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Prevalência de maus-tratos em crianças de 1ª a 4ª série da cidade de Ribeirão Preto-SP

Prevalence of maltreatment in children enrolled in 1st to 4th grades in Ribeirão Preto-SP

Prevalencia de males tratos en niños del 1º al 4º grado de la ciudad de Ribeirão Preto-SP

Resumos

O presente estudo buscou mensurar a prevalência de maus-tratos em crianças matriculadas de 1ª a 4ª série em escolas da rede pública e particular da cidade de Ribeirão Preto-SP, Brasil, a partir de informações do setor da educação. A investigação adotou uma abordagem descritiva, de caráter epidemiológico. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a Cartilha Epidemiológica, aplicada junto aos professores para obter informações sobre o número e as características de casos suspeitos de maus-tratos presentes em sua sala de aula. A amostra aleatória e estratificada foi composta por 151 professores responsáveis por 3.885 crianças. A prevalência obtida foi de 3,9% e as categorias de maus-tratos mais freqüentes foram: Maltrato Emocional, Abandono Emocional e Falta de Controle Parental. A prevalência oficial para a mesma faixa etária foi de 0,36% confirmando as indicações da literatura quanto ao fato de os dados oficiais serem somente a ponta do iceberg.

Abuso da criança; Educação; Fatores de risco; Prevenção; Professores


This study aimed to estimate the prevalence of maltreatment in children, enrolled in 1st to 4th grades in Public and Private schools in Ribeirão Preto-SP, Brazil, using information from the field of education. This is a descriptive study with epidemiological framework. Teachers were interviewed through the instrument Cartilha Epidemiológica (Epidemiological Booklet). It collected information on the number and characteristics of maltreated children attending these teachers' classes. An epidemiological descriptive approach was used to analyze data and 151 teachers, who were responsible for 3,885 children, answered the instrument. The results appointed a prevalence of 3.9%. The most frequent types of child maltreatment were: Emotional Maltreatment, Emotional Abandonment and Lack of Parental Supervision. Official data indicates a prevalence of 0.36%, which is in agreement with literature suggestions that official data report just the tip of iceberg.

Child abuse; Education; Risk factors; Prevention; Teachers


El actual estudio se propuso evaluar la prevalencia de los malos tratos en niños matriculados del 1º al 4º grado de escuelas públicas y particulares en la ciudad de Ribeirão Preto-SP, Brasil, partir de informaciones del sector educativo. La investigación adoptó un abordaje descriptivo, de carácter epidemiológico. El instrumento utilizado para la colecta de datos fue la Cartilha Epidemiológica (Cartilla Epidemiológica), que fue aplicada a los profesores para obtener informaciones de número y características de acontecimientos de malos tratos conocidos en sus clases. La muestra aleatoria y estratificada fue compuesta por 151 profesores responsables por 3.885 niños. La prevalencia obtenida fue de 3,9% y los tipos de malos tratos más frecuentes fueron: Maltrato emocional, Abandono emocional y Falta de control de los padres. La prevalencia oficial para la misma faja de edad fue de 0,36% confirmando las indicaciones de la literatura cuanto al hecho de los datos oficiales sean solamente la punta de un iceberg.

Abuso de niños; Educación; Factores de riezgo; Prevención; Profesores


PESQUISAS EMPÍRICAS

Prevalência de maus-tratos em crianças de 1ª a 4ª série da cidade de Ribeirão Preto-SP

Prevalence of maltreatment in children enrolled in 1st to 4th grades in Ribeirão Preto-SP

Prevalencia de males tratos en niños del 1º al 4º grado de la ciudad de Ribeirão Preto-SP

Juliana Martins Faleiros; Marina Rezende Bazon

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Profa. Dra. Marina Rezende Bazon. Departamento de Psicologia e Educação. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Universidade de São Paulo. Avenida Bandeirantes, 3900. Monte Alegre. CEP 14040-901. Ribeirão Preto-SP, Brasil. E-mail: mbazon@ffclrp.usp.br

RESUMO

O presente estudo buscou mensurar a prevalência de maus-tratos em crianças matriculadas de 1ª a 4ª série em escolas da rede pública e particular da cidade de Ribeirão Preto-SP, Brasil, a partir de informações do setor da educação. A investigação adotou uma abordagem descritiva, de caráter epidemiológico. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a Cartilha Epidemiológica, aplicada junto aos professores para obter informações sobre o número e as características de casos suspeitos de maus-tratos presentes em sua sala de aula. A amostra aleatória e estratificada foi composta por 151 professores responsáveis por 3.885 crianças. A prevalência obtida foi de 3,9% e as categorias de maus-tratos mais freqüentes foram: Maltrato Emocional, Abandono Emocional e Falta de Controle Parental. A prevalência oficial para a mesma faixa etária foi de 0,36% confirmando as indicações da literatura quanto ao fato de os dados oficiais serem somente a ponta do iceberg.

Palavras-chave: Abuso da criança. Educação. Fatores de risco. Prevenção. Professores.

ABSTRACT

This study aimed to estimate the prevalence of maltreatment in children, enrolled in 1st to 4th grades in Public and Private schools in Ribeirão Preto-SP, Brazil, using information from the field of education. This is a descriptive study with epidemiological framework. Teachers were interviewed through the instrument Cartilha Epidemiológica (Epidemiological Booklet). It collected information on the number and characteristics of maltreated children attending these teachers' classes. An epidemiological descriptive approach was used to analyze data and 151 teachers, who were responsible for 3,885 children, answered the instrument. The results appointed a prevalence of 3.9%. The most frequent types of child maltreatment were: Emotional Maltreatment, Emotional Abandonment and Lack of Parental Supervision. Official data indicates a prevalence of 0.36%, which is in agreement with literature suggestions that official data report just the tip of iceberg.

Keywords: Child abuse. Education. Risk factors. Prevention. Teachers.

RESUMEN

El actual estudio se propuso evaluar la prevalencia de los malos tratos en niños matriculados del 1º al 4º grado de escuelas públicas y particulares en la ciudad de Ribeirão Preto-SP, Brasil, partir de informaciones del sector educativo. La investigación adoptó un abordaje descriptivo, de carácter epidemiológico. El instrumento utilizado para la colecta de datos fue la Cartilha Epidemiológica (Cartilla Epidemiológica), que fue aplicada a los profesores para obtener informaciones de número y características de acontecimientos de malos tratos conocidos en sus clases. La muestra aleatoria y estratificada fue compuesta por 151 profesores responsables por 3.885 niños. La prevalencia obtenida fue de 3,9% y los tipos de malos tratos más frecuentes fueron: Maltrato emocional, Abandono emocional y Falta de control de los padres. La prevalencia oficial para la misma faja de edad fue de 0,36% confirmando las indicaciones de la literatura cuanto al hecho de los datos oficiales sean solamente la punta de un iceberg.

Palabras clave: Abuso de niños. Educación. Factores de riezgo. Prevención. Profesores.

A importância de desenvolver pesquisas que busquem conhecer melhor a problemática dos maus-tratos na infância tem sido sublinhada nos últimos anos, devido, principalmente, às descobertas dos graves danos que provocam ao desenvolvimento da criança, em curto e longo prazo (Bringiotti, 2000; Glaser, 2000). Baixa auto-estima, perda da confiança, sérias dificuldades de aprendizagem, agressividade, agir desafiador, hiperatividade, distúrbios alimentares, sintomas depressivos, retraimento e embotamento, falta de habilidades sociais, são algumas das conseqüências em crianças em idade escolar, documentadas pela literatura (Black, Slep, & Heyman, 2001; Bringiotti, 2000; Crozier & Barth, 2005; Dubowitz, Pitts, & Black, 2004; Éthier, Lemelin, & Lacharité, 2004; Hildyard & Wolf, 2002; Horton & Cruise, 2001; Schumacher, Slep, & Heyman, 2001; Sternberg, Lamb, Guterman, & Abbot, 2006).

Além disso, o investimento em pesquisas nessa área é justificado pelo tamanho do problema, ou seja, pelo elevado número de crianças que se estima estarem vivendo essa problemática. Um levantamento realizado pelo Laboratório de Estudos da Criança (LACRI-USP), de casos notificados em serviços de proteção, abrangendo 171 municípios de 20 estados brasileiros, entre os anos de 1996 e 2003, revelou a existência de 90.698 casos (Universidade de São Paulo, 2004). Outro levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), referente a homicídios de crianças e de jovens no Brasil, entre 1980 e 2002, verificou que, para a faixa etária de zero a nove anos no Brasil, as armas de fogo aparecem como causa da morte em cerca de um terço dos casos (1.694 casos), enquanto que os dois terços restantes se associam a maus-tratos e abusos (Peres, Cárdia, & Santos, 2006).

Mesmo que apontem números brutos que podem ser considerados altos, estima-se que os levantamentos baseados em dados oficiais remetam a cifras sempre bem inferiores à realidade do problema (Bringiotti, 2000; Gonçalves & Ferreira, 2002). O estudo realizado por Matias (2004), visando estimar a prevalência de maus-tratos em crianças de zero a seis anos, na cidade de Ribeirão Preto-SP, elucida este fato de modo claro. Em seus resultados, a prevalência geral, calculada a partir de informações obtidas junto a educadores de creches e pré-escolas, foi de 8%, ao passo que a calculada a partir das informações obtidas junto aos registros dos Conselhos Tutelares foi de apenas 0,2%.

É muito provável que só cheguem aos serviços de proteção os casos considerados mais graves. Palacios, Jimenez, Oliva e Saldaña (1998) estimam que o número de casos que conhecemos oficialmente corresponda a 10% ou 20% do total de casos reais. Ochotorena (1996) fala de uma taxa de 25% a 30%, que corresponderia ao subgrupo de casos mais graves, com mais lesões do tipo físico, oriundos de famílias de estratos socioeconômicos mais desfavorecidos.

Para estimar o problema de uma forma mais próxima de sua real dimensão, a literatura científica sugere que as investigações busquem por informações junto a outras fontes que as representadas pelos serviços oficiais de proteção. Nesta direção, acredita-se que os profissionais envolvidos nos serviços de atenção direta à infância sejam uma das fontes mais fidedignas, já que estes costumam ter acesso a informações de natureza diversa, além de poderem observar diretamente determinados comportamentos, o que pode servir para um diagnóstico da situação (Lavergne, 1994).

Dentre esses profissionais, considera-se que os educadores/professores se encontram em uma posição privilegiada para identificar os casos de maus-tratos domésticos, já que têm contato diário com as crianças, na sala de aula, na hora do lanche, no intervalo e nos reforços escolares (Gaston & Sutherland, 1999), sendo capazes de reconhecer, além dos sinais físicos, os sinais comportamentais e emocionais associados e, ainda, obter alguns relatos diretos.

Comparativamente a outros países (Bringiotti, 2000; De Paul, Arruabarrena, Torres, & Muños, 1995; Hobbs, 2005; Inglès, 1995; Sage, Jiménez Sánchez, Moreno Sánchez, Delgado, & Palácios, 1995; Scher, Forde, MacQuaid, & Stein, 2004;), no Brasil são raros os estudos visando dimensionar e caracterizar a problemática dos maus-tratos infantis, a partir de outras fontes que a de informações oficiais. A maioria dos estudos nacionais (Assis, 1991; Davoli e cols., 1994; Meneghel, Giugliani, & Falceto, 1998; Polanczyk, Zavaschia, Benettic, Zenkera, & Gammerman, 2003; Soares de Moura & Reichenheim, 2005; Vagostello, Oliveira, Silva, Donofrio, & Moreno, 2003), restringe-se a mensurar um único tipo de maltrato, geralmente no contexto de um programa ou serviço específicos, sendo que alguns se caracterizam como investigações sobre a vitimização, empregando o método retrospectivo.

Assim, buscando contribuir para a produção de um conhecimento mais consistente a respeito da dimensão do problema dos maus-tratos de crianças e de suas características na população infantil, de forma a ultrapassar o conhecimento produzido pelo tratamento das informações retidas nos serviços oficiais de proteção, desenvolveu-se o trabalho de investigação aqui relatado, com o objetivo geral de mensurar sua prevalência, no ano de 2005, para a população de crianças matriculadas de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental de escolas públicas e privadas na cidade de Ribeirão Preto-SP, e caracterizá-lo em termos de distribuição por modalidade, sexo, faixa etária e tipo de estabelecimento educacional, a partir das informações obtidas junto ao corpo docente.

Método

Participantes

Participaram do estudo 151 professores, diretamente responsáveis por turmas de crianças freqüentando de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental, de 19 escolas da cidade de Ribeirão Preto, sendo dez da rede pública e nove da particular (totalizando 16% dos estabelecimentos oficiais de educação fundamental, de 1ª a 4ª série). As escolas foram selecionadas por sorteio, numa razão de 10%, para que se obtivesse uma amostra aleatória estratificada e representativa da população de estudantes matriculados nas respectivas séries.

Os 151 professores participantes representaram um total de 3.885 crianças, correspondente a 10% das crianças da mesma faixa etária, residentes na cidade.

Instrumentos

O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a Cartilha Epidemiológica (Bringiotti, 2000), traduzida e adaptada por Matias e Bazon (2005) e aperfeiçoada por Faleiros e Bazon (2005). A Cartilha é um instrumento de auto-aplicação composta pela descrição dos objetivos da pesquisa, instruções para seu preenchimento com as definições dos diferentes tipos de maus-tratos. Logo abaixo, há um quadro subdividido em: (a) identificação da criança; (b) tipo de maltrato; (c) características da criança; (d) características da família.

As definições de maus-tratos utilizadas pela Cartilha formam um sistema de classificação considerado abrangente, por lidar com categorias representativas de situações recorrentes (Bringiotti, 2000). As definições e indicadores de maus-tratos utilizados nesse estudo são apresentados abaixo:

(1) Maltrato físico: entendido como qualquer ação não acidental por parte dos pais ou cuidadores que provoque dano físico ou enfermidade ou coloque a criança em risco de vida através de golpes, hematomas, queimaduras, fraturas, inclusive de crânio, feridas ou machucados, mordidas humanas, cortes, lesões internas, asfixia ou afogamento;

(2) Abandono físico: situações em que as necessidades físicas básicas da criança, que envolvem alimentação, higiene, vestimenta, proteção e vigilância em situações potencialmente perigosas, ameaçando sua segurança, ou em que há demanda de cuidados médicos que não são atendidas temporal ou permanentemente, por nenhum membro do grupo em que a criança vive;

(3) Maltrato emocional: situações em que ocorre hostilidade verbal crônica, insultos, depreciação, crítica e ameaça de abandono, intimidação, condutas ambivalentes e imprevisíveis, situações ambíguas na comunicação (dupla mensagem), isolamento, proibição de participar em atividades com os pares, desvalorização da criança, bloqueio das iniciativas de interação infantil por qualquer membro adulto do grupo familiar (rechaço das iniciativas de apego, exclusão das atividades familiares, negação de autonomia);

(4) Abandono emocional: situações em que ocorre falta persistente de respostas às expressões emocionais e condutas de proximidade e interação iniciadas pela criança, ausência de iniciativa de interação e contato por parte de alguma figura adulta estável, renúncia por parte dos adultos em reassumir as responsabilidades parentais em todos os aspectos;

(5) Abuso sexual: todo ato, jogo ou relação sexual, heterossexual ou homossexual, envolvendo uma ou mais crianças/adolescentes e um ou mais adultos — familiar ou tutor, com a finalidade exclusiva de estimular prazer no(s) adulto(s);

(6) Trabalho infantil: obrigação imposta às crianças pelos adultos responsáveis de realizar continuamente trabalhos, domésticos ou não, excedendo o limite do habitual, que deveriam ser realizados pelos adultos e que interferem nas atividades e necessidade sociais e escolares das crianças, com o objetivo de obter um benefício econômico para os pais ou para a estrutura familiar;

(7) Mendicidade: utilização esporádica ou habitual da criança para mendigar com o objetivo de contribuir com a economia familiar ou casos em que, sem ser utilizado por seus pais/cuidadores, a criança exerce a mendicidade por iniciativa própria de forma habitual ou esporádica;

(8) Corrupção: facilitação ou reforço pelos adultos responsáveis de condutas anti-sociais ou desviantes como, por exemplo, premiando a criança por furtar/roubar, facilitando o seu consumo de drogas e/ou álcool, iniciando a criança em contatos sexuais com outras crianças e/ou adultos, ou na prostituição, enfim, impedindo uma integração social convencional;

(9) Participação da criança em ações delituosas: utilização da criança pelos adultos responsáveis, como ajuda, para a realização de ações delituosas (por exemplo, transporte de objetos roubados ou drogas, etc);

(10) Falta de controle parental: demonstração de total incapacidade dos adultos responsáveis para controlar e manejar o comportamento da criança; ignoram o lugar onde a criança está e com quem está; não estabelecem (ou não conseguem estabelecer) horários para a criança cumprir, as regras combinadas não são respeitadas, consideram que "não podem mais com o filho, tão difícil...", mas não solicitam ajuda externa.

Para o preenchimento do instrumento, solicita-se ao professor que pense nas crianças com as quais convive em sua sala de aula, no ano corrente, e que assinale cada caso de maltrato que observa, tenha ele certeza ou somente suspeita. Assim, o professor indica na Cartilha o sexo e a idade da criança, se já recebe atenção de algum órgão de proteção, se tem certeza ou somente suspeita, o(s) tipo(s) de mau(s)-trato(s) sofridos, as características comportamentais/emocionais que ele observa nessas crianças, e também os fatores de risco presentes nas famílias de que tenha conhecimento.

O sigilo relativo à identidade de todos os envolvidos, principalmente da criança assinalada, é um compromisso assumido pelo pesquisador, sendo este garantido de forma expressa, tanto no instrumento como no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, oferecido aos participantes.

Procedimento

A partir da autorização para a realização da pesquisa em cada escola sorteada, procurou-se estabelecer contato com os professores, convidando-os a colaborar com a pesquisa. Aos que se prontificaram, foi oferecido pela pesquisadora, um treinamento visando explanar sobre o tema e esclarecer dúvidas quanto aos objetivos da pesquisa e à forma de preencher a Cartilha.

Em 74% das escolas, o treino oferecido foi realizado em grupo. Em 10% das escolas a aplicação da Cartilha foi individual e em 16% das escolas não foi possível realizar o treino diretamente com os professores, tendo este sido realizado com um representante da escola (geralmente a coordenadora pedagógica), que se responsabilizava em reproduzi-lo aos professores e coletar os dados.

Para a análise das informações colhidas foram utilizados métodos quantitativo-descritivos, procedendo-se ao cálculo de freqüências e porcentagens. A prevalência global, por série e por modalidades de maus-tratos foi obtida através do cálculo de proporções.

Resultados

Segundo as informações oferecidas pelos professores, havia 152 casos de maus-tratos em meio a 3.885 crianças, o que equivale a uma prevalência de 3,9%, estimando-se que para a população matriculada nas escolas de Ribeirão Preto, entre a 1ª e a 4ª séries, esta se situe entre 3,3% e 4,6%, num intervalo de confiança de 95%.

Em 63% dos casos assinalados, os professores teriam certeza da ocorrência de algum tipo de maltrato, enquanto que 37% dos casos eles apenas suspeitavam de que "algo de errado" estaria acontecendo com a criança em casa.

Do total de casos assinalados pelos professores, segundo seu conhecimento, 72% não seriam casos conhecidos do sistema oficial de proteção, ou seja, não estavam recebendo qualquer forma de acompanhamento. Ainda, em 19% dos casos, os professores não tinham conhecimento se a criança recebia ou não atenção por parte de algum órgão responsável. Apenas 9% dos casos assinalados receberiam algum tipo de atenção, segundo os professores.

O "Maltrato Emocional" foi o tipo mais freqüentemente assinalado (40%), seguido pelo "Abandono Emocional" (37%) e "Falta de Controle Parental" (30%). A Figura 1 ilustra a distribuição dos tipos de maus-tratos em porcentagem.


Do total de casos assinalados, 69% seriam do sexo masculino.

No que diz respeito à distribuição de categorias de maus-tratos segundo o sexo da criança, pode-se sublinhar que as meninas sofrem mais "Abandono Emocional" (60%) e "Abandono Físico" (36%). Os tipos de maus-tratos mais freqüentes envolvendo meninos foram: "Falta de Controle Parental" (34%), "Maltrato Físico" (19%), "Ações Delituosas" (5%), "Trabalho Infantil" (5%) e "Outros" (9%), devendo-se esclarecer que "outros" se refere a situações como graves problemas de comportamentos e casos de evasão escolar. A porcentagem de "Maltrato Emocional" foi praticamente igual nos meninos (39%) e nas meninas (38%). Esses dados são ilustrados na Figura 2.


Em relação à distribuição de maus-tratos por faixa etária, verifica-se que as crianças com idade de sete anos estão vivenciando mais tipos como o "Maltrato Emocional" e "Abandono Físico". As crianças de oito anos sofrem mais o "Abandono Emocional" e "Abandono Físico" enquanto que os tipos mais freqüentes nas crianças de nove anos foram a "Falta de Controle Parental" e o "Abandono Emocional". É maior a porcentagem de "Maltrato Físico" e "Falta de Controle Parental" nas crianças com 10 anos enquanto que nas crianças com mais de 10 anos, que ainda freqüentavam a quarta série no momento do estudo, os tipos mais freqüentes foram a "Mendicidade", o "Trabalho Infantil" e "Ações Delituosas". A Figura 3 ilustra esses resultados.


No que diz respeito à prevalência por tipo de estabelecimento de ensino, obteve-se uma taxa de 5% nas escolas públicas, ao passo que nas escolas particulares a prevalência foi estimada em 2%. As categorias mais freqüentes nas escolas particulares foram: "Falta de Controle Parental" (48%), "Maltrato Emocional" (37%) e "Abandono Emocional" (37%). Nas escolas públicas foram: "Maltrato Emocional" (39%), "Abandono Emocional" (38%) e "Maltrato Físico" (32%), conforme ilustra a Figura 4.


É preciso observar que em 48% dos casos, de acordo com as observações dos professores, haveria co-ocorrência de categorias de maus-tratos para uma mesma criança. Dos casos de co-ocorrência, 28% dizia respeito à ocorrência de duas categorias simultaneamente, em 29% três categorias e em 14% quatro categorias. O restante dos casos sofria mais que quatro categorias de maus-tratos simultaneamente. As combinações mais freqüentes em casos de dupla ocorrência foram: "Abandono Emocional — Maltrato Emocional", "Abandono Físico — Abandono Emocional" e na tripla ocorrência foi: "Abandono Emocional — Abandono Físico — Maltrato Emocional".

Discussão

A prevalência de 3,9% encontrada, de acordo com a informação dos professores, denota que existe pelo menos uma criança em cada sala de aula do ensino fundamental, de 1ª a 4ª série, que está vivendo situações adversas dentro de sua família, se considerarmos que as turmas podem variar de 25 a 35 crianças.

Ademais, preocupa muito o fato de 72% dos casos relatados pelos professores não serem conhecidos pelos serviços de proteção, deixando, por isso, de receber qualquer forma de ajuda.

Nesta linha, vale destacar que a prevalência calculada a partir dos dados oficiais, obtidos junto aos Conselhos Tutelares da cidade, para a população de crianças de sete a dez anos de Ribeirão Preto (faixa etária correspondente a da amostra estudada), foi de 0,36%, o que confirma a hipótese da existência de uma grande quantidade de casos de maus-tratos desconhecidos do sistema de proteção, e de que os casos aí registrados efetivamente representam tão somente a ponta do iceberg.

Dentro disto, é preciso destacar o que já vem sendo demonstrado por outros estudos (Matias, 2004; Vagostello e cols., 2003), quanto ao descumprimento da Lei por parte da instituição educacional, no tocante à notificação de casos. Este fato indica a necessidade premente de envidar esforços no sentido de tornar o setor educacional mais sensível à necessidade da criança ter seus direitos reconhecidos e garantidos, como também propenso a desempenhar o papel institucional de garantia da proteção infantil.

Comparando a prevalência encontrada nesse estudo com a de outros desenvolvidos com metodologia equivalente, pode-se dizer que o problema brasileiro tem dimensão semelhante ao da Argentina, onde se encontrou a taxa de 3% de crianças identificadas como maltratadas no ensino fundamental, na cidade de Avellaneda (Bringiotti, 2000), mas é maior que o estimado na Espanha, onde os estudos realizados indicaram taxas variando de 0,5% a 1,5% (De Paul e cols., 1995; Inglès, 1995; Sage e cols., 1995). Ao que parece, a situação econômica, política e social que aproxima países como a Argentina e o Brasil produzem condições de vida para a população que os fazem assemelhar-se também no plano das problemáticas que atingem as crianças.

É certo, contudo, que países como a Espanha vêm, há algum tempo, investindo em ações de prevenção secundária (buscando a identificação precoce dos problemas), o que pode ter concorrido para a redução das prevalências lá estimadas (Associación Andaluza para la Defensa de la Infância y la Prevención del Maltrato - [ADIMA], 1995). É interessante notar que a prevalência encontrada no presente estudo é, contudo, metade da encontrada por Matias (2004), em seu estudo, desenvolvido com mesma metodologia, relativo às crianças de zero a seis anos de idade, matriculadas em creches e pré-escolas, na cidade de Ribeirão Preto.

É possível que este dado denote a maior vulnerabilidade pessoal e social das crianças mais novas a situações de maus-tratos, conforme indicações da literatura (Bringiotti, 2000; Connel-Carrick & Scannapieco, 2006; Horton & Cruise, 2001; Palácios e cols., 1998). Quanto mais nova a criança, maior sua dependência dos adultos (pais, família) e mais frágil sua condição de autoproteção.

Deve-se, contudo, cogitar que a diferença nas prevalências encontradas entre os dois grupos etários também pode decorrer de uma maior sensibilidade dos educadores das creches e pré-escolas à problemática, devido a possíveis diferenças nas representações concernentes à primeira e à segunda infância.

Quando comparados aos professores do ensino fundamental, os educadores de creche e pré-escola parecem adotar um estilo mais "maternal" em relação aos serviços prestados à criança, o que pode lhes conferir maior sensibilidade ao problema.

Objetivamente, é preciso também considerar que esses educadores têm contato mais próximo e de mais longa duração com as crianças, já que suas tarefas incluem situações como o banho e as refeições, sendo que a maioria das crianças passa o dia todo aos seus cuidados.

Aspectos qualitativos referentes ao processo de coleta de dados permitem dizer que esta característica que marca o trabalho em creches e pré-escolas não é percebida junto aos professores do ensino fundamental que, com algumas exceções, parecem se posicionar de forma mais distanciada de seus alunos, buscando um menor envolvimento "com a vida pessoal" de cada um. Tal atitude certamente influencia na capacidade de perceber e considerar possíveis indicadores de maus-tratos em sala de aula, o que acaba por comprometer a prevalência encontrada para essa faixa etária, normalmente atendida nas primeiras quatro séries do ensino fundamental.

Focando o problema por tipo de estabelecimento, pode-se dizer que, pelo presente estudo, a prevalência nas escolas públicas é superior a das escolas particulares (5% e 2%, respectivamente), tendo-se verificado que a diferença entre as taxas é significativa (p=0,001). Levando em conta o fato de que a escola ser pública ou privada, se associa a um mais baixo ou alto poder aquisitivo das famílias, é possível cogitar que a adversidade socioeconômica esteja associada ao incremento da vulnerabilidade das famílias aos maus-tratos.

Essa associação, contudo, deve ser tomada com parcimônia. Se por um lado, as dificuldades econômicas se constituem em fator de risco, devido ao estresse imposto às famílias, conforme documenta a literatura científica (Horton & Cruise, 2001; Tourigny e cols., 2003), por outro, não se pode desconsiderar a possibilidade de as famílias pertencentes às classes populares (e suas crianças) serem percebidas, no âmbito da educação, pelo prisma do pré-conceito que liga de modo simplista e linear pobreza e violência.

De outro modo, cumpre também dizer que, segundo nossas observações, o tema parece suscitar maior resistência nas escolas particulares, tendo-se encontrado maiores dificuldades em realizar a investigação neste contexto, com um maior número de recusas e uma expressa preocupação com a imagem negativa da escola, caso houvesse divulgação da existência de casos de maus-tratos em sua clientela, deparando-se, em algumas delas, com uma pronta negação quanto à existência de casos.

Todas estas variáveis que perpassam tanto as escolas públicas como as particulares, certamente atrapalham a capacidade de reflexão dos professores em relação aos maus-tratos e sua competência para identificá-los corretamente no âmbito da educação. Nesse sentido, embora bem posicionados, os professores necessitariam ser mais bem preparados para lidar com o tema e poder reconhecer seus indicadores, superando concepções de senso comum (Horton & Cruise, 2001).

Em relação aos tipos de maus-tratos mais freqüentemente assinalados, a negligência, representada pelas subcategorias "Abandono Emocional", "Falta de Controle Parental" e "Abandono Físico", foi a categoria mais freqüente (72% dos casos), seguida pelo "Maltrato Emocional" (39%).

Assim, nesse estudo, a negligência é a categoria predominante para faixa etária variando entre sete e dez anos, do mesmo modo que para a faixa etária entre zero e seis anos, conforme demonstram os resultados de Matias (2004).

Tratando especificamente da categoria "Falta de Controle Parental", devido a sua alta freqüência, relembrando que ela refere-se a casos em que os pais não conseguem mais exercer um controle mínimo sobre a conduta dos filhos, segundo Bringiotti (2000), esta é cada vez mais comum em todos os setores sociais, desde os mais populares, em que crianças desaparecem por vários dias de casa, como nas classes mais abastadas, em que os filhos já não informam seus passos.

Dentro disto, vale lembrar que nos estabelecimentos privados verificou-se que essa categoria foi a mais recorrente, resultado igual ao de Matias (2004), referente à educação infantil. Segundo esta autora, a maior ocorrência da "Falta de Controle Parental" nos alunos de escolas particulares pode dever-se ao fato de os educadores, por vezes, não conceberem esta categoria como uma forma de maus-tratos, porque em suas concepções a problemática implicaria necessariamente em uma intencionalidade negativa da parte dos pais (atribuição que parece estar mais claramente presente nas modalidades estudadas que na "Falta de Controle Parental"), embora esse critério, conceitualmente, não seja exigível, na medida em que se concebe os maus-tratos como:

qualquer dano físico ou psicológico não acidental contra uma criança (...), ocasionado por seus pais ou cuidadores, que ocorre como resultado de ações físicas, sexuais ou emocionais de omissão ou permissão e que ameaçam o desenvolvimento normal, tanto físico como psicológico da criança (Bringiotti, 1999, p. 45, grifo das autoras).

Nesse quadro teórico, a "Falta de controle parental", enquanto subtipo da negligência, remete a omissões da parte dos cuidadores/responsáveis que, independentemente da intencionalidade, ameaçam o desenvolvimento psicossocial das crianças envolvidas, de modo equivalente às outras formas de maus-tratos.

Todavia, a "Falta de Controle Parental", na ótica dos professores de alunos de escolas particulares, por parecer mais relacionada à falta de tempo de estar com os filhos e às interações marcadas pela indulgência, permissividades e incoerências na aplicação de regras, desconsiderando os resultados para a criança, tornaria os educadores mais confortáveis diante da problemática, facilitando, portanto, sua detecção e assinalamento (Matias, 2004).

Diferentemente, nas escolas públicas as maiores porcentagens foram para as categorias "Abandono Físico" e "Maltrato Físico", além de "Mendicidade", "Corrupção", "Ações Delituosas" e "Abuso Sexual". Assim, as crianças que freqüentam as escolas públicas são notadas pelos professores como estando permanentemente sujas, tendo alimentação e vestimenta inadequadas, passando longos períodos sozinhas, sem a supervisão de um adulto responsável. Essas crianças não teriam assistência em relação a questões escolares e teriam problemas físicos ou necessidades médicas não atendidas. Além disso, sofreriam punição física freqüentemente.

Embora se deva cogitar a possibilidade de estar-se confundindo situações de "verdadeiro" e "falso" abandono físico, em que o falso refere-se a situações em que toda a família padece da adversidade decorrente da miserabilidade, é possível dizer que a categoria "Abandono Físico" se manifesta com maior freqüência em crianças de famílias mais desfavorecidas socioeconomicamente, e são essas famílias que justamente têm seus filhos estudando nas escolas públicas (Bringiotti, 2000).

Em síntese, pode-se dizer que, majoritariamente, os responsáveis pelas crianças de escolas particulares estão com mais dificuldades em supervisionar e manejar o comportamento dos filhos, enquanto os das crianças de escolas públicas apresentam mais dificuldades para perceber e suprir adequadamente as necessidades físicas dos filhos (Matias, 2004).

No que diz respeito ao "Maltrato Emocional", no entanto, as crianças de ambos os tipos de estabelecimentos estariam sofrendo na mesma proporção os "Maus-tratos Emocionais", de acordo com os resultados. Os pais/responsáveis de ambos os segmentos estariam tendo dificuldade de suprir adequadamente as necessidades emocionais de seus filhos e empregando métodos abusivos, de natureza psicológica, para gerenciar seu comportamento ou o próprio estresse.

Nesse sentido, variáveis socioeconômicas, que nessa amostra podem estar diferenciando as famílias de alunos de escolas públicas e particulares, parecem não proteger as crianças de terem suas necessidades emocionais não atendidas, padecendo igualmente de situações em que experimentam a falta de uma interação de qualidade, com proximidade e afetividade, com uma figura adulta estável, sendo, por vezes, ameaçada ou denegrida nesta interação.

No que concerne à variação de modalidades em relação ao sexo da criança, observa-se que as meninas vivenciam mais as formas de abandono, o "Emocional" e o "Físico", ao passo que os meninos seriam mais submetidos aos "Maus-tratos Físicos" e à "Falta de Controle Parental". Nesta direção, pode-se dizer que as meninas parecem viver mais situações em que suas necessidades emocionais e físicas deixam de ser supridas pelos responsáveis, sendo que os meninos, talvez por apresentarem uma dinâmica comportamental diferente, com mais problemas de comportamento externalizados (Hinshaw, 1992), parecem desencadear e padecer de mais reações negativas de natureza física ou, quando não, de um certo desengajamento, por parte dos responsáveis, no sentido de supervisionar e socializar a criança em relação a regras e normas.

Em relação à distribuição dos tipos de maus-tratos por idade, os resultados mostram as crianças mais novas sofrendo mais as modalidades de "Abandono" (Emocional e Físico) e as mais velhas sofrendo mais maus-tratos "Físico" e "Falta de Controle Parental", sendo que tais apontamentos permitem pensar a problemática dos maus-tratos do ponto de vista desenvolvimental, a partir do qual esboça-se uma correlação entre as etapas de desenvolvimento infantil e as formas de tratamento/interação implementadas pelos responsáveis.

Dentro disso, é possível supor que as crianças mais novas, talvez pela demanda de menor intensidade, representada pelo seu comportamento social, têm suas necessidades pouco percebidas e respondidas pelos responsáveis, que se encontram pouco engajados na tarefa de cuidar/educar; com o seu crescimento e desenvolvimento, e o incremento dos desafios colocados pelo comportamento social da criança, em quantidade e complexidade, os responsáveis passam a responder no sentido de tentar um controle sobre sua conduta por meio de um posicionamento ativo, porém coercitivo, marcado pela punição corporal, e/ou "abrindo mão" de buscar esse controle, desengajando-se ainda mais da tarefa de cuidar/educar a criança (quando, então, verifica-se a "Falta de Controle Parental").

Ainda em relação às idades, chama a atenção o fato de a modalidade "ações delituosas" aparecer para as crianças mais velhas abarcadas pelo estudo, com 10 anos ou mais, freqüentando geralmente a quarta série devido a atrasos na escolarização. É também nesta faixa etária que aparece os casos de "Mendicidade" e "Trabalho Infantil", denotando que, com o crescimento, as situações de maus-tratos, pelas suas conseqüências, tendem a assumir uma face mais pública, expressando-se para fora dos limites do lar (e da própria escola).

A maior quantidade de casos do sexo masculino, no total, nesse estudo, também chama a atenção. Esse resultado pode ser em parte, um viés metodológico, uma vez que essa pesquisa foi realizada sob o ponto de vista do professor e este olhar pode ser tanto mais atento quanto mais disruptivo parecer o comportamento da criança (Hinshaw, 1992).

Especificamente em relação à modalidade "Abuso Sexual", que aparece em uma pequena porcentagem, e apenas nas escolas públicas, deve-se considerar, por um lado, o fato de haver realmente modalidades menos prevalentes que outras, mas, por outro lado, deve-se também cogitar a dificuldade dos educadores em perceber ou revelar esse tipo de maltrato devido ao forte tabu que o envolve, em sociedades como a nossa, adotando-se "inconscientemente" uma atitude de evitamento, em que se considera ser "melhor não ver e não falar" (Bringiotti, 2000).

Considerações finais

A estimativa da prevalência de maus-tratos para a população de crianças que freqüentam de 1ª a 4ª séries, de Ribeirão Preto, sua distribuição e características, constitui-se em uma importante contribuição ao conhecimento, gerando também uma série de novas perguntas, para futuras pesquisas.

Em termos metodológicos, pode-se afirmar que a Cartilha Epidemiológica mostrou-se um instrumento bastante adequado para os fins a que se propõe, orientando os professores com indicadores concretos, para o reconhecimento de casos suspeitos. Além disso, os professores não demonstraram maiores dificuldades durante seu preenchimento.

Todavia, deve-se ressalvar que, apesar de os professores terem sido capazes de reconhecer casos suspeitos de maus-tratos, oferecendo uma estimativa mais realista do problema, que a calculada a partir de dados oficiais, correspondendo à finalidade a que se destinou a pesquisa, um de seus principais limites é justamente o fato de ter-se trabalhado com informações obtidas junto a informantes secundários (os professores).

A prevalência medida de forma indireta se faz a partir de uma adequação do método epidemiológico clássico, em que a grandeza do fenômeno é avaliada indiretamente, estando a guisa de aspectos relativos à subjetividade e sensibilidade dos respondentes, o que interfere, em alguma medida, na qualidade dos dados coletados. Contudo, para tornar possível a pesquisa de um fenômeno complexo como o dos maus-tratos infantis, visando produzir avanços na área, são necessárias adaptações ou o desenvolvimento de outros métodos mais sofisticados.

Alguns resultados específicos merecem destaque. Primeiramente a confirmação da negligência como o tipo de maltrato provavelmente mais freqüente entre as crianças de sete a dez anos e de zero a seis anos (Matias, 2004), na cidade de Ribeirão Preto. Esse achado aponta para a necessidade de se prestar mais atenção à problemática da negligência, seguindo com futuras pesquisas que ampliem o conhecimento relativo a esse tipo específico que, associado a graves conseqüências para o desenvolvimento das crianças que o vivenciam (Connell-Carrick & Scannapieco, 2006; Glaser, 2000; Glaser, 2002; Hildyard & Wolf, 2002; Trocmé, Tourigny, MacLaurin, & Fallon, 2003;), parece atingir tantas famílias.

Este estudo também reafirmou apontamentos da literatura relativos à vulnerabilidade das crianças mais novas aos maus-tratos. A prevalência encontrada para a população de crianças de sete a dez anos foi a metade da prevalência encontrada para a população de crianças de zero a seis anos.

Chamam também a atenção os dados que indicam o fato de que quanto mais velhas as crianças mais o seu comportamento social apresenta-se prejudicado, o que sugere uma importante questão sobre a possível trajetória de desenvolvimento das conseqüências dos maus-tratos, em termos de estágios de vida.

Parece relevante, dessa maneira, ampliar os estudos epidemiológicos para a faixa etária da adolescência, para que se possam ter informações a respeito da prevalência e da distribuição dos maus-tratos na população de adolescentes.

Por fim, pode-se dizer que uma outra sorte de contribuição oferecida pelo presente estudo foi a de ter possibilitado a muitas escolas e professores entrarem em contato com o tema dos maus-tratos pela primeira vez. O treinamento oferecido para a aplicação da Cartilha possibilitou a aquisição e troca de informação sobre o tema, entre a pesquisadora e os professores, fazendo com que muitos professores se sentissem mais alertas e um pouco mais seguros para a detecção de novos casos suspeitos. O treinamento de professores em relação às questões relativas aos maus-tratos parece essencial para que o tema seja introduzido em sua agenda de trabalho e para promover sua autoconfiança na capacidade de reconhecer crianças vivendo situações de vida especialmente adversas.

Artigo recebido em 10/04/2007.

Aceito para publicação em 22/05/2008.

Juliana Martins Faleiros é doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Marina Rezende Bazon é Professor Doutor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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  • Endereço para correspondência:
    Profa. Dra. Marina Rezende Bazon.
    Departamento de Psicologia e Educação.
    Faculdade de Filosofia Ciências e Letras.
    Universidade de São Paulo.
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    Monte Alegre. CEP 14040-901.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Recebido
      10 Abr 2007
    • Aceito
      22 Maio 2008
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