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A filosofia concreta de Alexandre Kojève e a teoria do imaginário de Jacques Lacan

Alexandre Kojève's concrete philosophy and Jacques Lacan's imaginary theory

Resumos

O interesse de Lacan pela dialética não cai sobre o idealismo hegeliano. O que lhe atrai é a especificidade da leitura kojèviana na medida em que promove uma antropologização da Fenomenologia do Espírito. Com essa leitura, o idealismo absoluto de Hegel transforma-se numa filosofia concreta. Uma vez que foi essa a filosofia a influenciar a produção teórica de Lacan, os objetivos desse artigo são realizar uma sua exposição geral e apontar alguns importantes momentos do cruzamento entre antropogênese dialética e discurso lacaniano, ressaltando especialmente três segmentos: o que Lacan retoma de Kojève para a sua teoria do imaginário, em que pontos afasta-se dele e a influência dessa filosofia no movimento de transição do imaginário ao simbólico.

psicanálise lacaniana; dialética; Kojève; imaginário


Lacan's interest for dialectics is not related to Hegelian idealism. What attracts him is the specificity of the Kojèvian reading as it promotes an anthropologization of The Phenomenology of Mind. With this approach, Hegel's absolute idealism becomes a concrete philosophy. Since it was the philosophy that influenced Lacan's theoretical production, the aims of this article are to accomplish its general exhibition and to point out some important moments of the crossing between dialectical anthropogenesis and Lacanian discourse, specially emphasizing three segments: what Lacan takes from Kojève for the construction of his own imaginary theory, in which points he differs from this philosophy and its influence in the transition movement from imaginary to symbolic.

lacanian psychoanalysis; dialectics; Kojève; imaginary


SECÇÃO TEÓRICO/METODOLÓGICA

A filosofia concreta de Alexandre Kojève e a teoria do imaginário de Jacques Lacan

Alexandre Kojève's concrete philosophy and Jacques Lacan's imaginary theory

Léa Silveira Sales

Universidade Federal de São Carlos

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Lea Silveira Sales Rua Rafael de Abreu Sampaio Vidal, 2729, Ap. 64, Tijuco São Carlos, SP, Cep 13566-220 E-mail: lea_silveira@uol.com.br

RESUMO

O interesse de Lacan pela dialética não cai sobre o idealismo hegeliano. O que lhe atrai é a especificidade da leitura kojèviana na medida em que promove uma antropologização da Fenomenologia do Espírito. Com essa leitura, o idealismo absoluto de Hegel transforma-se numa filosofia concreta. Uma vez que foi essa a filosofia a influenciar a produção teórica de Lacan, os objetivos desse artigo são realizar uma sua exposição geral e apontar alguns importantes momentos do cruzamento entre antropogênese dialética e discurso lacaniano, ressaltando especialmente três segmentos: o que Lacan retoma de Kojève para a sua teoria do imaginário, em que pontos afasta-se dele e a influência dessa filosofia no movimento de transição do imaginário ao simbólico.

Palavras-Chave: psicanálise lacaniana; dialética; Kojève; imaginário

ABSTRACT

Lacan's interest for dialectics is not related to Hegelian idealism. What attracts him is the specificity of the Kojèvian reading as it promotes an anthropologization of The Phenomenology of Mind. With this approach, Hegel's absolute idealism becomes a concrete philosophy. Since it was the philosophy that influenced Lacan's theoretical production, the aims of this article are to accomplish its general exhibition and to point out some important moments of the crossing between dialectical anthropogenesis and Lacanian discourse, specially emphasizing three segments: what Lacan takes from Kojève for the construction of his own imaginary theory, in which points he differs from this philosophy and its influence in the transition movement from imaginary to symbolic.

Key-Words: lacanian psychoanalysis; dialectics; Kojève; imaginary

A presença de Hegel no discurso lacaniano é fortemente filtrada pela visão de Alexandre Kojève. Não se trata de uma presença pontual uma vez que pode ser verificada desde as primeiras formulações da teoria do imaginário (mediante, especialmente, as idéias de negatividade e de luta por reconhecimento) e sua forte influência se faz sentir até tão tarde quanto o seminário de 1970, em O Avesso da psicanálise. Não parece ser o texto hegeliano a referência utilizada por Lacan1 1 Talvez ao menos até o período aproximadamente circunscrito pelo texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano de 1960, quando já se torna possível indagar a existência de uma influência mais direta de Hegel sobre Lacan. ; seu interesse não cai sobre o idealismo nem sobre a descrição do aparecimento do espírito, entendido como sujeito do discurso filosófico. O que o atrai é a especificidade da leitura kojèviana, na medida em que promove uma antropologização da Fenomenologia do Espírito, movimento cuja pretensão é trazer o esquema formal de Hegel para o plano do concreto e do drama.

Descombes (1979), em Le même et l'autre, é quem relata o contexto em que se passa a escuta de Kojève. Antes de seu pronunciamento, a filosofia francesa estava quase totalmente entregue à égide do neo-kantismo, cujo maior expoente foi Léon Brunschvicg. É sob uma atmosfera de revolta contra o domínio da razão analítica, tal como lida por Brunschvicg, que Hegel se torna um autor de vanguarda, após um longo e surpreendente intervalo durante o qual sua filosofia não fora objeto de debate. No período anterior à década de 30, a palavra dialética possuía, na França, um sentido pejorativo: sob o esquema do neo-kantismo, ela era a lógica da aparência; sob o esquema bergsoniano - que também se fazia presente então - a referência à dialética dava lugar a uma filosofia puramente verbal. Hegel era considerado um filósofo romântico e fazer-lhe referência não estava de acordo com uma filosofia chamada a pensar o progresso científico. Essa situação muda completamente de figura durante os anos 30, quando a palavra dialética passa a possuir um sentido positivo: "O bom tom é, daí por diante, ultrapassar a 'razão analítica' graças à dialética" (Descombes, 1979, p. 22) Hegel torna-se um filósofo cultuado, "(...) a origem de tudo o que é feito de mais moderno" (Descombes, 1979, p. 24) - é preciso citá-lo sob pena de não se acompanhar o curso valorizado da filosofia. A reversão é tal que Merleau-Ponty poderá afirmar que Hegel "(...) inaugura a tentativa de explorar o irracional e integrá-lo a uma razão alargada, o que permanece a tarefa do século" (Descombes, 1979, p. 23) Segundo Descombes, essa mudança no tom dos discursos parece ter sido motivada por duas razões principais: o reinvestimento de interesse no marxismo em seguida à revolução russa - visto que Lênin havia reiteradamente recomendado a leitura de Hegel -, e, sobretudo, a repercussão do curso de Kojève. Com efeito, é de sua responsabilidade a ênfase na questão da origem irracional do racional como problema central do trabalho filosófico, o que constitui marca maior da filosofia produzida na França desde então. É preciso ver de maneira diferente a relação entre a razão e seu outro. Para um pensamento não-dialético, analítico, trata-se simplesmente de opor racional a irracional, sendo desnecessário estipular caminhos de ida e volta. Já uma filosofia que possua um coração dialético - tal como a que é representada por Kojève - manifestará forçosamente uma preocupação com essa passagem que, por sua vez, aponta para duas alternativas:

"(...) toda a questão é então de saber se, neste movimento, é o outro que será reduzido ao mesmo, ou se, para abranger simultaneamente o racional e o irracional, o mesmo e o outro, a razão deverá se metamorfosear, perder sua identidade inicial, deixar de ser a mesma e fazer-se outra com o outro" (Descombes, 1979, p. 25).

A segunda alternativa é a abraçada por Kojève, para quem todo acesso a uma verdadeira sabedoria exige uma passagem da razão pela desrazão, pela aberração, pela loucura, enfim. Daí que a face racionalista do esquema hegeliano não prevalece em sua leitura. Ao contrário, o que é privilegiado é uma versão que designa o sangue, a violência e o terror como motores da história.

Conforme afirma Descombes, a emergência de um determinado problema exerceu função decisiva na passagem do pensamento analítico para o dialético, explicando o sucesso que o apólogo kojèviano obteve entre os franceses: o problema da existência das outras consciências. O idealismo da posição neo-kantiana engendra o impasse do solipsismo: "se o ser só pode ser afirmado na medida em que é conhecido, que é o ser do outro?" (Descombes, 1979, p. 33). A existência de uma segunda consciência põe em xeque a premissa idealista de que o ser é o ser conhecido, pois não se consegue decidir se a consciência do outro é o conhecimento que dela obtemos ou se essa alteridade é o conhecimento que ela possui de si mesma. O problema é, afinal, o do reconhecimento. Descombes explica que o germe do conflito de consciências já habitava o cogito cartesiano. O eu do "penso, logo sou" é a referência absoluta diante da qual tudo o mais é relativo, sua verdade é a única independente e a que possui o poder de condicionar todas as outras. Sendo assim, não é concebível a existência de diversos absolutos, conclusão que inevitavelmente originaria uma situação de conflito:

"Um segundo absoluto (outro) significa necessariamente um rival do primeiro absoluto (eu, ego). A passagem do cogito ao cogitamus não é de forma alguma a passagem do 'eu' da meditação solitária ao 'nós' de uma República dos espíritos. No plural, os absolutos não são mais do que pretendentes ao absoluto, são concorrentes que se dilaceram em torno do trono" (Descombes, 1979, p. 35).

Dessa forma, se a lacuna no idealismo era a não consideração da rivalidade inerente à noção de sujeito, a filosofia concreta surge com o afã de preenchê-la, fazendo da dialética do Senhor e do Escravo (cujo tema central é a rivalidade entre os sujeitos e a saída pelo reconhecimento) a chave de uma interpretação da Fenomenologia do Espírito que exige o distanciamento com relação a tantos outros componentes do pensamento de Hegel. Se a principal questão da filosofia concreta já se encontrava presente no cogito, isso significa, de acordo com Descombes, que ela não deixa de possuir raízes nisso que foi um dos importantes pressupostos de sua rival, a filosofia idealista.

O curso de Kojève, ministrado na École Pratique des Hautes Études entre 1933 e 1939 - cujo texto, somente publicado em 1947 sob os cuidados de Raymond Queneau, foi estabelecido ora por meio das anotações dos ouvintes, ora por estenografia - não apenas contribuiu de modo decisivo para a reintrodução do discurso hegeliano na França, mas fez dele, debaixo de uma versão extremamente específica, a palavra de ordem de toda uma geração de intelectuais. Particularmente, sua influência sobre a produção teórica de Lacan foi de fato firme e efetiva.

Segundo Kojève, a simples existência de uma multiplicidade de desejos não garante que um grupo assim formado ganhe o status de sociedade (que uma coletividade qualquer se torne uma coletividade humana). Esta seria apenas uma primeira condição visto que, numa existência solitária, o ser não seria capaz de se humanizar. No entanto, se estes desejos, em sua multiplicidade, estiverem todos voltados para objetos dados, naturais, só conduzirão à formação do sentimento de si, próprio à vida animal. O desejo, em todas as suas expressões, é essencialmente "negatividade-negadora", ou seja, seu motor é uma ação que destrói a objetividade do objeto ao mesmo tempo em que cria, por meio dessa destruição, uma nova realidade subjetiva. Dessa forma, o eu, que inicialmente é um simples vazio, passa a receber um conteúdo positivo daquele objeto (não-eu), que foi negado pela ação do desejo. Então, se o eu se volta para um objeto natural, também ele será natural. "O Eu criado pela satisfação ativa de um tal Desejo possuirá a mesma natureza que as coisas para as quais se volta esse desejo: ele será um Eu 'coisista', um Eu apenas vivo, um eu animal." (Kojève, 1947, p. 12) Para que se produza a consciência de si (na visão de Kojève, para que o ser venha a ser humano), é preciso que o desejo seja o desejo de um objeto não-natural, para além do dado. O desejo deve se voltar, então, para outro desejo tomado em si mesmo, antes de qualquer satisfação, como um "nada revelado", um "vazio irreal". O desejo desejado em si mesmo é outra coisa que um objeto natural possuidor de uma identidade estática. Um eu que se constitui por uma ação negadora e assimiladora de outros desejos, será ele mesmo desejo e, como desejar significa agir, um eu assim formado será ação, devir, tempo, enfim, outra coisa que um ser natural e estático. Somente esse eu pode se revelar como consciência de si. Desejar outro desejo significa desejar que o valor representado pelo eu seja desejado pelo outro. O que está em jogo no processo de humanização é o desejo de reconhecimento:

"Desejar o desejo de um outro é, então, em última análise, desejar que o valor que eu sou ou que eu 'represento' seja o valor desejado por esse outro: eu quero que ele 'reconheça' meu valor como seu valor, eu quero que ele me reconheça como um valor autônomo. Dito de outra forma, todo desejo humano, antropogênico, gerador da Consciência de si, da realidade humana, é, em última instância, função do Desejo de reconhecimento." (Kojève, 1947, p. 14)

Quando o que está em questão é a realidade humana, importa pensar um caminho desviante que conduz para longe do objeto por meio de uma ação desejante que se debruça sobre um outro desejo. Trata-se de questionar o que se passa entre dois sujeitos e não entre um sujeito e um objeto. O desejo propriamente humano é desejo do desejo do outro e não desejo do objeto; este último se situa no nível do mero sentimento de si, ou seja, da vida animal e de sua inércia contemplativa e, por isso, jamais conduzirá ao desenvolvimento da consciência de si. Só o desejo como princípio pode fazer surgir uma humanidade - o espaço da negatividade por excelência - do que antes era apenas uma condição de eterna afirmação do dado natural. O desejo de reconhecimento dá lugar a uma forma específica de ação, aquela que Kojève categoriza como "luta de puro prestígio". Esta, por sua vez, conduz a uma relação de dominação na qual restará ao sujeito subordinado a ação pelo trabalho. Luta e trabalho são, de acordo com a visão sanguinolenta da história - porque o trabalho também é um tipo de violência uma vez que, para produzir seu fruto, tem de destruir o dado natural - as duas únicas formas de ação reconhecidas pela filosofia concreta.

Somente nesse encontro bélico com o outro é que o verdadeiro sujeito pode se constituir, somente a luta por reconhecimento entre as consciências é capaz de fornecer o modelo de uma antropogênese social. Esse conflito exige que a negação do dado natural seja levada ao extremo. O ponto mais alto dessa negação é justamente que a própria vida seja posta em risco, pois não há valor natural mais elevado do que ela. A luta por reconhecimento será, portanto, uma luta até a morte. Todavia, se ela for levada até o fim, a morte de um dos adversários impedirá a continuação do processo de constituição subjetiva, pois não haverá um outro sujeito para reconhecer o desejo daquele que teria permanecido vivo. A saída para esse impasse é que a luta de puro prestígio possa engendrar dois diferentes posicionamentos subjetivos. Um dos adversários terá que desistir do desejo de se fazer reconhecido e resignar-se em reconhecer o desejo do outro, tornando-se escravo de um mestre que lhe preserva a vida: "Ele deve abandonar seu Desejo e satisfazer o Desejo do outro, ele deve reconhecê-lo sem ser reconhecido por ele. Ora, 'reconhecê-lo' assim é 'reconhecê-lo' como seu Senhor e se reconhecer e se fazer reconhecer como Escravo do Senhor" (Kojève, 1947, p. 15). No entanto, quando tudo parece estar resolvido, quando um sujeito parece ter conseguido se fazer reconhecido por outro, surge um novo problema, uma questão interna à relação estabelecida entre os pólos envolvidos. É que, diante dessas circunstâncias, não é possível ao senhor usufruir de um reconhecimento que afirme sua humanidade pois ele mesmo não reconhece a humanidade do escravo. Era preciso que o reconhecimento em jogo tivesse origem em outro desejo humanizado ou em vias de humanização. Para o escravo, ao menos à primeira vista, não existiria perspectiva de acesso à humanização, pois sua única função é providenciar condições para o gozo do senhor e este não reconhece seu valor. Além disso, o senhor não conseguiu alcançar a negação do dado natural, pois, apesar de ter posto sua vida em risco, agora que subordina o escravo, não faz mais do que lhe consumir os frutos do trabalho. Frutos que também não têm valor humano, pois não sofreram a ação negadora de nenhum desejo; para o escravo que os produz, eles são apenas coisas as quais ele não possui o direito de desejar.

É aqui que entra em ação o pólo do trabalho produzindo mais um movimento dialético e definindo a saída do impasse. Encontra-se aí a possibilidade de acesso à negação do dado natural. Ao não se contentar com sua condição, o escravo a supera, dialeticamente, mediante seu trabalho, pois este possui a faculdade de produzir a diferença, de criar um mundo novo, outro que não aquele dominado pelo senhor. O escravo não poderia mesmo permanecer preso a um mundo cujo modo de satisfação fosse animal, "coisista", porque inclusive este lhe era negado - não lhe era permitido consumir o produto de seu trabalho. Porém, quando este produto se torna símbolo do desejo do escravo, ele deixa de ser algo natural e passa a ser cultural, providenciando um modo de satisfação para um desejo até então recalcado. Assim, se no início do apólogo, a brecha para a humanização era vislumbrada do lado do senhor, vê-se agora que cabe ao escravo pôr a história em movimento, formando-se e educando-se pelo trabalho enquanto o senhor fica preso em seu impasse. O escravo teria percebido, durante a luta pelo reconhecimento, o quanto era necessário negar o mundo natural e promover a emergência de circunstâncias favoráveis a um projeto de humanização. Assim, o movimento que produz a diferença, ou seja, a história, constitui-se na conversão, por intermédio da luta e do trabalho, do mundo natural (lugar do mesmo) em um mundo histórico (lugar do outro).

Por aí se vê a centralidade do conceito de ação (a negatividade da luta e do trabalho) na filosofia de Kojève. O sujeito deve impor aos outros seres humanos o conceito que tem de si mesmo, "(...) deve transformar o mundo (...) no qual ele não é reconhecido em um mundo onde esse reconhecimento se opere. Essa transformação de um mundo hostil a um projeto humano em um mundo que está de acordo com esse projeto se chama 'ação', 'atividade'" (Kojève, 1947, p. 18). Não apenas no processo antropogenético a ação é a razão de todos os acontecimentos, mas também ela é o único critério ético possível. É ela que decide, como critério imanente à história (e não transcendente) sobre o que é verdadeiro e o que é falso e a dialética racionalista de Hegel passa a ser um pensamento da ação, uma filosofia pragmática para a qual o verdadeiro é aquilo que triunfa e o falso é aquilo que fracassa. Descombes chama a filosofia concreta de Kojève de "humanização do nada" em função exatamente de sua ênfase na ação; é ela que - ao estabelecer relações com o nada determinadas por vetores de oposição, de negação e de violência - introduz o novo no mundo e faz girar a roda da história. A negatividade, então, é também a essência da própria liberdade; o que liberta o homem da determinação natural é o poder da ação negadora: "A liberdade não consiste numa escolha entre dois dados: ela é a negação do dado (...)" (Kojève, 1947, p. 492).

Kojève confere à sua posição a denominação de "ontologia dualista", pois nela o ser não pode possuir o mesmo significado quanto à natureza e à história. O ser natural contenta-se em ser o que é; nele, o ser é permanência, perpetuação da identidade, fim e começo são estados idênticos. Não há acontecimentos porque nada se submete a nenhum tipo de ação; a natureza não produz o novo, ela simplesmente se reproduz. Permanecer no espaço do mesmo significa manter-se preso a um estado natural. Em oposição a tudo isso, situa-se o ser histórico, definido pela negatividade da ação desejante que se revela tão somente no ser humano e que possui a capacidade de estabelecer uma relação privilegiada com o nada. À ação verdadeiramente humana cabe a produção dos acontecimentos, a introdução do novo no mundo de forma que, no plano histórico da vida, assistimos ao reinado da diferença: o presente jamais poderá ser igual ao passado. O ser histórico quer-se diferente de si mesmo. Temos, assim, uma realidade bipartida de modo essencialmente maniqueísta: "O mundo (no sentido de uma totalidade daquilo que é) possuiria então duas partes. Na parte natural, as coisas são como são e o devir é cíclico. Na parte histórica, nada permanece como é, nenhuma identidade se mantém" (Descombes, 1979, p. 48).

Descombes empreende uma crítica à filosofia concreta que se desdobra em três vertentes: crítica à justaposição da luta e do trabalho, crítica à pertinência da expressão "ontologia dualista", crítica quanto ao valor filosófico da leitura de Kojève.

Para esse autor, a conjunção luta/trabalho na dialética do senhor e do escravo constitui uma infértil justaposição incapaz de produzir um verdadeiro conceito porque, sob o fio da navalha, nenhum dos dois termos envolvidos representa por si mesmo a necessária e requisitada convergência da destruição e da criação: a negação pertence totalmente à guerra e a criação pertence totalmente ao trabalho, os dois aspectos que, segundo Kojève, definem a ação humana não se interpenetram, afinal.

"A guerra é uma pura e simples destruição, e, enquanto tal, não produz absolutamente nada (se há um escravo é porque o vencedor pôs fim à guerra, deixando a vida salva ao vencido). (...) Por seu turno, o trabalho é mesmo uma produção, mas que não possui nada de uma negação radical: o trabalho útil é sempre uma utilização dos recursos existentes, uma transformação da situação a partir de uma idéia pré-concebida (isto é, dada antes da ação), não há jamais uma nadificação [anéantissement]." (Descombes, 1979, p. 47)

A crítica à expressão "ontologia dualista" parte da fábula do anel de ouro, usada por Kojève como ilustração de sua filosofia. Ao se tomar a existência de um anel de ouro, percebe-se que o furo lhe é tão essencial quanto o material de que é feito o arco; sem o ouro, o orifício não seria um anel e, da mesma forma, sem o furo, o ouro também não bastaria para dar existência ao anel. No entanto, o ser do ouro e o ser do furo não possuem o mesmo significado. Enquanto o ouro continua existindo fora da forma anel, não se pode dizer o mesmo do furo: "O furo é um nada que só subsiste (enquanto presença de uma ausência) graças ao ouro que o rodeia" (Kojève, 1947, p. 49). Nesse apólogo, o ouro representa o ser (a natureza), enquanto o furo representa o nada (a ação humana) e o anel de ouro como um todo representa o mundo, a conjunção dialética da natureza e da história, do mesmo e do outro. Assim, usar a expressão "ontologia dualista" para expressar o(s) sentido(s) do ser na filosofia de Kojève constitui um equívoco porque, em última análise, o ser se situa totalmente do lado do que é idêntico; há de um lado o ser - o ouro - e do outro o nada - o orifício: "Por conseqüência, a 'ontologia dualista' não é de forma alguma dualista: é finalmente admitido que o ser deve ser definido pela identidade" (Descombes, 1979, p. 49).

Ao definir o ser pela identidade, o trabalho da filosofia de Kojève dever-se-ia voltar, segundo Descombes, para a explicação de como seria possível conceber que uma negatividade pudesse surgir a partir dessa posição primeira que afirma o ser como aquilo que permanece idêntico. De uma assertiva que dispõe "eu = eu", como seria possível deduzir o "não-eu"? Para Descombes, Kojève não teria conseguido direcionar o poder de seu raciocínio dialético para a resolução desse problema crucial em qualquer tentativa de raciocínio filosófico; tudo o que ele teria alcançado seria meramente justapor a identidade e a diferença sem elaborar a descrição de como uma pode se metamorfosear na outra; daí sua conclusão: "Isto nos autoriza a falar de um fracasso da dialéitca antropológica (da humanização do nada) em se constituir como filosofia" (Descombes, 1979, p. 53). Kojève também teria ignorado o problema da possibilidade do conhecimento. Ao afirmar que o sujeito só existe para o objeto (Sujet-connaîssant-l'objet) e que o objeto só existe para o sujeito (Objet-connu-par-le-sujet), Kojève pretende ter resolvido a questão do acesso do homem ao conhecimento da realidade, quando não fez mais do que "passar por cima" daquilo que era preciso explicar - o fato de que a realidade seja algo sobre o que possamos falar:

"Aquilo que, em todas as filosofias, continua sendo o problema mais árduo, a dificuldade mais digna de ser meditada, é aqui descartada por meio de um gracejo. Porque o difícil não é mostrar que todo objeto reclama um sujeito, mas que todo real é um real de que se fala, quer dizer, um objeto. Seria preciso engendrar a relação de conhecimento ela mesma: mas a solução kojèviana não engendra absolutamente nada e consiste em ignorar o problema" (Descombes, 1979, p. 62).

Kojève realiza, então, uma leitura antropologizante da Fenomenologia do Espírito, transformando o aparecimento da consciência de si (aí descrito) numa explicação da constituição do indivíduo humano, histórico e concreto; procura humanizar o espírito hegeliano: "(...) o sujeito enunciador do discurso filosófico é, para ele, idêntico ao indivíduo empírico (...)" (Descombes, 1979, p. 60/1). Já tomado por uma influência marxista, ele "(...) privilegia uma dialética da práxis em detrimento de uma dialética das consciências" (Roudinesco, 1986/1988, p. 157) e interpreta a história como uma luta de morte pelo reconhecimento entendida como a própria luta de classes. Com isso, o idealismo absoluto de Hegel voltado para a questão da auto-realização da razão se transforma numa filosofia concreta e, como o expressa Descombes, a austeridade da Fenomenologia do Espírito se converte numa espécie de "folhetim filosófico", traduzindo um discurso propriamente filosófico numa narrativa dramática2 2 Especialistas no estudo de Hegel costumam, segundo Macey (1988), entender a leitura que Kojève empreendeu da Fenomenologia do Espírito como uma produção "excêntrica" ou, na melhor das hipóteses, "idiossincrática". .

Com a leitura kojèviana da Fenomenologia, assistimos ao primeiro passo de um caminho percorrido supostamente sem problemas entre uma reflexão filosófica sobre o Espírito (Hegel) e um pensamento que pertence a um nível bem diferente ao partir de outras questões e que se configura como uma reflexão clínica (Lacan). Essa passagem é inicialmente permitida por Kojève quando traduz a dialética hegeliana numa teoria não-psicológica da constituição do sujeito. Se dessa forma encontra-se efetuado um primeiro deslocamento, Lacan será o autor do segundo ao transformar um desejo adjetivado por Kojève de consciente em desejo inconsciente, objeto da psicanálise. Dito de outra forma, é na esteira do alargamento operado pela filosofia concreta sobre a Begierde hegeliana ao defini-la como "a revelação de um vazio", "a presença da ausência de uma realidade" que Lacan termina por desconsiderar a distância existente entre esse vocábulo e o Wunsch freudiano deslizando indistintamente entre um e outro.

Mas não é sobre a questão do desejo inconsciente que recai o interesse da presente análise. Ela se restringe a averiguar a influência de Kojève sobre Lacan especificamente quanto à produção de sua primeira teoria do imaginário, período em que a própria noção de inconsciente era rechaçada como "impensável" ou "inerte" (Lacan, 1946/1966).

O quadro formatado por essa teoria desenhado em torno da noção de estágio do espelho consiste em um ensaio de construção de uma ciência psicológica concreta que almeja dar conta da constituição positiva do sujeito e que foge a qualquer tipo de perspectiva organicista ou individualista. As premissas desse projeto, que já se encontravam esboçadas em 1932 na tese de psiquiatria na qual Lacan buscava uma ordem de determinação concreta para a personalidade, conduziram à eleição da imago como conceito principal, aquele capaz de conferir à determinação psíquica um caráter científico; diz o autor: "(...) para definir a causalidade psíquica, tentarei (...) apreender o modo de forma e de ação que fixa as determinações desse drama, na medida em que ele me parece identificável cientificamente com o conceito de imago" (1946/1966, p. 177). Na imago, ele encontrou o meio para teorizar o surgimento do indivíduo mediante o outro, fazendo da operação de identificação o instrumento de objetivação do ser humano: "A história do sujeito desenvolve-se numa série mais ou menos típica de identificações ideais que representam os mais puros dentre os fenômenos psíquicos no que eles revelam essencialmente a função da imago" (Lacan, 1946/1966, p. 178).

A idéia central da teoria do imaginário é, portanto, a de que as imagens exercem uma função formadora sobre o sujeito e o efeito primeiro dessa formação é o sistema do eu. Como conseqüência de sua origem na alteridade, temos que o eu não poderá ser senão o lugar da alienação e da ilusão. Essencialmente paranóico, o eu é o engodo sintomático a afastar o adjetivo "autêntico" de tudo o que se relacione às características da personalidade e do conhecimento humano ao ponto de a própria psicanálise ser definida como um processo equivalente a "(...) induzir no sujeito uma paranóia dirigida" (Lacan, 1948/1966, p. 109). Sendo o eu valorizado negativamente pela insígnia do delírio, isso não significa, contudo, que as produções imaginárias sejam qualificadas de irreais. Bem ao contrário, é exatamente por esse processo de identificação ideal que é entendida a própria construção da realidade, a qual não consiste, por conseguinte, em um dado natural.

Com Lacan, a "concepção terrorista da história"3 3 Essa é uma adjetivação formulada por Descombes. presente em Kojève converte-se numa concepção traumática da constituição do sujeito. Essa conversão será aqui estudada segundo três segmentos: a) o que Lacan retoma de Kojève, b) o que Lacan não pode retomar de Kojève, c) a influência da filosofia concreta na transição do imaginário ao simbólico.

a) O que Lacan retoma de Kojève

A afinidade entre esses dois autores começa já no ponto de partida que cada um deles toma para o desenvolvimento de suas idéias. Com Kojève vimos que, somente numa situação social, a consciência de si (o homem, no caso) pode vir a surgir e, para Lacan, de acordo com seu artigo sobre os complexos familiares de 1938, se é no seio da família que o sujeito pode se constituir, isso deve ser pensado a partir de uma perspectiva sociológica. Nos dois casos, um encontro traumático com o outro ("luta por reconhecimento" ou "ciúme, arquétipo dos sentimentos sociais" - este, um dos subtítulos do artigo de Lacan) é o motivo inicial de todos os acontecimentos. Por causa dessa negatividade no encontro com o outro, da "luta de puro prestígio"4 4 Essa é uma expressão proveniente de Kojève extremamente retomada por Lacan e que, de acordo com Macey (1988), não figura nos textos de Hegel. que conduz, na dialética do senhor e do escravo, à negação do ser de um dos sujeitos envolvidos, é que se torna possível, para Lacan, construir a tese de que a agressividade é uma conseqüência compulsória da identificação. É ele mesmo quem afirma em A agressividade em psicanálise, obscurecendo a real fonte de suas inspirações, que Hegel forneceu "(...) a teoria definitiva da função própria da agressividade na ontologia humana (...)" (Lacan, 1948/1966, p. 121) e, em Formulações sobre a causalidade psíquica, que teria encontrado, também em Hegel, uma fórmula geral da loucura aí definida como uma estase do ser na dialética do desenvolvimento humano operada por uma identificação ideal (Lacan, 1946/1966, p. 172). A maneira como Lacan pensa a formação do eu - identificação agressiva e alienante com o outro - está profundamente arraigada na Fenomenologia do Espírito tal como lida por Kojéve e o próprio Lacan ratifica esta arqueologia ao dizer em Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinug" de Freud que "(...) a dialética que sustenta nossa experiência, situando-se no nível mais envolvente da eficácia do sujeito, obriga-nos a compreender o eu, de ponta a ponta, no movimento de alienação progressiva em que se constitui a consciência de si na fenomenologia de Hegel" (Lacan, 1954/1966, p. 374). Assim, o que Lacan encontra em Kojève, num primeiro momento, é um balizamento filosófico para sua necessidade de conferir ao sujeito uma origem na realidade social para além da conaturalidade manifesta no comportamento animal - no vocabulário kojèviano, isso pode ser traduzido por: origem da consciência de si (instância da subjetividade) para além do sentimento de si (instância da objetividade).

Essa interface entre subjetividade e objetividade que conduz a uma idéia problematizada da realidade em Kojève, apesar de não conduzir a uma filosofia do conhecimento, pode ser projetada ponto a ponto no anti-realismo radical de Lacan. Vejamos como Kojève sintetiza a relação entre sujeito e objeto em sua filosofia:

"Tomados isoladamente, Sujeito e Objeto são abstrações (...). O que existe na realidade - no momento em que se trata da Realidade-da-qual-se-fala; e visto que falamos de fato da realidade, só pode se tratar para nós de uma Realidade-da-qual-se-fala; digo, o que existe na realidade é o Sujeito-conhecendo-o-objeto ou, o que é a mesma coisa, o Objeto-conhecido-pelo-sujeito" (Kojève, 1947, p. 449).

Se lembramos da convergência, em Lacan, dos processos constitutivos do sujeito e da realidade, da simultaneidade edipiana da repressão da sexualidade e da sublimação da realidade (Lacan, 1946/1966, p.172), e da formação do eu como fenômeno essencialmente paranóico (Lacan, 1938), percebemos o quanto lhe vai ao encontro essa elaboração kojèviana a respeito do movimento entre subjetividade e objetividade. Ainda mais que, como aponta Simanke (1997), enunciar a origem irracional do racional - ou seja, preconizar a necessidade de uma passagem da razão pela loucura - reforça a designação da psicose como lugar de expressão da verdade do sujeito.

Que a história seja a superação da natureza por meio da ação de um desejo que é pura negatividade diz muito do que Lacan pensa sobre a relação do homem com a biologia, especialmente sobre a forma como essa relação será categorizada sob um discurso da falta, princípio do desejo humano. A distância existente entre natureza e história na filosofia concreta possui a mesma medida daquela que Lacan pensa haver entre a biologia e o processo de humanização e, nos dois casos, o desejo é o pivô de uma superação para a qual o dado natural não passa do alvo de uma ação negadora. A propósito do complexo de desmame descrito em 1938, por exemplo, é a especificidade do desejo da criança em não poder satisfazer-se sozinha - pois se pudesse, seu comportamento não ultrapassaria o nível da conaturalidade animal, ou seja, na terminologia kojèviana, seu eu seria um "eu-coisista" - que suscita toda a dialética do desenvolvimento psíquico. Em vista disso, é possível afirmar que Lacan deve à dialética de Kojève e não a Freud o fato de ter conferido ao desejo o lugar central de sua teoria, afinal era o filósofo quem afirmava: "É no e por, ou melhor ainda, enquanto 'seu' Desejo que o homem se constitui e se revela - a si mesmo e aos outros - como um Eu, como o Eu essencialmente diferente do, e radicalmente oposto ao não-Eu. O Eu (humano) é o Eu de um - ou do - Desejo." (Kojève, 1947, p. 11)

O projeto lacaniano da teoria do imaginário encontra, então, na filosofia de Kojève a satisfação de suas premissas inaugurais: que possa ser pensada uma determinação antropológica para a constituição do sujeito ao mesmo tempo concreta e oposta ao realismo5 5 A influência de Kojève em Lacan costuma também ser apontada quanto ao estilo de ensino, nos dois casos fundamentado numa transmissão oral que procurava, em tese, retomar (ou reinventar) o sentido de textos considerados obsoletos. Como analisa Simanke: "(...) [Lacan] teria tentado fazer com Freud, dos anos 50 em diante, mais ou menos o que Kojève fazia com Hegel nos anos 30, isto é, traduzir uma doutrina julgada ultrapassada, conservadora ou, pelo mesmo, restrita a certos círculos institucionais, em termos que lhe permitissem alcançar a imaginação teórica de sua geração, trazendo-a assim para o primeiro plano do debate intelectual que lhe era contemporâneo." (1997, p. 348) .

Mas existe um ponto da filosofia concreta que, por um lado, apresenta-se útil a Lacan e, por outro, causa-lhe problemas. Trata-se do fato de Kojève ressaltar, para o sujeito, características de autonomia e de atividade, haja em vista a centralidade do conceito de ação em seu pensamento. Se propostas que visem à abordagem do que se passa num tratamento clínico devem considerar esse aspecto ativo da subjetividade, ao menos as que têm preocupação justamente com o sentido das formações subjetivas, como é o caso da proposta lacaniana - pois é o sujeito quem, diante da angústia, procura o analista, é ele quem conta sua própria história, é ele o "agente das significações" (Simanke, 1997) e, se o tratamento se propõe alguma eficácia, esta só pode se revelar do lado das reações subjetivas -, então a referência à filosofia de Kojève pode servir de solo para a garantia desse espaço. É esse o motivo pelo qual a Introdução à leitura de Hegel pode ser considerada o programa oficial da teoria lacaniana do sujeito.

b) O que Lacan não pode retomar de Kojève

No entanto - e isso será um conflito presente no projeto lacaniano em todas as suas fases -, o que Lacan procura fundamentar é uma determinação objetiva para a subjetividade que se traduz, à época da construção da teoria do imaginário, em ambições de cientificidade para a psicologia e, portanto, essa ênfase na atividade, na autonomia do sujeito terá que ser amenizada. De fato, as ambições teóricas de Lacan exigem simultaneamente o estabelecimento de uma determinação não reducionista e concreta para o sujeito e a preservação de um espaço para sua atividade. O conflito difícil de resolver entre esses dois pólos é o que, em última instância, determina o andar do pensamento lacaniano - suas viradas, seus momentos de substituição ou de justaposição dos quadros referenciais.

Enquanto o sujeito lacaniano sofre de uma impotência e de uma falta essenciais, o kojèviano - apesar de possuir origem num condicionamento social, no encontro com a alteridade - é o sujeito autônomo de uma ação histórica que liberta mediante a negação do dado natural. O lugar privilegiado que a ação humana possui na ontologia de Kojève - é ela quem possui a capacidade de introduzir o novo no mundo, determinando o curso dos acontecimentos - não pode bem se encaixar num projeto que, desde cedo, manifestou uma posição anti-individualista.

Assim, se a dialética do senhor e do escravo aponta finalmente para a emancipação do servo mediante o trabalho, para Lacan, uma saída com vistas à liberdade não seria uma possibilidade ao alcance da humanidade, dada sua submissão a uma ordem de determinação investida de ubiqüidade, seja ela imaginária ou simbólica.

c) A influência da filosofia concreta na transição do imaginário ao simbólico

O efeito mais importante de Kojève sobre Lacan que interessa ressaltar é o quanto as questões colocadas pela filosofia concreta, apesar de haverem contribuído fortemente para a construção das teses da teoria do imaginário - e de seu momento mais representativo, o estágio do espelho - revelarão simultaneamente os impasses próprios à mesma. O centro disso é a ontologia dualista que atribui à natureza a característica da identidade e, à história, a da diferença: "Agir na história é trabalhar para não ser tal como se é. (...) o ser significa, na natureza, a identidade, e, na história, a diferença. A coisa natural é enquanto ela é idêntica. O ator histórico é enquanto ele age, e ele age enquanto ele não cessa de ser diferente" (Descombes, 1979, p. 51). O imaginário estaria por demais ligado ao primeiro plano (identidade) para que pudesse dar conta do processo de humanização, aí entendido, nós o vimos, como um processo de criação da diferença pelo exercício da atividade negadora: "(...) a ação, a diferença, a 'negatividade-negadora' dificilmente poderiam harmonizar-se com uma teoria centrada na identidade e na passividade do reflexo especular" (Simanke, 1997, p. 371). Esse é um dos pontos que, de certa forma, começa a exigir a ultrapassagem da teoria do imaginário e prepara o caminho para o posterior diálogo de Lacan com Lévi-Strauss, o qual tem início evidenciado em 1953 com as conferências O Mito Individual do Neurótico e Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Diante disso, será preciso começar a privilegiar o simbólico: por ser o registro da diferença, ele fornecerá as condições para a superação de alguns dos impasses do imaginário. A leitura da antropologia estrutural, apesar de fornecer os subsídios para a construção de uma teoria do simbólico, fará emergir uma contradição com o ativismo reclamado por Kojève para o sujeito. Afinal, que a estrutura seja declarada a instância última de determinação de todos os fatos da subjetividade não será uma sentença de fácil convivência com a necessária consideração de um espaço para a atividade do sujeito. Além disso, Kojève centraliza o processo de humanização na perspectiva do tempo e não na do espaço, como o faz a teoria do imaginário (Simanke, 1997).

Assim, a construção da teoria lacaniana do simbólico possuirá dois pilares que irão de encontro um ao outro (Simanke, 1997): enquanto Kojève, ao enfatizar a atividade do homem, fornecerá as condições para o lugar do sentido em seu programa, Lévi-Strauss, com sua teorização a respeito da dependência do sujeito com relação à estrutura (Levi-Strauss, 1950), conferirá elementos para o preenchimento dos critérios de cientificidade.

É possível dizer que o significado epistemológico da influência de Kojève sobre a teoria lacaniana do imaginário é o fornecimento de uma filosofia dialética da gênese social do sujeito no encontro agressivo com o outro e na negação da natureza, filosofia capaz de sustentar um discurso que, para ser concreto, não precisa aproximar-se do realismo e que, portanto, satisfaz as exigências originais do pensamento de Lacan. Essa visada dialética é então transposta para a especificidade da clínica e o processo psicanalítico passa a ser entendido, a partir desse ponto, como um conjunto de aproximações sucessivas da verdade do desejo que é a de ser o desejo de um outro, o desejo por reconhecimento (Lacan, 1951/1966). Mas, como vimos acima, a filosofia concreta, na mesma medida em que fecunda o pensamento do psicanalista, também o força, a partir de sua coerência interna, a buscar novos equacionamentos, tendo assim exercido uma função considerável no encaminhamento de Lacan na direção da afirmação do simbólico como registro a ser enfatizado no discurso sobre o ser humano.

Artigo recebido para publicação em 09/2002; aceito em 11/2002

  • Descombes, V. (1979). Le même et l'autre - quarante-cinq ans de philosophie française (1933-1978) Paris: Cambridge University Press e Les Editions de Minuit.
  • Kojève, A. (1947). Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard. 6.ed.
  • Lacan, J. (1938). La famille. In: Encyclopédie Française. Vol VIII, La vie mentale. Paris: Larousse.
  • Lacan, J. (1946/1966). Propos sur la causalité psychique. In: Écrits. Paris: Seuil.
  • Lacan, J. (1948/1966). L'agressivité en psychanalyse. In: Écrits. Paris: Seuil.
  • Lacan, J. (1951/1966). Intervention sur le transfert. In: Écrits. Paris: Seuil.
  • Lacan, J.(1954/1966). Introduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la "Verneinung" de Freud. In: Écrits. Paris: Seuil.
  • Lévi-Strauss, C. (1950). Introdução à obra de Marcel Mauss. [1950] Em E.P. Coelho (org.), Estruturalismo - antologia de textos teóricos São Paulo: Martins Fontes
  • Macey, D. (1988). Lacan in contexts Nova York: Verso.
  • Roudinesco, E. (1986/1988). História da psicanálise na França. A batalha dos cem anos Volume 2: 1925 - 1985. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
  • Simanke, R.T. (1997). Composição e estilo da metapsicologia lacaniana: os anos de formação (1932-1953). Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Endereço para correspondência:
    Lea Silveira Sales
    Rua Rafael de Abreu Sampaio Vidal, 2729, Ap. 64, Tijuco
    São Carlos, SP, Cep 13566-220
    E-mail:
  • 1
    Talvez ao menos até o período aproximadamente circunscrito pelo texto
    Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano de 1960, quando já se torna possível indagar a existência de uma influência mais direta de Hegel sobre Lacan.
  • 2
    Especialistas no estudo de Hegel costumam, segundo Macey (1988), entender a leitura que Kojève empreendeu da
    Fenomenologia do Espírito como uma produção "excêntrica" ou, na melhor das hipóteses, "idiossincrática".
  • 3
    Essa é uma adjetivação formulada por Descombes.
  • 4
    Essa é uma expressão proveniente de Kojève extremamente retomada por Lacan e que, de acordo com Macey (1988), não figura nos textos de Hegel.
  • 5
    A influência de Kojève em Lacan costuma também ser apontada quanto ao estilo de ensino, nos dois casos fundamentado numa transmissão oral que procurava, em tese, retomar (ou reinventar) o sentido de textos considerados obsoletos. Como analisa Simanke: "(...) [Lacan] teria tentado fazer com Freud, dos anos 50 em diante, mais ou menos o que Kojève fazia com Hegel nos anos 30, isto é, traduzir uma doutrina julgada ultrapassada, conservadora ou, pelo mesmo, restrita a certos círculos institucionais, em termos que lhe permitissem alcançar a imaginação teórica de sua geração, trazendo-a assim para o primeiro plano do debate intelectual que lhe era contemporâneo." (1997, p. 348)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2002
    • Recebido
      Set 2002
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