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Cão naturalmente infectado por Trypanosoma evansi em Santa Maria, RS, Brasil

Dog naturally infected by Trypanosoma evansi in Santa Maria, RS, Brasil

Resumos

Descreve-se, neste trabalho, as alterações hematológicas e o proteinograma de um cão naturalmente infectado por Trypanosoma evansi. Este animal apresentou anemia normocítica normocrômica, leucopenia com linfopenia seguida por neutropenia e linfocitose; trombocitopenia; hiperproteinemia com aumento das frações beta e gama globulinas e hipoalbuminemia. Por ser este o primeiro relato de infecção por T. evansi em cães no município de Santa Maria, RS, destaca-se a sua importância epidemiológica, alertando os médicos veterinários para a existência de reservatórios do parasita na região e para a possibilidade de novos achados laboratoriais.

Trypanosoma evansi; cães; anemia; hipoalbuminemia; hipergamaglobulinemia


This paper describes the hematological alterations and proteinogram of a dog naturally infected by Trypanosoma evansi. This dog was presented with normochromic-normocytic anemia, leucopenia with lymphopenia followed for neutrophenia and lymphocitosis; and trombocitopenia. Hyperproteinemia with an increase of beta and gamma globulin fractions and hypoalbuminemia. By being the first case reported of T. evansi infection in dogs in Santa Maria, RS, Brazil, the epidemiological significance of such findings will alert the veterinarians to the existence of a possible parasite's reservoir in the region warning to the possibility of new laboratory findings.

Trypanosoma evansi; dogs; anemia; hypoalbuminemia; hypergamaglobulinemia


NOTA

CLÍNICA E CIRURGIA

Cão naturalmente infectado por Trypanosoma evansi em Santa Maria, RS, Brasil

Dog naturally infected by Trypanosoma evansi in Santa Maria, RS, Brasil

Carina FranciscatoI,1 1 Autor para correspondência. ; Sonia Terezinha dos Anjos LopesII; Marta M. G. TeixeiraIII; Silvia Gonzalez MonteiroIV; Patrícia WolkmerV; Bruna Carolina GarmatzVI; Carlos Breno PaimVII

IPrograma de Pós-graduação em Medicina Veterinária, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS 509, Km 05, no 3112, 97110-620, Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: carinafranciscato@yahoo.com.br

IIDepartamento de Clínica de Pequenos Animais, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

IIIDepartamento de Parasitologia, Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil

IVDepartamento de Parasitologia, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

VAutônomo, Santa Maria, RS, Brasil

VICurso de Medicina Veterinária, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

VIIHospital Veterinário, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

RESUMO

Descreve-se, neste trabalho, as alterações hematológicas e o proteinograma de um cão naturalmente infectado por Trypanosoma evansi. Este animal apresentou anemia normocítica normocrômica, leucopenia com linfopenia seguida por neutropenia e linfocitose; trombocitopenia; hiperproteinemia com aumento das frações beta e gama globulinas e hipoalbuminemia. Por ser este o primeiro relato de infecção por T. evansi em cães no município de Santa Maria, RS, destaca-se a sua importância epidemiológica, alertando os médicos veterinários para a existência de reservatórios do parasita na região e para a possibilidade de novos achados laboratoriais.

Palavras-chave:Trypanosoma evansi, cães, anemia, hipoalbuminemia,hipergamaglobulinemia.

ABSTRACT

This paper describes the hematological alterations and proteinogram of a dog naturally infected by Trypanosoma evansi. This dog was presented with normochromic-normocytic anemia, leucopenia with lymphopenia followed for neutrophenia and lymphocitosis; and trombocitopenia. Hyperproteinemia with an increase of beta and gamma globulin fractions and hypoalbuminemia. By being the first case reported of T. evansi infection in dogs in Santa Maria, RS, Brazil, the epidemiological significance of such findings will alert the veterinarians to the existence of a possible parasite's reservoir in the region warning to the possibility of new laboratory findings.

Key words:Trypanosoma evansi, dogs, anemia, hypoalbuminemia, hypergamaglobulinemia.

Trypanosoma evansi é um protozoário hemoflagelado da família Trypanosomatidae, transmitido mecanicamente por moscas hematófagas dos gêneros Stomoxys sp. e Tabanus sp. (HOARE, 1972). No Brasil, foram descritas duas formas da doença causada por T. evansi: a síndrome aguda, que causa morte rápida em eqüinos e cães não-tratados, e a crônica, que afeta diversos animais silvestres, principalmente capivaras (Hydrochaeris hydrochaeris) e quatis (Nasua nasua) (HERRERA et al., 2005). Os cães podem apresentar perda de peso, fraqueza progressiva, inapetência e anemia (AQUINO et al., 1999). Além disso, animais parasitados também podem apresentar febre intermitente, conjuntivite, edema das pernas e porções inferiores e aumento dos linfonodos superficiais (LEVINE, 1973).

O presente estudo tem como objetivo comunicar o achado de T. evansi em esfregaços sangüíneos de um cão naturalmente infectado, além de mostrar as alterações hematológicas e o proteinograma apresentados pelo animal. Este trabalho possui importância epidemiológica por ser o primeiro caso de T. evansi em cães identificado no Laboratório de Análises Clínicas do Hospital de Clínicas Veterinárias (HCV) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Um cão sem raça definida, macho, de 3 anos de idade, residente no município de Santa Maria e esporadicamente levado para propriedades rurais deste município, foi recebido no HCV da UFSM apresentando perda de peso há um ano, aproximadamente, fraqueza progressiva, inapetência e anemia. Sinais clínicos semelhantes foram descritos em eqüinos (SILVA et al., 1995) e em cães (AQUINO et al., 1999) infectados por T. evansi.

Durante a execução do hemograma, verificou-se a presença de protozoários do gênero Trypanosoma (Figura 1a); esfregaços confeccionados da capa flogística mostraram uma maior concentração de protozoários. A análise morfológica dos tripanossomas encontrados no cão estudado foi sugestiva de T. evansi devido à ausência de cinetoplasto nestes flagelados. A coloração dos esfregaços com o corante de DNA fluorescente 4'-6'-diamidino-2-phenylindole (DAPI) confirmou a ausência de moléculas de kDNA, uma característica exclusiva de T. evansi compartilhada por todos os isolados brasileiros já estudados (VENTURA et al., 2000). Os tripanossomas foram também confirmados como T. evansi utilizando-se um método de PCR espécie-específico desenvolvido por VENTURA et al. (2002), que tem como base o fragmento Te664 como seqüência repetitiva em cromossomos de T. evansi.


No eritrograma (Tabela 1), evidenciou-se uma anemia normocítica normocrômica, diferindo de SILVA et al. (1995), que citam a presença de anemia microcítica hipocrômica em cães naturalmente infectados por T. evansi. Provavelmente a anemia apresentada pelo animal do presente relato representa uma resposta à doença infecciosa crônica. SILVA et al. (1995) propõem algumas causas de anemia na Tripanossomíase Africana como: hemólise extra e intravascular pelo sistema imune, efeito traumático direto do tripanossoma ou eritropoiese diminuída.

No leucograma (Tabela 1), verificou-se leucopenia causada por linfopenia e eosinopenia, mas um novo hemograma revelou neutropenia e linfocitose, com leucócitos totais dentro da normalidade. O discreto aumento de linfócitos em cães experimentalmente infectados por T. evansi foi atribuído, por RUE et al. (2000), à resposta do hospedeiro infectado. Observou-se ainda a presença de linfócitos reativos e trombocitopenia. RUE et al. (1997) descreveram diminuição do número de plaquetas em cães experimentalmente infectados por T. evansi e JAIN (1993) cita que, em cães parasitados, a trombocitopenia ocorre pela diminuição da sobrevida das plaquetas. No proteinograma do animal (Tabela 1), encontrou-se hipoalbuminemia, aumento de beta globulinas e hipergamaglobulinemia, com características de gamopatia policlonal (Figura 1b), que pode ser justificada pela produção de imunoglobulinas em resposta à estimulação antigênica causada pelo parasita circulante (TIZARD, 2002). SANDOVAL et al. (1994) também observaram hipoalbuminemia e hipergamaglobulinemia na eletroforese sérica de ratos experimentalmente infectados.

A avaliação radiológica torácica do animal revelou aumento generalizado da silhueta cardíaca e congestão pulmonar. Uma semana após o tratamento com digitálico, diurético e antibiótico (cefalosporina), indicado devido aos sinais de insuficiência cardíaca congestiva, não foi mais possível a observação de tripanossomas nos esfregaços sangüíneos. Passados três meses, o cão retornou ao HCV para nova avaliação. Nesta ocasião, o proprietário relatou que havia usado tetraciclina no animal e, em novos esfregaços sangüíneos, não foram encontrados parasitas. Desta forma, apesar de não ter sido tratado com aceturato de diminazeno, que é a droga usada para o tratamento de T. evansi (COLPO et al., 2005), o cão se recuperou da infecção. Este comportamento é bastante diferente da maioria dos casos descritos em cães, sendo as infecções por T. evansi em cães e eqüinos geralmente fatais, se não tratadas rápida e adequadamente (MAHMOUD & GRAY, 1980).

No Brasil, o achado de animais infectados por T. evansi é predominante na região do Pantanal e em áreas vizinhas. Os animais encontrados infectados fora desta região sempre apresentaram um histórico ligado ao Pantanal. Nesta região, a infecção por T. evansi é uma enzootia em equilíbrio, com raros casos de surtos em eqüinos e cães (SILVA et al., 1995; HERRERA et al., 2004). Apenas muito recentemente foram relatados casos de infecção aguda e grave por T. evansi, com a morte de vários animais sem histórico de passagem pela região do Pantanal, no Estado do Rio Grande do Sul: cães em Uruguaiana, fronteira oeste do RS (COLPO et al., 2005), e eqüinos em São Sepé (região central do RS), que, provavelmente, foram infectados no município de Alegrete, na fronteira oeste do RS (CONRADO et al., 2005), sendo importante ressaltar que dezenas de eqüinos com tripanossomíase por T. evansi morreram no Estado entre 2003 e 2004 (RODRIGUES et al., 2005). Estes relatos, em conjunto com este trabalho, indicam que T. evansi deve ter sido recentemente introduzido na região Sul do Brasil, sendo provavelmente originário da Argentina, onde é comum em eqüinos (MONZON et al., 1995).

Recebido para publicação 12.08.05

Aprovado em 26.07.06

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  • 1
    Autor para correspondência.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Aceito
      26 Jul 2006
    • Recebido
      12 Ago 2005
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