Isolamento de espécies enterobacterianas em Stomoxys calcitrans

Isolation of enterobacterial species in Stomoxys calcitrans

NOTA

MICROBIOLOGIA

Isolamento de espécies enterobacterianas em Stomoxys calcitrans

Isolation of enterobacterial species in Stomoxys calcitrans

Bruno Gomes de Castro^I; Miliane Moreira Soares de Souza^II; Avelino José Bittencourt^III,1

^IPrograma de Pós-graduação em Ciências Veterinárias, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, RJ, Brasil

^IILaboratório de Bacteriologia, UFRRJ, Seropédica, RJ, Brasil

^IIIDepartamento de Medicina e Cirurgia Veterinária, UFRRJ, BR 465, Km 07, 23890-000, Seropédica, RJ, Brasil. E-mail: [e-mail]

RESUMO

Este estudo teve por objetivo relatar o isolamento de espécies enterobacterianas em segmentos de Stomoxys calcitrans coletadas, em propriedades rurais de dois municípios do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Nove das 28 espécies isoladas e identificadas ainda não haviam sido descritas na mosca dos estábulos. Algumas dessas espécies possuem destacado potencial patogênico ao homem e aos animais ou são oportunistas e outras não foram descritas como causadoras de enfermidades de importância médica ou veterinária.

Palavras-chave: mosca dos estábulos, Stomoxys calcitrans, Enterobacteriaceae, gado leiteiro.

ABSTRACT

This study aimed to report enterobacterial species recovered from body segments of Stomoxys calcitrans collected in dairy farms from counties of Rio de Janeiro State, Brazil. Nine of the isolated and identified species were not yet described in stable flies, according to the worldwide literature. Some of them are known to present pathogenical potential to man and other animals, while others were not described causing diseases of medical or veterinary importance.

Key words: stable fly, Stomoxys calcitrans, Enterobacteriaceae; dairy cattle.

Diversas moscas têm potencial de veiculação, bem como de transmissão, de mais de 100 microorganismos patogênicos, que estão associados a mais de 65 enfermidades humanas e animais (FÖRSTER et al., 2007). A mosca dos estábulos, Stomoxys calcitrans, se destaca pelo hematofagismo e pela capacidade de veicular agentes patogênicos, destacando-se vírus, fungos, protozoários, helmintos e bactérias, conforme citado em estudos anteriores (GREENBERG, 1971; OLIVEIRA et al., 2002; CASTRO et al., 2007). No Brasil, poucos estudos sobre a veiculação e a transmissão de microrganismos pela mosca dos estábulos foram realizados. Estes são incipientes quando comparados com os estudos realizados em outros muscóides, conforme relatado por GREENBERG (1971 e 1973). Esse autor realizou um apanhado da literatura sobre as enfermidades transmitidas por moscas que resultou na publicação de dois livros sobre a veiculação de microorganismos por S. calcitrans. Nestes estudos foram descritas 47 espécies bacterianas na mosca dos estábulos. Entre estas, as que mais se destacavam foram as enterobactérias, com aproximadamente 38% das descrições. Segundo o referido autor, foram descritas em Musca domestica (Diptera: Muscidae) aproximadamente 200 espécies e subespécies bacterianas. Isso possivelmente se explica pelo fato de a M. domestica apresentar maior sinantropismo e alto potencial biótico, quando comparada à mosca dos estábulos.

Esta nota tem por objetivo relatar a presença de enterobactérias ainda não descritas em segmentos da mosca dos estábulos. Neste estudo foram visitadas 10 propriedades rurais, localizadas nos municípios de Barra Mansa e Resende, no Estado do Rio de Janeiro, Brasil, onde foram coletadas 20 moscas em cada propriedade com o auxílio de um puçá entomológico previamente desinfetado. Depois da coleta, as moscas foram mantidas individualmente em tubos estéreis sob refrigeração.

No laboratório, espécimes de S. calcitrans foram mortas por congelamento a -10°C, sendo que a partir de então iniciou-se a análise individual das moscas coletadas. Primeiramente, a superfície externa das moscas foi lavada em Caldo Infuso Cérebro Coração (BHI - Merck^®) por ser um meio enriquecido, favorecendo assim o crescimento de todos os tipos bacterianos. Em seguida, as moscas foram agitadas no caldo e posteriormente foram transferidas para outro tubo de ensaio com álcool 70% por dois minutos, para esterilização de sua superfície externa (CASTRO et al., 2007).

Após o procedimento supracitado e sob a luz de um microscópio estereoscópio, em câmara de exaustão, cada mosca foi colocada em uma placa de Petri estéril invertida e as cabeças das moscas foram separadas do tórax, observando-se basicamente três estruturas unidas, cabeça, probóscida e glândulas salivares. Esse conjunto foi transferido a um outro tubo contendo caldo BHI e macerado com auxílio de um bastão de vidro estéril. Posteriormente, o restante do corpo foi colocado em uma nova placa de Petri invertida. Nessa placa, foi separado o abdome do tórax e foi retirada a porção abdominal do tubo digestório de cada mosca (CASTRO et al., 2007).

Cada caldo BHI, contendo cada um dos três segmentos avaliados, foi incubado a 37°C por 24 horas e posteriormente cada caldo foi subcultivado pelo método de esgotamento por estria, em placas de Agar MacConkey (Merck^®). Para isolamento dos gêneros Salmonella spp e Shigella spp, cada amostra em caldo BHI foi subcultivada em caldo Tetrationato de Sódio (BBL^®) para enriquecimento seletivo e incubado a 37°C por 24 horas. Após incubação, efetuou-se o subcultivo em Ágar Salmonella-Shigella (SS - BBL^®). Em seguida, as colônias compatíveis com enterobactérias foram avaliadas quanto à fermentação de glicose e à redução de nitrato, repicadas em Agar Eosina Azul de Metileno (EMB - Merck^®) e incubadas a 37°C por 24 horas. Posteriormente, as colônias foram observadas em relação à forma, à cor, às bordas, entre outras características fenotípicas, e foram submetidas às provas de identificação preliminar: coloração de Gram para observação das características morfológicas e tintoriais, teste de hidrólise ao KOH a 3% para confirmação do Gram e prova da catalase. Em seguida, as colônias foram submetidas aos seguintes procedimentos para identificação dos gêneros: inoculação em Agar Três Açúcares Ferro (TSI) inclinado para observação da fermentação de lactose, sacarose e glicose com produção de gás e produção de H²S, produção de Indol, prova de Voges-Proskauer e Vermelho de Metila, e degradação de citrato. Também foi avaliada a fermentação de outros carboidratos, hidrólise de gelatina, produção de urease, motilidade em ágar e utilização do malonato e outros diferenciais de acordo com o microrganismo envolvido para diferenciação das espécies (KONEMAN et al., 2001).

Ao final do processo laboratorial, nos três segmentos das 200 moscas avaliadas, foram isoladas 159 colônias enterobacterianas distintas, sendo que nessas colônias foram identificadas 28 espécies diferentes. Entre estas, nove espécies não haviam sido descritas até o presente momento em S. calcitrans.

A espécie Enterobacter amnigenus, identificada em cinco colônias isoladas, sendo observada principalmente no trato digestório abdominal das moscas coletadas, já foi isolada de casos de mastite bacteriana bovina e infecções hospitalares, no entanto, ela é considerada um agente oportunista (CAPDEVILA et al., 1998; KAGKLI et al., 2007). De acordo com a literatura, esta foi a primeira oportunidade em que E. amnigenus foi isolada a partir de S. calcitrans. Anteriormente, este agente havia sido relatado no intestino de larvas de mosquitos do gênero Anopheles spp. (KHAMPANG et al., 1999).

Outro agente verificado em cinco colônias foi Serratia odorifera, que é um agente comensal em plantas e alimentos, porém, com relatos de causar pneumonia, infecções urinárias e septicemia em humanos (LEE et al., 2006). No presente estudo, este agente foi isolado nos três segmentos estudados. Esta espécie ainda não havia sido isolada em S. calcitrans, sendo até o momento isolada apenas da superfície externa de Psoroptes cuniculi (PERRUCCI & ROSSI, 2002).

Foram identificadas quatro colônias de Edwardsiella ictaluri em duas propriedades do município de Resende. Esta espécie é descrita como patogênica em criações de peixes de água doce, sendo que causa septicemia entérica e morte dos peixes, sem muita importância para a saúde humana e para a saúde de outros mamíferos (MCGINNIS et al., 2003). No presente estudo, o agente foi isolado duas vezes da superfície externa e duas vezes do trato intestinal abdominal da mosca dos estábulos.

Cedecea lapagei não possui potencial patogênico para o homem e demais mamíferos, como citado por KONEMAN et al. (2001), existindo poucos relatos na literatura acerca desta espécie. BRUM & TEIXEIRA (1999) relataram vaginite em teleógenas de Boophilus microplus por C. lapagei em estudos de controle biológico. Alguns autores relataram o referido agente em humanos imunocomprometidos (HERNÁNDEZ et al., 2003; DAVIS & WALL, 2006) sem, no entanto, citar qualquer efeito patogênico. No presente estudo, C. lapagei foi observada nos três segmentos estudados de três moscas distintas.

Hafnia alvei foi identificada neste estudo em três moscas distintas, sendo que em duas ocasiões o agente foi isolado do trato digestório abdominal e uma vez no aparelho bucal. Esse agente faz parte da microbiota normal do intestino de mamíferos e não tem grande potencial patogênico, apesar de ter sido citado na literatura como um potencial causador de mastite bovina (JANDA & ABBOTT, 2006). O mesmo agente já foi isolado de outros muscídeos, abelhas e besouros (NASCIMENTO et al., 2003; JANDA & ABBOTT, 2006; LUNDGREN et al., 2007).

Serratia ficaria, Erwinia quercina e E. stewartii são considerados agentes ambientais não patogênicos ou oportunistas para humanos e animais, entretanto, recebem citação como agentes fitopatogênicos (DUBOUIX et al., 2005; YOUNG & PARK, 2007). Nenhuma descrição destes agentes havia sido feita em S. calcitrans, embora alguns autores tenham feito relatados em Musca domestica e Lucilia sericata (O'CALLAGHAN et al., 1996; NAYDUCH et al., 2005).

Apenas uma espécie observada no presente estudo não possui informações disponíveis quanto a sua patogenicidade, Edwardsiella hoshinae. Isso porque, de acordo com alguns autores, essa espécie é normalmente encontrada em ambientes diversos (JANDA et al., 1991).

De acordo com os resultados verificados, foi observado que a maioria das espécies descritas é de agentes comumente presentes no ambiente, sendo possível que a mosca dos estábulos se contamine com os mesmos nos ambientes habitados pelas suas formas imaturas como também na sua fase adulta. Alguns foram isolados nos três segmentos estudados, demonstrando assim que podem ser disseminados pela mosca dos estábulos.

A primeira descrição dessas espécies bacterianas, em segmentos da mosca dos estábulos, pode ser justificada pelos poucos trabalhos relacionados com a microbiota bacteriana dessa mosca no Brasil, como também pela metodologia adotada neste estudo no que se refere ao isolamento enterobacteriano. Estudos anteriores, como os de BRAMLEY et al. (1985) e CASTRO et al.(2001), relatam o isolamento de agentes bacterianos patogênicos em moscas por meio da maceração e do cultivo em um único meio enriquecido, habitualmente Ágar Sangue, o que favorece uma maior competição entre as espécies, fazendo com que uma espécie predomine (BROOKS et al., 2000). O tipo de isolamento realizado neste estudo ofereceu condições distintas de crescimento para as espécies de enterobactérias presentes nas amostras, permitindo uma maior acurácia nesta investigação, o que contribuiu para a diversidade de espécies isoladas.

Novos estudos devem ser realizados a fim de se ampliar o conhecimento do papel da mosca dos estábulos na transmissão de agentes patogênicos e da importância de algumas espécies no desenvolvimento de fases imaturas da mosca dos estábulos, como já verificado por ROMERO et al. (2006). Também devem ser realizados estudos sobre o papel de espécies enterobacterianas no controle biológico de S. calcitrans, visto que alguns autores fazem referência ao uso de espécies enterobacterianas no controle de dípteros muscóides (WATSON & PETTERSEN, 1991; O'CALLAGHAN et al., 1996; LYSYK et al., 2002). Quanto à microbiota isolada do trato digestivo da mosca dos estábulos, é preciso estudá-la mais detidamente, procurando isolar as bactérias de moscas criadas em laboratório para avaliar a influência desta microbiota sobre os processos metabólicos das moscas.

Recebido para publicação 28.02.08

Aprovado em 05.06.08

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1

Autor para correspondência.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  02 Jul 2008
• Data do Fascículo
  Dez 2008

Histórico

• Recebido
  28 Fev 2008
• Aceito
  05 Jun 2008