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Porfiria eritropoética congénita em bovino no estado de Minas Gerais

Bovine congenital erythropoietic porphyria in the state of Minas Gerais, Brazil

Resumos

Relata-se um caso de porfiria eritropoética congênita em um bovino Holandês Preto e Branco, fêmea, de 9 meses de idade, proveniente da cidade de Machado, MG. O quadro clínico caracterizava-se pela presença de lesões crônicas de fotossensibilizaçâo observadas nas partes não pigmentadas do corpo, que apareceram após a exposição do animal à luz solar, aos 4 meses de idade. Além da fotossensibilizaçâo, as alterações macroscópicas mais evidentes foram coloração marrom-avermelhada dos ossos e marrom-rosada dos dentes, causadas pela deposição de porfirina.

porfiria eritropoética congênita; bovino; porfirina


A case of bovine congenital erythropoietic porphyria in a 9-month-old Holstein female, from Machado, Minas Gerais, Brazil is described. The calf showed chronic cutaneous photosensitization, limited to white-haired areas, when exposed to sun-light. Reddish-brown discoloration of bones and brownish-pink discoloration of teeth, caused by deposition of porphyrin, were observed.

congenital erythropoietic porphyria; bovine; porphyrin


PORFIRIA ERITROPOÉTICA CONGÉNITA EM BOVINO NO ESTADO DE MINAS GERAIS

BOVINE CONGENITAL ERYTHROPOIETIC PORPHYRIA IN THE STATE OF MINAS GERAIS, BRAZIL

Mary Suzan Varaschin1 1 Médico Veterinário, Mestre, Professor de Patologia Animal na Universidade de Alfenas (UNIFENAS), Rodovia MG 179, Km 0. Fax: (035) 291-4403, 37130-000. E - mail: maryptol@bc.unifenas.br. Autor para correspondência. Flademir Wouters2 1 Médico Veterinário, Mestre, Professor de Patologia Animal na Universidade de Alfenas (UNIFENAS), Rodovia MG 179, Km 0. Fax: (035) 291-4403, 37130-000. E - mail: maryptol@bc.unifenas.br. Autor para correspondência. Everton Schmidt Prado3 1 Médico Veterinário, Mestre, Professor de Patologia Animal na Universidade de Alfenas (UNIFENAS), Rodovia MG 179, Km 0. Fax: (035) 291-4403, 37130-000. E - mail: maryptol@bc.unifenas.br. Autor para correspondência.

- RELATO DE CASO -

RESUMO

Relata-se um caso de porfiria eritropoética congênita em um bovino Holandês Preto e Branco, fêmea, de 9 meses de idade, proveniente da cidade de Machado, MG. O quadro clínico caracterizava-se pela presença de lesões crônicas de fotossensibilizaçâo observadas nas partes não pigmentadas do corpo, que apareceram após a exposição do animal à luz solar, aos 4 meses de idade. Além da fotossensibilizaçâo, as alterações macroscópicas mais evidentes foram coloração marrom-avermelhada dos ossos e marrom-rosada dos dentes, causadas pela deposição de porfirina.

Palavras-chave: porfiria eritropoética congênita, bovino, porfirina

SUMMARY

A case of bovine congenital erythropoietic porphyria in a 9-month-old Holstein female, from Machado, Minas Gerais, Brazil is described. The calf showed chronic cutaneous photosensitization, limited to white-haired areas, when exposed to sun-light. Reddish-brown discoloration of bones and brownish-pink discoloration of teeth, caused by deposition of porphyrin, were observed.

Key words: congenital erythropoietic porphyria, bovine, porphyrin.

INTRODUÇÃO

As porfírias são um grupo de doenças nas quais quantidades excessivas e tipos anormais de porfirinas se acumulam nos tecidos, no sangue e nas fezes (FRANCO et al., 1992, JUBB et al, 1993, CHEVILLE, 1994). Podem ter origem hereditária ou serem adquiridas e são agrupadas em duas categorias principais, com base no tecido onde o defeito metabólico ocorre: porfiria eritropoética e porfiria hepática. A forma hereditária é a mais freqüente (GIDDENS et al., 1975). A porfiria congênita é causada por defeito enzimático que impede a conversão de porfibilinogênio em uroporfirinogênio, produzindo-se excesso de porfirinas do tipo I, as quais não são capazes de sintetizar a porção heme da hemoglobina (CHEVILLE, 1994).

A natureza dos defeitos metabólicos na porfiria eritropoética congênita dos bovinos (PECB) é, primariamente, a deficiência na atividade do uroporfirinogênio III co-sintetase, enzima chave na biossíntese do heme (FRANCO et al., 1992, JUBB et al., 1993). A falha dessa enzima resulta na produção dos agentes fotodinâmicos uroporfirinogênio I e coproporfirinogênio I ( PLUMLEE, 1995), que são oxidados, passando às porfirias correspondentes, uroporfirina e coproporfirina. Estas porfirinas não podem ser empregadas na síntese da hemoglobina, além de interferirem com a eritropoese (CHEVILLE, 1994). Em conseqüência disso, escapam rapidamente dos eritrócitos em amadurecimento para o plasma, ocorrendo quantidades excessivas de porfirinas livres, que se disseminam através do corpo, sendo excretadas nas fezes (predominantemente coproporfirina I) e na urina (predominantemente uroporfirina I). Depósitos de porfirina ocorrem em todos os tecidos, principalmente nos dentes, nos ossos e na pele (FRANCO et al., 1992).

Pelo excesso de porfirina excretada na urina, o animal pode apresentar urina marrom-escura. A urina tende a escurecer na exposição à luz e ficar vermelha-fluorescente na exposição à radiação ultravioleta (WATSON, 1990, JUBB et al., 1993). Ocorre anemia, geralmente do tipo macrocítica normocrômica, provavelmente, como resultado de um processo hemolítico, acompanhada de deficiência de homoglobina. Os eritrócitos com acúmulo excessivo de porfirinas são mais susceptíveis à hemolise. Adicionalmente, há marcada diminuição na síntese do heme e demora na maturação dos eritrócitos, o que acentua a anemia (FRANCO et al., 1992). A fotossensibilização, lesão característica da doença (WATSON, 1990, JUBB et al., 1993, PLUMLEE, 1995), é induzida pelo depósito de porfirina na pele, especialmente uroporfirina I e pela ação do oxigênio e da luz solar, formando-se radicais livres (especialmente oxigênio monovalente), que danificam os componentes da membrana celular, da mitocôndria ou dos lisossomos (JUBB et al., 1993). A fotodermatite é caracterizada por eritema agudo, edema e necrose superficial das porções não pigmentadas da pele. Na necropsia, além das lesões citadas acima, são encontradas alterações nos ossos que, em cortes longitudinais, aparecem marrom ou marrom-avermelhados e vermelho fluorescentes quando iluminados com luz ultravioleta. A coloração dos dentes pode variar de rosa suave, rosa escuro, marrom-avermelhada e marrom escura (FRANCO et al., 1992). Acredita-se que os depósitos de porfirina nos dentes e nos ossos ocorram devido a sua afinidade por componentes minerais (CHEVILLE, 1994). O pigmento é depositado também em outros tecidos, podendo ser óbvio nos pulmões, no baço e nos rins. No rim é depositado no tecido intersticial do epitélio tubular (JUBB et al., 1993)

A PECB é uma doença hereditária rara, transmitida por um gene recessivo autossômico simples (FRANCO et al., 1992, JUBB et al., 1993), normalmente diagnosticada em rebanhos consanguíneos. Ocorre em ambos os sexos, mas a incidência parece ser maior nas fêmeas do que nos machos (FRANCO et al., 1992). A doença é conhecida, também, como osteohemocromatose devido à pigmentação marrom-avermelhada dos ossos e como doença do dente cor-de-rosa, pela coloração dos dentes (JUBB et al., 1993, PLUMLEE, 1995).

PECB tem sido descrita nos Estados Unidos, Canadá, Jamaica, Dinamarca, Inglaterra, África do Sul, Alemanha, Austrália e Argentina (FRANCO et al., 1992). Afeta várias raças, como Holstein- Friesian (FRANCO et al., 1992, PLUMLEE, 1995), Shorthorn (JUBB et al., 1993), Hereford, Jersey, Angus (FRANCO, et al., 1992), Ayrshire e o gado Jamaicano (JUBB et al., 1993). Além dos bovinos, a porfiria eritropoética congênita é descrita em felinos (GIDDENS et al., 1975, WATSON, 1990), suínos, raposas (CHEVILLE, 1994) e humanos (CRAM et al., apud GIDDENS et al., 1975).

RELATO DE CASO

Um bovino Holandês Preto e Branco, fêmea, com aproximadamente 9 meses de idade, proveniente do município de Machado, MG, Brasil e que apresentava quadro de fotossensibilização, foi enviado para o Setor de Patologia Veterinária da Universidade de Alfenas, MG, para necropsia. Fragmentos de tecidos foram coletados e fixados em formol a 10%, incluídos em parafina e corados pela hematoxilina e eosina.

O animal era filho de uma vaca mestiça Holandês que foi inseminada com sêmen de um touro Holandês, chamado Typemaker, não havendo parentesco entre ambos. Nenhum outro caso clínico foi diagnosticado na propriedade ou região. O animal doente apresentava quadro clínico de fotossensibilização desde os quatro meses de idade, época em que os animais eram colocados em piquetes em regime de semiconfinamento, recebendo silagem de milho, feno de "coast-cross" e ração concentrada. O proprietário optou pelo sacrifício do animal, uma vez que este permanecia em decúbito estemal, devido às lesões no nervo ciático, não se efetuando qualquer outro exame complementar.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As lesões caracterizavam-se por áreas de alopecia associadas a avermelhamento da pele e formação de crostas observadas nas regiões despigmentadas do dorso e da cernelha. Os pêlos apresentavam-se arrepiados. A mucosa da vulva estava discretamente pálida. A urina tinha coloração marrom-escura, levando à suspeita clínica inicial de babesiose. O animal apresentava, também, pododermatite e artrite. Adicionalmente havia lesão traumática no nervo ciático do membro posterior esquerdo. O quadro de fotossensibilização apresentava melhora aparente após tratamento antisséptico tópico e quando o animal era mantido em locais com sombra, agravando-se quando era exposto novamente ao sol.

Macroscopicamente, além das lesões de fotossensibilização, foi observado, também, coloração marrom-rosada dos dentes. Todos os ossos estavam marrom-avermelhados (Figura l), aspecto melhor evidenciado após a remoção do periósteo. Ao corte, observou-se medula óssea abundante e vermelho-escura. Os rins estavam aumentados de volume, marrom-avermelhados e áreas esbranquiçadas, multifocais, de aproximadamente 0,1cm de diâmetro eram observadas na superfície do órgão. A bexiga estava repleta de urina marrom-avermelhada. Os demais órgãos não apresentavam alterações macroscópicas evidentes. No exame histológico dos rins, foi observada nefrite intersticial linfoplasmocitária multifocal discreta, com pigmento marrom-amarelado no interior de macrófagos intersticiais, em tufos glomerulares, na luz e no epitélio tubular. Havia ainda material eosinofílico amorfo na luz tubular.


A coloração marrom-avermelhada dos ossos e marrom-rosada dos dentes, acompanhada por fotodermatite das partes despigmentadas após a exposição à luz solar, associada à idade do animal e ao manejo adotado na propriedade permitiram o diagnóstico de porfiria eritropoética congênita dos bovinos. Neste caso, no entanto, não foi possível confirmar-se a origem hereditária da enfermidade.

Pelo manejo adotado na propriedade, os animais são mais expostos à luz solar, após os quatro meses de idade. Este fato parece explicar a manifestação da doença nesta idade. A porfirina (especialmente uroporfirina I) depositada na pele do animal afetado, pela ação do oxigênio e da luz solar, passa a induzir a formação de radicais livres que, por sua vez, levam às lesões de pele (FRANCO et al., 1992, JVBB etai, 1993)

A porfiria eritropoética congênita dos bovinos deve ser diferenciada da protoporfiria eritrocítica congênita bovina, caracterizada por fotossensibilização acentuada e causada por deficiência na atividade da enzima ferroquelatase, resultando no aumento da protoporfirina, agente fotodinâmico, no sangue e nos tecidos. A protoporfiria atinge principalmente bovinos da raça Limousin (HEALY et al., 1991, TROYER et al, 1991, BUCHANAN & CRAWSHAW, 1995), porém não ocorre alteração na cor dos dentes, dos ossos e da urina (TROYER et al, 1991, JUBB et al, 1993, CHEVILLE, 1994, PLUMLEE, 1995).

A suspeita de babesiose, devido à coloração da urina, foi descartada, pois não havia febre, sinal freqüente em animais com babesiose. Além da babesiose, a doença deve ser diferenciada de outras enfermidades que cursam com hemoglobinúria (FRANCO et al, 1992). Deve-se fazer, também, a diferenciação de intoxicação por Lantana spp, planta presente de norte a sul do Brasil, em que há apresentação de fotossensibilização acentuada e urina marrom-escura (RIET-CORREA et al., 1984). Enquanto a porfiria tende a ocorrer em casos isolados, a intoxicação por Lantana spp normalmente ocorre em surtos, após transporte de animais ou falta de alimento. Animais mantidos em pastagens formadas com Brachiaria spp não raramente apresentam fotossensibilização (JUBB et al, 1993). Além da ausência de tais plantas na propriedade e do manejo adotado, tais toxicoses não levam à alteração de cor dos dentes e ossos, e a fotossensibilização, nestes casos, é hepatógena.

A doença não tem grande importância econômica, pela ocorrência rara e porque as mortes não são freqüentes. As lesões podem ser controladas quando se mantém os animais afetados estabulados, ao abrigo da luz solar (FRANCO et al, 1992).

2 Médico Veterinário, Mestre, Professor de Patologia Animal, UNIFENAS.

3 Médico Veterinário, Professor de Clínica de Grandes Animais, UNIFENAS.

Recebido para publicação em 28.11.97. Aprovado em 13.05.98

  • BUCHANAN, M., CRAWSHAW, W.M. Bovine congenital erythropoietic protoporphyria in a pedigree Limousin heifer. Veterinary Record, v. 136, p. 640, 1995.
  • CHEVILLE, N.F. Introdução à Patologia Veterinária São Paulo: Manole, 1994. p. 293-294.
  • FRANCO, D.A., LIN, T.L., LEDER, J.A. Bovine congenital erythropoietic porphyria. The Compendium, v. 14, n. 6, p. 822-825, 1992.
  • GIDDENS, W.E., LABBE, R.F., SWANGO, L.J., et al Feline congenital erythropoietic porphyria associated with severe anemia and renal disease. American Journal of Pathology v. 80, n. 3, p.367-380, 1975.
  • HEALY, P.J., CAMILLERI, L., POULOS, V., et al Protoporphyria in Limousin cattle. Australian Veterinary Journal v. 69, n. 6, p. 144-145, 1991.
  • JUBB, K.V.F., KENNEDY, P.C., PALMER, N. Pathology of Domestic Animal 4. ed. São Diego: Academic Press, 1993. 3 v.
  • PLUMLEE, K.H. Photosensitization in ruminants. Veterinary Medicine, p. 605-612, 1995.
  • RIET-CORREA, F., MÉNDEZ, M.C., SCHILD, A.L., et al. Intoxicação por Lanterna glutinosa (Verbenaceae) em bovinos no Estado de Santa Catarina. Pesquisa Veterinária Brasileira, v. 4, n. 4, p. 147-153, 1984.
  • TROYER, D.L., AYERS, J., WOLLEN, H., et al Gross, microscopic and ultrastructural lesions of protoporphyria in Limousin calves. Journal of Veterinary Medical Association v. 38, p. 300-305, 1991.
  • WATSON, A.D.J. Feline precursor porphyria characterised by persistent delta aminolevulinic aciduria. Journal of Small Animal Practice, v. 31, p. 393-397, 1990.
  • 1
    Médico Veterinário, Mestre, Professor de Patologia Animal na Universidade de Alfenas (UNIFENAS), Rodovia MG 179, Km 0. Fax: (035) 291-4403, 37130-000. E - mail:
    maryptol@bc.unifenas.br. Autor para correspondência.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 1998

    Histórico

    • Aceito
      13 Maio 1998
    • Recebido
      28 Nov 1997
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