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Atividades da criança: educação x liberdade x restrições

Resumos

Este estudo teve por objetivo descrever e analisar o grau de liberdade de ação e escolha permitido pela mãe nas atividades diárias e brincadeiras da criança. Os dados foram obtidos através da análise das respostas de 110 mães a 15 questões do Roteiro Reestruturado de Biasoli-Alves e Graminha (1979), que investigam as condições oferecidas à criança em termos de movimentação e espaço físico, determinação de atividades e horários, uso da casa, da TV, brincadeiras e brinquedo. Os resultados indicam que as mães procuram dar liberdade a seus filhos, mas também lhes colocam restrições, num padrão próximo ao sugerido pela literatura psicológica, o que não deixa de implicar numa tutela coastante sobre a criança.


This study has meant to describe the level of freedom of action and of choice the mothers allow their children to have on their daily activities. Data was obtained by the analysis of the answers 110 mothers gave to 15 questions from the Biasoli-Alves & Graminha Reestructured Guide (1979), which investigate the conditions offered to the child in terms of physical space, delimitation of activities, use of home, TV set, play and toys. The results show that the mothers try to give freedom to their children in a similar pattern to the one the psychological literature suggests, as well as they set up restrictions, in a pattern of constant watchful care over the child.


Atividades da criança: educação x liberdade x restrições

Regina Helena Lima CaldanaI; Zélia Afaria Mendes Biasoli AlvesII; Stella Maria P. SimionatoIII

IAuxiliar de Ensino junto ao Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP

IIProfª Assistente Doutora junto ao Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP

IIIAluna do curso de pós graduação da CECH da UFSCar

RESUMO

Este estudo teve por objetivo descrever e analisar o grau de liberdade de ação e escolha permitido pela mãe nas atividades diárias e brincadeiras da criança. Os dados foram obtidos através da análise das respostas de 110 mães a 15 questões do Roteiro Reestruturado de Biasoli-Alves e Graminha (1979), que investigam as condições oferecidas à criança em termos de movimentação e espaço físico, determinação de atividades e horários, uso da casa, da TV, brincadeiras e brinquedo. Os resultados indicam que as mães procuram dar liberdade a seus filhos, mas também lhes colocam restrições, num padrão próximo ao sugerido pela literatura psicológica, o que não deixa de implicar numa tutela coastante sobre a criança.

ABSTRACT

This study has meant to describe the level of freedom of action and of choice the mothers allow their children to have on their daily activities. Data was obtained by the analysis of the answers 110 mothers gave to 15 questions from the Biasoli-Alves & Graminha Reestructured Guide (1979), which investigate the conditions offered to the child in terms of physical space, delimitation of activities, use of home, TV set, play and toys. The results show that the mothers try to give freedom to their children in a similar pattern to the one the psychological literature suggests, as well as they set up restrictions, in a pattern of constant watchful care over the child.

INTRODUÇÃO

O processo de educação da criança na família tem sido extremamente debatido, quer no contexto acadêmico, quer no clínico, e muito pelos próprios agentes socializadores - os pais. Um dos aspectos mais enfocados refere-se à liberdade dada à criança, tanto em termos de grau (o quanto se deve deixar a criança "solta"), quanto em termos de em que áreas ela deve estar presente (o que deve ser permitido ou não), sempre em função do benefício que traria à criança.

Os estudos sobre desenvolvimento infantil oferecem um referencial importante aqui, quando salientam que o caminho a ser percorrido pelo indivíduo implica em que ele passe de uma dependência estrita frente ao ambiente, que deve assumir a garantia de sua sobrevivência, e chegue à independência total, quando agirá por conta própria e deverá ser capaz de tomar a seu encargo o cuidado e a socialização de uma nova prole (Biasoli-Alves, 1985); e, como salienta Erickson (1965), terá condições de ser um bom socializador aquele cujo próprio desenvolvimento tiver sido favorável.

Do início deste século até hoje, o que é preconizado pela literatura psicológica como o ideal em termos de liberdade tem sofrido alterações. Assim, nas primeiras décadas a saliência estava na importância da supervisão e controle dos pais sobre a criança - portanto a preocupação com a liberdade praticamente inexistia; nas duas seguintes passa-se por outro momento em que a ênfase recai sobre a necessidade de deixar a criança se desenvolver a seu modo, com um ideário permissivo e flexível, o que representa uma inversão em relação à época imediatamente anterior; e, a partir da década de 60 o modelo proposto implica num balanceamento de liberdade e exigências (Dias da Silva, 1986).

Este último é apontado como o ideal por vários autores (Schaefer, 1959; Baumrind, 1971; Mussen, Conger e Kagan, 1974; Rutter, 1975; Herbert, 1975; Biasoli-Alves, 1982) e vem resumido de forma muito apropriada por Sigolo (1986):

"...as colocações dos autores do que seria adequado focalizam a zona próxima do meio termo, ou seja, é preciso ter normas, mas permitir também que a criança se expresse, diga o que para ela está bom, o que não está, dar a ela liberdade para exercer certa oposição ao ambiente e sua iniciativa no realizar tarefas e atividades, premiando-a para que ela aprenda a se auto-premiar, mas sem se omitir do papel de indivíduos que já viveram mais e que devem saber dizer o porquê das normas, da autoridade de certos momentos, da inflexibilidade, da exigência" (p. 07).

Fruto desse ideário, pressupõe-se que aconteça a evolução na prática utilizada pelos pais (Newson & Newson, 1974; Alwin, 1984; Biasoli-Alves, 1987; Dias da Silva, 1986), que traria atualmente a valorização de um padrão flexível, estando presente a preocupação com o desenvolvimento da autonomia da criança, sem deixar de lado a necessidade da existência de normas e limites.

Dessas discussões surgiu este trabalho que objetiva descrever e analisar o que acontece, na rotina diária da criança, em termos do quanto é permitido que ela atue com liberdade de ação e escolha nas suas atividades e brincadeiras.

MÉTODO

1. Descrição da amostra

Os dados analisados neste trabalho foram obtidos através de entrevistas feitas com mies segundo o Roteiro Reestruturado de Biasoli-Alves e Graminha (1979)1 1 Esse roteiro prevê a investigação da Prática de Educação utilizada pela mâe, focalizando especificamente um de seus filhos, buscando quer informações retrospectivas (da fase de nené - até 1 ano -, e num período de transição - de 1 a 2 anos), quer no momento atual (o filho entre 3 e 8 anos). Abrange as áreas: alimentação, sono, choro, atividades, contato social, contato físico-emocional, hábitos de higiene, escola e disciplina; incluem-se ainda aspectos mais gerais como: procura de orientação e avaliações da forma como foi educada, de como educa e de um sistema ideal e educação de filhos. .

Foram entrevistadas 110 mães com um filho entre 3 e 8 anos de idade, que atenderam a uma solicitação de participação feita através de carta distribuída em 2 escolas de primeiro grau de Ribeirão Preto2 2 As duas escolas (uma particular, outra estadual) atendem a uma clientela de nível econômico médio e médio-alto. . A amostra de mães apresenta as seguintes características:

- concentra-se na faixa etária de 30 a 39 anos;

- é predominantemente de nível educacional alto, seguido pelo médio;

- distribui-se de maneira equivalente entre mães que exercem ou não uma atividade profissional;

- distribui-se equitativamente em função do sexo da criança focalizada.

2. Procedimentos de análise

Para a análise foram selecionadas 15 questões fechadas3 3 Questões cujas alternativas de resposta acham-se incluídas na própria pergunta (1979). do Roteiro, que investigam a liberdade que é dada à criança em termos de movimentação de espaço físico, da possibilidade de escolha dos brinquedos a serem comprados, e na determinação de atividades e horários, bem como restrições em termos de uso da casa, do uso da TV, nas brincadeiras e atividades fora de casa.

Foram mantidas as alternativas propostas pelo Roteiro na análise, que consistiu na contagem de freqüência e cálculo da porcentagem de respostas em cada uma, separadamente para mães de meninos e de meninas, e para a amostra como um todo.

RESULTADOS

A análise dos dados evidenciou que o padrão de ação das mães segundo seu relato, implica em pouca restrição à movimentação física do bebe, sem muito uso do "chiqueirinho"; pelo contrário, elas costumam deixá-lo solto no chão, e permitem até o contato com água, areia e terra.

Quanto à escolha dos brinquedos a serem comprados, a atitude das mães é variável conforme a idade da criança: se ela é muito pequena, a mãe participa mais da escolha dos brinquedos; se maior, a escolha fica principalmente a encargo da própria criança (Fig. 1).


A determinação das atividades e horários é feita segundo a avaliação das mães, num esquema em que ambas - mãe e criança - participam das decisões; no entanto, quando se investiga o que cabe a um e a outro, fica por conta da criança somente o que se refere às suas brincadeiras, sugerindo que ela não participa tanto quanto as mães avaliam; além disso as brincadeiras não são integralmente livres pois é muito comum que a mãe faça algum tipo de restrição (Figuras 2 e 3).



Os resultados apresentados nas Figs. 3 e 4 evidenciam que quase metade das mães deixam a TV liberada durante o dia mas a restringem à noite. A casa tem seu uso para brincadeiras limitado pelas interferências das mães. Também a permissão para que a criança saia com companheiros e outros adultos é condicionada ao fato de eles serem da família ou amigos muito próximos.


A Fig. 4 mostra ainda que a aprovação do adulto para as brincadeiras acontece quando elas não têm ligações com a ocorrência de jogos sexuais (de médico, de cabaninha), ou de agressividade (luta); o uso da rua é limitado, bem como o brinquedo que implica em ter os papéis masculino ou feminino invertidos; por outro lado permitem à criança que tenha companheiros quer na sua quanto em casa alheia.

Quando se comparam as ínformações referentes à educação do menino e da menina, parece haver mais autonomia conferida aos últimos (Fig. 2), bem como mais liberdade fora de casa ou que envolvam a agressividade (Fig. 4). Já às meninas há menos impedimento para atividades sedentárias e restritas no espaço, tais como ver TV (Fíg. 3).

DISCUSSÃO

O conjunto de práticas descritas deixa evidente a valorização, pelas mães, da liberdade oferecida à criança no seu dia a dia, liberdade essa que se estende da dimensão física à da escolha.

Entretanto, as mães determinam em grande parte como se dá a rotina da criança, e mesmo as brincadeiras não transcorrem sem restrições, que pode ser compreendido pelo fato de que o dia a dia da criança, por mais livre que seja, deve atrelar-se ao andamento da casa e dos compromissos dos elementos da família; por outro lado as restrições impostas às brincadeiras parecem existir em função de valores morais relacionados à sexualidade e agressividade, bem como da necessidade de manter a criança sempre sob a visão e controle da mãe.

Esta postura, que tem pontos opostos ou contraditórios, permite que se levante alguns aspectos para discussão.

O primeiro deles refere-se ao grau de assimilação do conhecimento de psicologia pelas mães, usando-o ao lidar com o filho. Essa é uma tendência observada e compreendida dentro do processo de modernização: por implicar numa alteração mais acelerada de valores e na diminuição do contato com a família extensa, que deixa de ser ponto de referência para o certo e o errado no lidar com crianças, acaba ocorrendo a busca do "cientificismo" como guia de ação (Dias da Silva, 1986), e a educação dos filhos tende a se tornar mais técnica (Costa, 1979).

Pode-se questionar - embora seja difícil concluir sobre - se a adoção do ideário aconselhado pela psicologia é tão benéfico quanto aparentemente se supõe. Primeiro, porque muitas vezes, ele pode entrar em choque com modelos mais enraizados, assimilados pelas mães durante sua própria educação (Nicolaci-da-Costa, 1987), como fica sugerido pelo descompasso entre algumas avaliações que a mãe faz de sua atitude e a descrição comportamentalizada delas; segundo, a adoção do "recomendado" pode tornar-se um elemento que distancie a mãe de sua vivência, gerando um sentimento de incompetência (Chauí, 1982); e, terceiro, ainda que em nome da maior liberdade, ao destrinçar a relação entre a prática educativa e sua influência na criança, acaba-se por obter formas de exercer sobre ela um controle muito mais amplo, mesmo que em outro nível4 4 Nesta direção Nicolaci-da-Costa (1987) faz uma crítica às pedagogies modernas. .

Este último aspecto torna-se mais acentuado, especificamente no que diz respeito às brincadeiras e atividades da criança, principalmente se o comparamos com o padrão de cuidado usado por mães em épocas anteriores. Até a década de 50 as mães não tinham em seu horizonte a preocupação em desenvolver a autonomia da criança, e oferecer-lhe o espaço físico e liberdade; ao mesmo tempo sua relação com ela era permeada de grande autoridade (Dias da Silva, 1986). No entanto, nessa época, pelas próprias condições de vida, a criança crescia "no quintal", muito mais solta, sem a tutela constante do adulto, e, se a liberdade não era intencionalmente oferecida, vinha naturalmente; a criança podia - num espaço ausente na infância atual - exercitar sua autonomia, mesmo que em outros momentos tivesse que obedecer sem pestanejar às ordens do adulto.

Um último ponto a ser comentado refere-se à diferença encontrada na comparação entre dados obtidos para os dois sexos, que parece-nos traduzir dois aspectos: por ser pequena, reflete a assimilação das idéias feministas divulgadas a partir da década de 70 (Dias da Silva, 1987); mas por existirem, e por apontarem no sentido tradicional, fazem pensar que essa assimilação não é tão profunda, ficando mantidos vários aspectos dos papéis masculinos e femininos (Tozoni Reis, 1987). Nesse sentido pode-se supor que a menor restrição feita às brincadeiras sexuais por parte das mães de meninas retrate não uma maior liberdade nessa área, mas se deva a sua expectativa de que esse "tipo" de brincadeiras ocorra mais entre meninos.

  • ALWIN, D. F. Trends in parental socialization values: Detroit, 1958-1983. American Journal of Sociology, 90:359-82,1984.
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  • __________ Realidade e interpretação: as práticas de educação em famílias brasileiras contemporâneas. 1988 (no prelo).
  • COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro; Graal, 1979.
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  • TOZONI REIS, J. R. Família, emoção e ideologia. In: Lane, S. T. M. & Codo, W. (org.) Psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1984.
  • 1
    Esse roteiro prevê a investigação da Prática de Educação utilizada pela mâe, focalizando especificamente um de seus filhos, buscando quer informações retrospectivas (da fase de nené - até 1 ano -, e num período de transição - de 1 a 2 anos), quer no momento atual (o filho entre 3 e 8 anos). Abrange as áreas: alimentação, sono, choro, atividades, contato social, contato físico-emocional, hábitos de higiene, escola e disciplina; incluem-se ainda aspectos mais gerais como: procura de orientação e avaliações da forma como foi educada, de como educa e de um sistema ideal e educação de filhos.
  • 2
    As duas escolas (uma particular, outra estadual) atendem a uma clientela de nível econômico médio e médio-alto.
  • 3
    Questões cujas alternativas de resposta acham-se incluídas na própria pergunta (1979).
  • 4
    Nesta direção Nicolaci-da-Costa (1987) faz uma crítica às pedagogies modernas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Jul 1992
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