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O relacionamento entre pais e filhos em famílias de camadas médias

Relationships parents and children: middle class families

Resumos

Este trabalho analisa as relações entre pais e filhos de camadas médias na fase de transição para a maturidade, quando estes procuram autonomia e liberdade para realizarem-se como indivíduos singulares. A pesquisa foi realizada com dez famílias - 20 pais e 18 filhos - e os dados foram coletados através de entrevistas gravadas, efetuadas de acordo com um roteiro semi-estruturado. A análise dos dados indica algumas mudanças que se manifestam, sobretudo, em relação a maior proximidade do genitor com os filhos e na sua disponibilidade para dialogar e negociar com estes. Contudo, essa aproximação não elimina os impasses entre ambos, que estão radicados na contradição entre a realização do interesse coletivo da família, expresso em um projeto familiar, e os anseios individualizados dos filhos.

família; relações pais-filho; classe social; escolas


In the present study, the relationship between middle class parents and children were analyzed during the transition phase towards maturity, when children look for autonomy and freedom to for fulfillment as separate individuals. The study was conducted on 10 families - 20 parents and 18 children - and the data were collected during taped interviews held according to a semistructured outline. Data analysis indicated some changes that mainly manifest as closer proximity of the parents to their children and availability for dialogue and negotiation with them. However, this rapprochement does not eliminate the impasses on either side, which are rooted in the contradiction between the fulfillment of collective family interests, expressed as a family project, and the individual aspirations of the children.

family; parent-child relations; social class; schools


O relacionamento entre pais e filhos em famílias de camadas médias

Relationships parents and children: middle class families

Geraldo Romanelli

USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Geraldo Romanelli Departamento de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP Avenida Bandeirantes 3900. CEP 14040-901, Ribeirão Preto, São Paulo. Fone/Fax (016) 602 3793. E-mail: gromane@ffclrp.usp.br

RESUMO

Este trabalho analisa as relações entre pais e filhos de camadas médias na fase de transição para a maturidade, quando estes procuram autonomia e liberdade para realizarem-se como indivíduos singulares. A pesquisa foi realizada com dez famílias - 20 pais e 18 filhos - e os dados foram coletados através de entrevistas gravadas, efetuadas de acordo com um roteiro semi-estruturado. A análise dos dados indica algumas mudanças que se manifestam, sobretudo, em relação a maior proximidade do genitor com os filhos e na sua disponibilidade para dialogar e negociar com estes. Contudo, essa aproximação não elimina os impasses entre ambos, que estão radicados na contradição entre a realização do interesse coletivo da família, expresso em um projeto familiar, e os anseios individualizados dos filhos.

Palavras-chave: família, relações pais-filho, classe social, escolas.

ABSTRACT

In the present study, the relationship between middle class parents and children were analyzed during the transition phase towards maturity, when children look for autonomy and freedom to for fulfillment as separate individuals. The study was conducted on 10 families - 20 parents and 18 children - and the data were collected during taped interviews held according to a semistructured outline. Data analysis indicated some changes that mainly manifest as closer proximity of the parents to their children and availability for dialogue and negotiation with them. However, this rapprochement does not eliminate the impasses on either side, which are rooted in the contradiction between the fulfillment of collective family interests, expressed as a family project, and the individual aspirations of the children.

Key words: family, parent-child relations, social class, schools.

As relações entre gerações constituem um dos meios pelos quais as sociedades se reproduzem ao transmitirem aos imaturos orientações culturais básicas para a participação na vida social. A experiência e o conhecimento dos adultos são transmitidos à nova geração mediante o processo socializador, que se concretiza de dois modos. De um lado, esse processo ocorre na convivência direta na família, na escola, no grupo de pares, nas igrejas e em outras instâncias. De outro lado, a ação socializadora realiza-se de modo indireto pela mediação simbólica de agentes de diferentes instituições que disseminam valores, normas e modelos culturais.

Através dessas duas modalidades de ação socializadora, a geração jovem tem acesso ao patrimônio cultural dos adultos, incorporando-o e repondo-o, podendo nele introduzir novos elementos provenientes de suas múltiplas experiências, sobretudo em sociedades que se transformam com rapidez.

Desde a década de 60, a sociedade brasileira tem passado por alterações no modelo de desenvolvimento econômico que acarretaram a concentração da renda, a pauperização de grande parte da população e o aumento da força de trabalho infanto-juvenil e feminina. Paralelamente a esse processo, ocorreram mudanças nas formas de sociabilidade, caracterizadas pela emergência de novos modos de relacionamento familiar, interpessoal, afetivo e sexual e também pelo aparecimento de modelos culturais ordenadores dessas relações (Romanelli, 1986; Vaitsman, 1994).

Essa renovação de modelos culturais e de formas de sociabilidade tendeu a ser apropriada e difundida pelos meios de comunicação, contribuindo para abrir espaço para novas configurações comportamentais. Mesmo não tendo aceitação unívoca, tais elementos renovadores disseminaram-se pelo conjunto da população, penetrando o imaginário coletivo, levando, inclusive, os segmentos mais apegados às convenções a repensarem sua posição na sociedade e o futuro da nova geração.

Foi, sobretudo, no interior de famílias de camadas médias que a eclosão de formas de sociabilidade e de modelos culturais alternativos incidiu de modo mais intenso. Esse quadro gerou situações desconhecidas e não mapeadas culturalmemente, para as quais a experiência dos adultos revelava-se de pouca valia, como quando se tratava de ordenar as relações cotidianas e de impor significado às mesmas (Mead, 1974), pois o que se transmitia era menos importante do que aquilo que se inventava (Touraine, 1974). A busca de soluções para resolver problemas emergentes na relação com os filhos pôs a dinâmica reprodutora da sociedade em um curso no qual tendências de ruptura com o passado conviviam alternadamente com o apego a posturas tradicionais.

As relações entre gerações estão vinculadas ao modo pelo qual a experiência estratificada dos adultos configura um modo de ordenar a existência, gerando ruptura e continuidade entre as gerações. A continuidade, essencial para a reprodução da sociedade, depende do diálogo entre jovens e adultos, que pode ser sedimentado por um patrimônio de experiências e de valores em parte comuns e, em parte, distintos. Ao mesmo tempo, a intrusão de novas formas de sociabilidade e de modelos culturais alternativos cria ruptura entre as gerações. É na singularidade do diálogo estabelecido entre sujeitos com experiências distintas que se localiza o núcleo crítico do problema das gerações e do conflito entre elas (Foracchi, 1972). A existência do confronto significa que as relações intergeracionais não são mera atualização de estruturas dadas, mas abrem caminho para alterações, cujo alcance e extensão dependem da forma de questionamento que elas suscitam entre jovens e adultos e das soluções propostas.

O conflito geracional localiza-se, essencialmente, na fase de transição da adolescência para a maturidade e, nas sociedades contemporâneas, mais do que simples transição, caracteriza-se como crise (Foracchi, 1972; UNESCO, 1981). O período de transição entre a infância e a idade adulta, quando o indivíduo pode assumir plenamente a condição de trabalhador e constituir família, depende de determinantes sociais e das condições da família. Não é possível demarcar limites etários precisos para essa fase de transição que pode situar-se entre 15 e 25 anos (UNESCO, 1981) ou prolongar-se além dessa idade, em função das características de cada sociedade.

No presente, tanto a juventude dos países industrializados, quanto a das nações periféricas, vive uma situação em que o desenvolvimento e o progresso são insuficientes para preservar uma situação de abundância e para garantir o pleno emprego. Contrariamente à geração anterior, para a qual existiu a perspectiva de um futuro promissor, os jovens de hoje enfrentam um cenário sombrio, pautado pelos problemas postos pela globalização que geram redução no desenvolvimento econômico, ameaçando-os de não conseguirem trabalho e de verem inviabilizada a concretização de suas aspirações pessoais.

No caso específico das camadas médias, nessa etapa transitória, a dependência econômica, social e emocional dos jovens em relação à família tende a ser gradativamente alterada em função da busca de autonomia e de liberdade. Essa situação resulta das condições financeiras e culturais dessas famílias, pois os filhos têm menores compromissos financeiros, além de desfrutarem de maior disponibilidade para procurar experiências novas e para exercitar posturas de desafio à ordem instituída, realizando o desejo de aventurar-se no desconhecido. Na procura da construção da própria identidade e da determinação de seu lugar na sociedade, adolescentes e jovens experimentam viver situações novas que, muitas vezes, provocam confrontos e conflitos com pais e adultos. Essas experiências são, em geral, uma resposta à pressão dos pais e dos adultos e, na medida em que são compartilhadas, como nos grupos de pares, estabelecem as bases para o relacionamento entre iguais. No contato público com universos sociais e culturais diversos, isto é, no relacionamento com a alteridade, bem como na convivência familiar vai sendo forjada a identidade do jovem.

A família é unidade de reprodução social e principal instituição socializadora, além de se constituir como grupo mediador entre público e privado e entre interesse coletivo da unidade doméstica e pretensões individualizadas de seus componentes. Por isso, a análise das relações entre gerações em famílias específicas é um recurso para se examinar como os pais pensam o seu futuro, o dos filhos e o da família como um todo.

Método

Para analisar o significado que a prole tem para os pais e como estes, em função das experiências na família e na sociedade, socializam os filhos para se tornarem indivíduos singulares e indivíduos genéricos, ou cidadãos, tomo como referência dados de pesquisa realizada com dez famílias das camadas médias de um bairro da cidade de Ribeirão Preto-SP.

O rendimento familiar em torno de dez salários mínimos, indica que integram um segmento das camadas médias com pouca escolaridade e reduzida qualificação profissional.

Entre os pais entrevistados, oito são assalariados do terciário e dois são proprietários de pequenos negócios. Quanto às mães, três não exercem atividade profissional, três são assalariadas do setor de serviços, uma é proprietária de loja e três outras exercem atividades remuneradas na residência, sendo que uma é professora de música, outra é costureira e a última auxilia o marido em um bar, que está instalado na própria moradia.

Quanto à escolaridade, oito pais têm o primeiro grau completo e dois concluíram o curso superior após o casamento e quando já tinham filhos. Dentre as mães, seis têm primeiro grau incompleto e quatro, o segundo grau.

A coleta de dados foi feita através de entrevistas gravadas e transcritas na íntegra, que seguiram um roteiro semi-estruturado, e realizadas nas residências dos sujeitos que são indicados por nomes fictícios, a fim de assegurar seu anonimato. As entrevistas tiveram duração de cerca de uma hora e meia. Além de 20 entrevistas com os pais, cuja idade oscila entre 39 e 55 anos, foram efetuadas outras 18 com filhos solteiros, residentes na casa paterna, na faixa etária entre 15 e 25 anos, que se encontram na fase de transição para a maturidade. Por isso, filhos com idade acima ou abaixo desses limites não foram incluídos na amostra.

O roteiro de entrevista abarcou diferentes tópicos da experiência vivida pelas famílias. Nesse sentido, procurou-se recuperar a relação dos pais com sua família de origem, o modo como esta avaliava a importância da escola para os filhos, o início do trabalho dos pais, a constituição de sua família de procriação, as mudanças ocorridas com o nascimentos dos filhos, o investimento na escolarização destes e como avaliam as perspectivas profiissionais para a prole.

Resultados e discussão

Os dados apresentados a seguir pretendem, inicialmente, caracterizar as famílias para se analisar, em seguida, as formas de sociabilidade entre pais e filhos, quando estes vivem conflitos próprios da passagem para a idade adulta em uma sociedade que também passa por mudanças aceleradas que repercutem na organização da vida doméstica.

Há uma uniformidade bastante grande nas características das famílias entrevistadas. Maridos e esposas são provenientes de famílias de origem com poucos recursos financeiros, o que é documentado tanto em suas falas, quanto nos dados referentes à idade de início de trabalho e ao grau de escolaridade. A idade precoce com que começaram a trabalhar indica que os entrevistados precisaram ajudar financeiramente os pais. Por outro lado, o reduzido grau de escolaridade revela que as famílias de origem dos entrevistados enfrentaram dificuldades para mantê-los na escola durante um período prolongado.

Todos os pais entrevistados ingressaram no mercado de trabalho quando tinham cerca de dez anos, enquanto sete mães fizeram o mesmo entre 11 e 25 anos; duas, entre 18 e 21, restando uma que não teve e não tem, atualmente, qualquer atividade remunerada.

Quando se referem à situação financeira das famílias de origem e comparam-na com as condições atuais, os casais são unânimes em afirmar que viveram um processo de mobilidade social, que se torna mais claro quando relacionam a ascensão com o consumo material e simbólico da família, expresso, particularmente, pela oportunidade de os filhos terem acesso à educação formal prolongada. Essa avaliação funda-se na experiência concreta e reporta-se à representação da sociedade como formalmente aberta, constituída por indivíduos com direitos iguais que, através do trabalho, podem ascender socialmente. Assim, ao ratificar um dos valores centrais da ideologia dominante essa representação configura-se como elemento nuclear para projetar o futuro dos filhos e a reprodução da família.

As famílias estudadas são pouco numerosas, com a média de três filhos por unidade. Os casais afirmam ter utilizado práticas contraceptivas e as declarações relacionadas ao controle da natalidade sugerem que a reprodução biológica esteve condicionada à limitação do número de filhos, com vistas a proporcionar melhores condições de vida ao casal e à prole.

Todas as famílias encontram-se na segunda fase do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico (Fausto Neto, 1982), quando os filhos tornam-se produtores de rendimento e passam a colaborar para a composição do orçamento doméstico. Nessa fase, embora o pai continue a ser o principal provedor familiar, a colaboração monetária dos filhos para o consumo doméstico coletivo é um fator que contribui para reduzir a autoridade paterna.

Com referência ao trabalho das esposas, alguns maridos declaram que só a contragosto e devido à insistência delas, aceitaram que exercessem atividade profissional. No entanto, afirmam, reiteradamente, não serem machistas ou ponderam que, se no passado assumiram tal postura, hoje mudaram sua posição. Apesar da aceitação de algumas alterações na divisão sexual do trabalho, o desempenho da maior parte das atribuições domésticas cabe ainda às esposas ou às filhas. Embora apresente caráter menos impositivo, a autoridade marital ainda persiste e é considerada pelos maridos, e também pelas esposas, como elemento essencial para a reprodução doméstica. Esse movimento oscilante impregna as condutas dos maridos e, se acarreta a condenação de práticas percebidas por eles como machistas em outros homens, não impede que eles próprios as adotem. Antes de considerar essa argumentação como recurso para mostrar um comportamento mais aberto ao pesquisador, ou como representação falseada que seria negada na prática efetiva, seria mais adequado analisá-la como manifestação de condutas vacilantes diante de fatos novos.

A relutância masculina em aceitar novos padrões de relacionamento entre homens e mulheres resulta do confronto com práticas e modelos convencionais que são questionados no cotidiano. Obrigados a conviver com uma realidade mutável, os maridos revelam-se renitentes em aceitar formas de conduta que efetivamente não podem negar, pois as alterações estão presentes no domínio privado da família e na esfera pública. Entretanto, essas alterações na posição do genitor e do marido, junto com o aumento da atividade profissional das esposas e com a redefinição parcial da divisão sexual do trabalho, não mudam, radicalmente, a organização das relações domésticas.

Ademais, a postura dos maridos deve ser nuançada. Esse movimento de reprodução da unidade doméstica, que admite e incorpora inovações aparentemente superficiais, não depende apenas da atuação masculina, uma vez que as esposas contribuem de modo efetivo para essa reprodução.

Outro aspecto da mudança na família e que os casais qualificam como positivo, diz respeito à relação entre o genitor e os filhos. De modo geral, é sobretudo o pai quem menciona a existência de maior proximidade na relação, manifestada na inexistência de castigos físicos, cuja prática era comum na geração anterior, na expressão de afeto pela prole e, o que é mais importante, na disponibilidade que o pai demonstra para discutir e dialogar com os filhos. Com isso, indicam uma alteração na estrutura hierárquica da família, pois a autoridade do genitor deixa de ser exercida de modo a impor sua vontade, passando a ser mediada pela discussão e negociação com os filhos. Apontando essa mudança na posição paterna, pais e mães procuram evidenciar, para si e para os filhos, que estes podem expressar suas reivindicações a interlocutores dispostos a ouvi-los. Desse modo, a reprodução de modelos e valores transmitidos pelos pais seria processada e negociada nas relações domésticas.

É no interior desse quadro de experiências que pais e mães transmitem aos filhos seja pelas suas práticas, seja mediante orientações explícitas, um patrimônio cultural que inclui orientações, valores e modelos culturais para orientá-los na esfera pública e na vida privada.

As relações entre pais e filhos são mediadas pela percepção que os genitores têm de sua posição na sociedade e da que desejam para a prole. Refazendo sua trajetória, sobretudo no que se refere aos avanços na carreira e à melhoria nas condições financeiras, os pais rearticulam o próprio passado, avaliam o futuro mediado pelo presente e pensam a família como unidade responsável pelo êxito dos filhos. Ao pensarem a posição dos filhos na família, os pais pensam também a posição que aqueles ocuparão na sociedade, especialmente no mercado de trabalho, no qual as melhores ocupações demandam escolaridade elevada. Em função dessa projeção, os pais põem em prática um modelo de família no qual o familismo tem primazia sobre o individualismo, isto é, onde o indivíduo é encapsulado pela família. Nesse sentido, os pais procuram avaliar as peculiaridades dos filhos, apreendendo e procurando aceitar aquilo que os constitui como indivíduos singulares, mas subordinando a constituição e expressão dessa individualidade ao interesse da família como um todo.

Quando discorrem sobre as orientações transmitidas aos filhos, os genitores deixam claro que estas são atribuições essencialmente maternas, o que é confirmado pelas mães. Através da vivência cotidiana, e mais especificamente na socialização dos filhos, as mães endossam e apóiam as concepções dos pais. Exercendo com zelo a tarefa de maternagem, que acreditam ser inerente ao domínio feminino, essas mães legitimam a autoridade marital - e também a sua - em nome da preservação da coesão da família. Essa coesão é avaliada a partir de um projeto familiar, que consiste em um conjunto de orientações, produzidas na convivência doméstica e que visam a atingir determinados objetivos nas várias fases de desenvolvimento da família. O projeto não é algo pronto, mas é fruto de negociação e barganha entre os componentes da família que vão redefinindo as metas a serem alcançadas pelo grupo doméstico e pelos seus integrantes. (Romanelli, 1986)

Um dos objetivos do projeto familiar é assegurar a escolarização dos filhos, com a finalidade de qualificá-los para o exercício de ocupações bem remuneradas e dotadas de prestígio. Na concretização do projeto, o interesse coletivo da família, muitas vezes, opõe-se às aspirações individuais de seus componentes, gerando tensão e conflito. Nessas circunstâncias, a realização do projeto familiar passa a ser mediada pela autoridade e pela afetividade parental, o que supõe a possibilidade de os filhos poderem exercer relativa autonomia em suas escolhas, mas que devem ser subordinadas à manutenção da coesão grupal.

A divisão sexual da tarefa socializatória existente nessas famílias não significa que o pai não assuma parte dessa tarefa. Pais e mães têm plena convicção de que a orientação paterna está sempre presente e ocorre mediante uma categoria que denominam de exemplo paterno. De acordo com essa categoria, pais e mães avaliam que a convivência direta entre o pai e os filhos é mais importante do que a transmissão indireta de valores e modelos culturais. Ao mesmo tempo, o valor atribuído a essa categoria revela a imensa importância que os pais conferem à presença paterna para uma formação adequada dos filhos. Todavia, é necessário considerar que o exemplo paterno é, em grande medida, a constante reedição das relações hierárquicas e desiguais existentes na família e da autoridade do genitor que, embora flexibilizadas pela existência do diálogo, vão sendo absorvidas e reproduzidas pelos filhos.

Apesar de pais e mães declararem que deram as mesmas orientações para filhos e filhas, a ação socializadora é diferenciada de acordo com o papel de gênero de cada um deles. As limitações e controle incidem mais intensamente sobre as filhas, o que é congruente com posturas e representações dos pais acerca do papel feminino, na família e na sociedade, como atestam os depoimentos abaixo, o primeiro de uma mãe, o segundo de um pai.

Menina entende posição como mulher. Não preciso nem eu falar, se põe no lugar da mulher. Ela entendeu, não precisa falar. Homens dão mais trabalho. Não fala a mesma língua que a gente.

Filha mulher é mais dócil. Mulher é mais fácil, mais dócil de criar. Já homem é de instinto mais agressivo.

Nessas falas, constata-se que os pais consideram os filhos do sexo masculino menos propensos a acatar suas determinações, demandando maior vigilância sobre eles. De qualquer modo, esses dois depoimentos permitem entrever que, nas representações de pais e mães, determinados atributos masculinos - agressividade - e femininos - docilidade -, que estão em pólos opostos, são considerados naturais. Apesar dessa representação, pais e mães também supõem que, mesmo ancorados em um suporte natural, os atributos dos filhos podem ser orientados e direcionados de acordo com o processo socializador familiar, que é socialmente elaborado. Combinam-se, assim, de modo ambíguo, representações naturalizantes com outras de cunho eminentemente social, mostrando a importância da educação familiar para a formação e o desenvolvimento psicológico e social dos filhos.

Durante a transição da adolescência para a juventude, fase em que os filhos de famílias das camadas médias tendem a viver uma situação de crise quando começam a exercitar autonomia e liberdade frente aos pais, estes sentem a necessidade de estabelecer limites a essas manifestações.

No tocante a namoro e sexualidade, os pais exercem maior vigilância sobre o comportamento das filhas e, em alguns casos, chegam a admitir que elas possam ter relações sexuais antes do casamento, desde que seja com o namorado e após um período prolongado de convivência. Em relação aos filhos, a preocupação não é com a iniciação sexual que, na realidade, é incentivada de modo claro e explícito ou de modo indireto. O que os pais procuram evitar, em ambos os casos, é a reprodução biológica precoce dos filhos e um casamento prematuro, o que inviabilizaria a formação profissional e o futuro dos mesmos, podendo ainda aumentar os encargos financeiros da família.

No relacionamento com os filhos, pais e mães afirmam que os conflitos são reduzidos. Há uma certa tendência a minimizar os confrontos quando se fala deles diretamente, apresentando-os como transgressões episódicas, que não causam grandes transtornos na vida doméstica. Porém, as tensões estão presentes e são parte constitutiva das relações domésticas.

De modo geral, nessas famílias, os atritos surgem diante de imposições parentais que redundam no cerceamento de desejos filiais, quando eles colidem com os princípios dos pais, ou quando barreiras financeiras impedem sua realização. Os conflitos remontam ao controle e ao limite que os pais podem impor, a partir de sua autoridade, legitimada no conhecimento que têm dos filhos e do funcionamento da sociedade. Nesse sentido, as fontes de atrito resultam de proibições e do controle sobre a sociabilidade dos filhos, envolvendo relações afetivas e sexuais, lazer, convivência com grupos de amigos, aproveitamento escolar, horários de retorno à casa, sobretudo à noite. Por isso, uma das preocupações básicas dos pais é evitar o contato com a alteridade, temida porque a introdução da diferença pode desviar os filhos do caminho traçado para eles.

Ao avaliarem o futuro dos filhos a partir do projeto familiar, os pais explicitam duas preocupações básicas. Uma refere-se à escolarização; outra, à segurança dos filhos, termo genérico que recobre vários significados.Todos os pais declaram que é fundamental oferecer oportunidade para que os filhos concluam o curso superior e, para isso, fazem esforços imensos, como atesta a fala de uma mãe:

Escola é mais importante que tudo. Tem para o resto da vida, nesta e na outra, ninguém tira. Tiro da boca para estudarem.

Enquanto a quase totalidade dos filhos cursou o primeiro grau na escola oficial existente no bairro, o segundo grau é realizado em estabelecimento do centro da cidade, ou em outros bairros. As famílias com mais recursos financeiros ou que organizam o orçamento doméstico priorizando a instrução dos filhos, como ocorre em metade das unidades domésticas pesquisadas, encaminham-nos para o ensino médio em escolas particulares, pois consideram-nas mais adequadas para a preparação para o vestibular. Quando não podem custear essa etapa da escolarização, procuram escolas públicas que são reputadas como as melhores da cidade. Nem sempre o rendimento familiar permite que os filhos sejam mantidos fora do mercado de trabalho, quando ingressam no ensino médio. Mesmo assim, é patente o incentivo parental para que os filhos prossigam os estudos até o curso superior e, quando podem, os pais chegam a prestar-lhes ajuda financeira.

Através da relação com a escola, instituição formal que qualifica a força de trabalho, os pais pensam sua condição social, a relação da família com a sociedade e, sobretudo, com o Estado. As críticas constantes que os pais endereçam ao ensino público fundamental e médio não constituem mera reprodução de concepções amplamente divulgadas e correntes sobre sua ineficácia, mas resultam de uma ponderação objetiva acerca do sistema educacional. As queixas paternas voltam-se contra o Estado que não provê instrução gratuita e de boa qualidade para todos, responsabilizando-o pela reprodução da desigualdade social, porque o sistema educacional não propicia oportunidades iguais a cidadãos formalmente iguais.

Um dado que traduz essa desigualdade - se bem que diferenças no desempenho individual devam ser consideradas - é que de nove filhos das famílias estudadas que ingressaram no curso superior, apenas um conseguiu ser aprovado no vestibular de uma instituição pública, cuja forma de seleção é considerada mais rigorosa do que a das escolas privadas.

Por sua vez, a preocupação constantemente enunciada pelos pais com a segurança dos filhos não resulta apenas, ou em primeiro lugar, dos problemas existentes no bairro onde, segundo pais e filhos, há ladrões, traficantes, consumidores de drogas, prostitutas. Nessa preocupação com a segurança, está a percepção da falta de garantia aos direitos individuais. O perigo pressentido pelos pais não emana apenas das massas marginalizadas do bairro ou da cidade, mas flui do próprio Estado, seja porque revela-se inoperante na solução dos problemas sociais, seja porque é identificado com os abusos praticados contra indivíduos, que não são ainda cidadãos.

A preocupação com a segurança dos filhos, em especial dos homens, que dispõem de maior liberdade do que as filhas, não é infundada, já que a mortalidade juvenil masculina, cujas causas estão associadas à violência, vem crescendo de forma alarmante. Na categoria de mortes evitáveis, que poderiam ser reduzidas mediante a ação do poder público, encontram-se os homicídios e acidentes por veículos a motor, responsáveis pela sobremortalidade masculina juvenil (Yazabi e Flores, 1988). Dados sobre o interior do estado indicam que na região de Ribeirão Preto, vem ocorrendo aumento na sobremortalidade masculina na faixa etária de 15 a 34 anos (SEADE, 1985).

Por outro lado, a categoria segurança é dotada de outro significado que recobre a percepção que os pais têm das dificuldades de os filhos conseguirem emprego em um mercado de trabalho saturado e cada vez mais competitivo e de conquistarem, no futuro, a segurança profissional que os genitores têm no presente.

Portanto, as observações constantemente reiteradas pelos pais quanto à segurança remetem aos direitos gerais do cidadão, dentre os quais inclui-se o direito ao trabalho. Desse modo, os pais questionam a inexistência da cidadania, associada à desigualdade no acesso à educação formal, ao trabalho, à segurança física. Ao mesmo tempo, apreendem a reprodução da sociedade, como estando fundada no predomínio de relações pessoais e clientelísticas, as quais contradizem um elemento nuclear da ideologia dominante que se ancora na suposição de que o sucesso e a ascensão dependem, exclusivamente, do trabalho e do esforço do indivíduo enquanto trabalhador.

Considerações finais

A singularidade da fase de transição, quando adolescentes e jovens procuram ampliar suas experiências e vivenciar situações novas, suscita o acirramento dos conflitos com os pais, que assomam com maior intensidade. Nessa etapa, jovem busca realizar-se como indivíduo singular, descobrindo a própria subjetividade, ou a identidade de si (Veyne, 1988). Esse processo de individuação é gerado em um movimento de oposição à família e de busca de reconhecimento dos semelhantes, que se faz no grupo de pares. Os impasses entre pais e filhos encontram-se radicados na contradição entre realização do interesse coletivo e de anseios individualizados, quando estes são considerados pelos pais como ameaçadores à coesão grupal. Pais e mães interpretam as reivindicações dos filhos para desfrutarem de maior liberdade e autonomia na convivência social, como ameça potencial à continuidade de seus valores e de seu projeto. Contudo, boa parte das solicitações dos filhos não questionam esses valores, mas traduzem o desejo de vivenciar o que os filhos supõem ser a condição de adulto, isto é, de sujeito dotado de autonomia e liberdade, que não se submete a qualquer forma de tutela. Certamente, essa postura apresenta-se de modo mais agudo entre os filhos do sexo masculino, que foram socializados para assumirem posições de comando na família. Nesse sentido, o repúdio dos filhos não se dirige tanto contra os valores parentais, em grande parte já interiorizados e praticados, mas expressa-se como rejeição a tudo que é percebido como coação ao exercício de aspirações individualizadas.

Nessas circunstâncias, tanto pais quanto filhos organizam sua percepção de adulto, em função de um modelo que se funda em traços do individualismo possessivo, ou seja, o indivíduo é proprietário de sua própria pessoa e de suas capacidades, nada devendo à sociedade por elas (MacPherson, 1979). Essa concepção de indivivíduo encontra apoio no modo pelo qual a sociedade brasileira constrói a noção de pessoa, como ser múltiplo, dividido e relacionai, cuja existência depende dos vínculos com outras pessoas (DaMatta, 1985). A singularidade do indivíduo não é avaliada por seus atributos e qualidades pessoais, mas pela possibilidade de mobilizar lealdades relacionais que permitem a ele sobrepor-se aos imperativos da lei e da ordem e, até mesmo, negá-los, fazendo valer seus desígnios. Reproduz-se, assim, no plano global do domínio público, uma organização hierarquizada, fundada no prestígio da pessoa e que é tanto a negação dos direitos formais do indivíduo genérico, o cidadão, quanto a limitação dos atributos pessoais do indivíduo singular.

Ora, as relações na família incentivam a reprodução de formas de conduta que fazem parte de modelos convencionais e os pais manifestam desconfiança e temor em relação à introdução de diferenças e inovações. Criam, assim, barreiras para que os filhos construam a própria individualidade, diversa da dos genitores. Por outro lado, estimulam os filhos, sobretudo, os do sexo masculino, a se constituírem como sujeitos autônomos, vale dizer, como pessoas que devem agir conforme a qualidade possessiva do individualismo, a fim de enfrentarem a competição presente nas várias esferas do domínio público.

No fluxo dessas orientações e vivências, emuladoras e negadoras da individualidade do sujeito, o impasse tende a ser resolvido através de uma operação cujos resultados reproduzem uma característica crucial da sociedade brasileira. Trata-se da concretização de uma das formas de deslizamento entre o privado e o público, mediante a qual o exercício da individualidade do sujeito é deslocada do núcleo doméstico e projetada no domínio público. Nesse sentido, através de um processo tortuoso e complicado, a família dificulta, mas jamais elimina, a manifestação da individualidade em seu interior e estimula, mesmo que indiretamente, o predomínio do personalismo no público.

Outra dimensão dos limites colocados à realização da individualidade dos filhos no interior da família pode ainda ser explicitada. Da perspectiva parental, o controle exercido sobre os filhos não é apenas imposição de limites e proibições, não podendo ser qualificado tão somente como coercitivo ou negador das aspirações filiais. O controle assume um aspecto diretivo, estruturante, dotado de caráter preventivo, uma vez que se funda em um conjunto de experiências vividas pelos pais e que confere a eles o poder de antecipar conseqüências das ações. Nas representações dos pais, o controle não é visto como privação de anseios, ou empecilho a conquistas, mas adquire um significado positivo de antecipação de experiências parentais ou de doação, configurando-se como postura paternalista. A inexperiência dos filhos e a defesa de sua felicidade e de seu sucesso são os argumentos utilizados para legitimar essa postura. Limitando as possibilidades de os filhos vivenciarem situações novas e de entrarem em contato com a alteridade, os pais dificultam o desenvolvimento da responsabilidade da geração jovem. Antes, criam um vínculo de dependência que favorece a reprodução de suas concepções. Nessas circunstâncias, o paternalismo vivido na família reedita o paternalismo presente na sociedade; um e outro realimentam-se mutuamente.

Assim, apesar de pais e filhos perceberem e denunciarem a inexistência da igualdade formal de oportunidades no sistema educacional e no mercado de trabalho e de reivindicarem a realização da cidadania, acabam negando-a parcialmente no processo de reprodução da vida doméstica. Tais posturas, aqui apresentadas de modo genérico, constituem tendências constantes nas famílias estudadas. Contudo, é necessário assinalar que as relações entre pais e filhos apresentam características específicas de acordo com as condições sociais e culturais das famílias.

As relações entre pais e filhos indicam mudança e permanência, apego ao passado e renovação. No entanto, o processo de reprodução cultural entre as gerações pode ser melhor compreendido, quando se leva em conta o empenho e o esforço dos pais para acompanharem o processo de transformações que eles sabem estar ocorrendo e que procuram entender. Nessa vivência incerta e tateante no âmbito da convivência doméstica, os pais combinam inovações e condutas convencionais na busca de diretrizes para procederem à socialização que eles consideram adequada, para os filhos conseguirem sucesso e bom desempenho sobretudo no domínio público, onde irão exercer o papel de trabalhadores.

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  • Endereço para correspondência:
    Geraldo Romanelli
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 1998
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