INTRODUÇÃO
Além dos nutrientes essenciais, a maioria dos frutos possuem consideráveis quantidades de micronutrientes, tais como minerais, vitaminas e compostos fitoquímicos secundários. Nos últimos anos, maior atenção tem sido dada a estes compostos, uma vez que evidências apontam a importância desses micronutrientes para a saúde humana (ZHANG et al., 2013).
A lichia (Litchi chinensis Sonn) é um fruto tropical a subtropical, pertencente à família S apindaceae, originário do sudeste da Ásia, que tem sido amplamente difundido como cultura econômica em diversos países, inclusive no Brasil. A produção brasileira da lichia ainda não está bem determinada e concentra-se, principalmente, na região Sudeste (SMARSI et al., 2011). Apesar da sua pouca expressão no mercado nacional, a lichia é um fruto não-climatérico, com alto valor comercial e muito apreciado pelos consumidores (XU et al., 2011; GUIMARÃES et al., 2013), o que contribui para a sua grande aceitação no mercado, porém, ainda é pouco conhecida pelos brasileiros. A polpa da lichia é a parte comestível que pode ser consumida fresca ou processada enquanto que a casca e semente são descartadas, e, portanto, consideradas resíduos (XU et al., 2011, PRASAD et al., 2009).
Pesquisas relataram presença de proantocianidinas, flavonoides, esteroides, e sesquiterpenos na semente de lichia (XU et al., 2011), e que esta poderia ser utilizada como uma fonte de antioxidante natural, como ingrediente funcional ou conservante natural (PRASAD et al., 2009). Além disso, ela possui propriedades anti-hiperlipidêmica, antitumoral, antiplaquetária (XU et al., 2011). A casca contém grande quantidade de flavonoides e polifenóis (JIANG et al., 2013), com elevada atividade antioxidante, efeito cardioprotetor e atividades anticancerígenas (PRIOR & GU, 2005), responsáveis pelos efeitos farmacológicos da casca de lichia (JIANG et al., 2013).
Produtos de origem vegetal apresentam reduzido tempo de armazenamento, devido ao alto teor de água. A secagem permite a redução de peso, o que diminui os custos de transporte, embalagem e armazenamento, além de estender o tempo de armazenamento. Adicionalmente, produtos farináceos são utilizados como ingredientes na indústria de alimentos, sobretudo na elaboração de pães e sopas. Assim, a produção de produto farináceo constitui-se numa alternativa para os subprodutos da lichia, favorecendo novos mercados. No entanto, as potenciais aplicações da farinha de casca e da semente de lichia dependem da sua composição. Desta forma, o objetivo deste estudo foi determinar a composição química e fitoquímica das farinhas da casca e da semente de lichias da cultivar 'Bengal'.
MATERIAL E MÉTODOS
Os frutos de lichia (Litchi chinensis Sonn), família Sapindaceae, da cv. 'Bengal' foram colhidos em pomar experimental situado no município de Lavras, Minas Gerais, safra agrícola 2012/2013 e selecionados de acordo com a uniformidade na coloração (casca vermelho-intenso), ausência de defeitos e tamanho médio.
Os frutos selecionados foram lavados, sanificados com dicloroisocianurato de sódio 200µL L-1 por 15min, pesados e separados em casca, polpa e semente. A casca e a semente foram secas em estufa a 45ºC, até peso constante, sendo necessários quatro dias para a secagem da casca e oito dias para a da semente. Estas foram moídas separadamente, obtendo-se a farinha da casca de lichia (FC) e a farinha da semente de lichia (FS), que foram armazenadas ao abrigo da luz, até a realização das análises.
A triagem de constituintes químicos foi realizada por reações químicas qualitativas simples, segundo metodologia descrita por MATOS (1997), utilizando os seguintes testes e reagentes: ácidos orgânicos (reativo de Pascová); açúcares redutores (reagentes de Fehling A e Fehling B); polissacarídeos (Lugol); proteínas e aminoácidos (reação de Molish e com ninidrina); taninos (reação com cloreto de ferro); catequinas (reação com metanol, vanilina 1% e ácido clorídrico); flavonoides (reação com ácido clorídrico e fitas de magnésio); glicosídeos cardioativos (reativo de Kedde); sesquiterpenolactonas e outras lactonas (reação com cloridrato de hidroxilamina, hidróxido de sódio 10%, em metanol, e ácido clorídrico); azulenos (reativo de Kaiser); carotenoides (reação com clorofórmio e ácido trifluoracético); esteroides e terpenoides (reação de Liebermann-Burchard); depsídeo e depsidonas (reação com éter etílico, metanol e cloreto de ferro 1%); derivados da cumarina (teste da fluorescência, sob luz UV e hidróxido de sódio, seguida de extração em fase etérea); saponinas (índice de espuma após a agitação da solução neutralizada com carbonato de sódio); e, para os alcaloides, foram usados os reativos de Mayer (reação com iodo mercurato de potássio), de Dragendorff (reação com iodo bismutato de potássio) e de Bouchardat (reação com iodeto de potássio e iodo).
Os teores de lipídios (extrato etéreo), proteína bruta (Nx6,25), cinzas e fibra alimentar foram quantificados utilizando o método descrito pela ASSOCIATION OF OFFICIAL AGRICULTURAL CHEMISTRY - AOAC (2012). O carboidrato foi determinado por diferença entre 100 e a soma das demais frações da composição centesimal, a umidade calculada por gravimetria e o valor energético total (VET) pela soma das calorias fornecidas por carboidratos, lipídios e proteínas, multiplicando-se seus valores em gramas pelos fatores de Atwater: 4kcal, 9kcal e 4kcal, respectivamente.
Os sólidos solúveis totais foram determinados por refratometria digital e expressos em ºBrix, conforme AOAC (2012). O pH foi determinado por potenciometria em eletrodo de vidro, segundo AOAC (2012), e a acidez titulável foi determinada por titulação com solução de NaOH 0,1N, usando fenolftaleína como indicador.
Os açúcares foram extraídos, em etanol 95%, evaporados a 80ºC e submetidos à hidrólise ácida com HCl concentrado, em ebulição, por 15 minutos, conforme LANE & EYNON (1934). Estes foram quantificados pelo método Somogyi (NELSON, 1944), através da redução do íon cúprico a cuproso, que reage com o reativo arsênio-molibídico, formando óxido de molibdênio, cuja concentração é proporcional à quantidade de açúcares na amostra.
Os extratos de vitamina C foram preparados, sob agitação por 15min, em banho ultrassônico, em ácido oxálico 0,5%, acrescido de 0,1g de Kieselguhr e quantificado por espectrometria, segundo STROHECKER & HENNING (1967).
Os compostos fenólicos foram extraídos em metanol 50%, em condensador de refluxo, por três vezes consecutivas, a 80°C. Os extratos foram reunidos e doseados usando o reagente de Folin-Denis, a 760nm (AOAC, 2012). Os resultados foram expressos em mg de ácido gálico 100g-1 de amostra.
Os flavonoides foram extraídos com metanol 80%, em condensador de refluxo, a 80°C e quantificado por espectrometria UV-VIS a 510nm (ZHISHEN et al., 1999), usando rutina como padrão.
As antocianinas totais foram determinadas pelo método de FULEKI & FRANCIS (1968). Estas foram extraídas em metanol 95%, acidificado com ácido clorídrico 1,5M, na proporção de 85:15 v/v, por 24 horas, sob refrigeração, quantificadas por espectrofotometria de UV-Vis e expressas em g de cianidina 3-glicosídeo 100g-1 de amostra.
Os teores de minerais (fósforo, potássio, cálcio, magnésio, enxofre, cobre, manganês, zinco e ferro) nas farinhas foram doseados segundo MALAVOLTA et al. (1997), após digestão nitro-perclórica.
Foi utilizado o delineamento inteiramente casualizado, DIC, sendo dois tratamentos farinha da casca e farinha da semente de lichia, analisados em quatro repetições por tratamento. Os resultados foram expressos em média ± desvio padrão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A lichia (Litchi chinensis Sonn), família Sapindaceae, apresentou peso médio de 16,36±0,25g, dos quais 29,27±0,28% eram cascas e 20,09±0,52% sementes. As umidades encontradas para a FC e FS foram 6,10±0,14 e 8,7±0,04g 100g-1, respectivamente.
Com a realização da triagem fitoquímica, constatou-se a presença ou ausência de compostos provenientes do metabolismo secundário do vegetal, nas farinhas da casca e semente de lichia, através da formação de precipitados e pelo surgimento de coloração e espuma. Não se detectaram polissacarídeos, glicosídeos cardíacos, sesquiterpenlactona e outras lactonas, carotenoides, esteroides e triterpenoides, derivados de cumarina e alcaloides (Mayer) nas farinhas analisadas. A presença de açúcares redutores, proteína e aminoácidos, taninos, catequinas, flavonoides, depsídeo e depsidonas foi observada em ambas as farinhas. Azuleno, ácidos orgânicos e alcaloide (Dragendorff e Bouchardat) foram detectados na FC. Somente na FS observou-se a formação de espuma estável, revelando a presença de saponina espumídica.
No que tange à aplicação terapêutica, os taninos são conhecidos por sua atividade antioxidante in vivo e ex vivo e atividade hipocolesterolêmica (TIAN et al., 2012), protegendo os tecidos da peroxidação lipídica. Inúmeras atividades biológicas estão associadas aos flavonoides, como funções antioxidante, anti-inflamatória e anticancerígena (KSOURI et al., 2013), enquanto que os depsídeos e depsidonas apresentam propriedades antioxidantes (CHOMCHEON al., 2009), analgésicas e antipiréticas (OKUYAMA et al., 1995). Aos alcaloides, são atribuídas propriedades farmacológicas variadas, sendo usados como analgésicos, antioxidantes, vasorrelaxantes e antitumorais, o que causou um aumento no interesse por potenciais fontes desses compostos (CUI et. al., 2006). Às saponinas espumídicas, têm sido associadas atividades hemolítica, antiviral, anti-inflamatória (KSOURI et al., 2013).
A composição centesimal e o valor energético total (VET) das farinhas da lichia estão apresentados na tabela 1. Os teores de umidade da FC e da FS, respectivamente, foram de 6,10±0,14 e 8,7±0,04g 100g-1. Baixos teores de umidade são importantes para conservação das farinhas, pois impedem o desenvolvimento microbiano e as reações químicas e enzimáticas que promovem alterações indesejáveis. O limite máximo de umidade estabelecido para a farinha de trigo, pela legislação brasileira, é de 15% (BRASIL, 2005). As umidades da FC e FS encontravam-se abaixo desse limite.
Tabela 1 - Composição centesimal, em g 100g-1, da farinha da casca (FC) e da farinha da semente (FS) de lichias.
Parâmetros | FC | FS |
Lipídios | 7,11 ± 1,09 | 4,73 ± 0,27 |
Proteínas | 10,08 ± 0,21 | 5,33 ± 0,27 |
Cinzas | 3,25 ± 0,52 | 1,75 ± 0,05 |
Fibras | 19,88 ± 0,66 | 4,75 ± 0,27 |
Carboidratos | 59,67 ± 0,43 | 83,44 ± 0,43 |
VET* | 343,04 ± 4,94 | 397,66 ± 2,83 |
* Valor energético total expresso em kcal 100g-1 de farinha.
Os teores de proteínas e de lipídios foram baixos, sobretudo na FS. A FC apresentou, também, os maiores teores de cinzas e fibras (7,11±1,09, 10,08±0,21, 3,25±0,52 e 19,88±0,66g 100g-1, respectivamente), enquanto que na FS o teor de carboidratos e o VET foram superiores ao da FC. Estes dados demonstram que esta farinha pode ser considerada uma boa fonte energética. A composição centesimal e o VET relativos às farinhas da casca e da semente de lichia foram semelhantes aos reportados por QUEIROZ et al. (2012), que quantificaram na casca da lichia teores de lipídios, proteínas, cinzas, fibras e carboidratos de 6,97; 10,86; 2,17; 18,89 e 61,11g 100g-1, respectivamente, e na semente de 2,77; 4,83; 1,44; 4,33 e 86,63g 100g-1, respectivamente.
Na tabela 2, encontram-se os teores dos compostos físico-químicos e químicos analisados na FC e na FS. Observa-se que o teor de sólidos solúveis totais da FC foi superior ao da FS (20,0±2,31 e 15,0±1,21ºBrix, respectivamente). Teores de sólidos solúveis totais elevados são comuns em farinhas de frutos, pois a retirada da umidade concentra os açúcares e ácidos orgânicos. O teor de sólidos solúveis totais da farinha de acerola (47,5ºBrix), encontrado por Aquino et al. (2010), foi superior ao da FC e da FS. Constata-se, também, que a acidez titulável da FC foi superior à da FS e, consequentemente, seu pH foi menor. Esses resultados se assemelham aos reportados por QUEIROZ et al. (2012) para a casca (acidez 0,59% e pH 4,70) e para a semente de lichia (acidez 0,23%; pH 6,3).
Tabela 2 - Composição físico-química e química da farinha da casca (FC) e da farinha da semente (FS) de lichias.
FC | FS | |
---|---|---|
Sólidos Solúveis (°Brix) | 20,00 ± 2,31 | 15,00 ± 1,21 |
Acidez titulável (% ácido málico) | 0,64 ± 0,04 | 0,23 ± 0,06 |
pH | 4,38 ± 0,04 | 6,31 ± 0,06 |
Açúcares totais (g 100 g-1) | 10,40 ± 0,45 | 15,13 ± 0,10 |
Vitamina C (mg 100g-1) | 295,69 ± 8,62 | 57,54± 1,39 |
Polifenóis (g 100g-1) | 6,36 ± 0,63 | 3,89 ± 0,28 |
Antocianinas (mg 100g-1) | 99,55 ± 2,25 | 6,21± 0,11 |
Flavonoides (mg 100g-1) | 82,16 ± 9,56 | 46,74± 7,70 |
Nota-se também que a FC apresenta acidez titulável superior à encontrada na FS (0,64±0,04% e 0,23±0,06%, respectivamente), enquanto a FS apresenta o pH mais elevado (6,31±0,06). Estes resultados se assemelham aos reportados por QUEIROZ et al. (2012), que obtiveram, na casca, acidez e pH de 0,59% e 4,70, respectivamente, e, na semente, teores de 0,23% e 6,3, respectivamente
A FS apresentou o maior teor de açúcar total (15,13±0,10g 100 g-1), enquanto a FC se destacou pelos teores de antocianinas, compostos fenólicos, vitamina C e flavonoides (99,55±2,25mg 100g-1, 6,36±0,63g 100g-1, 295,69±8,62mg 100g-1 e 82,16±9,56mg 100g-1, respectivamente). Embora os conteúdos de vitamina C, antocianinas, compostos fenólicos e flavonoides encontrados na FC tenham sido superiores aos obtidos na semente, pode-se considerar que a FS também concentra expressivos teores destes fitoquímicos, reconhecidos por sua atividade antioxidante. Assim, as farinhas dos subprodutos da lichia, sobretudo a da casca, mostraram-se como fontes destes fitoquímicos, podendo ser utilizadas para o enriquecimento de alimentos. Os conteúdos de flavonoides totais na FC e na FS foram superiores aos reportados em subprodutos de manga, maracujá, goiaba e caju (26,47; 43,08; 31,41 e 44,91mg 100 g-1 de matéria seca, respectivamente) (SILVA et al. 2014).
Os teores de minerais das duas farinhas estão apresentados na tabela 3. A FS se destacou pelos teores de K e S (0,59±0,02 e 0,37±0,01g 100g-1, respectivamente), além de Cu e Zn (17,70±4,28 e 13,15±2,41mg kg-1, respectivamente), enquanto que na FC os outros macros e microminerais encontravam-se em maior proporção.
Tabela 3 - Teores de macrominerais (P, K Ca, Mg e S, expressos em g 100g-1 de MS) e de microminerais (Cu, Mn, Zn e Fe, expressos em mg kg-1) na farinha da casca (FC) e na farinha de semente (FS) de lichias
FC | FS | |
P | 0,17 ± 0,01 | 0,13 ± 0,01 |
K | 0,54 ± 0,02 | 0,60 ± 0,02 |
Ca | 0,22 ± 0,02 | 0,14 ± 0,01 |
Mg | 0,25 ± 0,01 | 0,07 ± 0,01 |
S | 0,30 ± 0,03 | 0,37 ± 0,01 |
Cu | 13,50 ± 0,93 | 17,70 ± 2,28 |
Mn | 12,75 ± 0,33 | 9,62 ± 0,98 |
Zn | 11,58 ± 0,18 | 13,15 ± 0,41 |
Fe | 34,03 ± 1,55 | 23,77 ± 2,36 |
Os valores de IDR (Ingestão Diária Recomendada) para o potássio, magnésio, ferro, zinco, manganês, cobre e cálcio são 4,6g, 260mg, 14mg, 7mg, 2,3mg, 900µg e 1,3g, respectivamente, para indivíduos adultos (FREIRE et al., 2012). Dessa forma, a ingestão de 100 gramas de FC e de FS cobrirá, respectivamente, 12 e 13%; 92 e 27%; 24 e 17%; 16 e 19%; 52 e 41%; 150 e 197%; 17 e 11% das IDRs desses minerais.
Os resultados observados neste estudo sugerem que as farinhas da casca e da semente de lichia, apesar de apresentarem composições químicas distintas, são ingredientes potenciais para a utilização em rações comerciais e no preparo de pães, bolos e biscoitos ou ainda incorporadas a alimentos, contribuindo, dessa forma, com a IDR dos minerais e com as necessidades energéticas e nutricionais. Assim, o aproveitamento das farinhas dos subprodutos da lichia poderá ser realizado individualmente, contudo a utilização destas farinhas misturadas pode ser relevante. Entretanto, vale ressaltar que novos estudos devem ser conduzidos, buscando avaliar os efeitos da utilização destas farinhas em rações e como ingredientes alimentares.
CONCLUSÃO
As farinhas da casca e semente de lichia demonstram possuir composições químicas e nutricionais que possibilitam suas utilizações na dieta humana e na indústria de alimentos, podendo contribuir como fontes alternativas de nutrientes e substâncias bioativas.
A farinha da casca de lichia apresenta elevados teores de fibras alimentares e proteínas, enquanto que a farinha da semente se destaca pelos teores de carboidratos. Ambas as farinhas são fontes do mineral cobre e mostram a presença dos fitoquímicos flavonoides, vitamina C, compostos fenólicos e antocianinas. No entanto, para que estas farinhas sejam aproveitadas, é necessária a realização de novos estudos sobre suas propriedades biológicas.