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Quando os dados contrariam as previsões estatísticas: os casos de êxito escolar nas camadas socialmente desfavorecidas

When data contradict statiscal predictions: cases of successful school performance among underprivileged strata

Resumos

Como explicar as situações que apresentam claras evidências de êxito escolar quando a realidade social e cultural do aluno é desfavorável a sua escolarização? Sem pretender dar conta desta questão apresentamos, neste trabalho, alguns dados de pesquisas com famílias de meios populares que vivenciaram situações que demonstram adaptação escolar e maior tempo de permanência de seus filhos no sistema de ensino, se comparadas às estatísticas sobre a realidade educacional brasileira. Contrariando a visão genérica e patologizante de famílias dos meios populares, o trabalho mostra o erro em que incorremos quando nos apoiamos nos padrões das camadas médias para avaliar as práticas observadas nos meios socialmente desfavorecidos.

fracasso escolar; sucesso escolar; famílias de meios populares; trajetórias escolares


How can we explain situations of clear evidence of successful school performance when the social and cultural reality of the students is unfavorable to their school education? Without intending to answer this question, in this study we present some research data concerning underprivileged families who experienced situations demonstrating school adaptation and a longer prermancen of their children in the school system compared to the statistical data about the Brazilian educational reality. Going against the generic pathology-creating vision of underprivileged families, the study shows the error we incur when we base ourselves on middle class standards to evaluate the practices observed in socially underprivileged classes.

school failure; school success; underprivileged families; school trajectory


RELATOS DE PESQUISA

Quando os dados contrariam as previsões estatísticas: os casos de êxito escolar nas camadas socialmente desfavorecidas

When data contradict statiscal predictions: cases of successful school performance among underprivileged strata

Nadir Zago

Endereço para Correspondência Endereço para Correspondência: Nadir Zago Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC e-mail nzago@cfh.ufsc.br

RESUMO

Como explicar as situações que apresentam claras evidências de êxito escolar quando a realidade social e cultural do aluno é desfavorável a sua escolarização? Sem pretender dar conta desta questão apresentamos, neste trabalho, alguns dados de pesquisas com famílias de meios populares que vivenciaram situações que demonstram adaptação escolar e maior tempo de permanência de seus filhos no sistema de ensino, se comparadas às estatísticas sobre a realidade educacional brasileira. Contrariando a visão genérica e patologizante de famílias dos meios populares, o trabalho mostra o erro em que incorremos quando nos apoiamos nos padrões das camadas médias para avaliar as práticas observadas nos meios socialmente desfavorecidos.

Palavras-chave: fracasso escolar - sucesso escolar - famílias de meios populares - trajetórias escolares

ABSTRACT

How can we explain situations of clear evidence of successful school performance when the social and cultural reality of the students is unfavorable to their school education? Without intending to answer this question, in this study we present some research data concerning underprivileged families who experienced situations demonstrating school adaptation and a longer prermancen of their children in the school system compared to the statistical data about the Brazilian educational reality. Going against the generic pathology-creating vision of underprivileged families, the study shows the error we incur when we base ourselves on middle class standards to evaluate the practices observed in socially underprivileged classes.

Key-words: school failure - school success - underprivileged families - school trajectory

Neste trabalho tenho por objetivo apresentar algumas reflexões e dados de pesquisas sobre os significados e as formas de envolvimento dos pais, especialmente das mães, nas trajetórias escolares de seus filhos, nos meios populares. Conforme evidencia a literatura sobre as desigualdades escolares, é entre os alunos destes meios sociais que vamos encontrar os índices mais elevados de fracasso escolar. Nosso interesse esteve voltado para essas situações e também para os casos bem sucedidos na escola e para a dinâmica complexa entre as condições sociais e as ações dos atores sociais.

A primeira parte do texto reúne algumas contribuições recentes, no campo da Sociologia da Educação, relacionadas à relação entre meio familiar e escolaridade e, na segunda, apresento parte dos resultados de um estudo de campo1 1 Estudo realizado com famílias de um bairro da periferia urbana de Florianópolis, concluído em 1999. , com ênfase nos percursos escolares e práticas de escolarização das camadas populares.

Em síntese, o trabalho tem a preocupação de mostrar a ação dos pais como sujeitos ativos na escolarização dos seus filhos. Não desconhecemos o grande número de críticas dirigidas às explicações simplistas, como a da carência sociocultural, que tiveram grande repercussão no meio educacional, sobretudo nos anos 60 e até meados de 70. Estas justificavam as dissonâncias entre a socialização familiar e a escolar com base nas faltas das famílias que, por sua situação de pobreza, não proporcionavam estímulos suficientes e adequados ao desempenho escolar dos filhos. Suas conclusões estavam apoiadas em um modelo genérico e idealizado de família: a das classes médias e superiores. Assim, os valores e comportamentos destes meios sociais é que serviam de parâmetro definidor para o conceito de privação cultural e do que era considerado adequado, correto, bom e favorável ao desenvolvimento (psicológico, afetivo e intelectual) do aluno e de seu desempenho futuro. Nesse sentido, e também conforme outros autores, evidenciamos o erro em que incorremos quando nos apoiamos nos padrões das camadas médias para avaliar as práticas familiares de escolarização nos meios socialmente desfavorecidos.

O presente trabalho representa também uma necessidade de superação das análises globalizantes fundadas unicamente na relação entre o fracasso escolar dos descendentes e sua condição de classe. Durante muito tempo a pesquisa educacional não deu visibilidade às práticas de escolarização desenvolvidas seja pelos pais, seja pelos filhos. Em época mais recente vários pesquisadores vêm se empenhando em avançar na compreensão da complexa relação entre família e escola e, de modo geral, nas questões relacionadas ao fracasso mas também ao sucesso escolar, em diferentes meios sociais.

Uma das questões centrais dos estudos sobre o sucesso escolar nos meios populares, cuja produção é ainda pouco significativa, é compreender, mediante quais processos, um aluno tem bom desempenho na escola, quando todos os indicadores são desfavoráveis a sua escolarização. O objetivo é encontrar explicações sociológicas para esses casos "atípicos" que, pela sua excepcionalidade, contrariam as previsões estatísticas.

Com base nas questões aqui colocadas levantamos alguns aportes teóricos e apresentamos parte dos resultados obtidos em uma pesquisa sobre percursos escolares e mobilização familiar nos meios populares.

Sucesso escolar : algumas tendências de análise

Como observamos, pesquisas relacionadas ao sucesso escolar nos meios populares ocupam um lugar relativamente novo na pesquisa educacional. Não pretendo fazer um balanço do estado da arte sobre esse tema, mas apontar, através de quatro trabalhos, algumas tendências de análise reveladas em pesquisas recentes, de orientação sociológica. Nesses estudos, além das variáveis clássicas da sociologia (tal como a renda, ocupação e escolaridade dos pais), o interesse se volta para outros elementos constitutivos das trajetórias escolares bem sucedidas, como as práticas familiares de escolarização. Se, conforme as teorias da reprodução, o meio social de origem é tomado de maneira global e as atividades familiares deduzidas de sua condição de classe, em estudos sociológicos mais recentes observa-se o reconhecimento explícito da heterogeneidade das camadas populares e uma análise não-determinista da realidade social.

Neste quadro, uma das contribuições que podemos destacar é o estudo desenvolvido por Bernard Lahire (1997), apresentado no livro Sucesso escolar nos meios populares. O objetivo do estudo foi compreender as diferenças dos resultados escolares (fracasso e sucesso) no cruzamento das configurações familiares específicas e do espaço escolar, dando visibilidade aos fenômenos de consonância e de dissonância entre essas duas instâncias. Em vez de eleger fatores explicativos isolados do seu contexto, a opção do autor foi por uma metodologia baseada na descrição etnográfica, no quadro de uma antropologia da interdependência de elementos que configuram realidades singulares.

A análise apoia-se no estudo de 26 casos, a partir de cinco temas fundamentais: as condições e disposições econômicas, as formas familiares de cultura escrita, a ordem moral doméstica, as formas de exercício da autoridade familiar e os modos familiares de investimento pedagógico. As configurações singulares resultantes das relações de interdependência entre esses elementos são, como observa Lahire (1997), apenas uma entrada possível de configurações mais amplas.

Esta noção, tomada para a compreensão das diferenças dos resultados escolares em contextos sociais relativamente homogêneos, está apoiada nas idéias de Norbert Elias relativas às relações complexas presentes na realidade social e em uma abordagem sociológica que considera as redes de interdependência de configurações singulares. É também através das contribuições de N. Elias que o autor busca fundamentação para a visão de homem como sujeito socialmente construído: os traços que o caracterizam (personalidade, forma de pensar, de se comportar) não aparecem no vazio, como também não correspondem a uma produção direta do que é visto na família, mas se constituem nas relações sociais de interdependência. Esses traços são ... o produto de uma socialização passada, e também das relações sociais através das quais (...) se atualizam, são mobilizados (Lahire, 1997 p.18).

Assim, através de uma pesquisa voltada para as modalidades concretas de socialização familiar, o autor encontrou diferentes casos que permitiram evidenciar como o capital cultural parental podia se transmitir ou, ao contrário, não encontrava condições de transmissão. Verificou, ainda, como na ausência de ação expressa de transmissão de um capital cultural existente, os saberes escolares podiam ser apropriados pela criança (Lahire, 1997). Essas constatações fogem aos esquemas interpretativos de tipo causa e efeito. Por isso mesmo, conforme o autor, o uso de fatores explicativos com base em uma leitura de variáveis tomadas isoladamente perde sentido. Como exemplo, cita dois avós de equivalente capital cultural. Um, com forte capital escolar, vê regularmente o neto e lhe transmite, através de situações singulares, maneiras de ver, de apreciar e de avaliar o mundo. Outro, também com forte capital escolar, não vê os netos. Na lógica de uma descrição mais contextualizada, o forte capital escolar do primeiro não é equivalente ao deste último.

Fatores como a equivalência escolar dos avós, a existência de pais politicamente militantes ou ainda a presença ou ausência de prática de leitura e escrita, por si sós não garantem a transmissão de disposições escolares favoráveis ao sucesso escolar. É preciso perguntar, por exemplo, se esses pais militantes dispõem de tempo e de ocasiões favoráveis para produzir efeitos sobre uma socialização escolarmente positiva. Da mesma forma, a aparente similaridade das camadas populares pode esconder diferenças na relação com a cultura escrita. O sucesso da escrita não está circunscrito à presença desta nas relações familiares, mas reside principalmente no modo como ela é vivenciada (positiva ou negativamente) e se suas modalidades são compatíveis com a forma de socialização escolar da escrita (Lahire, 1997).

Com estes exemplos, o autor procura mostrar que as estatísticas são produções de dados, freqüentemente arbitrárias, isto é, abstratas em relação ao seu contexto. As ações de um avô, em um caso, podem encontrar o equivalente na ação do irmão, ou do tio no segundo, de um professor no terceiro, de uma série de pessoas no quarto (Lahire, 1997). Isto significa que as interpretações sobre o sucesso e o fracasso escolar perdem em compreensão quando ignoram as relações de interdependência entre os elementos da realidade social.

Do mesmo modo que as condições acima evocadas, a existência de um projeto, de uma intencionalidade familiar ou de estratégias de superinvestimento inteiramente dirigidas para a escola seriam, cada qual, apenas um caso entre outros possíveis sociais (Lahire, 1997). Para o autor, as disposições capazes de produzir certo tipo de carreira escolar não são necessariamente colocadas em prática pelas famílias de forma consciente e intencional. Isto não quer dizer que elas não vão exercer influência favorável em termos escolares, pois através de uma presença constante, um apoio moral ou afetivo estável, a todo instante, a família pode acompanhar a escolaridade da criança de alguma forma (...). Neste caso, a intervenção positiva das famílias, do ponto de vista das práticas escolares, não está voltada essencialmente ao domínio escolar, mas a domínios periféricos (Lahire, 1997 p.26). No ambiente doméstico, como observa o autor (1995, p. 31), as combinações entre as dimensões moral, cultural, econômica, política, religiosa podem ser múltiplas.

Em seu estudo sobre casos de sucessos escolares, Laurens (1992) procurou encontrar as razões que definem trajetórias bem sucedidas nos meios populares: o acesso ao curso de engenharia para filhos de operários. A análise referente aos poucos casos (um sobre 500) de filhos de trabalhadores que conseguem obter o diploma de engenheiro mostra que não se trata de uma questão de dons ou de dispositivos naturais, do acaso ou de circunstâncias. Para Laurens, os poucos casos que contrariam a probabilidade estatística de filhos de operários obterem o título de engenheiro devem-se ao forte investimento familiar sistemático e representado por um conjunto de práticas coerentes face à escolaridade dos filhos. A escola é uma prioridade na gestão do cotidiano, traduzida pela ambição e determinação de vencer. O cruzamento dessas dimensões (práticas educativas e vontade de sucesso) é, segundo o autor, fator essencial para o sucesso escolar.

Como característica comum aos casos estudados, Laurens encontrou uma escolaridade bem sucedida nos níveis fundamental e médio, mas um diferenciador pode ser observado ainda no curso desse último: as modalidades de escolha para o curso de formação de engenheiro. A denominação geral de escolas superiores esconde, na verdade, cursos considerados mais nobres e por isso mesmo diferenciados de cursos cujo diploma tem menor prestígio social. Sua análise mostra que a opção pelos cursos oferecidos tem estreita relação com o horizonte e as práticas educativas das famílias. Assim, encontrou um grupo cujos membros têm em comum a adoção de atitudes mais ambiciosas, assumem o risco de possível fracasso na seleção, mas optam por ramos mais nobres do ensino superior. Diferentemente desse, outro grupo define mais tardiamente o projeto de ensino superior, toma atitudes mais prudentes e opta por cursos intermediários e de menor risco, mas também de acesso a diplomas menos valorizados. Um terceiro grupo está muito mais próximo do que é considerado característico das camadas populares: seus membros apresentam limites no acompanhamento escolar, projeto tardio, priorizam a sobrevivência e a opção é por um curso de engenharia de curta duração. A análise interna dos casos analisados permitiu observar uma relação estreita entre a opção pelo tipo de curso e as práticas educativas familiares.

Laurens avançou essa análise buscando explicações para modalidades diferenciadas de inserção nos cursos de engenharia. Mostra que essa tipologia não responde a questões como o que fez com que as famílias elaborassem práticas educativas pouco comuns à sua condição social? Por outro lado, como explicar as diferenças no interior do grupo? Para encontrar respostas às questões levantadas, dirigiu a análise para um certo número de indicadores, a saber, influência dos avós através de ocupações não-operárias, status profissional do pai, ocupação da mãe, dimensão demográfica, instrução e escolaridade dos pais, ativismo político e religioso, oportunidades exteriores favoráveis ao sucesso escolar. Buscou, assim, compreender as razões de sucesso escolar, considerando as relações intergeracionais.

Aparentemente, Lahire e Laurens tomam posições distintas uma vez que este faz uma análise fator por fator para explicar os resultados escolares, enquanto que aquele critica essa posição metodológica pois entende que os diferentes elementos que possam exercer efeitos sobre o fracasso ou sucesso escolar só têm sentido tomados em uma relação de interdependência. Uma leitura mais atenta mostra, no entanto, aproximações nas duas abordagens. Embora faça uma análise apoiada em fatores, a conclusão de Laurens vem apoiar o valor relativo dos fatores quando tomados isoladamente pois, embora condição favorável à escolaridade, nenhum fator é por si só determinante. Nesse sentido, advoga a necessidade de considerar o contexto situacional, o que não significa a simples reunião de elementos reconhecidos como favoráveis. O autor faz uma distinção entre fatores de sucesso e fatores fundamentais ou estruturantes porque estes têm um papel catalisador essencial no processo. Os primeiros, embora importantes, não são suficientes.

Para Laurens, todas as famílias encontradas possuem vários fatores favoráveis ao sucesso, que se associam entre eles de maneira aleatória. As combinações observáveis são infinitas e, por isso mesmo, não é possível definir tipologias. Não é suficiente ser filho único, filho de professor e neto de comerciante para ter uma brilhante escolaridade no meio operário. Sabemos que o fato de possuir avós e pais não-operários e estabilizados favorece e constrói um contexto situacional propício ao sucesso dos filhos de operários (Laurens, 1992, p.167). Podemos assim encontrar vários fatores que podem ter uma dimensão favorável (como estabilidade do pai, atividade da mãe, número reduzido de filhos do mesmo modo que a ideologia e a prática religiosa...), mas esses terão uma dimensão positiva se forem associados a um projeto estruturante ou a uma política de sucesso social familiar. Essas observações mostram o lugar fundamental do projeto e das práticas educativas familiares na definição de carreiras escolares bem sucedidas, questão sobre a qual parece residir a principal diferença entre os dois autores.

Outros dois trabalhos aqui apresentados, desenvolvidos no Brasil, têm em comum com os estudos anteriormente citados, o objetivo de estudar o tema do sucesso escolar a partir das relações entre a escola e a família, considerando as dimensões materiais e simbólicas de escolarização. Apoiando-se em grande parte nas análises dos autores acima citados, Portes (1993) e Viana (1998) procuraram compreender os processos subjacentes ao êxito escolar dos filhos de famílias populares, que atingiram o ensino superior.

O estudo de Écio Portes (1993) teve como objetivo compreender trajetórias escolares de 37 estudantes universitários de origem popular2 2 A faixa etária compreendida variou de 19 a 43 anos e quanto ao sexo, 21 são do sexo masculino e 16 do sexo feminino. , assim como as estratégias empreendidas pelas famílias e pelos filhos para viabilizar um nível de escolarização não-comum a este meio social: o ensino superior. São estudantes de uma universidade pública (UFMG), com ingresso precoce no mercado de trabalho (do grupo estudado 35% exerciam atividades remuneradas ainda no ensino fundamental e 64% no ensino médio), filhos de pais com baixo nível de escolaridade, pertencentes a famílias numerosas, de baixa renda entre outras condições desfavoráveis à escolarização. Até o ensino médio grau foram trajetórias bem sucedidas se observados indicadores como regularidade, relação idade/série e resultados escolares.

Os elementos explicativos para essas trajetórias com acesso ao curso superior estão relacionados ao que o autor denomina de força do ethos, que consiste no investimento familiar, materializado sobretudo na figura da mãe, apoiado no valor simbólico da escola como possibilidade de ultrapassar a condição social dos pais. O autor identificou um certo número de estratégias 3 3 Por estratégia, o autor entende o conjunto de práticas e atitudes ideológicas ou morais que - consciente ou inconscientemente - cada grupo social põe em prática com uma determinada finalidade , no caso de seu estudo , a longevidade escolar (Portes, 1993, p.17). empreendidas pelas mães, entre elas, a atenção voltada para a vigilância e valorização do que é escolar, contatos com a escola e mudança de estabelecimento em busca de outro considerado mais favorável; conselhos e atitudes vigilantes de ordem moral, sobretudo no sentido de preservar os filhos das más influências, entre outras práticas que indicam um investimento voltado para o rendimento escolar.

Para os pais, enfrentar as condições escolares implica o desenvolvimento de estratégias capazes de assegurar aos filhos a superação de desvantagens sociais comuns nas camadas populares, como a pobreza material e a discriminação. O autor assinala uma certa proximidade nas ações parentais encontradas com aquelas características de classe média: assiduidade, tenacidade, perseverança, que representam, para o grupo estudado, um aprendizado familiar estratégico e necessário ao enfrentamento escolar para pais despossuídos de capital escolar (Laurens, 1992, p.21). Considera ainda como elemento significativo de longevidade escolar a rede de relações sociais que, através de certos tipos de apoio, influências ou informações, permitem conhecer melhor o funcionamento do sistema de ensino. Como exemplo, cita as informações obtidas sobre os estabelecimentos e as maneiras de proceder, favoráveis ao vestibular. Mobilização dos pais e dos filhos é o que se pode observar na descrição do autor sobre as estratégias dos universitários: escolha da boa escola, apoio em bolsas de estudos, migração para a capital do estado, procura de curso preparatório para o vestibular.

Também voltada para estudantes universitários, Viana (1998) procurou investigar o que tornou possível o acesso ao nível superior para filhos de famílias com dificuldades econômicas e baixo nível de escolaridade, com pais exercendo ocupações predominantemente manuais. Em sua tese descreve as configurações familiares dos universitários e procura mostrar como estas têm relação e podem ajudar a explicar o modo de escolarização das camadas populares no interior do sistema de ensino. Através de histórias escolares dos sujeitos estudados4 4 Participaram da pesquisa sete estudantes universitários, dois do sexo masculino e cinco do sexo feminino, todos alunos de instituições públicas de ensino superior, dos seguintes cursos: Medicina, Geografia, Economia, Psicologia e Filosofia. , buscou compreender algumas condições que lhes possibilitaram o ingresso na universidade, considerando os seguintes parâmetros de análise: os significados que a escola assume para os pais e os filhos; as diferentes formas de relações intersubjetivas e intergeracionais que uma escolarização prolongada implica para as camadas populares; as disposições e condutas temporais, isto é, a relação com o futuro por parte dos sujeitos estudados; os processos familiares de mobilização escolar; os grupos de referência para o aluno-filho, exteriores ao núcleo familiar e as oportunidades daí decorrentes; os modelos socializadores familiares ou tipos de presença educativa das famílias.

Nas histórias escolares procurou identificar a presença desses princípios, entendendo que eles não têm um efeito determinante sobre o destino escolar, mas ganham sentido quando considerados de forma interdependente, contextualizada, relacional. Na tessitura das diferentes realidades encontradas, procurou dar visibilidade a dimensões nem sempre evidentes ao pesquisador, mas significativas do ponto de vista da construção das situações de sucesso escolar em questão. Como Portes, a autora encontrou tendências comuns ao grupo estudado, como um desempenho escolar regular nas séries iniciais, seguido de um período de escolaridade acidentado, dificuldades de conciliação entre a escola e o trabalho. Ressalta, no entanto, a necessidade de a pesquisa ir além desses dados formais, privilegiando outras dimensões, menos visíveis, mas que produzem diferenças no sentido de maior ou menor adaptação à realidade educacional, mesmo em situações sociais próximas. Viana (1998) não identificou projetos conscientemente elaborados pelas famílias, direcionados para o ensino superior ou, ainda, práticas familiares de engajamento específico que pudessem explicar essas situações de longevidade escolar, concluindo que foram, sobretudo, as chances/oportunidades, presente nas biografias dos entrevistados, os elementos capazes de reorientar o curso escolar.

Outros elementos mostraram-se igualmente significativos, como os resultados escolares favoráveis nas séries iniciais e intermediárias, porque se constituíram em circunstâncias produtoras de sentido, transformando-se numa base importante, embora insuficiente para explicar a continuidade dos estudos. Além disso, a noção de autodeterminação, construída no processo de escolarização e não como existência a priori ou natural, é considerada elemento fortemente constitutivo dessas trajetórias bem sucedidas.

As conclusões de Viana sobre a presença familiar são semelhantes às encontradas por Lahire, ou seja, o sucesso escolar não tem relação direta com as práticas de investimento familiar. O estudo de Viana sobre o acesso ao ensino superior indica que este nível de escolaridade, estatisticamente pouco provável no meio social pesquisado, pode se dar mesmo sem a presença de práticas familiares planejadas e com o objetivo voltado para o fortalecimento da carreira escolar dos filhos. Já para Laurens, como já vimos, as práticas educativas familiares constituem fatores indispensáveis de sucesso escolar nessas camadas sociais. O texto de Portes parece indicar que as ações familiares dirigidas para favorecer os estudos dos filhos são elementos centrais para maior longevidade escolar.

Os estudos que foram abordados levantam questões relevantes para o entendimento dos casos atípicos de escolarização e deixam também muitas interrogações sobre as formas de investimento familiar e seus resultados sobre o rendimento escolar dos filhos. Apesar dos questionamentos que esses estudos possam suscitar, eles têm o grande mérito de dar visibilidade às ações empreendidas pelos sujeitos sociais, contrariando uma visão patologizante das famílias ou ainda, um conhecimento durante muito tempo dominante nas ciências sociais, apoiado em uma caracterização genérica dos meios populares, freqüentemente associada à passividade, imediatismo nas reivindicações, entre outros atributos igualmente estigmatizantes (Sader & Paoli, 1986).

Acompanhando percursos escolares no ensino fundamental e médio

Os estudos que venho realizando sobre os percursos escolares no ensino fundamental e médio, nos meios populares, revelam resultados semelhantes a outras pesquisas nesses meios sociais: reconhecimento da escola como necessidade para entrar no mercado de trabalho, ingresso precoce no trabalho associado ou não com a escolaridade, cursos escolares acidentados e com curta sobrevida no sistema educacional. No plano microssocial, esses dados confirmam aqueles observados nas estatísticas mais gerais e que mostram a forte desigualdade na relação entre anos de estudo e a condição social. Mas, como também mostram os autores citados, a realidade é dinâmica e variações importantes podem ser observadas entre as famílias. No caso específico de estudos realizados na periferia urbana, a maior parte da população acima de 14 anos, embora tenha cursado as quatro primeiras séries, não obteve certificado do ensino fundamental e poucos continuaram os estudos além do que é considerado obrigatório. Evidentemente existem variações nos resultados escolares mas pôde-se verificar que os casos de uma escolarização mais extensa são também aqueles que apresentaram, ao longo do percurso, desempenho mais favorável. Essa observação aproxima-se das conclusões de Laurens & Viana sobre a relação entre desempenho escolar favorável nas séries iniciais e intermediárias e longevidade escolar.

Os dados aqui apresentados foram obtidos a partir de pesquisas realizadas em 1991, 1993 e 1997, em diferentes momentos das trajetórias escolares dos filhos de 16 famílias. A análise recaiu sobre um material cumulativo, através do qual buscou-se compreender os casos de fracasso, mas também aqueles que demonstram maior adaptação ao sistema de ensino. Trata-se de pesquisas qualitativas, apoiadas sobretudo em entrevistas, realizadas no local de moradia dos informantes, com quatro temas básicos: 1) dados sociais das famílias: estrutura familiar, inserção no mercado do trabalho, entre outros; 2) situação escolar dos filhos; 3) relação escola-trabalho; 4) significado e práticas familiares de escolarização. As famílias residem em um bairro da periferia urbana de Florianópolis, dispõem de baixo nível de renda e o grau de escolaridade dos pais é reduzido.

Em vez de desenvolver uma análise da situação escolar do conjunto da população estudada, considerei oportuno apresentar uma situação particular, relativa a uma família cujos filhos apresentam escolaridade de maior longevidade, se comparada com a maioria do grupo estudado. Entendo ser assim possível mostrar elementos dominantes, mas também outros possíveis sociais ou, conforme Lahire (1997, p.26) domínios periféricos, igualmente capazes de exercer influências na relação com a escola. Esses elementos aparecem quando realizamos uma análise vertical, voltada para a dinâmica interna da família, tal como é o propósito da situação singular apresentada a seguir.

Um projeto de ensino além do obrigatório: "uma questão de honra!"

"uma coisa que eu não abro mão é o estudo,

mas não abro mesmo !

Pode até rodá um ano, dois anos, mas vai continuá!"

(Tereza, mãe de três filhos, entrevista em julho/93)

"O diploma de 2° grau eu quero na mão (...)

Isso prá mim é uma questão de honra!"

(Mesma mãe entrevistada, novembro/97).

Acompanhei, durante o período de 1991-97 os percursos escolares de Mário que, em 1997 tinha 18 anos, Wilson, 15 anos e Luiza, 12 anos. Eles fazem parte de uma família de cinco membros: os três filhos, a mãe de 39 anos e seu companheiro de uma segunda união. A última entrevista com a família ocorreu em novembro de 1997. Em relação às condições de vida familiar, percebe-se que pouca coisa mudou desde 1991. A figura central e responsável pela manutenção do grupo é a mãe, divorciada, escolaridade até a 4ª série e experiência de trabalho desde os 12 anos. Nos últimos anos, trabalhava como servente de uma escola estadual e, de forma irregular, associava esta função com outras ocupações (faxineira, vendedora de roupas). Seu segundo companheiro é auxiliar de pedreiro e tem uma renda instável, com pouca participação nas despesas da casa. A renda fixa do grupo familiar é de três salários mínimos. As dificuldades econômicas são uma constante na trajetória dessa família. Com a separação do primeiro casamento, as dificuldades econômicas aumentaram e houve uma regressão nas condições de vida. Desde 1989, moram em um pequeno apartamento, financiado, com 45 metros quadrados.

Como em muitas outras situações estudadas, o discurso da mãe, nas três entrevistas, é em grande parte centrado nas questões relacionadas à sobrevivência, à educação e ao futuro dos filhos. Esses, todos escolarizados, apresentavam, nos anos correspondentes à pesquisa, a seguinte configuração escolar :

- Mário, em 1991 tinha 12 anos e freqüentava a 5ª série, em 1993 a 7ª e, em novembro de 1997, aos 18 anos, cursava a última série do ensino médio.

- Wilson, em 1991, com 9 anos de idade, freqüentava a 2ª série, em 1993 a 4ª série e concluía o ensino fundamental, com 15 anos, em 1997.

- Luiza, aos 6 anos estava matriculada na pré-escola, aos 8 anos cursava a 2ª série e a 6ª com 12 anos, em 1997.

Das situações familiares analisadas, esta é a que apresenta maior adequação entre a idade e a série escolar. Isto porque nenhum dos três filhos havia interrompido os estudos, dois deles não apresentavam reprovação e um havia sido reprovado uma única vez. Segundo os dados de 1997, o filho mais velho concluía a 3ª série do ensino médio, o segundo, concluía o ensino fundamental e a filha mais nova estava na dependência de uma segunda época para ser aprovada na 6° série.

Apesar das dificuldades financeiras, chama a atenção neste caso singular o engajamento da mãe na escolaridade, observável através dos comportamentos que adota para favorecer o sucesso escolar e profissional dos filhos. Existe um projeto explícito de escolaridade de nível médio, concomitante ao trabalho.

As entrevistas, no seu conjunto, mostram um discurso apoiado numa forte valorização concedida à formação escolar e esta é relacionada, sobretudo, ao desempenho profissional futuro. Sua condição de responsável direta pelos filhos reforça esta intenção : Eu sempre pensei assim: quando eu partí pra vida que deixasse eles colocados, que tivesse um teto... e em matéria de estudo eu quero deixá eles encaminhados.

O nível médio de ensino é considerado um requisito mínimo para favorecer a inserção profissional e a viabilização desse nível é assumida como obrigação, como uma questão de honra. A frase da mãe que se repete a cada encontro: "O segundo grau eu não abro mão!"simboliza não apenas um desejo, mas sua determinação de levar um projeto escolar a termo "Eu exigi o 2° grau prá todos eles porque eu acho assim, pela vida que a gente passa hoje, eu não quero que eles passem, né!".

Até a idade de 14 anos, a prioridade é com os estudos e sua continuidade, após o ensino fundamental, é inevitavelmente concomitante ao trabalho. É também dentro desta associação de estudo e trabalho que existe a expectativa de uma formação escolar superior: Eu queria que eles fizessem o vestibular, que fossem prá uma universidade ... mas eu acho que daí, a partir do segundo grau, aí depende deles, é a vontade deles.

Sua grande esperança em termos de formação parece se voltar especialmente para o filho mais velho. O reconhecimento de sua inteligência e de seus resultados escolares é motivo de muito orgulho e uma constante nas três entrevistas. Mario nunca foi reprovado e, segundo informou a mãe, sempre obteve boas notas escolares. Ainda nos primeiros anos escolares, fazia bicos remunerados. Às tarefas informais (limpeza de terreno, vendedor de picolé, etc), seguiram-se outras experiências, como uma bolsa de trabalho no Banco do Brasil. Situação como esta, em que o histórico escolar do candidato tem um peso importante no processo seletivo, reforça o valor simbólico do estudo e do investimento na educação formal.

Mário iniciou o ensino médio na Escola Técnica Federal, na área de telecomunicações. Pela incompatibilidade de horário entre escola e trabalho, interrompeu o curso ainda no primeiro semestre. Concluiu o nível médio em 1997, tendo freqüentado três estabelecimentos de ensino público, sem interrupção nos estudos, embora trabalhasse durante esse período ganhando um salário mínimo. No final de 1997 estava desempregado e procurava nova inserção no mercado de trabalho.

Apesar da concomitância trabalho-estudo (o que em muitos momentos comprometeu a assiduidade e os resultados escolares) e das transferências de estabelecimentos de ensino ao longo do curso, Mário teve um percurso escolar sem interrupção, respondendo assim às previsões, mas também à determinação de sua mãe: O diploma de 2° grau eu quero na mão... Isso pra mim é uma questão de honra! (entrevista, nov./97).

O desenvolvimento escolar dos filhos apresenta certas diferenças: enquanto o mais velho, segundo a mãe, estuda sem sua interferência e tem melhores resultados nas avaliações, os dois menores são menos envolvidos com os estudos. Wilson foi reprovado na primeira série, nas demais teve desempenho regular mas sem reprovação.

Apesar das dificuldades escolares (aprovado com recuperações), Wilson concluiu o ensino fundamental, aos 15 anos. Cursou até a oitava série, no período diurno, e só ocasionalmente trabalhava fazendo bicos semelhantes aos realizados pelo irmão. O empenho da mãe por uma escolaridade mais longa não parece ser compartilhado no mesmo grau por Wilson, para o qual o ato de estudar, neste momento de sua vida, parece estar muito mais associado ao desejo da mãe do que dele próprio pois segundo ele: é isso que ela qué, não larga do pé (...) eu prefiro trabalhá, estudá não é comigo. Na última entrevista, ele foi claro ao dizer que não gosta de estudar, demonstrando fracos laços com a escola. Mas, apesar desta oposição entre os propósitos da mãe e aqueles do filho, reconhece a importância dos estudos: imagina uma pessoa que não tem estudo no futuro!. Mesmo sem demonstrar muita disposição pelo estudo e questionar o trabalho escolar: hoje não vão na escola prá estudá, mais é pra fazê bagunça", vai se matricular no ensino médio, no período noturno e não descarta a possibilidade de fazer vestibular. No futuro gostaria de ser jogador de futebol. Seu principal interesse, no momento, é conseguir um emprego, como office boy, o que estava tentando fazer, mas sem sucesso.

Wilson, como muitos outros jovens de sua idade, quer ter seu próprio dinheiro e conquistar sua independência. Este desejo é também manifestado pela irmã, Luiza, de 12 anos, 6ª série : o que eu quero agora mesmo é trabalhá, só que sô muito nova ainda. Na 5ª série mudou para a escola onde a mãe trabalha. Esta iniciativa está apoiada na avaliação que mãe e filha fazem do novo estabelecimento : maior organização e nível de ensino. Luiza estuda pela manhã e à tarde diz ajudar um pouco em casa. Até a 5a série não havia sido reprovada, mas no final de 1997, seus resultados não eram favoráveis. Teve notas inferiores a cinco nos três bimestres e no final do ano precisou fazer recuperações. A mãe atribui suas baixas notas às aquisições anteriores insuficientes para acompanhar as exigências do novo estabelecimento, mas não isenta a filha também de responsabilidade (estudava pouco).

Conforme vêm mostrando vários autores, o que também observei em algumas famílias, os irmãos mais velhos e com maior nível de escolaridade, pela ajuda que prestam, podem favorecer a escolaridade dos menores. Essa forma de solidariedade não foi aqui verificada, mesmo na situação específica da irmã que apresentava dificuldades em várias disciplinas. Esta observação, como também uma certa resistência aos estudos da parte dos dois filhos, mostra a definição de um projeto escolar muito mais personalizado na figura da mãe do que no grupo familiar como um todo. Essa não-correspondência, no entanto, não parece impedir que os filhos tenham internalizado a ordem moral doméstica do estudo como uma necessidade, como único caminho para superar a condição familiar. Como já foi observado, os traços que caracterizam cada ser humano não correspondem a uma produção direta do que é visto na família. A pesquisa justamente coloca em evidência a mobilização também do aluno na construção de seu percurso escolar e profissional e a existência de outras influências além das estritamente familiares.

Da parte da mãe, o projeto de escolaridade é extensivo a todos os filhos. Suas representações em torno do futuro da filha estão apoiadas, entre outras questões, na construção da independência financeira da mulher: eu quero que ela seja independente, que faça a vida dela. Este desejo voltado para a autonomia da mulher se apóia também em exemplos femininos, como da madrinha de Luiza, hoje uma profissional bem sucedida.

Diante do exposto, como explicar a formação de percursos regulares quando aproximadamente 50% dos alunos matriculados na escola do bairro interrompem os estudos até a metade do ano letivo? Como explicar também o relativo sucesso dos filhos cujos pais detêm um nível mínimo de escolaridade, ocupações pouco qualificadas e de baixa remuneração? No exemplo analisado, as condições materiais um pouco mais favoráveis (renda regular, número de filhos não superior a três, casa própria) se comparadas com outras famílias do grupo estudado, não são suficientemente esclarecedoras. É preciso considerar, neste caso, a forte mobilização escolar materializada na figura da mãe e outros possíveis sociais nem sempre identificados pelo pesquisador, apesar do número relativamente grande de entrevistas.

Várias iniciativas tomadas podem ilustrar comportamentos coerentes com os propósitos declarados. Um elemento a ser considerado, que parece significativo, diz respeito à ocupação profissional da mãe como servente de escola, o que a coloca em contato direto com questões educativas. Este universo favorece a obtenção de informações e um capital de relações sociais significativas. É possível que esta experiência da mãe tenha um peso sobre sua avaliação mais objetiva da escola e dos professores. Além disso, e certamente por não desconhecer a importância do julgamento que os docentes fazem de seus alunos e familiares sobre o rendimento escolar, procura estar informada sobre a situação escolar dos filhos e mostrar a imagem de uma mãe esforçada na escolaridade destes. Do mesmo modo que em relação à escola, a avaliação que faz sobre o fracasso escolar não é unilateral. As razões atribuídas às dificuldades escolares não são voltadas unicamente para os filhos. Suas observações demonstram uma tendência a encorajar o sucesso e não o fracasso escolar.

Tereza procura também reunir todas as oportunidades que se apresentam e seu local de trabalho favoreceu algumas delas. Tem conhecimento das brechas que pode aproveitar, como do empréstimo de livros didáticos e do acesso a outros materiais (cadernos, lápis, etc). Foi também na escola que tomou conhecimento da seleção da bolsa de trabalho no Banco do Brasil, da qual participou seu filho (quando eu vi aquele anúncio ali na escola, eu logo já pensei nele); foi também onde conseguiu o apoio de uma professora para uma inscrição gratuita em um curso de computação. Esse tipo de curso, de curta duração, já faz parte dos currículos de Mario e Wilson. Embora não disponha de condições financeiras favoráveis, não desconhece a importância das atividades extra-escolares no desempenho do aluno, como aulas de inglês (porque ele é apaixonado pelo inglês - numa referência ao filho mais velho) ou ainda, da necessidade de aulas de reforço.

Como observa Lahire (1997), o investimento pedagógico não é a única condição capaz de interferir nos resultados escolares. Embora a mãe não acompanhe diretamente os conteúdos escolares, adota outras formas de investimento, seja no plano mais subjetivo, como a insistência constante em transmitir o valor social da educação, seja de ordem disciplinar, não autorizando a interrupção dos estudos, controlando a assiduidade e o cumprimento das tarefas de casa. Estes comportamentos mostram uma atitude vigilante com a escolaridade: eu sô chata, eu cobro, não deixo em branco... Vô na mochila, revisto os cadernos, se tem alguma coisa errada, vô falá com a professora....

De acordo com o quadro de análise que orienta este trabalho, a ocupação da mãe, que parece favorecer uma maior aproximação dos filhos com o universo escolar, por si só não produz uma escolarização mais prolongada. A ocupação da mãe representa um possível social (Lahire, 1997) e só tem significado numa relação de interdependência com outros elementos da história familiar e individual de seus membros. É preciso ainda acrescentar que, neste caso singular, é difícil saber qual a função do pai no percurso escolar dos filhos. A referência a ele é de uma pessoa ausente na educação mas, como sabemos, a ausência física não impede a sua presença no universo simbólico. Investigar esse lugar não foi o objetivo deste trabalho, que se voltou para as dimensões mais próximas do cotidiano familiar.

Considerações finais

Através da bibliografia levantada e do estudo de um caso singular, mas representativo no grupo estudado, procurou-se evidenciar a relação dinâmica e de múltiplas inter-relações entre a escola e vida social do aluno e de sua família. Este estudo mais aprofundado de uma situação concreta permite, igualmente, dar visibilidade às ações dos atores sociais, mediante suas práticas e significados em torno de um projeto escolar.

Não se pode ainda ignorar, como mostraram os autores citados, o papel central da figura da mãe no acompanhamento da escolaridade dos filhos. Embora não tenhamos mencionado neste texto, a análise realizada indica a pertinência de se considerar, de forma mais pontual, a mediação da variável gênero com outros elementos implicados nas formas de mobilização familiar e êxito escolar.

Acreditamos que os estudos voltados para realidades concretas podem contribuir para desmistificar as interpretações muito genéricas sobre a denominada participação dos pais na escolarização dos filhos as quais, com freqüência, resultam em preconceitos fundados num padrão idealizado de família e de participação.

Para finalizar, cabe observar que a mobilização dos pais e dos filhos, embora possa desempenhar um papel importante e mesmo fundamental na carreira escolar do filho, não é condição suficiente para garantir sua permanência na escola e reduzir as desigualdades escolares. A análise do conjunto das famílias evidencia o grande descompasso entre um projeto que pretende a universalização da educação e as condições sociais e escolares, mediante as quais, grande parte da população brasileira vem tentando ampliar seu capital cultural. Como também observaram Barreto & Mitrulis torna-se cada vez mais urgente passar da universalização das oportunidades de acesso ao provimento de condições de permanência do aluno na escola garantindo-lhe aprendizagem efetiva e educação de qualidade (1999 p.28).

Artigo recebido para publicação em setembro de 2000; aceito em dezembro de 2000

Este texto, originalmente apresentado no II Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul, Curitiba/1999, reúne parte dos resultados da pesquisa "Percursos escolares e mobilização familiar nos meios populares", desenvolvida com apoio do CNPq.

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  • Rochex, J-Y. (1995). Le sens de L'expérience scolaire: entre activité et subjectivité. Paris: PUF.
  • Sader, E. & Paoli, M.C. (1986). Sobre classes populares no pensamento sociológico brasileiro (notas de leitura sobre acontecimentos recentes) In: R. Cardoso (Org.). A aventura antropológica Rio de Janeiro: Paz e Terra.
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  • Endereço para Correspondência:

    Nadir Zago
    Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC
    e-mail
  • 1
    Estudo realizado com famílias de um bairro da periferia urbana de Florianópolis, concluído em 1999.
  • 2
    A faixa etária compreendida variou de 19 a 43 anos e quanto ao sexo, 21 são do sexo masculino e 16 do sexo feminino.
  • 3
    Por estratégia, o autor entende
    o conjunto de práticas e atitudes ideológicas ou morais que - consciente ou inconscientemente - cada grupo social põe em prática com uma determinada finalidade , no caso de seu estudo ,
    a longevidade escolar (Portes, 1993, p.17).
  • 4
    Participaram da pesquisa sete estudantes universitários, dois do sexo masculino e cinco do sexo feminino, todos alunos de instituições públicas de ensino superior, dos seguintes cursos: Medicina, Geografia, Economia, Psicologia e Filosofia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jul 2000

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2000
    • Recebido
      Set 2000
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