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A RELIGIÃO NO PROCESSO DE DOMINAÇÃO SOCIAL: ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES SÓCIO-CULTURAIS ENTRE TRABALHADORES TEMPORÁRIOS E PEQUENOS PRODUTORES.

REUGION IN THE PROCESS OF SOCIAL DOMINATION: A STUDY ABOUT SOCIO-CULTURAL RELATIONS BETWEEN TEMPORARY WORKERS AND SMALL RURAL PRODUCERS.

Resumos

É adotada uma dimensão histórica, procurando situar os grupos sociais estudados no contexto de classes da sociedade capitalista Entre os problemas que perpassam na tentativa de desenvolvimento de um projeto libertador, são analisados os aspectos étnico-culturais e econômicos e as formas de aluar dos agentes institucionais. A análise é desenvolvida no sentido de verificar como as instituições atuam sobre as contradições levantadas.

religião; dominação social; relações sócio-culturais


An historical dimension is adapted, trying to place the studied social groups, in the class context of the capitalist society. Among the problems which graze in the attempt of developing a liberating project, the ethinic-cultural and economic aspects and the institutional agent's way to operate itself, are analised. The analysis is developed in the sense of verifying how the institutions performe on the contraditions occured.

religion; social domination; socio-cultural relations.


A RELIGIÃO NO PROCESSO DE DOMINAÇÃO SOCIAL: ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES SÓCIO-CULTURAIS ENTRE TRABALHADORES TEMPORÁRIOS E PEQUENOS PRODUTORES.

REUGION IN THE PROCESS OF SOCIAL DOMINATION: A STUDY ABOUT SOCIO-CULTURAL RELATIONS BETWEEN TEMPORARY WORKERS AND SMALL RURAL PRODUCERS.

Lucí Faria Pinheiro1 1 Assistente Social. Mestre em Extensão Rural. Núcleo de Estudos sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (NEMAD)-UFSM. Rua Floriano Peixoto. 1750. 97015-370 - Santa Maria-RS. Enio Tonini2 1 Assistente Social. Mestre em Extensão Rural. Núcleo de Estudos sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (NEMAD)-UFSM. Rua Floriano Peixoto. 1750. 97015-370 - Santa Maria-RS.

RESUMO

É adotada uma dimensão histórica, procurando situar os grupos sociais estudados no contexto de classes da sociedade capitalista Entre os problemas que perpassam na tentativa de desenvolvimento de um projeto libertador, são analisados os aspectos étnico-culturais e econômicos e as formas de aluar dos agentes institucionais. A análise é desenvolvida no sentido de verificar como as instituições atuam sobre as contradições levantadas.

Palavras-chave: religião, dominação social, relações sócio-culturais.

SUMMARY

An historical dimension is adapted, trying to place the studied social groups, in the class context of the capitalist society. Among the problems which graze in the attempt of developing a liberating project, the ethinic-cultural and economic aspects and the institutional agent's way to operate itself, are analised. The analysis is developed in the sense of verifying how the institutions performe on the contraditions occured.

Key words: religion, social domination, socio-cultural relations.

INTRODUÇÃO

A situação política em que vivem as classes populares no Brasil, não difere muito do passado de subserviência, onde a política era mérito de uma classe economicamente superior. A realidade econômica do país avançou segundo o enfoque do crescimento e da modernização. Especialmente no que refere-se ao meio rural brasileiro, observou-se ao longo do processo de desenvolvimento econômico um empobrecimento crescente daqueles que sobrevivem da pequena produção, a expulsão dos peões, agregados e outras categorias que dependem do sistema de produção agrícola

A história dos camponeses, especialmente dos chamados moradores, peões ou agregados, é marcada por uma relação de dominação com os proprietários. A formação social senhorial, é um exemplo de que os camponeses estavam sob o poder dos senhores donos de terras (JÚNIOR, 1983). No Nordeste brasileiro, perdurou até recentemente, a hegemonia das oligarquias e o coronelismo (LEAL, 1978). A hegemonia segundo Gramsci (Apud OLIVEIRA. 1985), se dá mediante um "acordo espontâneo das grandes massas da população à orientação imprimida à vida social pelo grupo fundamental dominante", dado o prestígio e a confiança que historicamente tem e inspira o referido grupo.

Essa relação de dominação/subordinação, segundo OLIVEIRA (1985), é orientada por um código religioso católico, onde o cristão deve submissão a Deus ou aos seus representantes na hierarquia da Igreja Da mesma forma, no plano temporal o peão deve obediência ao patrão, se submete ao convívio de tipo familiar para amenizar a dominação. A instituição do compadrio que bem expressa QUEIROZ (1976) e o sistema de ajuda mútua, são características das relações. Como diz FAORO (1984), é "a própria soberania que se enquista. impenetrável e superior, numa camada restrita, ignorante do dogma do predomínio da maioria".

Esta relação ainda faz parte da formação social atual? De acordo com CAMARGO (1979), "os valores cristãos de respeito à dignidade humana, de fraternidade e caridade, são reinterpretados à estrutura social prevalecente. No plano da ação prática, as condutas são inspiradas pela repetição dos modelos inseridos na tradição". Nesta perspectiva, o momento atual não representa uma ruptura com a subserviência. A modernização, a industrialização (BRUM, 1988) e o avanço dos movimentos sociais no campo (MARTINS, 1989), não são exemplos de superação, porque na base axiológica dos setores dominados, ainda estão presentes os valores religiosos de obediência à hierarquia social. O que significaria que o modelo das "novas" relações, não leva à libertação.

Tal pensamento é ambíguo, porque na ordem social capitalista as relações de dominação pessoal são substituídas por relações de troca, se eximindo do sentido sacral. As organizações religiosas, por exemplo, que não determinam sentidos coerentes com a realidade em mudança, entram em crise, como é o caso da própria igreja católica, não mais hegemônica em sua tendência conservadora O comportamento dos setores dominados tem sido o de buscar outras religiões ou seitas que atendam melhor aos seus anseios, tanto no setor rural, como no urbano (FOLLMANN, 1985).

Se o Estado é o mediador das relações de classe na realidade atual, e como refere CHAUÍ (1982), ele é representante e legitimador da ideologia capitalista - uma vez que procura manter a ordem social desigual, através de um discurso que produz uma imagem unificada da realidade - então há aí uma reprodução dos valores tradicionais, cuja religião, alimenta desde a formação social senhorial. Se o Estado representa a classe dominante, não pode então, resolver as contradições sociais. A classe dominada deve procurar outras alternativas que, na ordem capitalista, são a concorrência, o lucro e o individualismo.

É nesse âmbito, que novas contradições são produzidas no seio destas classes. O presente estudo procura verificar como elas se dão em realidades específicas, como é o caso dos trabalhadores temporários, conhecidos também como bóias-frias, nas relações com pequenos produtores, no Município de Silveira Martins. Portanto, objetivou-se: identificar os fatores sócio-culturais que dificultam a organização dos moradores da vila Brasília, analisar a relação dos fatores sócio-culturais com a religião e com as instituições que representam o Estado e a sociedade civil. Nesse sentido, um breve histórico da referida realidade é importante. Esse grupo de trabalhadores. migrou para um distrito de Santa Maria, chamado Silveira Martins a partir dos meados deste século, com a perspectiva de trabalhar como diaristas nas pequenas propriedades, situadas na antiga 4a. Colônia Italiana. Originou-se a atual vila Brasília um aglomerado de pequenas casas com trinta e cinco famílias que moram em terrenos doados pela então sub-prefeitura Diante do processo de crescimento econômico, que determinou o modelo agro-exportador, a produção baseada na mão-de-obra familiar teve que adequar-se, adotando a partir de então, outras formas especializadas de produção (no caso, a batata-inglêsa), para as quais exige-se a mão-de-obra extra-familiar. Esse processo, próprio da economia capitalista evidenciou entre as duas categorias rurais, diferenças sociais, até então inexpressivas no município. O pequeno produtor assume em períodos de plantação e colheita a função de empregador e os trabalhadores temporários, nestes períodos, se vinculam àquele através da plantação e colheita Esse vínculo gerou alterações no relacionamento social, uma vez que são de classes sociais antagônicas e de origem étnica e cultural, também diferentes. A propriedade da terra representa historicamente um poder econômico e status social, se reafirmando a cada dia no confronto entre a cultura de origem italiana da maioria dos pequenos produtores e a cultura dos trabalhadores temporários de origem mestiça (portuguesa espanhola africana e indígena). Chama-se de confronto, a manifestação de diferentes maneiras de pensar e viver das classes que formam as relações sociais locais. A concepção de classe utilizada aqui, é o de classe dominada no sistema capitalista, cuja força de trabalho é o único meio de sobrevivência (SINGER, 1981).

A pesquisa compreende o período entre 1986 e 1988. A exposição dos resultados, dividem-se neste texto, em vários pontos, eleitos nas relações que constituem o estudo.

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo, diante da problemática apresentada adotou a metodologia qualitativa utilizando como instrumentos básicos, as entrevistas abertas e semi-abertas, depoimentos pessoais e observações participantes. Estas técnicas foram aplicadas com indivíduos em suas residências, com grupos em reuniões da comunidade e nas instituições representativas do Estado (Universidade Federal de Santa Maria Legião Brasileira de Assistência e Prefeitura Municipal de Silveira Martins) e nas instituições da sociedade civil (Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja Evangélica Assembléia de Deus). A vila Brasília em Silveira Martins-RS, foi o local específico da pesquisa Esta se desenvolveu em etapas, onde o conhecimento prévio da realidade abordada colaborou na definição das unidades - fatores sócio-culturais, religião e instituições - e permitiu um acompanhamento das situações em diferentes períodos. Isto é importante ressaltar, porque a pesquisa aborda comportamentos que muitas vezes resultam de diretrizes institucionais, que podem alterar determinadas situações.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dificuldades e Alternativas no âmbito do Trabalho.

O primeiro ponto se situa no universo das atividades econômicas, em torno do trabalho. Procura-se expor as dificuldades apresentadas em vista da formulação de um objetivo comum e como os trabalhadores temporários as enfrentam.

Conforme o enfoque adotado, pode-se dizer que a perda dos vínculos afetivos com os proprietários das terras, aos quais os trabalhadores estão subordinados, não os torna menos dependentes nas relações de trabalho atuais. A impessoalidade que caracteriza tais relações não facilita a organização como classe no aspecto do trabalho, como também no aspecto comunitário da vila em que moram. A ausência do contrato legal de trabalho, os tornam mais dependentes, uma vez que sem o amparo da lei, também não encontram motivação para lutar. É através da consciência dos direitos adquiridos e da luta para fazê-los valer, que constitui-se a cidadania Estando limitados no aspecto do trabalho e nem tendo a posse da casa onde moram, a tendência é viver passivamente até que sejam sensibilizados da necessidade e capacidade de agirem sobre tal realidade de forma conjunta.

A organização no aspecto do trabalho é incipiente, restringindo-se a um relativo consenso entre os mesmos que nos momentos de lazer, nos bares, na cancha de bocha, abordam o preço das diárias e outros problemas apresentados na vila Esse consenso é relativo porque, ao confrontar à contra-proposta do patrão que é de acordo com seus interesses, perde um pouco do sentido político, passando o valor do trabalho, a depender diretamente do nível de produção individual no espaço diário de trabalho. Neste caso, apesar dos rendimentos dependerem da produção individual, da auto-disciplina e capacidade do trabalhador e dar um certo grau de liberdade, na realidade são os patrões quem controlam o processo produtivo de acordo com seus critérios.

Desta forma, verifica-se que: a própria natureza do trabalho e o sistema de diárias, cuja remuneração depende da quantidade produzida, é complexa para a definição de um consenso. Esta quantidade varia, porque os trabalhadores levam suas famílias para ajudarem no trabalho e isto passa a depender do número de mulheres e crianças em idade ativa, num mesmo núcleo familiar, além da disponibilidade que cada um desses membros tem a cada dia Por isto, o mínimo de consenso não chega a assumir um caráter organizativo e nem sempre é respeitado por todo o grupo de trabalhadores, até mesmo porque a dependência da família gera entre eles, necessidades diferenciadas. Outro obstáculo encontra-se no fato das negociações com os empregadores serem feitas através dos intermediários que, muitas vezes, são moradores da própria vila Brasília Eles intervém nas relações de trabalho, desde o recrutamento e o transporte dos trabalhadores, até os valores das diárias. Quando fazem os contatos com os produtores, eles já combinam uma média de preços e deste modo, dificultam o processo de organização dos trabalhadores.

"Existe uma organização entre eles. Mas eles estão equivocados, não sei em que fator, mas eles deviam diferenciar: de safra é tanto, fora de safra é tanto. O mal neles é que eles sabem distinguir o tempo de trabalho. Eles não trabalham se não tem um certo padrão de pagamento de diária" (representante da igreja católica).

Mesmo assim, esta forma de organizar que é simples para eles, não deixa de ter repercussão no local, ou seja, representa algum poder. Mostra ainda, que existe uma noção por parte dos trabalhadores, sobre o espírito individualista que move os patrões e, para contrapor a isto, homens e mulheres, embora diferencialmente, têm suas estratégias. Em períodos de entre-safra as mulheres trabalham em residências e se articulam no sentido de suas diárias, atualizando-se dos valores do mercado.

As relações étnico-culturais.

Das relações econômicas surgem outras relações que se processam na realidade dos referidos trabalhadores, influenciando a perspectiva de constituição de um projeto comum. Trata-se aqui do confronto com a cultura dominante, a cultura da população de origem italiana, fator que influi no coletivo dos moradores da vila Brasília Isto porque a cultura é a representação de um conjunto de práticas sociais referente a um determinado grupo social. Sendo brasileiros de origem e de classe social adversa, se estabelecem relações políticas, posto que a cultura pertence ao universo ideológico, característico da sociedade de classes (CARDOSO, 1978).

Portanto, as relações econômicas que explicam em princípio a mistura do elemento de origem mestiça com o elemento branco de origem italiana, não se mantêm isoladas no universo sócio-cultural em tela Existem valores que dificultam as relações entre os dois grupos étnicos, mediante o preconceito de cor que o italiano de origem tem em relação aos moradores da vila Brasília, denominando-os "brasileiros", "negros" e outros adjetivos. Essa nítida desconsideração, recoloca o grupo social dominado na condição de mera força-de-trabalho e o pequeno produtor, como grupo dominante.

"Os gringos começaram mau e enriqueceram a custa dos brasileiros, os negros que serviram de escravo prá eles" (moradora da vila Brasília).

Coexiste outro aspecto sócio-cultural que colabora para a discriminação racial, qual seja a divergência de princípios religiosos. Resgatando um pouco as raízes culturais e relacionando-as com o contexto histórico em que se deu a imigração italiana, verifica-se que a divergência entre catolicismo confessional de origem romana e catolicismo devocional de origem portuguesa, permanece na realidade enfocada Esta diferenciação decorre, basicamente, em função da independização do Estado. Enquanto na Europa a Igreja era liderada pelo Papa em Roma, no Brasil, a Igreja ainda era orientada pela Coroa Portuguesa e, financeiramente, sustentada pelo Estado. Não só a religiosidade dos brasileiros natos era negada, como também seus traços culturais mais originais.

Atualmente o catolicismo romanizado é a religião tradicional local, porque foi incapaz de adaptar-se à realidade atual, decorrendo disso, a introdução entre os brasileiros natos de religiões leigas. A ampliação de novas seitas religiosas na região de colonização italiana em particular, é uma demonstração da decadência do catolicismo romanizado entre os setores mais pobres da população. Considera-se que a seita evangélica vem revalorizar a cultura marginalizada, servindo de instrumento de conformação e resistência aos problemas sociais e raciais, locais.

As dificuldades no âmbito da Religião.

Coexistem, necessariamente, espaços e alternativas de manifestação e de contestação social. E a religião alternativa ao catolicismo, no caso estudado, é a Assembléia de Deus. Ao adentrar nesta questão que parece religiosa, depara-se com um conjunto de conhecimentos sociológicos, políticos e filosóficos. Baseado nisto, foi possível aproximar-nos da visão de que as classes populares manifestam-se de forma fragmentada com sobras de conhecimentos (GRAMSCI, 1987). E que as manifestações da cultura popular, não se opõem enquanto totalidade à hegemonia da cultura dominante, mas guardam uma relação com a sociedade global que se define enquanto relação de poder (ORTIZ, 1980). A dominação está presente nas falas:

"Não digo prá ficarem doutores, mas eles vão estudar pelo menos até a quarta série, que é prá não ficarem que nem o pai deles, escravo do italiano" (moradora da vila Brasília).

A religião assume então, na vila Brasília, o sentido de protesto social, ao mesmo tempo que reafirma o caráter fragmentário da cultura popular. Não é, porém, somente um instrumento reprodutor das relações de dominação, mas também uma representação simbólica de contestação da ordem social. A religião é um tipo particular de ideologia que se caracteriza por normas de conduta prática, podendo conduzir a atitudes ativas ou passivas. O que vem explicar a divisão das religiões em diferentes graus culturais, o leigo e o intelectual. O leigo é relativo às classes populares, onde existe uma dispersão entre pequenos grupos, revelando o que Gramsci (Apud PORTELLI, 1984), caracteriza como falta de unidade entre o senso comum, a religião e o folclore (que é o conhecimento popular). Segundo este autor, a incoerência do senso comum e do folclore, é a conseqüência ideológica da situação econômica e política dos grupos subalternos, cuja característica essencial é a ausência, em todos os níveis, de hegemonia face ao sistema hegemônico da classe fundamental.

A atuação da igreja católica junto aos trabalhadores temporários ocorre segundo um referencial que os iludem, procurando dar assistência religiosa com o objetivo de manter sua base social fiel ao catolicismo. O trabalho social vem em decorrência desse objetivo e procurando desenvolver obras participativas, mas a autoridade da liderança religiosa se sobrepõe à população, impedindo a continuidade da participação e conseqüentemente, demarca a relação de desigualdade. Gera expectativas, envolve a população, lhes tira doações e depois não só fecha-se a ela, como também apodera-se do que em princípio era coletivo.

A atuação da Igreja Evangélica também procura, segundo os objetivos religiosos, ganhar adesões e manter sua base social fiel. Para isto, cria uma dinâmica de trabalho que aproxima os trabalhadores, mas mediante a reflexão religiosa e sem uma orientação crítica acerca da problemática vivenciada pelo grupo como um todo. Isto acaba gerando maiores animosidades, ou seja, além daquelas que existem entre italianos de origem (empregadores) e brasileiros de origem (trabalhadores), as diferenças entre católicos e evangélicos passam a acentuarem-se entre o grupo dominado.

A Intervenção das Instituições

Abordar as instituições como unidades políticas e civis, nestas relações, é importante, porque as mesmas não operam isoladamente, uma vez que estão inseridas num contexto político global da sociedade brasileira, no contexto das relações sociais. Elas têm seus objetivos, princípios e valores, assim como os agentes que em seu nome atuam. Diferentes são os interesses da população, mesmo podendo admitir que seus valores não são necessariamente diferentes daqueles que as instituições procuram manter. Para compreender essa divisão no âmbito do presente estudo, é necessário analisar o ponto de ligação entre a problemática que leva à busca de alternativas dos grupos dominados na atualidade e as categorias Igreja e Estado, no contexto histórico.

A Igreja católica era a única representação religiosa na sociedade brasileira e estava vinculada ao Estado. Com a emergência da sociedade de classes, advinda com o estabelecimento de relações capitalistas, especialmente com a ascensão da burguesia (SODRÉ, 1983), a religião perde sua força como visão de mundo que orienta a ação do homem. Uma outra ordem social racional se instala, independentemente da posição da Igreja Há, portanto, uma separação entre Estado e Igreja, conforme já havia se dado também na Europa O Estado se define como um Estado de classe, expressão da burguesia e a Igreja assume a sua autonomia e define-se enquanto instituição da sociedade civil (PORTELLI, 1984; OLIVEIRA, 1985). As divergências internas da Igreja católica começam a aparecer, dado o enfrentamento das questões religiosas.

Mediante a laicidade do Estado a Igreja vai servir de instrumento do mesmo, porque passa a vê-lo como a expressão da sociedade e como responsável pela transformação das relações de opressão no campo e pelo asseguramento da ordem, as quais ela se opunha mas não tinha poder. A Igreja vai constituir-se numa forte organização hierárquica, formada por intelectuais que dominam a esfera religiosa, estabelecendo relações de poder com a população. O que significa imprimir uma ordem, já religiosamente sancionada na formação social senhorial, fazendo-a valer agora na formação social capitalista.

Quanto às instituições políticas, estas vão constituir-se aparelhos de hegemonia do Estado Capitalista Isto é, vão atuar conforme a visão do Estado, transmitindo a sua ideologia através da persuasão, formando um consenso de classe e fazendo valer seus interesses, mediante o domínio do poder e o uso da força (função coercitiva) (CARDOSO, 1978).

A demanda principal das instituições, são as classes populares. Conforme sustenta GRAMSCI (1987), estas classes operam e se reproduzem com "sobras de culturas passadas" e com "fragmentos da cultura dominante", formando uma falsa consciência É esta falsa consciência que, na realidade abordada, as instituições têm procurado aprofundar, utilizando recursos da população, necessidades e projetos, para defender interesses próprios.

Na vila Brasília, a religião através das instituições, igrejas e representantes, exerce uma função fundamental, qual seja, legitimar o poder das autoridades, em qualquer situação. A igreja evangélica surge como alternativa, mas não consegue dar respostas eficazes aos problemas mais profundos, reproduzindo, portanto, apenas seus interesses, ou seja, autoridade da tradição religiosa.

Esta relação de interdependência entre valores sociais e valores religiosos, gera um mesmo modelo que atribui direitos e deveres assimétricos para as diversas classes sociais. Isto vai permitir que as características institucionais, baseadas na disciplina, na ordem e na hierarquia, sejam aceitas pela população. Desse modo, os aparelhos de hegemonia, ou as instituições políticas propriamente ditas, vão ser vistas pela população como respostas aos seus problemas e, por conseguinte, como 'representação de seus interesses.

O apoio a um projeto próprio de classe, a dos trabalhadores temporários, representaria para estas instituições, incentivar o conflito, colaborar no sentido de esclarecer as relações que se processam ao seu redor. Isto se trataria de exercer uma função política, quando, localmente, a "classe dominante as convencem no sentido de fazer manter a ordem.

É a mesma atitude tomada pela igreja católica nos meados deste século, quando aliou-se às forças militares contra os ideais comunistas, como também pela igreja evangélica, que começava a ampliar-se pelo Brasil, trazendo para o seu interior os setores mais pobres da população, vitimados pela crise econômica e pela repressão política (ROLIM, 1985).

Espontaneamente os moradores vão se aproximando da igreja evangélica Esta nasce em nucleações formadas em domicílios e depois, transformam-se em instituições hierárquicas, representadas por um pastor. E ao familiarizarem-se, passam a se sentir representados por ela. Longe de compreender concretamente a realidade social com a qual trabalha, a igreja responde parcialmente aos anseios da população, porque sua estrutura e objetivos vão além. Na tentativa de conquistá-los aproxima-se das instituições políticas, utilizando o nome da população e representando-a ao mesmo tempo. No pequeno templo da igreja evangélica na vila, esta situação ocorre de forma confusa, onde o representante do pastor carrega a missão da instituição, mas é também um trabalhador como os outros e se insere nas mesmas relações. Deste modo, ele representa com facilidade os interesses dos moradores, mas observa-se em seu comportamento uma necessidade de legitimação junto à população externa à vila, que se dá na aproximação das autoridades. Assim, a liderança religiosa exerce a função de liderança comunitária Mesmo tendo autoridade sobre os evangélicos, esta legitimidade é relativa, mostrando seus efeitos negativos, quando os moradores católicos manifestam-se contrários às propostas, cuja liderança (pastor) busca um consenso. Este é um fator que colabora na geração de maiores divisões na vila.

Observa-se deste modo, que as religiões leigas e não leigas, compartilham de valores idênticos quanto ao relacionamento com a população. A tradição aí permanece, quando a realidade exige mudança. Representam a população quando esta pode opinar, fortalecendo com isto o respeito à hierarquia interna e reproduzindo-a certamente na organização futura da população.

As instituições políticas também atuam como se leigas fossem. Procuram representar os interesses da população, mais do que as igrejas, defrontando assim com o poder das mesmas. Deixam a desejar quanto ao prometido e ainda provocam o conflito dos moradores entre si e em relação às igrejas.

"Nós queremos construir outro prédio, de modo .que seja neutra a creche e que seja além de creche, uma escola primária. Agora para acabar com essa discriminação tem que se misturar. Queremos botar uma professora branca, justamente para quebrar um pouco a idéia da discriminação" (Sub-prefeito).

Essa complexidade de interesses, foi observada na vila Brasília, através da tentativa de reconstituição do processo de implementação de uma creche. A idéia de construí-la emergiu das necessidades objetivas dos moradores que não tinham onde deixar suas crianças quando iam trabalhar. Quem toma a iniciativa é a igreja evangélica local, que já cuidava de algumas crianças para as mães. Considerada como necessidade material comum à toda a população, a creche automaticamente visaria atendê-la sem discriminação de raça, cor, ideologia ou religião. Mas, na medida em que parte de uma instituição religiosa e conta com sua estrutura para efetivar-se, a creche poderia adotar princípios, valores e normas, influenciados pela religião. O que poderia ser alterado através de outras participações e exigências, como os convênios que em princípio foram estabelecidos com a Universidade e a LBA.

O extrato de um depoimento da diretora regional da LBA no período de implantação da creche, revela a falta de sintonia, entre os interesses do poder público, em relação às necessidades da população.

"Tinha que haver um acordo entre Universidade e o município de Silveira Martins para aproveitar o convênio anterior (...). A creche poderia funcionar tranquilamente, mas não houve uma manifestação do então novo município de solicitar esta manutenção. Mas não foi solicitada esta manutenção para 40 crianças. A LBA ofereceu a construção de um prédio (...)" (diretora da LBA).

Não tendo havido um entendimento entre as instituições externas à vila, a creche não chegou a funcionar, segundo os princípios católicos ou evangélicos.

Quanto à participação da Universidade, esta teve início com a tentativa de desenvolver um trabalho comunitário de "Educação Popular". Para tal, elegeu a vila Brasília, vendo na iniciativa da referida Igreja em construir a creche, um problema ideal para desenvolver os objetivos de extensão da Universidade. Através de um projeto chamado Sinuelo, a ação da Universidade se concretiza na formulação de um documento e no encaminhamento do mesmo à LBA, solicitando recursos para a instalação da referida creche. Em contrapartida, a Universidade entraria com os recursos humanos (estagiários).

A participação da LBA se deu, objetivamente, com a liberação de uma verba destinada à compra de materiais diversos para equipar a creche e exigindo reformas para adequar as instalações, em vista das exigências do convênio. Posteriormente, a participação da LBA seria apenas fiscalizar periodicamente as condições da creche e receber os relatórios mensais. Na realidade, como ò convênio era feito com a Universidade, esta seria a gestora dos recursos, assim como, a prestadora de contas. Isto, relacionado com a comunidade, parece até que ela não existe com seus interesses e condições de gerir a creche. A creche, segundo os interesses das instituições, seria um patrimônio seu e as questões que surgissem seriam então, problemas institucionais e não problemas de responsabilidade da comunidade. Diversa é a realidade. O enfoque da comunidade não discrimina instâncias de poder, leva em conta o problema central: a necessidade de uma creche.

"Houve várias reuniões para decidir abrir a creche, mas o pastor queria a diretoria ligada à igreja e isso era combatido pelas autoridades que alegavam que as crianças iam ser evangelizadas. Se eu tivesse participado, tinha dito bem claro que a comunidade tem mais é que se unir e não separar, porque a religião não deve significar uma barreira para a abertura da creche. As famílias não se importam com quem vai administrar a creche" (moradora da vila Brasília).

A população não tem conhecimento de que as instituições desenvolvem interesses próprios e que é necessário lutar pêlos interesses comunitários. Assim, a creche poderia ser resultado de um processo consciente, onde ambas as partes pudessem exercer o seu poder, cumprir deveres e conquistar seus direitos. No entanto, o que se suscedeu no processo de implementação da creche, além da desconsideração pêlos interesses e necessidades da comunidade, foi uma distorção dos recursos públicos que estavam em jogo. Na realidade, a creche da vila Brasília iria depender de um convênio que a LBA mantinha com a creche da Universidade (Ipê Amarelo). Esta creche não cumpria os critérios de atendimento a carentes, conforme estipulara a LBA, de modo a não poder prestar contas dos recursos que recebia mensalmente. A creche da vila Brasília, surgia aí mais como uma saída para um problema inter-institucional, do que como uma solução para a população. Parte dos recursos excedentes na Creche Ipê Amarelo, a Universidade aplicaria em projetos de extensão, tal como o Projeto Sinuelo que aluava na vila Brasília.

A vinculação da creche da vila Brasília à Universidade, resultaria na tutela da população. Entretanto, esta tutela ocorreu sem que a creche nem mesmo funcionasse, porque enquanto a Universidade e a Prefeitura municipal disputavam com a igreja evangélica, a administração da creche, a LBA em Porto Alegre, cortava o convênio com a UFSM, por falta de prestação de contas dos recursos enviados mensalmente, durante muito tempo. Período suficiente para que houvesse troca de direções entre todas as instituições. Os novos quadros, se não compactuaram com o problema, também não o resolveram. A comunidade nunca fora esclarecida de que a creche funcionaria na dependência de outra creche e que serviria para legitimar um problema da Universidade com a LBA.

Esta pesquisa foi realizada na ocasião em que a população aguardava há um ano, uma decisão das instituições em relação a creche. O espaço destinado à mesma, continua sendo usado como uma creche domiciliar, nas dependências da igreja evangélica, onde mora o pastor, sob os cuidados de moradoras e sem subsídios do poder público. Em síntese, o fato da população não atuar diretamente sobre a oficialização da creche, parece estar relacionado com o domínio que as instituições de um modo geral, exerceram sobre o processo, reafirmando os valores de dependência que a própria cultura dominante, tradicionalmente alimenta na população. As instituições não resolveram o problema e nem permitiram que a igreja evangélica o fizesse de seu modo.

CONCLUSÃO

As relações que se processam no interior do município de Silveira Martins, são frutos do enfoque econômico do desenvolvimento brasileiro. Este modelo faz com que pequenos produtores rurais e trabalhadores temporários, se oponham. Colaboram para esta oposição as diferenças de cor e de religião, entre outras. Na luta para manter o seu padrão de vida, os produtores acarretam a pobreza dos trabalhadores. O caráter de classe acentua-se quando essa pobreza aparece como problema social. As diferenças econômicas são mediatizadas e fortalecidas pelas "diferenças culturais". O problema passa a ser reproduzido de várias formas, cada uma delas expressando um novo tipo de problema com soluções paleativas.

Por exemplo, assim como a classe economicamente superior preserva um distanciamento da classe inferior, através da discriminação de cor e de seus valores tradicionais - a classe inferior se organiza de forma religiosa, leva seus filhos menores para ajudar na produção, ao invés de deixá-los na escola, enfrentando seus problemas, individualmente. Diante dessa complexidade, a população não consegue descobrir por si mesma, a necessidade de uma ação coletiva. Ela prefere pensar que as causas estão no indivíduo.

Os problemas sociais, ramificações do grande problema, são tratados pelas instituições, subdivididas em pequenas estruturas de poder. Os problemas apresentados, não são outra coisa, senão a expressão mesma de como as relações sociais se dão em diferentes contextos, numa sociedade em desenvolvimento.

Os autores agradecem a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS, por ter colaborado com a realização deste trabalho.

2Engenheiro Agrônomo, Mestre em Extensão Rural, Professor Titular. Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural. UFSM. 97119-900 - Santa Maria. RS.

Recebido para publicação em 11.02.92. Aprovado para publicação em 17.06.92.

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    Assistente Social. Mestre em Extensão Rural. Núcleo de Estudos sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (NEMAD)-UFSM. Rua Floriano Peixoto. 1750. 97015-370 - Santa Maria-RS.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 1992

    Histórico

    • Aceito
      17 Jun 1992
    • Recebido
      11 Fev 1992
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