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A diversidade dos recursos genéticos vegetais e a nova pesquisa agrícola

The diversity of plant genetic resources and the new approaches in the agronomic research

Resumos

As novas demandas da pesquisa agrícola requerem a formação de recursos humanos com níveis avançados de qualificação e capazes de elaborar e executar propostas científicas, tecnológicas e políticas relacionadas ao uso, melhoramento e conservação dos recursos genéticos vegetais, domesticados ou não. Esta nova ênfase tem demandas associadas predominantemente ao uso intensivo do conhecimento. Os desafios atuais a serem enfrentados pela nova pesquisa agrícola referem-se ao estabelecimento de estratégias de caracterização e conservação in situ; a definição precisa sobre o uso sustentável dos recursos genéticos; a valoração; a regulamentação ao acesso, incluindo-se os aspectos associados à soberania da diversidade genética vegetal. O Brasil é o país com a maior diversidade genética vegetal do mundo, ainda amplamente desconhecida. Neste sentido torna-se fundamental a caracterização do material genético existente nas formações florestais e variedades crioulas, para subsidiar o manejo de determinadas populações naturais e os programas de melhoramento genético, visando ao aumento do rendimento econômico da exploração vegetal. Propõe-se o estabelecimento de programas de pesquisa conjuntos e a formação de recursos capazes de manejar a diversidade genética existente, através do domínio e emprego de tecnologias pertinentes, habilitando-os a atuar nas transformações agrícolas atuais, de modo a favorecer o desenvolvimento agrícola sustentável.

biodiversidade; acesso; conservação genética; pesquisa agrícola


The new demands of the agricultural research require human resources highly qualified able to develop scientific proposals, technologies and polices related to the use, improvement and conservation of plant genetic resources, domesticated or not. This new emphase is based mainly in the intense use of the knowledge. The current challenges faced by the new agricultural research dealing with the establishment of strategies of characterization and in situ conservation; the definition of the sustainable use of the genetic resources: the valoration of biodiversity; the access regulation, including issues associated the country sovereignty, of the genetic divesity. Brazil is the country with the highest level of plant genetic diversity in the world, mostly unkown. Thus, it is necessary to characterize the plant germplasm and landraces to aid the natural population management and the breeding programs, taking into account the increase in the economic yield of the agricultural exploitation. A research program is proposed to train graduate students and researchers to manage the existing genetic diversity, by the knowledge and use of pertinent technologies, and with skills to act in the current agricultural transformations, favoring the sustainable rural development.

biodiversity; plant introduction; genetic conservation; agricultural research


A DIVERSIDADE DOS RECURSOS GENÉTICOS VEGETAIS E A NOVA PESQUISA AGRÍCOLA

THE DIVERSITY OF PLANT GENETIC RESOURCES AND THE NEW APPROACHES IN THE AGRONOMIC RESEARCH

Miguel Pedro Guerra1 1 Professores do Departamento de Fitotecnia, Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina, Caixa Postal 476, 88040-900, Florianópolis, SC. E-mail: mpguerra@cca.ufsc.br. Fax 0482342014. Rubens Onofre Nodari Maurício Sedrez dos Reis Afonso Inácio Orth

- REVISÃO BIBLIOGRÁFICA -

RESUMO

As novas demandas da pesquisa agrícola requerem a formação de recursos humanos com níveis avançados de qualificação e capazes de elaborar e executar propostas científicas, tecnológicas e políticas relacionadas ao uso, melhoramento e conservação dos recursos genéticos vegetais, domesticados ou não. Esta nova ênfase tem demandas associadas predominantemente ao uso intensivo do conhecimento. Os desafios atuais a serem enfrentados pela nova pesquisa agrícola referem-se ao estabelecimento de estratégias de caracterização e conservação in situ; a definição precisa sobre o uso sustentável dos recursos genéticos; a valoração; a regulamentação ao acesso, incluindo-se os aspectos associados à soberania da diversidade genética vegetal. O Brasil é o país com a maior diversidade genética vegetal do mundo, ainda amplamente desconhecida. Neste sentido torna-se fundamental a caracterização do material genético existente nas formações florestais e variedades crioulas, para subsidiar o manejo de determinadas populações naturais e os programas de melhoramento genético, visando ao aumento do rendimento econômico da exploração vegetal. Propõe-se o estabelecimento de programas de pesquisa conjuntos e a formação de recursos capazes de manejar a diversidade genética existente, através do domínio e emprego de tecnologias pertinentes, habilitando-os a atuar nas transformações agrícolas atuais, de modo a favorecer o desenvolvimento agrícola sustentável.

Palavras-chave: biodiversidade, acesso, conservação genética, pesquisa agrícola.

SUMMARY

The new demands of the agricultural research require human resources highly qualified able to develop scientific proposals, technologies and polices related to the use, improvement and conservation of plant genetic resources, domesticated or not. This new emphase is based mainly in the intense use of the knowledge. The current challenges faced by the new agricultural research dealing with the establishment of strategies of characterization and in situ conservation; the definition of the sustainable use of the genetic resources: the valoration of biodiversity; the access regulation, including issues associated the country sovereignty, of the genetic divesity. Brazil is the country with the highest level of plant genetic diversity in the world, mostly unkown. Thus, it is necessary to characterize the plant germplasm and landraces to aid the natural population management and the breeding programs, taking into account the increase in the economic yield of the agricultural exploitation. A research program is proposed to train graduate students and researchers to manage the existing genetic diversity, by the knowledge and use of pertinent technologies, and with skills to act in the current agricultural transformations, favoring the sustainable rural development.

Key words: biodiversity, plant introduction, genetic conservation, agricultural research.

1. Biodiversidade e recursos genéticos vegetais

Neste trabalho, será focalizada a questão da diversidade genética vegetal e suas implicações sobre a nova pesquisa agrícola em um contexto de caracterização, conservação, utilização e melhoramento dos recursos genéticos vegetais domesticados ou não, estabelecendo-se diferentes estratégias para cada caso.

A conceituação de biodiversidade mais amplamente utilizada refere-se à variedade e variabilidade entre organismos vivos e os ecossistemas, nos quais eles interagem (OTA, 1987). Portanto, biodiversidade inclui todas as formas de vida, ecossistemas e processos ecológicos e, reconhecendo a hierarquia nos níveis genético, taxonômico e do ecossistema.

O Brasil é considerado o país detentor da maior diversidade genética vegetal do planeta, contando com mais de 55.000 espécies catalogadas, de um total estimado entre 350.000 e 550.000. Cerca de dois terços destas espécies se encontram nos trópicos, estimando-se que o Brasil detenha cerca de 75% de todas as espécies florestais nas suas duas principais formações, a Floresta Tropical Atlântica e a Floresta Amazônica (DIAS, 1996).

As oportunidades para a identificação de produtos com possível utilização econômica aumentam com a diversidade das espécies. Alguns exemplos são ilustrativos: uma variedade silvestre de trigo da Turquia resistente a moléstias, cujos genes foram transferidos para variedades comerciais, proporciona uma economia anual de US$50 milhões, somente nos EUA. Uma variedade de cevada da Etiópia forneceu um gene de resistência a vírus que, transferido para variedades em cultivo na Califórnia, resulta numa economia de US$160 milhões. Outro exemplo elucidativo é o do Catharantus roseus, originário de Madagascar. As vendas das drogas antileucêmicas vincristina e vinblastina, derivadas desta planta, atingem valores anuais de US$200 milhões (DIAS, 1996). Um exemplo recente refere-se ao gene denominado de Xa21, identificado em 1977 em uma variedade crioula de arroz (Oryza longistaminata), que é cultivada no Mali (África) e clonado em 1995 por pesquisadores da Universidade da Califórnia em Davis. Este gene, responsável pela resistência a uma bacteriose que ocorre no arroz, foi patenteado pelos pesquisadores americanos e já se encontra licenciado para uso. Inúmeros outros exemplos de utilização e de apropriação da diversidade genética vegetal com fins agrícolas são apresentados e discutidos por BURTON et al. (1992). A valoração da biodiversidade aumenta significativamente quando se leva em consideração a visão de alguns cientistas, que vêem as plantas como pequenas fábricas que produzem desde compostos terapêuticos até plásticos biodegradáveis.

Nesse quadro, confronta-se um Hemisfério Norte rico em tecnologia, mas pobre em recursos genéticos e um Hemisfério Sul pobre em tecnologia, mas riquíssimo em diversidade biológica. Estima-se que um gene potencialmente útil do Sul, pode representar negócios de US$1 bilhão no Norte e que o germoplasma do Sul contribua com valores estimados em US$66 bilhões por ano, na economia dos EUA (MACHADO, 1996).

2. Biodiversidade: conservação e acesso aos re- cursos genéticos

Brasil, México, Equador, Colômbia, Peru, China, Malásia, Índia. Indonésia, Zaire, Madascar e Austrália são considerados países detentores de megadiversidade. Esta biodiversidade, segundo o Worid Resources Institute, encontra-se seriamente ameaçada. O ritmo atual de extinção de plantas já é entre 50 e 100 vezes maior que as taxas médias observadas no passado mais próximo. Estima-se que sem a ação antrópica uma espécie vive entre um e dez milhões de anos. As observações feitas nos últimos quatro séculos apontam a extinção de um mamífero a cada 400 anos e de uma ave a cada 200 anos. Estima-se também que até o ano de 2015, mantido o ritmo atual, podem desaparecer entre 4 e 8% das espécies presentes nas florestas tropicais. Especificamente para plantas, estes valores correspondem a 15 milhões de hectares por ano, o que significa uma perda de aproximadamente 1% ao ano, já que restam no planeta cerca de 1bilhão e 700 milhões de hectares de florestas tropicais. A América do Sul detém 52% destas florestas e, somente na década de 80, o Brasil respondeu por 28% das perdas das florestas tropicais e por 14% dos outros tipos de florestas. Embora não se conheça todas a funções desta diversidade, estudos mais recentes têm demonstrado que a produção de biomassa de um sítio é dependente da biodiversidade funcional (diversidade de espécies) nele existente (TILLMAN et al. 1997).

Este quadro sintético demonstra que é necessário estabelecer estratégias para caracterizar e conservar a diversidade genética vegetal in situ. Se considerarmos um cromossomo como. uma associação temporária de alelos específicos, no caso da conservação genética ex situ, a intensidade de conservação é parcial, uma vez que a variabilidade está congelada. Já em condições naturais, a cada rodada reprodutiva, ocorrem mutações, rearranjos e recombinações em níveis superiores aos que ocorrem nas condições ex situ. Além disso, é importante considerar que, em muitos casos, quando se considera a complexidade de ecossistemas tropicais, ocorrem nas condições in situ interações complexas entre os seus componentes que não são possíveis de serem reconstituídas nas consições ex situ. Um exemplo ilustrativo desta situação ocorre com a família Bromeliaceae no domínio da mata atlântica. Em outros casos, a interação genótipo-habitat é tão elevada que algumas espécies não sobrevivem em ambientes degradados ou com menor complexidade (palmiteiro x fauna dispersora de sementes, por exemplo). O significado disso é que, em muitos casos, mais importante do que conservar um germoplasma específico, toma-se necessário estabelecer estratégias para a conservação de todo o ecossistema.

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinada em 1992, define em seu Art. 1que "os objetivos desta Convenção são a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, mediante o financiamento adequado". Acesso pode ser entendido como o estudo e uso dos componentes da biodiversidade e, como pontuado por ARCANIO (1997), as implicações do termo acesso podem ser analisadas sob três diferentes contextos: acesso aos recursos genéticos, acesso à tecnologia e acesso aos benefícios advindos do uso da biodiversidade. E importante notar que por influência dos países do Hemisfério Sul a biodiversidade deixou de ser "patrimônio comum da humanidade" e passou a ser "preocupação comum da humanidade". Além disso, a CDB passou a reconhecer os "direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos biológicos".

O Brasil, em sua extraordinária biodiversidade, tem todas as condições de criar nos trópicos uma civilização moderna baseada na gestão prudente de suas florestas, do seu solo e das suas águas (SACHS, 1996). Afirma-se que o patenteamento de seres vivos e de processos biológicos é um dos componentes da, estratégia que visa a garantir o ingresso e permanência de grandes empresas transnacionais em mercados emergentes e de grande potencial, como aqueles relacionados com as biotecnologias, indústrias de sementes e farmacêutica. Desta maneira, seria desejável que os direitos de propriedade intelectual, na área biológica, fossem concedidos na vigência de uma legislação nacional soberana, regu- lamentando o acesso à biodiversidade nativa, conforme disposto na Convenção da Diversidade Biológica, em vigor desde 29 de dezembro de 1993. Esta convenção traz avanços consideráveis na questão dos recursos genéticos ao incluir a biodiversidade na sua totalidade, ao considerar todas as formas de manejo da biodiversidade e ao estabelecer instrumentos para subsidiar o planejamento e uso da biodiversidade.

As propostas mais recentes de se regulamentar o acesso à biodiversidade brasileira surgiram na constituição de 1988. No seu Cap. VI, Art. 225, inciso II é estabelecida a incumbência do poder público para "preservar a diversidade e integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético". O projeto de lei do senado n° 306, de 1995, de autoria da Senadora Marina da Silva (AC), em tramitação no senado, com um substitutivo do Senador Osmar Dias (PR), dispõe sobre os instrumentos de controle do acesso aos recursos genéticos do país. Este projeto deverá regular direitos e obrigações relativos ao acesso a recursos genéticos, material genético e produtos derivados, tanto em ex situ como in situ, existentes no território nacional, dos quais o Brasil é o país de origem; bem como os conhecimentos tradicionais de populações indígenas e comunidades locais, associados a recursos genéticos ou produtos derivados e a cultivos agrícolas domesticados no Brasil. O projeto ainda estabelece que "todo e qualquer procedimento de acesso a re- cursos genéticos em território brasileiro, em condições in situ, dependerá de autorização prévia pela autoridade competente e da assinatura e publicação de contrato entre a autoridade competente e as pessoas físicas ou jurídicas interessadas", sendo consideradas partes no contrato de acesso: a) o Estado, representado pela autoridade competente; b) o solicitante do acesso, c) a agência de acesso, d) o provedor do conhecimento tradicional ou do cultivo agrícola domesticado, no caso de contratos de acesso que envolvam estes componentes. Ainda não há previsão de votação deste projeto, contudo é importante salientar que, ao contrário da tramitação da Lei de Patentes, na tramitação deste PL, ocorreram várias audiências públicas, com participação de amplos setores de sociedade, principalmente as Organizações Não Governamentais. De qualquer maneira, há certo consenso que seis pontos básicos devem nortear a discussão sobre esta questão: a definição precisa sobre o uso sustentável dos recursos genéticos; os aspectos associados à conservação de germoplasma ex situ e in situ, os aspectos associados à soberania, às questões contratuais; à transferência de tecnologia e à proteção do conhecimento indígena.

3. Tecnologias Pertinentes e Sustentabilidade

A necessidade de manutenção ou melhoria da qualidade do ambiente de cultivo e as limitações à expansão das fronteiras agrícolas, associadas a uma expectativa de melhoria da qualidade de vida no meio rural e nas cidades, exigem uma maior eficiência dos processos relacionados à produção vegetal, o que poderá ser alcançado com o uso de tecnologias pertinentes. Tecnologias pertinentes, no conceito proposto pela FAO (IZQUIERDO et al. 1995), compreendem ferramentas tecnológicas que contribuem para o desenvolvimento sustentável, por serem tecnicamente factíveis no contexto do desenvolvimento técnico-científico de um país, por pro- porcionarem benefícios aos destinatários, por serem ambientalmente seguras e sócio-econômica e culturalmente assimiláveis. As tecnologias pertinentes referem-se, em particular, àquelas tecnologias que promovem o desenvolvimento de uma agricultura sustentável através do uso de recursos genéticos e de processos de transformação destes recursos, considerando a cultura e a tecnologia local. O termo uso sustentável dos recursos genéticos é aqui empregado de acordo com o texto da Convenção da Diversidade Biológica adotado a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro de 3 a 14 de junho de 1992 e define o uso dos componentes da diversidade biológica de maneira a evitar o seu declínio, mantendo assim o potencial de tomar compatíveis as aspirações e necessidades das gerações presente e futuras.

Como decorrência, os principais centros de pesquisa agronômica do mundo estão atualmente elaborando e difundindo modelos tecnológicos que utilizem mais o conhecimento do que o capital e, sobretudo, que sejam mais adaptados aos ambientes naturais em que vivem as populações do campo. Os pesquisadores que trabalham nesta direção apontam para uma revolução dupla, que possa ao mesmo tempo ampliar a capacidade produtiva, mas que valorize também os ambientes sociais e naturais que foram marginalizados pelos padrões da pesquisa agronômica tradicional. A percepção geral é que existem cada vez menos razões técnicas que possam impedir que os agricultores tenham no aumento de sua capacidade produtiva o elemento chave de sua emancipação social (ABRAMOWAY & SACHS, 1996).

Assim, a procura por tecnologias pertinentes à realidade agrícola e fundiária do Sul do Brasil, bem como as condições físicas, químicas e ecológicas das áreas agrícolas, parecem convergir na direção de se adequar o sistema de produção ao ambiente e não o contrário, sem, contudo, abrir mão da produtividade. Neste contexto, a maximização do processo produtivo e a conservação do ambiente estão intimamente associadas com o aproveitamento da diversidade vegetal, no que tange à variação entre as espécies e dentro das espécies.

4. Biodiversidade e Oportunidades Agrícolas

A grande diversidade das formações florestais que cobrem o Estado de Santa Catarina (SC) e a riqueza de material genético crioulo existente nas pequenas propriedades criam novas possibilidades para redirecionar o modelo de pesquisa e exploração agrícola vigente, através do manejo adequado destes recursos genéticos (Figura 1). A estrutura fundiária dos Estados do Paraná (PR), Santa Catarina (SC) e Rio Grande do Sul (RS) tem um forte componente baseado em minifúndios e esta característica, associada aos aspectos sócio-culturais dos diferentes grupos de imigrantes que desencadearam a exploração agrícola nestas regiões, favoreceu, ao longo dos anos, a formação de um imenso banco de germoplasma de variedades crioulas ('land varieties') e de variedades cultivadas, antigas e modernas, que se adequam a uma grande variedade de microclimas e regiões fisiográficas. A diversidade genética doméstica compreende a variação genética existente entre as espécies, cultivares e indivíduos de espécies vegetais que foram domesticadas, incluindo, muitas vezes, seus ancestrais não domesticados. Tal germoplasma demonstra uma grande adaptação aos locais de cultivo e se constitui em um pool gênico com características singulares, por vezes único, que pode ser utilizado no melhoramento e que necessita ser caracterizado e conservado. A caracterização, a conservação e a utilização deste germoplasma são desafios que a nova pesquisa agrícola deve perseguir. Especificamente para a conservação da biodiversidade doméstica, podem ser propostos sistemas in situ em nível de propriedade agrícola (in situ on farm).


Considerando as características de relevo, clima e estrutura fundiária e social do Estado de SC, dois ramos da agricultura mostram-se especialmente relevantes: Silvicultura e Fruticultura. O Estado apresenta um relevo predominantemente declivoso, sendo originalmente coberto pela Floresta Tropical Atlântica em sua maior parte. Atualmente, segundo a FATMA (1977), restam 29,14% da área coberta por esta floresta no Estado, em sua grande maioria na forma de fragmentos com formações florestais secundárias. A expressão Mata Atlântica (Floresta Tropical Atlântica), aqui empregada, representa o domínio da Mata Atlântica, que inclui as formações florestais e ecossistemas associados como a Floresta Ombrófila Mista, Floresta Ombrófila Aberta, Floresta Ombrófila Estacionai Decidual, Floresta Om- brófila Estacionai Semidecidual, manguezais, restingas, campos de altitude e brejos interioranos (Decreto Lei n° 750 de 10 de fevereiro de 1993).

A Mata Atlântica sofreu forte alteração em sua estrutura e composição, inicialmente com os primeiros habitantes, os índios nativos, que praticavam a agricultura abrindo clareiras na mata e, posteriormente, com os agricultores imigrantes que utilizaram tanto o processo extrativista como a ampliação de atividades e fronteiras agrícolas. Do ponto de vista da dinâmica da regeneração, a extração seletiva de madeiras nobres condicionou a floresta a uma dinâmica populacional diversa da natural. Espécies de menor freqüência tornaram-se abundantes, enquanto outras se extinguiram, em parte devido à eliminação de plantas matrizes fornecedoras de sementes. Além disso, a derrubada de grandes áreas provocou o isolamento de populações de plantas, impedindo a retomada da dinâmica sucessional em áreas de formação secundária, além da possível perda de valiosos recursos genéticos. A atividade extrativista predatória neste ecossistema também foi responsável pela redução drástica e até pela extinção de populações de animais, os quais têm um papel importante na dinâmica das florestas, especialmente pela sua ação como polinizadores específicos (ex. abelhas nativas), dispersores de sementes (ex. avi-fauna local) ou pela fitofagia (ex. lagartas desfolhadoras).

O ecossistema da Floresta Tropical Atlântica, cuja característica mais notável é a sua elevada biodiversidade, foi seriamente comprometido. Este aspecto torna-se evidente quando se considera a biodiversidade não somente como o conjunto de espécies de plantas, animais e outros organismos, mas também a amplitude da variação genética dentro de cada espécie, e a variedade de ambientes e processos ecológicos dentro dos ecossistemas.

Neste contexto, a conservação destes ecossistemas e, conseqüentemente, da diversidade neles existente, implica necessariamente o desenvolvimento e utilização de estratégias de manejo fundamentadas no uso múltiplo da diversidade genética existente, bem como no conhecimento da auto-ecologia das espécies de interesse. A utilização de recursos florestais pode permitir a obtenção de renda de modo sustentável para os proprietários da terra. Neste sentido, torna-se fundamental a caracterização do material genético existente nas formações florestais, com desdobramentos posteriores em programas de melhoramento genético e manejo de determinadas espécies, para aumentar o rendimento econômico desta exploração.

Nas áreas degradadas ou com uso agrícola inadequado, e considerando a vocação de uso relacionada ao plantio com espécies perenes ou a necessidade de cobertura vegetal permanente, o potencial de uso com o cultivo de espécies florestais exóticas é elevado. O Estado apresenta a maior parte de sua superfície com declividade superior a 25%. Nos últimos anos, a demanda por áreas para plantios de espécies de Pinus e Eucallyptus aumentou significativamente, principalmente pelo déficit de matéria prima no parque industrial madeireiro do Estado.

Além disso, várias espécies nativas poderiam ser utilizadas em programas de reflorestamento. Entre elas, destaca-se a Araucaria angustifolia (pinheiro brasileiro) cujo potencial para a produção de alimento, madeira nobre e papel e celulose é enorme. As áreas originalmente cobertas por esta espécie, isoladamente ou em suas combinações mais promissoras com a canela-imbuia e a erva-mate, correspondiam, no início do século, a mais de 20 milhões de hectares nos Estados do PR, SC e RS (CARVALHO, 1994). A exploração desordenada desta espécie reduziu sua área a 5% da composição original. O potencial produtivo do pinheiro brasileiro tem sido demonstrado em várias regiões, sendo que, em alguns sítios de produção, seu crescimento é igual ou superior às outras coníferas. Contudo, o seu potencial genético ainda não foi detalhadamente estudado e aproveitado.

Por outro lado, as áreas com plantio de outras espécies perenes, especialmente as frutíferas, também têm aumentado, especialmente pelas perspectivas de mercado crescente, tanto no país como em nível internacional, em particular nos países do MERCOSUL e da Comunidade Européia.

O Sul do Brasil apresenta grandes áreas de produção de plantas frutíferas. No Estado de SC, a fruticultura dç clima temperado não é atividade recente, tendo iniciado com a colonização europeia. Porém, esta atividade ganhou uma maior expressão a partir de 1970 com a criação do Projeto de Fruticultura de Clima Temperado (PROFIT), programa governamental que procurou incentivar a implantação e o desenvolvimento desta atividade no Estado. Atualmente, o Estado de SC conta com uma expressiva área de produção de maçã, uva, pêssego, ameixa, pêra e kiwi, aparecendo no contexto nacional como um dos principais estados produtores de frutas de clima temperado, destacando-se a cultura da macieira, cuja produção anual atingiu 355.000t na safra 1996/97, representando 54% da produção nacional (BOEING, 1997).

A fruticultura de clima temperado tem demonstrado ser uma atividade adequada às condições edafo-climáticas e sócio-econômico-culturais do Estado, apresentando uma alta densidade econômica com excelente retorno à terra ocupada, ao capital investido e à mão de obra utilizada. Além da criação de riquezas, esta atividade contribui para a sustentação e fixação do homem no meio rural, devido aos altos rendimentos, mesmo em pequenas propriedades e a utilização intensiva de mão-de-obra nas propriedades maiores.

O litoral do Estado de SC dispõe de mais de três milhões de hectares, com áreas disponíveis para a produção hortícola. Neste ambiente, são exploradas fruteiras tropicais e sub-tropicais, notadamente a bananeira, os citros, o maracujazeiro e o abacaxizeiro, que além de abastecerem os mercados locais, têm vantagem competitiva nos mercados do Mercosul. A organização de produtores do litoral Norte do Estado, para a produção e exportação de bananas para o mercado argentino, e de produtores do Sul do Estado, para a produção e exportação de abacaxi, tem sido um fator determinante para a manutenção e ampliação destes mercados. É conveniente lembrar que esta região geográfica se constitui no limite austral para cultivo de espécies tropicais. Esta condição climática cria oportunidades para a diversificação com outras espécies hortícolas.

A atividade frutícola nestas regiões apresenta características comuns às das principais regiões produtoras do mundo, tais como alta produtividade, alta rentabilidade e fixação do homem no campo, por ser intensiva em mão-de-obra. E ilustrativo lembrar que um hectare de área cultivada com plantas frutíferas apresenta uma demanda média de mão-de-obra de três homens, enquanto que explorações extensivas, como cereais e leguminosas, empregam, em média, um homem para cada 10ha. Por outro lado dados atuais revelam que a rentabilidade média de áreas cultivadas com grãos no Brasil varia entre R$300,00 a R$500,00/ha, enquanto que a rentabilidade média de áreas cultivadas com frutíferas atinge valores médios de R$6.000,00/ha (MAARA, 1994).

Uma outra característica da exploração frutícola é a demanda contínua por tecnologias relacionadas com o incremento da produtividade e com a redução de custos de produção. Nos últimos anos, o mercado consumidor de frutas e hortaliças tem apresentado uma nova demanda associada à qualidade biológica destes produtos. Esta nova demanda implica a revisão das tecnologias relacionadas aos sistemas de produção até então empregados. Variedades menos dependentes do uso de insumos (em especial dos agrotóxicos) e mais adaptadas aos diferentes ambientes de cultivo necessitam ser criadas através da manipulação dos recursos genéticos.

A produção de plantas ornamentais também apresenta um grande potencial econômico para o Estado. SC apresenta várias condições favoráveis para se tornar um grande produtor e exportador, tais como: tradição na produção, dispõe de material genético diversificado e abundante (ex. bromélias e orquídeas) e encontra-se próximo a grandes mercados consumidores. Esta atividade exige grandes investimentos em capital, tecnologia e mão-de-obra qualificada, os quais são remunerados pelo alto retorno proporcionado.

Além disso, no Estado de SC, populações indígenas e milhares de produtores cultivam plantas de ciclo anual, como milho, soja, feijão, cebola, alho, etc. Em uma parcela significativa destas propriedades, ainda são cultivadas variedades crioulas, não melhoradas em programas de melhoramento. Tais variedades foram ao longo do tempo acumulando modificações genéticas que contribuíram para sua adaptação às condições ambientais locais. Pode-se afirmar que muitas características de grande importância estão presentes neste tipo de germoplasma e que poderão ser utilizadas em programas de melhoramento voltados para condições específicas, constituindo-se, portanto, em um verdadeiro patrimônio que merece ser estudado e conservado.

5. Nova Abordagem: Aproveitamento do Ambiente

Atualmente, na maior parte das atividades agrícolas, o enfoque referente aos ganhos de produtividade relaciona-se com a obtenção de materiais genéticos que aproveitem melhor o ambiente, com menor utilização de insumos, levando a uma agricultura mais eficiente, do ponto de vista ecológico e econômico, seja nos ecossistemas naturais, seja em áreas cultivadas. Técnicas biotecnológicas pertinentes poderão ser de grande valia na propagação de genótipos superiores e adaptados. Assim, a utilização de recursos genéticos adaptados aos ambientes disponíveis é uma estratégia adequada e de baixo custo para o aumento da eficiência do processo de produção .vegetal e à melhoria da qualidade de vida no meio rural.

As novas demandas da pesquisa agrícola requerem a formação de recursos humanos com níveis avançados de qualificação e capazes de elaborar e executar propostas científicas, tecnológicas e políticas relacionadas ao uso, melhoramento e conservação dos recursos genéticos, domesticados ou não. Esta nova ênfase tem demandas associadas predominantemente ao uso intensivo do conhecimento. Mais do que nunca, o profissional de concepção, com sólida formação básica, constitui uma necessidade, no sentido de agregar o aprendizado e a convivência com a pesquisa científica e tecnológica.

Estas novas demandas na pesquisa em recursos genéticos vegetais devem obrigatoriamente promover a agregação de todos os pesquisadores relacionados com esta área, atuantes nas Universidades e demais instituições públicas ou privadas de pesquisa. Em SC, a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina S.A. (EPAGRI) conduziu vários programas de pesquisa que geraram tecnologias agrícolas que têm sido repassadas aos produtores. Para isso, estabeleceu uma considerável rede de estações experimentais e centros de treinamento em todas as regiões fisiográficas do Estado. Esta estrutura poderia ser utilizada para o estabelecimento de bancos de germoplasma, visando a conservação e o melhoramento genético de variedades crioulas e variedades cultivadas. Como exemplo, pode-se citar o grande número e variedades de mandioca existentes no Estado que, ao longo dos anos, foram mantidas em cultivo visando a alimentação humana, animal e a fabricação de farinha e polvilho. As alterações drásticas observadas nos sistemas de produção agrícola no Brasil, nos últimos anos, resultaram em um sistema de pesquisa e exploração agrícola baseado em monocultivos com reflexos no sistema de produção agrícola do Estado. Os agricultores começaram a suprimir a diversificação do cultivo nas suas propriedades e, com isso, grande parte dos recursos vegetais - especialmente variedades crioulas - vem sendo abandonadas e correm o risco de se extinguirem. Desta maneira, torna-se imprescindível a coleta, caracterização e manutenção deste germoplasma vegetal que poderá ser passível de utilização e melhoramento.

6. A nova pesquisa em recursos genéticos vegetais

As novas demandas de pesquisa no setor agrícola estão associadas à necessidade de se trabalhar os recursos genéticos vegetais sob uma ótica associada à condição brasileira de detentora da maior biodiversidade do planeta. Parte da diversidade genética vegetal está sendo devastada rapidamente. São necessários esforços de pesquisa para a caracterização, a conservação, a utilização convencional e não tradicional e o melhoramento deste germoplasma, empregando-se as chamadas tecnologias pertinentes. Neste sentido, seria de todo recomendável uma associação de esforços entre Universidades, através de seus grupos de pesquisa e pós-graduação, empresas públicas de pesquisa e organizações não governamentais, para o estabelecimento de programas de pesquisa conjuntos. Desta maneira, seria possível a formação e a atualização de pesquisadores capazes de manejar a diversidade genética existente, através do domínio e emprego de tecnologias perti- nentes, habilitando-os a atuar nas transformações agrícolas atuais, de modo a favorecer o desenvolvimento agrícola sustentável.

A Figura 1 resume uma proposta de um programa de pesquisa associado à caracterização, conservação, manejo e utilização da diversidade genética vegetal, considerando o ambiente, os recursos (domesticados e não domesticados), as linhas de atuação e os produtos e processos a serem obtidos, estabelecendo-se uma visão abrangente e holística da diversidade genética vegetal. Por apresentar uma abordagem estrutural, esse programa propõe ações de curto, médio e longo prazos, partindo-se da pressuposição de que sustentabilidade e economicidade de recursos naturais somente podem ser abordadas sob este prisma. Dessa maneira, os recursos genéticos vegetais são analisados em função dos ambientes e dos recursos propriamente ditos. A partir disso são estabelecidas as linhas de ação e os produtos ou processos resultantes. A proposta final relaciona-se com a caracterização, a conservação, a utilização, o manejo e o melhoramento da diversidade genética vegetal sob a ótica das tecnologias pertinentes.

Recebido para publicação em 29.09.97. Aprovado em 13.05.98

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Set 1998

    Histórico

    • Aceito
      13 Maio 1998
    • Recebido
      29 Set 1997
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