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Afinal, para que serve a escola?: representação feita por adultos alfabetizados e analfabetos

Resumos

Este trabalho tem por objetivo investigar qual a opinião que grupos de adultos alfabetizados e não alfabetizados fazem da escola, bem como as suas representações subjacentes acerca do papel social dessa instituição. Mais especificamente, procura-se verificar se a experiência concreta com a vida escolar, aliada à alfabetização, leva as pessoas a terem opiniões sobre a escola que seriam diferentes daquelas opiniões de pessoas analfabetas, com pouca, ou nenhuma, experiência escolar.


The aim of this paper is to investigate adult illiterate and semi-literate's opinion about school, as well as their underlying representations about the social role of that institution. More especifically, we try to determine whether people's concrete schoolling experience, together with literacy, drive them to have opinions about school which would show to be different from illiterate, or semi-literate adults.


Afinal, para que serve a escola? Representação feita por adultos alfabetizados e analfabetos

Leda Verdiani TfouniI; Geraldo RomanelliI; Ana Mana AlvaresII; Roberta M. da S. GarciaII

IDocentes do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - U.S.P.

IIAlunas da graduação do curso de Psicologia do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - U.S.P.

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo investigar qual a opinião que grupos de adultos alfabetizados e não alfabetizados fazem da escola, bem como as suas representações subjacentes acerca do papel social dessa instituição. Mais especificamente, procura-se verificar se a experiência concreta com a vida escolar, aliada à alfabetização, leva as pessoas a terem opiniões sobre a escola que seriam diferentes daquelas opiniões de pessoas analfabetas, com pouca, ou nenhuma, experiência escolar.

ABSTRACT

The aim of this paper is to investigate adult illiterate and semi-literate's opinion about school, as well as their underlying representations about the social role of that institution. More especifically, we try to determine whether people's concrete schoolling experience, together with literacy, drive them to have opinions about school which would show to be different from illiterate, or semi-literate adults.

I - INTRODUÇÃO

Em uma sociedade altamente letrada, que atingiu um alto grau de desenvolvimento tecnológico e científico, a condição dos analfabetos não somente os aliena do conhecimento produzido e sistematizado, impedindo-os de ter acesso a ele pela impossibilidade de ler e escrever, como também os aliena de si mesmos, por forçar a Uma abdicação de suas próprias práticas culturais, o que ideologicamente acentua a marginalização. O mesmo argumento é válido para grupos alfabetizados com baixo grau de escolaridade, visto que, apesar de saberem ler e escrever, acabam ficando marginalizados devido à falta de qualificação, a qual está intimamente relacionada com a escola e o ensino especializado (Tfouni, 1987).

Sabe-se que o conhecimento valorizado pela sociedade circunscreve-se principalmente a esse conhecimento especializado oferecido pela escola, a qual, por conseguinte, é vista como um veículo que propicia a ascensão social. A literatura a respeito deste tema ilustra suficientemente essa discussão. Segundo alguns autores, não se pode entender a educação, que na realidade brasileira restringe-se principalmente ao âmbito escolar, sem considerar seus determinantes sociais, ou seja, deve-se compreendê-la através da análise de suas relações com as dimensões políticas, sociais e econômicas da sociedade. De acordo com Saviani (1982), a sociedade é marcada por uma acentuada divisão de classes, que se manifesta pelas "condições de produção de vida material" (op.cit. p.8) e as relações sociais fundam-se, essencialmente, na base da força. Assim, de uma forma geral, a classe que possui mais força se apropriaria da produção material e do controle sobre a vida social, dominando a classe mais fraca, que se torna marginalizada.

O papel da escola, nesse contexto seria, então, o de reproduzir e reforçar a marginalidade social, já que esta seria inerente ao sistema no qual a escola está inserida. Conseqüentemente, os conhecimentos produzidos pela classe dominante, que são considerados como o saber legítimo, são apropriados por esta classe e dificilmente a parcela marginalizada da população tem acesso a esse corpo de conhecimento. O conteúdo que a escola transmite é todo baseado em um conjunto de saber condizente com as necessidades da classe privilegiada e não com as da classe dominada, que nem sequer possui o mesmo vocabulário. No entanto, a classe dominante prega a superação da marginalidade pela escola, através de discursos, como "oportunidades iguais para todos", além de outros nos quais está embutida a idéia de ascensão social. Essas idéias veiculadas pela ideologia dominante não passam, porém, de ilusão, já que a escola reproduz as relações sociais, mantendo o "status quo".

Assim, este segmento desprivilegiado da população, por ter necessidades prioritárias, como alimentação, habitação e saúde, acaba relegando a segundo plano a questão da educação, que não está ligada de forma tão direta ao problema da sobrevivência. Pode-se observar nestas camadas a inserção precoce dos indivíduos no mercado de trabalho. Por outro lado, contraditoriamente, exige-se, cada vez mais, um grau maior de escolaridade para o ingresso no mercado de trabalho, mesmo que determinadas funções não requeiram, necessariamente, esse saber escolar como mostra Spindel (1985, apud Madeira, 1986 ) a propósito da contratação de menores brasileiros. Vale ressaltar ainda que, muitas vezes, esse saber não garante o sucesso profissional. Desta forma, parece haver pouca relação entre a escolaridade, de um lado, e a renda e a igualdade de oportunidades, do outro.

Apesar das dificuldades em assegurar a escolarização para os filhos, pesquisas como aquelas realizadas por Scarfon (1979), Lella (1987), Vieira e Mello (1987), entre tantos outros, mostram que grupos sociais marginalizados sonham com uma melhoria das condições de vida, para si e para seus filhos, e relacionam-na com o estudo e a obtenção de um diploma.

Portanto, torna-se relevante analisar a maneira pela qual grupos de adultos analfabetos e alfabetizados (com baixo grau de escolaridade), que residem em um centro considerado altamente letrado e de alto desenvolvimento tecnológico, como é o caso de Ribeirão Preto - S.P., representam a questão da escolarização e do sucesso profissional enquanto relacionada com o papel social da escola.

II - METODOLOGIA E ANÁLISE DOS DADOS

A pesquisa foi realizada com 328 adultos residentes na região de Ribeirão Preto - S.P., divididos em oito grupos: "bóias- frias" alfabetizados; "bóias-frias" analfabetos; adultos alfabetizados que residem e trabalham na zona urbana; adultos analfabetos que residem e trabalham na zona urbana; adultos alfabetizados que residem na zona urbana e não trabalham; adultos analfabetos que residem na zona urbana e não trabalham; adultos alfabetizados que residem e trabalham na zona rural; e finalmente adultos analfabetos que residem e trabalham na zona rural. Vale notar que os alfabetizados tiveram seu grau de escolaridade controlado (no máximo até a 5ª série do P grau completa ). Por outro lado, alguns analfabetos tiveram experiência com o ensino formal, havendo freqüentado a escola, em alguns casos, por até 7 anos (isto, no entanto, não foi suficiente para garantir-lhes a aprendizagem mínima possibilitada pela escola, que é aprender a ler e a escrever).

Comparando os dois grupos, alfabetizados e analfabetos, pode-se dizer que eles diferem entre si não somente com relação à atfabetização, como também quanto a: grau de escolaridade, tempo de escolarização, experiência com o ensino formal, e distribuição quanto ao sexo. Assemelham-se, no entanto, no fato de serem marginalizados das profissões mais especializadas que, dentro do mercado de trabalho, são exercidas por aqueles que possuem pelo menos instrução de nível superior.

Os dados a respeito da representação sobre a escola foram colhidos através da pergunta Tara que serve a escola?". As respostas dadas pelos adultos foram gravadas, transcritas, e submetidas a um processo de categorização, baseado em uma análise do conteúdo das mesmas. A Tabela 1 mostra o resultado desta análise.

Nota-se, inicialmente, examinando a Tabela 1, que a representação da escola subjacente às categorias de 1 a 6 é predominantemente positiva, enquanto que a categoria 7 agrupa aquelas opiniões que denotam uma representação negativa da escola por estes adultos.

A categoria 1, "A escola vista como propiciadora de melhores condições futuras" contém a idéia de que o fato de freqüentar a escola por si só pode proporcionar às pessoas melhores condições de vida, principalmente no que diz respeito à situação econômica. Nota-se que essa representação da escola é a mais freqüente, tanto para os alfabetizados quanto para os analfabetos, havendo um percentual maior entre os analfabetos (37,3% contra 34.5%).

Em segundo lugar vem a categoria "A escola vista como fonte onde o indivíduo busca conhecimento", que contém a idéia de que na escola se pode aprender, de maneira ativa, desde ler, escrever, e fazer contas, até como orientar os filhos. Constata-se que os percentuais são quase iguais para os dois grupos.

"A escola vista como um ambiente socializador que propicia o desenvolvimento individual e social" é a categoria que aparece em terceiro lugar, e exprime a idéia de que a escola não transmite apenas o conhecimento formal, mas serve também para que as pessoas sintam-se mais adaptadas ao seu ambiente social, podendo, assim, desenvolver-se individualmente através da facilitação para estabelecer contatos sociais .Aqui também não existe diferença entre os adultos alfabetizados e os analfabetos.

"A escola vista como detentora exclusiva do conhecimento e responsável por sua transmissão" é uma categoria que expressa o modo pelo qual os adultos parecem representar-se como agentes passivos no processo ensino-aprendizagem, ao mesmo tempo em que atribuem à escola o papel de transmissora de conhecimentos que ela detém de forma absoluta. Vemos aí um percentual maior para os adultos alfabetizados (11.5%) do que para os analfabetos (9,1%).

A categoria 5, "A escola vista como propiciadora de obtenção de um status social mais elevado" ocorre apenas em 11.5% dos alfabetizados, e revela a representação de que ir à escola significa uma valorização do indivíduo em termos culturais e sociais, indo, portanto, além da expectativa de melhoria das condições econômicas, como o caso da categoria 1.

Finalmente, temos que apenas um adulto analfabeto representa a escola como propulsora do desenvolvimento tecnológico, o que denota uma visão mais abrangente do papel da escola, voltada para o progresso social como um todo.

Por fim, a categoria 7 agrupa as representações denominadas "negativas". Revelam uma representação desfavorável sobre o papel da escola, tanto do ponto de vista individual ("A escola por si só não garante um bom emprego") quanto do ponto de vista social mais amplo ("A escola não ensina a viver; o mundo é que ensina"). A porcentagem do grupo alfabetizado (2.8%) é maior do que a do grupo analfabeto (1.9%).

III. DISCUSSÃO

Através dos dados obtidos podemos constatar que ambos os grupos estudados atribuem um alto valor à escola, já que grande parte das categorias relacionam a freqüência à escola e os conhecimentos nela adquiridos com idéias de ascensão social, desenvolvimento individual e social, entre outras.

O ideal da doutrina liberal de escola para todos e de garantia de mobilidade social através da escolarização, sabe-se bem, não funciona em sociedades como a nossa. No entanto, os adultos pesquisados, tanto alfabetizados e com alguma escolaridade, quanto os analfabetos, parecem representar a instituição escolar de maneira idealizada, de acordo com a forma como ela é representada no discurso oficial.

Assim, nas categorias de 1 a 5, na Tabela 1, vemos a escola representada como a única instituição capaz de criar condições mais satisfatórias, tanto no trabalho, quanto nas relações sociais. Esses conteúdos expressam ainda o desejo desses adultos de adquirir conhecimento, o que parece indicar que atribuem um valor positivo à posse do saber sistematizado e "oficial" transmitido pela escola, saber esse que, para eles funcionaria como facilitador da participação e convivência em outros ambientes sociais, além de ter o poder de amenizar aspectos desagradáveis e ásperos do cotidiano. Essa aspiração simbólica, que tem a função de amenizar esse cotidiano sofrido, ligada ao ideal de "ter cultura", e "ter diploma", está presente nos dois grupos de adultos estudados, mas parece expressar-se de forma mais elaborada no grupo alfabetizado, e de maneira mais difusa nos analfabetos. Temos aí um efeito da maior vivência e da experiência concreta com a escola, o que evidencia a existência do chamado "currículo oculto", que passa, ao lado dos conteúdos explícitos (programáticos) toda uma ideologia autò-promocional, que tem a função de ocultar que é exigido, no processo de escolarização, um saber prévio do qual esses adultos são destituídos, o que impossibilita a continuação do processo, gerando o fracasso escolar. Como conseqüência, o indivíduo acaba atribuindo a si próprio a culpa pelo fracasso.

Por outro lado, a ocorrência das categorias "negativas" parece conter uma representação que revela uma atitude mais realista para lidar com a frustração frente ao fracasso. Com efeito, sabe-se que atualmente existe uma super valorização da escola, que está ligada à exigência cada vez mais acentuada de um maior grau de escolaridade para o ingresso no mercado de trabalho, mesmo que determinadas funções não requeiram necessariamente o saber escolar (Braverman, 1977). Muitas vezes, ainda, esse saber não garante o sucesso profissional. Leila (1987) mostra, através de pesquisa realizada com adultos analfabetos, que existe também no Brasil uma exigência cada vez maior de qualificação (e escolaridade) para ocupações similares. Assim, alguns dos adultos estudados colocam a instituição escolar como algo fora, quer da sua realidade, quer de suas necessidades, quer de suas expectativas, o que eqüivale a não aceitar o sonho para si, sem que isso os impeça de continuar sonhando um futuro melhor para seus filhos: "boa piora os pequenos, porque para o adulto não serve mais...". (CNPq, FAPESP, Fundo de Pesquisa - USP).

V - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Braverman, H. "Nota final sobre qualificação" in: Braverman, H. Trabalho e Capital Monopolista. Zahar: Rio de Janeiro, 1977.
  • Leila, C. de "Os livros-texto do primário intensivo para adultos: principais interesses e opiniões de seus usuários". Cadernos de Pesquisa, 61, 30-41, 1987.
  • Madeira, F. R. "Los jóvenes en el Brasil: antigos supuestos y nuevos derroteros." Revista de la CEPAL, Santiago, no 29,57-80, agp. 1986.
  • Saviani, D. "As teorias da educação e o problema da marginalidade na América Latina." Cadernos de Pesquisa, 42,8-18,1982.
  • Scarfon, M. de L. Crescimento e Miséria. Símbolo: São Paulo, 1979.
  • Spindel, Cheywa R. "O menor assalariado registrado: condições de trabalho em áreas metropolitanas. Textos IDESP, São Paulo, nŞ 8,1985.
  • Tfouni, L. V. "A inteligência prática e a prática da inteligência". Arquivos Brasileiros de Psicologia, 39 (3), 44-56.1987.
  • Vieira, L. M. F. e Melo, R. L. C de "A creche comunitária Casinha da Vovó: prática de manutenção/prática de educação". Cadernos de pesquisa, 62, 60-78,1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2012
  • Data do Fascículo
    Jul 1993
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