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Relação família-escola: novo objeto na sociologia da educação

Family-school relationship: new subject of educational sociology

Resumos

Este artigo trata do aparecimento, a partir dos anos 1980, de um novo objeto no campo da Sociologia da Educação: o das interações entre as famílias e a instituição escolar. Parte-se do exame das primeiras formas de tratamento dado, pelos sociólogos, ao tema da família, as quais se limitavam a observar a influência do background familiar sobre os destinos escolares das crianças. A isso ela contrapõe as abordagens atuais que enfatizam os processos domésticos e cotidianos, e as práticas concretas dos atores, através dos quais se dá (ou não) essa influência.

família; escolas; sociologia; educação


This paper deals with the appearance, since the 80's, of a new subject in the field of Educational Sociology: the one of family and school interaction. The first treatments to family's theme by sociologists are examined, showing that they are limited to the observation of family's background influence in children's schoolarship destiny. The discussion presents arguments and approachs to prouve that daily process and concret childrearing practices are the ones responsibles for this type of influence.

family; schools; sociology; education


Relação família-escola: novo objeto na sociologia da educação

Family-school relationship: new subject of educational sociology

Maria Alice Nogueira

UFMG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Maria Alice Nogueira Departamento de Sociologia Faculdade de Educação Universidade Federal de Minas Gerais Fone/fax (034 ) 234 5678 e-mail amaria@fe.ufmg.br

RESUMO

Este artigo trata do aparecimento, a partir dos anos 1980, de um novo objeto no campo da Sociologia da Educação: o das interações entre as famílias e a instituição escolar. Parte-se do exame das primeiras formas de tratamento dado, pelos sociólogos, ao tema da família, as quais se limitavam a observar a influência do background familiar sobre os destinos escolares das crianças. A isso ela contrapõe as abordagens atuais que enfatizam os processos domésticos e cotidianos, e as práticas concretas dos atores, através dos quais se dá (ou não) essa influência.

Palavras-Chave: família, escolas, sociologia, educação.

ABSTRACT

This paper deals with the appearance, since the 80's, of a new subject in the field of Educational Sociology: the one of family and school interaction. The first treatments to family's theme by sociologists are examined, showing that they are limited to the observation of family's background influence in children's schoolarship destiny. The discussion presents arguments and approachs to prouve that daily process and concret childrearing practices are the ones responsibles for this type of influence.

Key words: family, schools, sociology, education.

Estudar como a família vem sendo tratada pela Sociologia da Educação ao longo de sua história, é trabalho que ainda está por ser feito. Entretanto, não é esta a finalidade do presente texto que se propõe, mais modestamente, a entender a emergência, a partir dos anos 1980, de novas formas de abordagem do fenômento das relações entre a família e a escola, na pesquisa sociológica em educação.

Mas a renovação do objeto seria dificilmente compreensível sem a referência ao estado anterior do pensamento e da pesquisa sociológica, razão pela qual se faz necessária uma recapitulação ainda que sucinta.

Afinal, como já fora observado por Agnès Van-Zanten (1988, p. 185),"os elos sociais entre as famílias e a instituição escolar sempre estiveram no centro das preocupações dos sociólogos da educação". Com efeito, essa relação não constitui propriamente novidade no campo da Sociologia da Educação, seu tratamento é que irá variar no tempo, como veremos.

Foi somente a partir do final da IIª Guerra Mundial, com o aparecimento dos primeiros trabalhos de pesquisa empírica, que a disciplina adquiriu seu direito de cidadania no campo científico. Esses estudos pioneiros predominaram na década de 1950 até inicío dos anos 60, tornando-se conhecidos, hoje em dia, pela corrente do "empirismo metodológico" (a Aritmética Política inglesa, a Demografia Escolar francesa). Seus interesses centravam-se na relação educação/classe social, buscando identificar os fatores responsáveis pelas desigualdades de oportunidades, vendo no meio sócio-familiar um poderoso fator das disparidades escolares (Nogueira, 1995). A atenção estava voltada sobretudo para as características morfológicas do grupo familiar (número de filhos, sexo, idade, lugar da criança na fratria, por exemplo).

Entretanto, essas análises tinham um caráter macroscópico e geralmente quantitativo, eximindo-se da observação dos processos "finos" de fabricação/manutenção das desigualdades e transformando a família numa mera correia de transmissão das estruturas sociais. A família ficava então dissolvida na variável "categoria sócio-econômica" de pertencimento. Conhecia-se assim, sem dúvida, seus efeitos sobre o desempenho escolar, mas os processos domésticos e cotidianos pelos quais projetos e estratégias familiares são elaborados e postos em prática, permaneciam na penumbra.

Quanto aos anos 1960-70, J.P. Terrail (1997) - numa primeira tentativa de balanço da questão - avalia que tanto no caso das correntes estruturalistas (Bourdieu/Passeron, Baudelot/Establet), quanto no caso do individualismo metodológico (Boudon), a famíla foi colocada no centro das análises porque, ao transmitir, no primeiro caso, um patrimônio (cultural, ideológico, político) ou ao produzir, no segundo caso, aspirações escolares em conformidade com sua condição de classe, ela determinaria as trajetórias e as condutas escolares da prole. Entretanto - argumenta Terrail - o que se escreve sobre ela, "nunca é o resultado de uma observação empírica. Os comportamentos familiares são essencialmente postulados, deduzidos a partir da constatação de seus efeitos escolares: eles não são interrogados por si mesmos" (p. 69).

A análise de Singly (1996a) vai no mesmo sentido. Ele nos chama a atenção para o "evitamento" da categoria família pelos autores de A Reprodução, livro que marcou o período e assinalou o aparecimento de um novo paradigma na disciplina (Nogueira, 1990). Sua tentativa de explicar o fato repousa em dois elementos: o contexto ideológico da época que celebrava a "morte da família" (referência à maio/68); e o zelo objetivista de P. Bourdieu e J.C. Passeron, cujas disposições teóricas, à época, recomendavam a adoção de uma perspectiva de análise que se colocasse exteriormente aos sujeitos e que se mostrasse cautelosa quanto a suas interações. Aqui também os efeitos teóricos desse silêncio se fizeram no sentido de manter o funcionamento da família - em suas relações com a escola - como uma caixa preta intocada.

Resumindo a característica desse período, Terrail (1997, p. 69-70) afirma:

"Se, portanto, as teorias da reprodução avançam a idéia de uma diferenciação na natureza das famílias segundo seu pertencimento de classe, elas permanecem ao nível do princípio: as famílas não são interrogadas por si mesmas nem por aquilo que fazem das determinações inerentes a seu pertencimento de classe. Não lhes é demandado mais, ao final das contas, do que personificar os diferentes meios sociais (que são aqui os verdadeiros sujeitos da vida social e da atividade escolar), assim como os defensores do individualismo metodológico não lhes demandarão outra coisa senão personificar o indivíduo racional."

Em suma, esse modo tradicional de tratamento até então reservado à família, tinha por efeito ocultá-la sob as variáveis clássicas do pertencimento social (condições materiais de existência, background sócio- cultural). Tal diagnóstico é corroborado por três avaliações convergentes expressas recentemente por três sociólogos da educação que trabalham em contextos diferentes: o francês e o anglo-saxão.

Na apreciação feita pelo sociólogo francês Jean-Manuel de Queiroz (1991, p. 201): "A escola e a família têm estado ligadas - há já quase 40 anos - por bem estranhas núpcias em Sociologia. Sabemos, com efeito, quase tudo e ainda pouco sobre suas alianças polimorfas".

"Quase tudo" porque as reiteradas constatações de uma forte correlação entre a origem social e o destino escolar, já se encontram amplamente estudadas e difundidas hoje em dia. "Ainda pouco" porque as práticas, e seu significado para os atores sociais, ainda são desconhecidos.

Opinião muito próxima manifesta a pesquisadora norte-americana Annette Lareau (1987, p. 73):

"A influência do background familiar sobre a experiência educacional da criança ocupa um curioso lugar no campo da Sociologia da Educação. Por um lado, a questão tem dominado o campo. Utilizando instrumentos metodológicos cada vez mais sofisticados, os cientistas sociais têm trabalhado para documentar, elaborar e comprovar a influência do background familiar sobre os destinos escolares. Mas por outro lado, até recentemente, as pesquisas sobre a questão focalizavam principalmente os resultados educacionais; muito pouca atenção era dada aos processos através dos quais esses padrões educacionais são criados e reproduzidos" (os grifos são da autora).

Mas é Agnès Van-Zanten (1988, p. 188) quem melhor explicita o movimento de renovação da problemática:

"Para descrever a evolução das problemáticas relativas à relação que as famílias mantêm com a escola, podemos, através de um resumo simplificador, notar a transição de uma sociologia das desigualdades de educação, voltada para a análise dos determinismos sociais e culturais, para uma sociologia que se interessa igualmente - mas não necessariamente de modo exclusivo - pelas estratégias individuais face à escolarização".

É que os anos 1980/90 - como se sabe - têm testemunhado um grande processo de reorientação da Sociologia da Educação. Nesse processo -comumente definido por um deslocamento do olhar sociológico das macro-estruturas para as práticas pedagógicas cotidianas - novos enfoques e objetos vêm emergindo (o estabelecimento de ensino, a sala de aula, o currículo), em boa dose sob a influência do instrumental antropológico (estudos etnográficos, observação-participante) mas também histórico (histórias de vida, biografias escolares). É nesse quadro que tem origem um novo campo na Sociologia da Educação que se ocupa das trajetórias escolares dos indivíduos e das estratégias utilizadas pelas famílias no decorrer desses itinerários escolares. Trata-se de um novo referencial de análise que ambiciona ir além da já clássica "sociologia da escolarização" - que fizera das desigualdades de oportunidades, uma evidência -, tentando construir uma sociologia das escolaridades.

Isto posto, trata-se então de identificar os fatores que levaram ao aparecimento de novas formas de tratamento do objeto. Ou, mais especificamente, sob o peso de quais fatores foram os sociólogos levados a superar o plano das análises macroscópicas e das relações estatísticas entre a posição social dos pais e a performance escolar dos filhos; a desejar conhecer os processos e as dinâmicas intra-familiares, as práticas socialisatórias e as estratégias educativas internas ao microcosmo familiar?

Os primeiros e ainda precários balanços que vêm sendo tentados pelos estudiosos do desenvolvimento da disciplina, sugerem que a resposta a essa pergunta deve ser buscada na intersecção de duas dimensões de análise: a social e a sociológica. Influenciando o fenômeno estariam, de um lado, as modificações por que passa a família contemporânea (em particular no que se refere às suas relações com o universo escolar) juntamente com as transformações sofridas, nos dias de hoje, pela instituição escolar. De outro, estariam as razões internas ao pensamento sociológico que vem sofrendo, nas duas últimas décadas, uma reorientação em seus objetos de conhecimento e em seus métodos investigativos, no sentido dar conta das pequenas unidades de análise.

No estágio atual de nossos conhecimentos, seria muito arriscado tentar estabelecer qual a parte que cabe a cada uma dessas duas dimensões na produção das novas abordagens. É impossível - ao menos por enquanto - fazer mais do que sugerir de que forma as transformações nas atitudes e condutas dos atores sociais (individuais e coletivos) e as mudanças nas orientações da pesquisa sociológica, se somaram para produzir uma nova conjuntura teórica. Comecemos por esse último aspecto.

É certo que a Sociologia da Educação não se manteve refratária ao movimento mais geral que as Ciências Sociais vêm apresentando nas últimas duas décadas, quando novos modos de inteligibilidade do social passaram a enfatizar a autonomia relativa dos sujeitos em suas ações, representações, valores e a conceber a realidade social como resultante de um trabalho de construção permanente por parte dos atores sociais. Tem início, então, uma fase de grande impulsão de pesquisas sobre a vida privada (Singly, 1991).

Sensíveis a essas mudanças conceituais, os pesquisadores voltam-se para os processos e as interações que se dão internamente à escola e à família, esta última considerada por Terrail (1997) a derradeira dentre as "caixas pretas" abertas pelos sociólogos da educação.

Nesse sentido, a própria concepção de grupo familiar sofre uma inflexão. Sem ignorar o peso dos condicionantes externos, deixa-se de concebê-lo como mero reflexo da classe social, para enxergar nele "um sistema de ação, portador de um projeto autônomo e resultante de uma dinâmica normativa interna" (Boyer e Delclaux, 1995, p. 11). A ênfase será posta agora na atividade própria do grupo familiar, definindo-se sua especificidade por sua dinâmica interna e sua forma de se relacionar com o meio social, em boa medida uma construção sua. Assim, o funcionamento e as orientações familiares operariam como uma mediação entre, de um lado, a posição da família na estratificação social e, de outro, as aspirações e condutas educativas, e as relações com a escolaridade dos filhos.

É no quadro desse novo tratamento reservado à famíla que se deve entender a aproximação verificada nos últimos anos entre a Sociologia da Educação e a Sociologia da Família; disciplinas que "até então, não mantinham contatos muito regulares", nas palavras de J.P. Terrail (1997, p.67), ou cujos "caminhos tinham sido, o mais freqüentemente, paralelos", nos termos de C. Montandon (1993, p.l). A colaboração atual entre essas duas disciplinas - ao favorecer uma certa descompartimentação disciplinar - tem significado notáveis avanços para o campo e tem levado a uma produção editorial bastante rica que encontra em autores como Francois de Singly (1987, 1993, 1996b), Jean Kellerhals (1984, 1991), C. Montandon e P. Perrenoud (1987), Bernard Lahire (1995), François Dubet (1997) bons exemplos da emergência e formulação de novas interrogações.

Mas esse fenômeno não é menos fruto de um novo contexto social, resultante de mudanças tanto no seio da família, quanto no âmbito dos processos escolares. O aspecto mais visível desse novo contexto consiste na aproximação, cada vez maior, dessas duas instâncias do social - fundamentais na socialização infantil e juvenil - que são a família e a escola.

Autores diversos têm observado que, no passado, as relações entre essas duas instituições eram reduzidas e esporádicas: "No início de nosso século e a fortiori no século XIX, a maioria das famílias não mantinha relações com a escola pública (...). Em geral, portanto, os pais não eram admitidos no recinto da escola e as relações família-escola, tal como as entendemos ou preconizamos hoje, eram inexistentes nas cidades" (Montandon, 1987, p.24).

Embora pouco intensas e frequentes, é claro que "sempre existiram relações sociais entre a família e a escola enquanto instituições, mas somente a partir dos anos 1960 é que as interações individuais entre pais e professores ganharam importância" (Van-Zanten, 1988, p.185) (grifos da autora).

Em todo caso, o que se pode afirmar com certeza, é que essas relações estavam longe de incidir sobre o terreno do pedagógico. Dominique Glasman (1992) revela - com base em estudo de P. Crouzet datado de 1916 -que dentre as 284 visitas de pais feitas, em 1901, a um diretor de escola francês, apenas três diziam respeito à vida escolar dos filhos; a maioria delas concernindo a questões de vestuário ou de manutenção da ordem. O que é corroborado por Van-Zanten (1988, p. 194) nos seguintes termos: "No passado, o direito de vigilância dos pais sobre o funcionamento cotidiano dos estabelecimentos de ensino, exercia-se principalmente através de normas implícitas relativas, em particular, à moralidade dos mestres e à disciplina dos alunos".

A evolução na lógicas das relações entre a família e a escola, deu-se portanto no sentido de uma "imbricação" crescente entre esses dois territórios (Terrail, 1997); fenômeno que é definido por Agnès Van-Zanten (1988, p. 187) como o de "aparecimento de uma nova zona de interação" entre as duas instâncias, em que tanto a casa como a sala de aula, que eram espaços privados, hoje se tornam espaços abertos onde pais e educadores realizam trocas. Mas essa última autora se apressa em advertir que essa disposição para a troca não se encontra igualmente repartida entre as famílias dos diferentes meios sociais.

Essa intensificação dos contactos se faz hoje acompanhar de uma ideologia da colaboração e da emergência de um discurso - tanto por parte dos especialistas, quanto do senso comum - que prega a importância e a necessidade do diálogo e da parceria entre as duas partes.

Resultante de um complexo processo manifestado nas últimas décadas mas gestado no longo prazo, essa nova realidade social é fruto imediato -como já foi afirmado acima - de transformações de duas ordens: mudanças no âmbito da família, modificações das instituições de ensino. De que mudanças se trata?

I - Mudanças nos modos de vida familiar

As análises recentes sobre a questão são unânimes em seu ponto de partida: a importância do filho e a transformação do lugar ocupado por ele na família contemporânea. Desde a década de 1960, com as teses do historiador P. Ariés (1981), as idéias de "invenção da infância" - entre os séculos XVI e XVIII - e da modernidade do sentimento de infância e de família muito se propagaram. Apesar de algumas críticas que esse autor recebe hoje, não parece questionado o fato de que a família moderna volta-se para seu interior, inaugurando o amor conjugal e a intimidade familiar moderna. Nesse quadro, a criança passa a ser alvo de maiores cuidados (saúde, alimentação, educação) e objeto de grande preocupação dos pais. Em alguns autores, o fenômeno é identificado a um processo de sentimentalização das relações familiares, cuja contrapartida seria o enfraquecimento de suas funções instrumentais, caracterizadas pela reprodução física, cuidados materiais, descendência. Assim, o lugar da criança na família passa a ser visto como principalmente afetivo e as ações em relação a ela, essencialmente educativas.

Montandon (1987) nos convida a nuançar essas teses, argumentando que seria equivocado pensar, de um lado, que todas as funções instrumentais da família teriam desaparecido; e, de outro, que as interações afetivas fossem totalmente inexistentes na pré-modernidade. Mas a autora admite que o aspecto afetivo se intensificou, sob o peso de fatores como a diminuição da mortalidade infantil, o controle da natalidade, a urbanização, a elevação do nível de vida das populações, as transformações nos modos de vida e nos comportamentos. Para ela, " a criança constituiu e constitui sempre um duplo investimento para a família, instrumental e afetivo, e as duas dimensões premanecem muito importantes ainda que elas tenham sofrido certas transformações".

Nas famílias atuais, os pais são levados - na opinião da autora - a tratar suas relações afetivas com os filhos de um modo quase "profissional", ouvindo especialistas variados (pediatras, psicólogos, orientadores etc). Por outro lado, eles se vêem obrigados a instrumentalizar os filhos para as diferentes situações de competição que estes deverão enfrentar na vida: a escolarização, a profissionalização; o que não se faz hoje em dia sem "uma ansiedade típica do investimento afetivo". Por essas razões, Montandon (1987) afirma que "as relações entre pais e filhos foram psicologizadas mais do que sentimentalizadas" (os grifos são da autora).

As teses do sociólogo da família francês Francis Godard (1992), sobre o novo lugar atribuído ao filho nas famílias contemporâneas, têm sido constantemente utilizadas pelos sociólogos da educação que recorrem a elas na tentativa de entender o estabelecimento de um novo tipo de relação com a escola. Para ele, um novo olhar sobre a criança e sobre seu lugar em nosso imaginário, vem se instalando desde os anos 1960. As razões disso, Godard vai buscar, em primeiro lugar, no fato de que hoje a criança deriva de um ato de vontade dos pais e cada vez menos de uma submissão às normas sociais que fazem dela a realização final de um casamento. Novas técnicas médicas (contracepção, aborto, fecundação in vitro, inseminação artificial etc) vão fornecer, aos casais, os meios para isso.

Em segundo lugar e na esteira das teses acima mencionadas, a família tendo-se enfraquecido em seu papel instrumental, a criança deixa de representar um "capital" para se tornar um "custo econômico" ou, nas palvavras de Kellerhals, Troutot e Lazega (1984) "um bem de consumo afetivo". É que com a proibição do trabalho infantil, a extensão do período de escolaridade obrigatória, a criação dos sistemas de seguridade social, ela deixa de ser uma perspectiva de ganho para os pais, um recurso contra suas inseguranças na velhice. Se ela permanece como posse dos pais, é cada vez menos como futura força de trabalho ou como garantia da descendência e cada vez mais como objeto de afeto e de preocupação, razão de viver, maneira de se realizar, fonte de prazer e de orgulho para eles.

Daí decorre sua preocupação e mobilização com vistas à instalação do filho na sociedade. Ocorre que, em nossos dias, o destino ocupacional, a posição e as possibilidades de ascensão social estão estreita e crescentemente associados ao sucesso escolar e à sua forma institucionalizada de certificação, isto é, à obtenção do diploma. Esses fatos reunidos engendrarão o fenômeno denominado por Singly (1997) de substituição - no processo de reprodução familiar - de um "modo de produção econômico" por um "modo de produção escolar". Esse autor escreve: "Enquanto que a antiga família era patrimonial, a nova lógica da escola suscita, pouco a pouco, a emergência de um 'capital escolar' que serve para legitimar as posições respectivas dos jovens no espaço social" (p.46).

Assim, a escola - com seus julgamentos e classificações - " tornou-se a principal instância de legitimação individual e de distribuição dos atributos que determinam o valor dos indivíduos" (Godard, 1992, p.121). O valor do filho passa a ser medido, em boa parte, pelo seu valor escolar. Os processos escolares assumem então um lugar de destaque na vida das famílias, embora com variações segundo o meio social. A mobilização e os investimentos em torno da escolarização constituem um dos poucos consensos sociais em matéria de valores morais. É ainda Godard (1992, p.120) quem afirma:

"Acabou-se o tempo em que se condenava irremediavelmente a mãe solteira e seu filho bastardo, as separações conjugais, as recomposições familiares. Eis chegado o tempo em que todas as combinações familiares são permitidas, com a condição de fornecer a prova da eficácia das combinações inventadas para a produtividade escolar e social dos filhos".

E no plano subjetivo, o que é que está realmente em jogo para esses pais? O autor responde: "tudo se passa como se o êxito do filho constituísse uma espécie de símbolo do êxito pessoal dos pais, do bem fundado de seus valores e de sua concepção de educação; como se esse êxito se tornasse para os pais um critério fundamental de sua auto-estima" (Godard, 1992, p.119).

Do mesmo modo, os fracassos do filho - escolares ou não - são vividos como principalmente de responsabilidade dos pais e, com frequência, acompanhados de culpabilidade por parte desses últimos.

Em suma, todos esses elementos combinados levaram a uma centralidade da educação na vida da família contemporânea. É nesse sentido que se pode entender seu papel ativo face à escolaridade e a implementação de estratégias diversas visando o êxito escolar dos filhos.

II - Mudanças nos processos de escolarização

Paralelamente a isso, também os sistemas de ensino sofreram alterações. Sob a influência de fatores como a extensão da escolaridade obrigatória, as políticas de democratização do acesso ao ensino, as mudanças curriculares, a evolução dos métodos e princípios pedagógicos praticados, o funcionamento das instituições escolares passou a repercutir pesadamente sobre o cotidiano das famílias. O estudo de Philippe Perrenoud (1987) é o que temos de melhor em matéria de demonstração minuciosa das formas e da intensidade com que a escola influi na vida familiar contemporânea.

A partir do movimento escolanovista, do início do século, o ensino tradicional começa a ser criticado em favor de pedagogias centradas no aluno, justificadas pela necessidade de se levar em consideração as características infantis e de se adaptar o ensino à natureza do educando, o qual deixa de ser concebido como um adulto em miniatura. Esta perspectiva enxerga no aluno um elemento ativo do processo de aquisição do conhecimento. A extensão desses princípios, nos dias de hoje, deu-se no sentido da preocupação com a continuidade entre os processos educativos familiares e os escolares, com a escola concebendo seu trabalho em ligação com as vivências trazidas de casa pela criança. Hoje, mais do que nunca, depreende-se do discurso da escola a necessidade de se observar a família para se conhecer a criança, bem como para se obter um mínimo de coerência entre as atitudes educativas da escola e da família. E o constante diálogo com os pais passa a ser visto como o meio privilegiado de se chegar a esses ideais pedagógicos.

Há que se considerar também o fato de que a escola, na atualidade, para além de suas funções tradicionais relativas ao desenvolvimento cognitivo do aluno, chama ainda para si certa parte de responsabilidade pelo bem estar psicológico e pelo desenvolvimento emocional do educando.

"Preocupamo-nos - muito mais do que no passado - com a felicidade e o bem-estar pessoal da criança", assinala Montandon (1987, p. 30), para concluir logo em seguida "o território afetivo da família foi, de certa forma, invadido [pela escola]".

Efetivamente, é comum encontrarmos hoje situações em que o educador (professores, orientadores educacionais e outros) busque ativamente e detenha informações sobre os acontecimentos mais íntimos da vida familiar (separações conjugais, crises, doenças, desemprego etc), sempre em nome de melhor compreender o aluno e de aperfeiçoar sua ação pedagógica.

De modo inseparável do acima exposto, a escola estendeu também sua área de atuação a domínios antes reservados à socialização familiar (exemplos: educação afetivo-sexual, anti-drogas), provocando o que já vem sendo designado pelos sociólogos de uma redefinição da divisão do trabalho entre as duas instâncias (Montandon, 1994). Tal fato manifesta-se, entre outros, pelo aparecimento, no interior do sistema escolar, de todo um conjunto de serviços oferecidos por especialistas (psicólogos, psico-pedagogos, orientadores vocacionais, fonoaudiólogos etc) para amparar as famílias.

Outro fator a pesar sobre esse quadro refere-se à complexificação das redes escolares contemporâneas, que apresentam hoje uma composição bem mais heterogênea do que no passado, quando o número de estabelecimentos era menor e, sobretudo, havia uma grande homogeneidade entre eles. Atualmente, os pais se vêem levados - em maior ou menor grau, conforme a classe social - a escolher entre tipos diferentes de estabelecimentos escolares que variam segundo diversos aspectos: clientela, localização, grau de tradição, infra-estrutura, qualidade do ensino, proposta pedagógica (em particular, entre aqueles ditos "conteudistas" e os chamados "alternativos"), clima disciplinar e outros. Em seu ato de escolha - que supõe, entre outras coisas, observações e informações sobre o universo escolar e seus modos de funcionamento - eles encontrarão mais uma ocasião de se aproximar desse universo (Nogueira, 1998).

Mas além do ponto de vista pedagógico, esse novo ideário vai encontrar confirmação no plano das políticas educacionais, as quais - de formas variadas segundo as sociedades - passarão a recomendar e a incentivar o entendimento, a interlocução e a parceria pais-escola. É assim que políticas de administração "participativa" são postas em prática, hoje, em numerosos estabelecimentos de ensino nacionais e internacionais, abrindo aos pais a possibilidade de intervir, em certa medida, nas decisões e no funcionamento do estabelecimento.

Se - como vimos - a família vem cada vez mais invadindo os espaços escolares, a instituição escolar também, por sua vez, expandiu acentuadamente o terreno das interações possíveis com a instituição familiar.

Considerações finais

Assim, modificações nas estruturas e nos modos de vida familiares e nas estruturas e processos escolares, uniram-se para dar origem a um sistema de interdependências e de influências recíprocas entre a família e a escola, "duas instituições condenadas a cooperar numa sociedade escolarizada", como escreveu P. Perrenoud (1995, p.90).

Por fim, lembro ainda que o papel da Sociologia não é o de avaliar a eficácia técnica ou pedagógica desse novo modelo. Sua abordagem específica do tema - que se encontra todavia em estágio inicial - tem consistido na identificação dos fatores sociais em jogo no aparecimento do fenômeno e na demonstração das formas pelas quais sua reunião, em uma configuração particular, num dado momento histórico, representou uma demanda social pela construção de novos objetos sociológicos.

Mas, ao mesmo tempo, acreditar que o surgimento desse novo objeto de pesquisa, deve-se apenas a um contexto social, seria incorrer em reducionismo. Mais correto é, sem dúvida, concebê-lo no bojo de uma nova conjuntura teórica que desloca o olhar sociológico das macro-estruturas para as pequenas unidades de análise.

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  • Endereço para correspondência:
    Maria Alice Nogueira
    Departamento de Sociologia
    Faculdade de Educação
    Universidade Federal de Minas Gerais
    Fone/fax (034 ) 234 5678
    e-mail
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 1998
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