Estrategia mundial del sector de la salud contra el VIH 2016-2021. 2016. Disponível em: <http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021/ghss-hiv/es/>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.who.int/hiv/strategy2016-2021/ghss-hiv/es/
  • PARKER, R. O fim da Aids? Rio de Janeiro: ABIA, 2015.
  • PROGRAMA CONJUNTO DE LAS NACIONES UNIDAS SOBRE EL VIH/SIDA (ONUSIDA). Llegar a cero: estrategia del programa conjunto de las Naciones Unidas sobre el VIH y el sida (ONISIDA) para 2011-2015. 2010. Disponível em: <http://www.unaids.org/es/resources/documents/2010/20101221_JC2034_UNAIDS_Strategy>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.unaids.org/es/resources/documents/2010/20101221_JC2034_UNAIDS_Strategy
  • SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDA, C. D.; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Rev. Bras. Hist. Ciênc. Soc., ano 1, n. 1, p. 1-15, 2009.
  • SALTALAMACCHIA, H. La historia de vida: reflexiones a partir de una experiencia de investigación. Costa Rica: Cijup, 1992.
  • SANTOS, B.S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
  • SANTOS, B.S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo, n. 79, 2007, http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004
  • SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002a.
  • SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Rev. Crít. Cienc Soc., n. 63, p. 237-280, 2002b. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/10810/1/Para%20uma%20sociologia%20das%20aus%C3%AAncias.pdf>. Acesso em: 02 set. 2017.
  • SEFFNER, F.; PARKER, R. A neoliberalização da Prevenção do HIV e a resposta brasileira à aids. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DE AIDS. Mitos vs realidade: sobre a resposta Brasileira à epidemia de HIV e Aids em 2016. Rio de Janeiro: ABIA, 2016. p. 24-32.
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). 2020 Global AIDS Update — Seizing the moment — Tackling entrenched inequalities to end epidemics, 2020. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2020_global-aids-report_en.pdf. Acesso em: 05 Abr. 2018.
    » https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2020_global-aids-report_en.pdf.
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Power to the people. 2019. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/power-to-the-people_en.pdf. Acesso em: 05 Abr. 2018.
    » https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/power-to-the-people_en.pdf.
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). HIV Prevention 2020 Road Map. 2017a. Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf. Acesso em: 05 abr. 2018.
    » https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/hiv-prevention-2020-road-map_en.pdf.
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Prevenção combinada do HIV. 2017b. Disponível em: <https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2017/08/2017_08_15_preven%C3%A7%C3%A3o_combinada_FINAL.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2018
    » https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2017/08/2017_08_15_preven%C3%A7%C3%A3o_combinada_FINAL.pdf
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Ending Aids: progress towards the 90-90-90 targets. 2017c. Disponível em: <http://www.unaids.org/en/resources/documents/2017/20170720_Global_AIDS_update_2017>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.unaids.org/en/resources/documents/2017/20170720_Global_AIDS_update_2017
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Prevention gap report. 2016. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2016-prevention-gap-report_en.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2016-prevention-gap-report_en.pdf
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). 90-90-90: uma meta ambiciosa de tratamento para contribuir para o fim da epidemia de Aids. 2015. Disponível em: <http://unaids.org.br/wp-content/uploads/2015/11/2015_11_20_UNAIDS_TRATAMENTO_META_PT_v4_GB.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://unaids.org.br/wp-content/uploads/2015/11/2015_11_20_UNAIDS_TRATAMENTO_META_PT_v4_GB.pdf
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Fast-track ending the aids epidemic by 2030. 2014. Disponível em: <http://www.unaids.org/en/resources/documents/2014/JC2686_WAD2014report>. Acesso em: 17 jun. 2017.
    » http://www.unaids.org/en/resources/documents/2014/JC2686_WAD2014report
  • UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS (UNAIDS). Combination HIV prevention: tailoring and coordinating biomedical, behavioural and structural strategies to reduce new HIV infections. A UNAIDS Discussion paper. 2010. Disponível em: <http://files.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/unaidspublication/2010/JC2007_Combination_Prevention_paper_en.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2018.
    » http://files.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/unaidspublication/2010/JC2007_Combination_Prevention_paper_en.pdf
Editor responsável: Gustavo Cunha

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2021
  • Revisado
    09 Jun 2022
  • Aceito
    09 Jun 2022
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br