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Famílias e modos de vida: gênero, gerações e identidade

Families and life styles: gender, generations and identity

Resumos

Este artigo discute alguns conceitos, em função de seu uso multidisciplinar e pela forma como têm sido utilizados nesta linha de pesquisa. A seguir, tece comentários sobre resultados de trabalhos de campo, realizados através de método etnográfico e centrados na investigação das trajetórias de sujeitos, no processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina.

família; identificação (psicologia); estilo de vida


As an introduction, this paper discusses some concepts that have a multidisciplinar use and therefore have been used in this research. Then, the author coments the results of field work in which an etnographic approach was utilized. The focus of the investigation is the subject's life trajectory, as it is impacted by the process of urbanization of Santa Catarina Island.

family; identification (psychology); life style


Famílias e modos de vida: gênero, gerações e identidade

Families and life styles: gender, generations and identity

Mara Coelho de Souza Lago

UFSC

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Mara Coelho de Souza Lago Departamento de Psicologia Universidade Federal de Santa Catarina Avenida Othon Gama D'Eça, 809/904. CEP 88.015 - 240 Florianópolis, Santa Catarina. Fone (048) 331 8701.

RESUMO

Este artigo discute alguns conceitos, em função de seu uso multidisciplinar e pela forma como têm sido utilizados nesta linha de pesquisa. A seguir, tece comentários sobre resultados de trabalhos de campo, realizados através de método etnográfico e centrados na investigação das trajetórias de sujeitos, no processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina.

Palavras-chave: família, identificação (psicologia), estilo de vida.

ABSTRACT

As an introduction, this paper discusses some concepts that have a multidisciplinar use and therefore have been used in this research. Then, the author coments the results of field work in which an etnographic approach was utilized. The focus of the investigation is the subject's life trajectory, as it is impacted by the process of urbanization of Santa Catarina Island.

Keywords: family, identification (psychology), life style.

Tenho estudado, por mais de uma década, o processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina, sob a perspectiva dos sujeitos que vivenciam/aram as transformações de seus modos de vida tradicionais, nas localidades agrícolas/pesqueiras da ilha que se transformaram em balneários ou bairros residenciais de Florianópolis.

Utilizo método qualitativo de pesquisa, realizando entrevistas gravadas, através das quais obtenho depoimentos e histórias de vida, cuja análise me têm possibilitado a elaboração de estudos etnográficos.

A primeira incursão ao campo, que ocorreu em 1980-81, tem se repetido em diferentes ocasiões, no que caracterizo como sucessivas aproximações com o objeto de estudo, privilegiando novos recortes na investigação.

Obtive, desta forma, entrevistas com cerca de 50 informantes, abrangendo três gerações de homens e mulheres, com diversos níveis de escolaridade, ou analfabetos, e diferentes inserções no mercado de trabalho (formal e informal), ou apenas estudando.

Assim, foram elaboradas várias etnografias que, centradas na questão das trajetórias dos sujeitos nos processos de transformações sociais, desenvolveram temas específicos, como trabalho e identidade, ligados à questão da escolaridade, exigida pelas formas assalariadas de emprego urbano; gênero, procurando analisar as trajetórias (relacionais) das mulheres no processo de urbanização de seus espaços de vida; adolescência, considerando os impactos das transformações sociais sobre este período crítico do desenvolvimento, marcado por mudanças internas e externas, num estudo comparativo entre jovens nativos das praias da ilha e adolescentes oriundos do centro urbano (de camadas populares e camadas médias). Todos estes estudos, de gerações e de gênero, ressaltaram a questão dos relacionamentos familiares, afetados e afetando os sujeitos, nos processos de mudanças sociais.

Estas etnografias, que exigiram o apelo teórico a outras disciplinas na área das ciências sociais, estão marcados pela ótica da Psicologia, que dirigiu o enfoque das pesquisas para o sujeito. Assim, o processo de transformação dos modos de vida tradicionais dos descendentes dos colonizadores açorianos que povoaram a Ilha de Santa Catarina, é analisado, nos trabalhos produzidos, através das representações dos sujeitos que vivenciam (ou já viveram) a expansão da cidade até as praias e a modificação das localidades litorâneas, equipadas com estabelecimentos e imóveis destinados a atender também à demanda turística, especialmente nos meses de verão.

São estudos sobre conflitos culturais entre modos de vida rurais (tradicionais) e modos de vida urbanos, complexificados pela condição pós-moderna (Harvey, 1994), caracterizada pela globalização da economia e da comunicação através da mídia. Tempos de fragmentação e exacerbação de identidades culturais, de acirramento das lutas entre os grupos que competem pelos espaços, oportunidades e pelo acesso aos bens materiais e culturais.

Questões Conceituais

O recurso à interdisciplinaridade torna maior a exigência de explicitação dos modos de utilização dos conceitos que possibilitam a análise do material empírico. Entre as categorias de análise que precisaram ser discutidas para tornar claras as escolhas teóricas da pesquisadora, destaco as de classe social, sujeito e identidade.

O conceito marxista de classe social nas sociedades mais complexas (em termos institucionais) é chamado a dar conta, além das classes trabalhadoras, dominadas, e das classes dominantes, daqueles setores da economia que se dedicam aos trabalhos administrativos, comerciais, financeiros (setor de serviços) e ao trabalho informal. Deve funcionar, na complexificação da (pós) modernidade e nos projetos econômicos neo-liberais, para significar também a crescente mobilidade dos trabalhadores entre os diferentes setores da economia, entre o emprego e o desemprego, entre o trabalho formal e informal (ora pertencem às classes sociais, ora não?). Para resolver estas questões, acredito que o recurso às categorias gramscianas de camadas médias e camadas populares, flexibiliza o conceito de classes sociais, possibilitando a análise do material empírico, sem apelar para concepções que trazem embutidas as confusões e preconceitos nos quais foram engendradas, como classes alta, média e baixa, que aparecem em inúmeros trabalhos, não só na psicologia, como nas demais ciências humano/sociais.

Outra categoria teórica que precisa ser explicitada é a de sujeito, em substituição e recusa à concepção de indivíduo que, nas ciências sociais serviu para separar/opor sociedade e indivíduo. Na utilização do conceito de sujeito, afasto-me do paradigma marxista, de sujeito se construindo ativamente na sociedade, como consciência de si e da realidade. O sujeito consciente, capaz de superar a alienação, tornando-se dono de sua vontade, de importantes tradições filosóficas. Minhas análises são perpassadas pela concepção freudiana de sujeito inconsciente, sujeito do inconsciente em Lacan (1993). Um sujeito sujeitado aos significantes com que a cultura o constitui1 1 Outras concepções de sujeito sujeitado, sujeito do discurso, como em Foucault (1983), divergem também dessa concepção de sujeito sujeitado ao inconsciente, que diferencia o sujeito da enunciação, do sujeito do enunciado - o sujeito do inconsciente, propriamente. . Não se trata, para a psicanálise, de indivíduo, célula da sociedade, indivisível, mas de sujeito, dividido em instâncias psíquicas, inconscientes ou mais conscientes. É nesta noção simbólica de constituição de sujeito enquanto significado pela cultura, que não cabem as dicotomias sociedade, cultura x indivíduo. A cultura não é internalizada pelo indivíduo que, nesse processo se socializa. Ela significa, constitui (processo inconsciente) o sujeito (desde sempre cultural) que nesse processo se particulariza2 2 Como sujeito pressupõe, para constituir-se, cultura, sociedade, relação, identificação, contraste, as ciências humanas são, desde sempre, ciências sociais. E a psicologia também, como já afirmara Freud em "Psicologia das Massas e Análise do Eu". .

O conceito de identidade é carregado de polissemia.

Caracterizando a pós-modernidade, muitos teóricos têm ressaltado como um de seus principais paradoxos, a questão da fragmentação e exacerbação de identidades, em tempos de globalização. Na sociologia e na antropologia, tem sido utilizada a dicotomização entre identidade cultural, social e identidade individual, pessoal, de uma forma que, acredito, atualiza e reforça a clássica separação entre indivíduo e sociedade. Alguns cientistas sociais chegam a afirmar que somos portadores, cada um de nós, na condição pós-moderna, de inúmeras identidades - de uma fragmentação em várias identidades pessoais3 3 Conferir Hall, 1997: 7-23. . Penso estarem substituindo, simplesmente, o antigo conceito de papéis sociais pelo conceito de identidade.

Em outro texto (Lago, 1996), discuto as inadequações da dicotomia identidade cultural x identidade pessoal, argumentando pela conveniência (guardadas as especificidades) de se refletir sobre a similaridade dos processos de formação de grupos, pelos sujeitos, e de construção de identidade pelo sujeito. Se podemos enfatizar diferenças entre os dois tipos de identidade, cultural e individual, porque se referem a realidades distintas, uma englobante (grupo), outra englobada (sujeito), estas diferenças precisam ser melhor explicitadas. Quando falamos de identidades sociais, culturais, as questões são mais claras: referimo-nos a atores sociais que se organizam em grupos que os identificam entre si, diferenciando-os de outros grupos (nós - eles). O fator complicador é que as chamadas identidades individuais, de sujeitos particulares, são também sociais, construídas na cultura, como os sujeitos que a cultura, significando, constitui.

Identidade pressupõe a concepção de idêntico e, em se tratando de identidade cultural, de grupos sociais, os fatores ressaltados são as características em comum entre os membros do grupo, que os tornam semelhantes entre si e os diferenciam de outros grupos, cujas características enfatizadas são outras, diversas. As identidades culturais se estabelecem, como concebera Barth (1976) no contraste entre grupos distintos (étnicos, de classe, gênero, idade, etc). As semelhanças entre os membros do grupo são fatores de identificação entre eles.

Os processos identificatórios (inconscientes), em psicanálise, são fundamentais na constituição de sujeitos psíquicos.

Identidade não é um conceito psicanalítico. Pelo peso constituinte do inconsciente na estruturação do psiquismo, a psicanálise tem se ocupado tradicionalmente em teorizar, a partir da clínica, os processos (relacionais) de identificação. O conceito de identidade, no entanto, (tão nebuloso para as ciências sociais quando referido ao sujeito particular) pode ser melhor elaborado pelo recurso à psicanálise, quando apelamos para a contribuição de Lacan (1993), diferenciando os registros psíquicos em Real, Simbólico e Imaginário4 4 " O simbólico remete à estrutura do inconsciente. De sua leitura, especialmente dos textos sobre ( )formações do inconsciente, ele (Lacan) irá afirmar ' O inconsciente é estruturado como uma linguagem'. O Imaginário refere-se à relação dual, especular, da construção do Ego. O Real aponta ao que está fora do significado, portanto, fora do campo da linguagem. Remete à pulsão e seu objeto faltante". (MASCARELLO, 1997: 5-6) .

Identidade deve ser referida, nesta concepção, ao registro do imaginário (que Lacan, 1993) desenvolve nos textos sobre " O Estádio do Espelho") ligada ao eu, à questão da imagem corporal e ao Outro. A criança ainda imatura, que só percebe partes fragmentárias do seu corpo, antecipa, pela imagem do seu reflexo no espelho, um corpo inteiro, uma imagem completa, que ela atribui a outro (outrem). Esta imagem, no entanto é significada pelo Outro5 5 Este Grande Outro, a cultura, sendo corporificado neste momento pela mãe ( mãe comofunção). , confirmada, como sendo (d)ela própria - eu (ego, em Freud, 1994).

A identidade vai sendo, assim, construída - construção imaginária -como a representação consciente do eu, nas relações contrastivas e de identificação aos outros. Identidade, nesta concepção, é a ficção do imaginário através da qual o sujeito se representa como "eu" ( a parte consciente do ego), procurando dar unidade e coerência a esta representação6 6 Em alguns estados patológicos é precisamente esta representação consciente do ego, histórica, unitária, que o sujeito perde, tornando-se um desconhecido para si próprio. . A identidade como representação ficcional do eu, elaboração do registro do imaginário, procura justamente dar conta das contradições do sujeito, organizando-as numa historia coerente, unitária, através da qual ele se referencia, como portador de um passado, relacionado ao seu presente e às suas expectativas de futuro.

Esta concepção de identidade como história de vida, com um mínimo de coerência e unidade, contrapõe-se, portanto, às visões de sujeito como portador de múltiplas identidades. Se, na condição pós-moderna, que assiste ao esfacelamento dos projetos unitários de sociedade, ocorre a fragmentação e a exacerbação das identidades de grupos sociais em lutas reinvindicatórias, competindo por espaços, pelo acesso a bens materiais e culturais, constitui-se em simplificação homogeneizante falar na fragmentação do sujeito particular em múltiplas identidades. Podemos tão somente supor que, na condição pós-moderna, o processo de construção de identidade pelos sujeitos particulares, que devem lidar com a fragmentação, com a multiplicidade de significações e organizações das sociedades complexificadas, mantendo um mínimo de unidade interna imaginária, deva ser, talvez, uma tarefa bem mais penosa que aquela exigida de sujeitos que se constituíram/constituem, nas chamadas sociedades menos complexas, em tempos/condições diferentes.

Nestes estudos que utilizam a concepção de cultura como um sistema simbólico (Geertz, 1989), é importante ressaltar que

"...a cultura não é algo dado, posto, dilapidável também, mas algo constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados... " (Cunha, 1987, pag. 101)

Esta concepção pode ser estendida também ao conceito de identidade que, como os significantes simbólicos culturais, não deve ser pensado como algo posto, acabado, mas como representação construída, em processo, sempre recomposta, investida de novos significados, novas identificações, na dinâmica dos processos psicológicos, relacionais.

Famílias e Urbanização

A primeira geração de entrevistados, homens e mulheres idosos que, no início dos anos 80, relataram-me suas histórias de vida e, através delas, o processo de mudanças que transformara sua pacata comunidade agrícola e pesqueira em balneário de veraneio7 7 Naquele momento, povoado por poucos hotéis e pelas segundas residências dos habitantes da cidade, que se transformavam, de valores de uso em valores de troca, em função da demanda turística. Hoje, repleta de prédios de apartamentos para aluguel, de estabelecimentos comerciais e de lazer, com intensa vida noturna no verão. , ofereceram-me sua versão da trajetória dos sujeitos e suas famílias, do mundo rural para o mundo urbano, mesmo que permanecessem morando no mesmo espaço8 8 Alguns já haviam migrado para centros urbanos, movimento que se intensificou bastante a partir de então. . Esta trajetória não se distinguia muito das relatadas por Eunice Durham (1984), no seu estudo de migrantes para São Paulo, e, mais recentemente, das famílias estudadas por Sílvia Leser de Melo (1988), em um bairro da Grande São Paulo.

As famílias de origem destes informantes enquadravam-se nos moldes tradicionais de família camponesa, com muitos filhos, sob forte controle do pai, chefe da família que, no entanto, ficava ausente por longos períodos para a pesca sazonal no Rio Grande do Sul, sendo substituído pela mulher e pelos filhos nas lidas da lavoura. As mulheres, que assumiam os encargos e decisões do marido quando estes não estavam presentes, eram-lhes, no entanto, bastante submissas. Os filhos permaneciam em casa trabalhando na lavoura e na pesca (os meninos, como ajudantes, quando crianças e camaradas, mais tarde). As meninas ajudavam também na lavoura e trabalhavam na renda desde pequenas9 9 Os estudos de Anamaria Beck (1982) ressaltam, além da importância do ganho financeiro com o produto, o controle das mulheres exercido pelos pais e pelo marido, através do trabalho de confecção da renda. . O dinheiro obtido pelos filhos com a pesca e a venda da renda de bilro, ia para o "monte", controlado pelo pai, mesmo que eles já fossem adultos. Só passavam a produzir para si próprios quando se preparavam para casar, ou após o casamento. Quando os pais possuíam terrenos maiores, era comum os filhos casados permanecerem no trabalho da lavoura com a família, construindo nova residência na terra dos progenitores.

O acesso à cidade para venda do pescado e dos produtos excedentes da lavoura era difícil, assim como o acesso aos serviços de saúde e educação.

Com relação às famílias constituídas pelos próprios sujeitos entrevistados, as mudanças não foram muito notáveis e encontrei vários núcleos familiares extensos, com as pessoas idosas sendo cuidadas pelos filhos, a autoridade ainda bastante concentrada na figura paterna (os pais foram considerados, até mais recentemente, pelos jovens da terceira geração, como distantes e austeros, enquanto as mães foram representadas como mais compreensivas e acessíveis).

As mulheres da primeira geração eram, em geral, donas de casa e costumavam ser bastante submissas à vontade dos maridos. Estes passavam vários meses "embarcados" para a pesca sazonal no Rio Grande do Sul, períodos em que as esposas se encarregavam das decisões e de todo o trabalho masculino (na lavoura, com os animais de grande porte) contando, muitas vezes, apenas com o auxílio das crianças. Tarefas que eram acrescidas às suas lidas cotidianas na casa, no cuidado com os filhos, na horta, na renda, etc. Algumas das entrevistadas foram professoras, tendo elas próprias, geralmente, apenas o curso primário, acrescido de um treinamento/especialização oferecido intensivamente pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado. Trabalho "fora" que era somado às suas atividades domésticas.

A educação formal das crianças costumava ser encargo das mães, que usavam seus ganhos com a renda, a venda de ovos, verduras, etc., para a compra de uniforme e material escolar. Este fato ofereceu a explicação para os casos das mães que, mesmo analfabetas, enfrentaram, muitas vezes, a oposição dos maridos para manterem os filhos na escola, quando aqueles preferiam encaminhá-los (aos meninos, principalmente) para o trabalho tradicional.

Esses sujeitos da primeira geração estabeleceram, em suas representações, forte relação entre identidade e trabalho, caracterizando seus pais como lavradores e a si próprios como pescadores, embora realizassem os mesmos tipos de atividades10 10 No relatório produzido naquela oportunidade (Lago, 1983), discuto a relação entre trabalho acessório e trabalho principal para refletir sobre esta aparente ambiguidade, contida nos relatos dos sujeitos entrevistados. .

Os informantes da segunda geração de entrevistados (1989-90), em toda a ilha, já não estavam conseguindo sobreviver do trabalho tradicional, nas localidades litorâneas. Assim, procuravam prestar serviços, em casas comerciais, como mão-de-obra não qualificada, tomando conta de casas de veraneio, muitos deles aspirando a vagas no serviço público. Nas praias, os trabalhos oferecidos eram sazonais, o que os levava a buscarem empregos na cidade.

As mulheres, que tinham feito seus enxovais e "vestido" a si e à família com o trabalho da renda, já buscavam outros tipos de atividades fora do lar, em geral como domésticas dos veranistas, ou faxineiras e lavadeiras, em residências da cidade.

Os empregos urbanos exigiam melhores níveis de escolaridade. Esses informantes eram ainda oriundos, em sua quase totalidade, de famílias extensas que, devido ao processo de mudanças em andamento, preocuparam-se muito especialmente com a escolarização das crianças. Muitos dos entrevistados desta segunda geração já haviam migrado para a cidade e vários o fizeram pensando também na continuidade dos estudos para os filhos, já que as escolas das praias ofereciam apenas as quatro primeiras séries primárias, só mais recentemente vindo a oferecer o primeiro grau completo, ou o ensino de segundo grau. .

Nesta altura, os pais, quase unanimemente, independente da diferenciação social entre eles, não desejavam que os filhos permanecessem no trabalho da pesca, que não oferecia mais futuro. O que ficou ressaltado, na análise das representações contidas nos relatos daqueles informantes que migraram para as periferias urbanas, em piores condições de renda, foi a extrema mobilidade, tanto de tipos de trabalho (entre o emprego formal e as ocupações informais) quanto de moradia, ou de permanência das crianças na escola.

Os jovens, entrevistados mais recentemente (1995-96), já conseguem estudar nas praias de origem. Poucos deles, especialmente os que ingressam ou pretendem ingressar na universidade, realizam na cidade os terceirões, ou cursos pré-vestibular. Relatam conflitos com as famílias de origem, conservadora, especialmente com a figura paterna, autoritária, segundo eles. Seus pais, por outro lado, apontam muita preocupação com a questão das drogas, um dos maiores problemas trazidos pela urbanização turística de seus espaços de vida. Os relatos da segunda geração já haviam destacado os choques culturais, tanto em relação aos "de fora", quanto em relação aos comportamentos das novas gerações, mais afetadas pelos modelos difundidos pela mídia.

Na Ilha, em localidades que não recebem bem as transmissões televisivas locais, quase todas as casas estão equipadas com antenas parabólicas, seus moradores assistindo, nos horários das notícias regionais, aos noticiários de São Paulo. Antenados com o mundo, mas procurando preservar seus valores, na transformação de seus modos de vida.

Entre as famílias que permanecem nas praias, as condições de moradia são melhores, em geral, que as das periferias urbanas e favelas. Nestas, as situações não diferem das analisadas por outros autores (conferir Melo e Durham, já citadas). Enquanto nas primeiras parece haver, ainda, um maior sentido de permanência (na transformação), nas segundas o que ressalta é a errância, de moradia, de ocupações... Muitas delas, aspirando retornar para as praias.

Na Ilha de Santa Catarina tem havido, por inúmeros motivos, uma revalorização da cultura de base açoriana (modos de vida, valores, artesanato, cantorias, festas populares, etc., trazidos pelos colonizadores). Isto tem funcionado como fator de coesão social, entre gerações inclusive, que se unem para defender e preservar suas práticas culturais. A identidade cultural de "manezinho da ilha", equivalente à de caipira, jeca (homem rural), em outras regiões do país, pejorativa até para a segunda geração de entrevistados (Lago, 1998), é hoje afirmada positivamente, com orgulho, pelas novas gerações.

As mulheres que, desde a segunda geração, partiram para o trabalho fora de casa, como tem ocorrido atualmente em muitas partes do mundo, estão se dedicando aos estudos proporcionalmente em maior número que os homens, e por mais tempo. Uma das moças da terceira geração, professora primária na localidade de origem e cursando pedagogia na Universidade Federal, noiva de rapaz com escolaridade primária incompleta, relatou que, para os antigos, o estudo parecia se opor ao trabalho e principalmente os meninos, eram encaminhados desde cedo para as lidas da pesca, sendo considerados preguiçosos aqueles que desejavam continuar estudando. Assim, na sua opinião, o estudo era mais permitido às meninas, era "coisa de mulher" (embora muitas informantes das gerações anteriores, tenham relatado que não puderam continuar na escola por precisarem ajudar as mães no trabalho doméstico).

Mesmo nesta última geração, as moças entrevistadas relacionaram, muito estreitamente, suas experiências de trabalho e escolaridade com as questões de gênero, sendo sua participação nas atividades fora do lar, condicionada à necessidade de cuidados com a família, os doentes, as crianças, etc. Assim, foi uma delas que, mesmo tendo segundo grau completo e trabalhando em casas comerciais no centro (e não seu irmão, com menor nível de escolaridade e trabalhando como cobrador de ônibus na praia), teve que abandonar o emprego, muitas vezes consecutivas, para engajar-se nos projetos dos pais na temporada de verão. Outra informante relatou ter desistido de cursar o terceiro grau em favor do marido, já que não poderiam manter-se ambos na universidade.

Apesar de toda a identificação com a família e a manutenção das amarras com o mundo privado, evidenciadas em seus depoimentos, as moças da terceira geração relataram sua clara intenção de se diferenciarem das mães e dos papéis femininos que caracterizaram as mulheres das gerações anteriores. Era presente em todas elas a preocupação em se capacitarem para o trabalho no mundo público, que viam como uma forma de realização pessoal.

Na comparação estabelecida entre os adolescentes das praias e os do centro urbano de Florianópolis, foi interessante observar, ao lado da maior exacerbação dos conflitos de gerações de populações litorâneas, um certo espaço para um tempo de moratória (Erikson, 1976), de experimentação descompromissada, permitido pelas gerações anteriores, também para os adolescentes das praias, antes das definições impostas aos adultos pela sociedade. Fato que revela influência dos valores urbanos e alguma abertura aos ensinamentos das psicologias do desenvolvimento.

Concluindo essa descrição, uma das perguntas que podemos formular é a seguinte: - Até quando aquelas famílias que permanecem tentando sobreviver nas praias, com muitos de seus membros já trabalhando na cidade, poderão manter seus espaços de moradia e sociabilidade frente à pressão imobiliária promovida pelo poder econômico? - Os prognósticos não são os mais favoráveis. E as migrações, na chamada pós-modernidade, não se dão somente para novos espaços (mais deteriorados), mas para novas formas de trabalho (o que já ocorreu para a maioria), ou para o desemprego, a informalidade, nas economias globalizadas dos países de terceiro mundo. Condições que afetam os sujeitos, tanto nos seus relacionamentos geracionais e de gênero, como na própria construção de suas identidades, culturais e pessoais, conforme ficou ressaltado nestas pesquisas.

  • Barth, F. (1976). Los grupos étnicos y sus fronteras. México: Fondo de Cultura Económico.
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  • Cunha, M. C. (1987). Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense.
  • Durham, E. (1984). A caminho da cidade. São Paulo: Perspectiva.
  • Erikson, E. (1976). Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar.
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  • Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.
  • Hall, S. (1997). Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&
  • Harvey, D. (1994). Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola.
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  • Lago, M.C.S. (1983). Memória de uma comunidade que se transforma: De localidade agrícola - pesqueira a balneário. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
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  • Mascarello, T. V. (1997) Prática clínica psicanalítica. Florianópolis: Ed. UFSC.
  • Melo, S. L. (1988). Trabalho e sobrevivência. Mulheres do campo e da periferia de São Paulo. São Paulo: Ática.
  • Endereço para correspondência:
    Mara Coelho de Souza Lago
    Departamento de Psicologia
    Universidade Federal de Santa Catarina
    Avenida Othon Gama D'Eça, 809/904.
    CEP 88.015 - 240 Florianópolis, Santa Catarina.
    Fone (048) 331 8701.
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    Outras concepções de sujeito sujeitado, sujeito do discurso, como em Foucault (1983), divergem também dessa concepção de sujeito sujeitado ao inconsciente, que diferencia o sujeito da enunciação, do sujeito do enunciado - o sujeito do inconsciente, propriamente.
  • 2
    Como sujeito pressupõe, para constituir-se, cultura, sociedade, relação, identificação, contraste, as ciências humanas são, desde sempre, ciências sociais. E a psicologia também, como já afirmara Freud em "Psicologia das Massas e Análise do Eu".
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    Conferir Hall, 1997: 7-23.
  • 4
    " O simbólico remete à estrutura do inconsciente. De sua leitura, especialmente dos textos sobre ( )formações do inconsciente, ele (Lacan) irá afirmar ' O inconsciente é estruturado como uma linguagem'. O Imaginário refere-se à relação dual, especular, da construção do Ego. O Real aponta ao que está fora do significado, portanto, fora do campo da linguagem. Remete à pulsão e seu objeto faltante". (MASCARELLO, 1997: 5-6)
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    Este Grande Outro, a cultura, sendo corporificado neste momento pela mãe ( mãe comofunção).
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    Em alguns estados patológicos é precisamente esta representação consciente do ego, histórica, unitária, que o sujeito perde, tornando-se um desconhecido para si próprio.
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    Naquele momento, povoado por poucos hotéis e pelas segundas residências dos habitantes da cidade, que se transformavam, de valores de uso em valores de troca, em função da demanda turística. Hoje, repleta de prédios de apartamentos para aluguel, de estabelecimentos comerciais e de lazer, com intensa vida noturna no verão.
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    Alguns já haviam migrado para centros urbanos, movimento que se intensificou bastante a partir de então.
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    Os estudos de Anamaria Beck (1982) ressaltam, além da importância do ganho financeiro com o produto, o controle das mulheres exercido pelos pais e pelo marido, através do trabalho de confecção da renda.
  • 10
    No relatório produzido naquela oportunidade (Lago, 1983), discuto a relação entre trabalho acessório e trabalho principal para refletir sobre esta aparente ambiguidade, contida nos relatos dos sujeitos entrevistados.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 1998
    Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Av.Bandeirantes 3900 - Monte Alegre, 14040-901 Ribeirão Preto - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 16) 3315-3829 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
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