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Adaptação de Bebês à Creche: Aspectos que Facilitam ou não esse Período1

Adaptación a la Guardería: Factores que Facilitan o no este Período

Resumo:

A creche representa a primeira experiência regular de cuidado não materno para muitas crianças, de modo que especial atenção deve ser dirigida ao período de adaptação. O objetivo deste estudo foi investigar, a partir do relato materno, os aspectos que facilitaram ou não a adaptação de bebês à creche aos seis meses de idade. Participaram 20 mães que foram entrevistadas um mês após o início da adaptação dos filhos à creche. As respostas foram examinadas através de análise de conteúdo qualitativa. Como possíveis facilitadores da adaptação foram ressaltados a tranquilidade materna, aspectos individuais dos bebês e a qualificação profissional das educadoras. Quanto aos aspectos não facilitadores foram ressaltados o sentimento de insegurança materna, bem como o adoecimento do bebê. Salienta-se para a complexidade da adaptação à creche aos seis meses de idade por envolver aspectos específicos do desenvolvimento do bebê, da relação mãe-bebê e educadora-bebê e da dinâmica da creche.

Palavras-chave:
ajustamento escolar; creches; desenvolvimento infantil

Resumen:

El jardin infantíl es la primera experiencia regular de cuidado no maternal para muchos niños, por lo que debe prestarse especial atención al periodo de adaptación. El objetivo de este estudio fue investigar los factores que facilitaron o no la adaptación de los bebés al jardín infantil a lós seis meses de edad. Se incluyeron 20 madres entrevistadas un mes después del inicio de la adaptación del niño. Las respuestas fueron examinadas a través de análisis cualitativo de contenido. Como posibles facilitadores se destacaron la tranquilidad de la madre, aspectos individuales de los bebés, y la calificación de los docentes. Com respecto a los aspectos que no facilitan la adaptación fueron destacados el sentimiento de inseguridad de la madre, y que el bebé se enferme. Los resultados apuntan a la complejidad de la adaptación al jardín infantil a los seis meses de edad, referidos a aspectos del desarrollo del niño, la relación madre-hijo y profesor-bebé, y la dinámica del jardín infantil.

Palabras clave:
adaptación escolar; jardines infantiles; desarrollo infantil

Abstract:

For many children, daycare is the first regular experience of receiving non-maternal care, so that special attention should be paid to the adjustment period. This study’s objective was to investigate, from the mothers’ perspectives, the aspects that facilitated or did not facilitate the adjustment of six-month-old babies to daycare. Twenty mothers participated in this study. They were interviewed one month after their babies started attending a daycare facility. The answers were examined using qualitative content analysis. The factors that potentially facilitated adjustment included: the mothers’ peace of mind; the babies’ individual characteristics; and the caregivers’ qualification. Aspects that did not facilitate adjustment were insecurity on the part of mothers and if the babies became ill. The results reveal how complex adjustment of six-month-old babies to daycare can be, as aspects concerning child development, the relationship established between mother and infant and between caregiver and infant, as well as the dynamics of the daycare center itself, are involved.

Keywords:
daycare adjustment; child day care center; childhood development

A procura pela educação infantil tem apresentado crescimento expressivo a cada ano. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2015Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (2015). Educação para todos 2000-2015: Progressos e desafios: Relatório conciso. Paris, France: UNESCO. Recuperado de http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002325/232565por.Pdf
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), ocorreu um aumento de 64% no número de crianças matriculadas em creches (zero a três anos) e pré-escolas (quatro e cinco anos) no mundo, entre os anos de 1999 a 2012. O contexto nacional segue essa tendência mundial, já que entre os anos de 2007 a 2013 o aumento no número de matrículas em creches no Brasil chegou a 42% (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP], 2014Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. (2014). Censo Escolar da Educação Básica 2013: Resumo técnico. Brasília, DF: INEP. Recuperado de http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/resumos_tecnicos/resumo_tecnico_censo_educacao_basica_2013.pdf
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). A meta do governo federal é atender 50% das crianças de zero a três anos em creche até o ano de 2024 (Observatório do Plano Nacional da Educação [PNE], 2014Observatório do Plano Nacional da Educação. (2014). Educação infantil. Recuperado de http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/1-educacao-infantil/indicadores
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), o que indica que a expansão no número de matrículas deve ser expressiva nos próximos anos. Levando-se em conta tal contexto, especial atenção deve ser dirigida ao período de adaptação à creche, já que para muitas crianças esta é a primeira experiência regular de cuidado não materno (Datler, Ereky-Stevens, Hover-Reisner, & Malmberg, 2012Datler,W., Ereky-Stevens, K., Hover-Reisner, N., & Malmberg, L.-E. (2012). Toddlers’ transition to out-of-home day care: Settling into a new care environment. Infant Behavior & Development, 35(3), 439-451. doi: 10.1016/j.infbeh.2012.02.007
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).

Vale ressaltar que não há um consenso entre os autores em relação ao próprio termo “período de adaptação”. Por exemplo, Vasconcellos, Seabra, Eisenberg e Moreira (2012Vasconcellos, V. M. R., Seabra, K. C., Eisenberg, Z. W., & Moreira, A. R. C. P. (2012). O lugar da creche nos debates sobre parentalidade e coparentalidade. In C. A. Piccinini & P. Alvarenga (Orgs.), Maternidade e paternidade: A parentalidade em diferentes contextos (pp. 341-365). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.) falam em “processo de inserção à creche” ao invés de período de adaptação. Já outros autores utilizam o termo “transição para a creche” (Ahnert, Gunnar, Lamb, & Barthel, 2004Ahnert, L., Gunnar, M. R., Lamb, M. E., & Barthel, M. (2004). Transition to child care: Associations with infant-mother attachment, infant negative emotion, and cortisol elevations. Child Development, 75(3), 639-650. doi: 10.1111/j.1467-8624.2004.00698.x
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; Datler et al., 2012Datler,W., Ereky-Stevens, K., Hover-Reisner, N., & Malmberg, L.-E. (2012). Toddlers’ transition to out-of-home day care: Settling into a new care environment. Infant Behavior & Development, 35(3), 439-451. doi: 10.1016/j.infbeh.2012.02.007
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; Peixoto et al., 2014Peixoto, C., Coelho, V., Pinto, A. I., Cadima, J., Barros, S., & Pessanha, M. (2014). Transição de bebés do contexto familiar para a creche: Práticas e ideias dos profissionais. Sensos-e, 1(2), 1-12. Recuperado de http://sensos-e.ese.ipp.pt/?p=6599
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; Zhang, 2015Zhang, X. (2015). Difficult temperament moderates the effect of family conflict on Chinese children’s behavior problems and social competence during the transition to nursery care. Journal of Family Violence, 30(4), 501-513. doi: 10.1007/s10896-015-9693-y
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). No presente estudo, optou-se por utilizar “período de adaptação à creche”, ou simplesmente “adaptação à creche” por serem os termos mais utilizados nas escolas de educação infantil e mesmo na literatura (Bang, 2014Bang, Y.-S. (2014). Teacher caregivers’ perceptions of toddlers’ adaptation a childcare center. Social Behavior and Personality, 42(8), 1279-1292. doi: 10.2224/sbp.2014.42.8.1279
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; Bossi, Soares, Lopes, & Piccinini, 2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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). No entanto, cabe ressaltar que, apesar de se utilizar o termo “período”, não se considera que a adaptação seja realizada em um momento definido de tempo. Isto porque se entende a adaptação como um processo, já que muitas vezes acaba se repetindo sempre que novas situações surgem, tais como o retorno da criança após o final de semana, férias e ocasiões de adoecimento, troca de educadoras, chegada de um novo colega, dentre outras (Vitória & Rossetti-Ferreira, 1993Vitória, T., & Rossetti-Ferreira, M. C. (1993). Processos de adaptação na creche. Cadernos de Pesquisa, (86), 55-64. Recuperado de http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/939/944
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). Além disso, se considera que a adaptação não envolve somente a criança e sua família, mas também a creche e as próprias educadoras, já que atender as particularidades de cada bebê e permitir uma rotina mais flexível são importantes neste momento.

Desta forma, ao considerar o primeiro ano de vida do bebê, mostram-se como importantes a sua adaptação gradual à creche (ficar poucas horas nos primeiros dias e ir aumentando gradativamente), com demonstração de afeto, atenção individualizada, respeito ao ritmo de cada bebê e presença da mãe ou outra figura afetiva nos primeiros dias (Ministério da Educação e Cultura [MEC], 1998Ministério da Educação e Cultura. (1998). Referencial curricular nacional para a educação infantil. Vol. 1. Brasília, DF: MEC. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf
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; Vasconcellos et al., 2012Vasconcellos, V. M. R., Seabra, K. C., Eisenberg, Z. W., & Moreira, A. R. C. P. (2012). O lugar da creche nos debates sobre parentalidade e coparentalidade. In C. A. Piccinini & P. Alvarenga (Orgs.), Maternidade e paternidade: A parentalidade em diferentes contextos (pp. 341-365). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). No entanto, por vezes, isso não tem sido considerado nas instituições de educação infantil, de modo que o contexto de creche apresenta-se como estressante para os bebês.

Nesse sentido, é relevante ressaltar alguns estudos holandeses (Albers, Beijers, Riksen-Walraven, Sweep, & de Weerth, 2016Albers, E. M., Beijers, R., Riksen-Walraven, J. M., Sweep, F. C. G. J., & de Weerth, C. (2016). Cortisol levels of infants in center care across the first year of life: Links with quality of care and infant temperament. Stress: The International Journal on the Biology of Stress, 19(1), 8-17. doi: 10.3109/10253890.2015.1089230
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; Ahnert et al., 2004Ahnert, L., Gunnar, M. R., Lamb, M. E., & Barthel, M. (2004). Transition to child care: Associations with infant-mother attachment, infant negative emotion, and cortisol elevations. Child Development, 75(3), 639-650. doi: 10.1111/j.1467-8624.2004.00698.x
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; Bernard, Peloso, Laurenceau, Zhang, & Dozier, 2015Bernard, K., Peloso, E., Laurenceau, J.-P., Zhang, Z., & Dozier, M. (2015). Examining change in cortisol patterns during the 10-week transition to a new child-care setting. Child Development, 86(2), 456-471. doi: 10.1111/cdev.12304
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) que investigaram os níveis de cortisol (hormônio liberado pelo corpo como uma resposta fisiológica ao estresse) de bebês e crianças durante a adaptação à educação infantil ou a outros contextos de cuidado coletivo (ex. home-based care). Tais estudos constataram que o ambiente de cuidados coletivos tende a ser potencialmente estressante para os bebês, já que os níveis de cortisol medidos nestes locais costumam ser mais altos do que os medidos em casa, o que sugere, entre outros aspectos, que os bebês experienciavam o ambiente da creche como altamente estressante. Tais aspectos corroboram o que usualmente a psicanálise destaca como o cuidado ideal para os bebês (Mahler, Pine, & Bergman, 1977Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (1977). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (J. A. Russo, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Winnicott, 1969/1994Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In C. Winnicott, R. Shepherd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (J. O. A. Abreu, Trad., pp. 195-202). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho originalmente publicado em 1969)), comumente realizado no ambiente doméstico, e que prioriza a relação mãe-bebê. Tal cuidado ideal se distancia, em vários aspectos, do cuidado em ambiente coletivo de creche, o que coloca a importância de estudos serem realizados neste contexto, especialmente considerando o expressivo aumento de bebês na creche, que vem ocorrendo nos últimos anos.

A partir do exposto, pode-se ressaltar que maior atenção deve ser dada quando o bebê ingressa na creche nos primeiros anos de vida, momento de extremo vínculo entre mãe-bebê. Por exemplo, ao considerar os seis meses de idade, foco do presente estudo, cabe ressaltar que segundo a teoria do processo de separação-individuação (Mahler et al., 1977Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (1977). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (J. A. Russo, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), o bebê estaria no auge da simbiose mãe-bebê e passaria pela primeira subfase deste processo, denominada diferenciação. Esta tem início por volta do 5º mês de vida e se caracteriza pela capacidade do bebê de manter-se mais alerta e com maior curiosidade na interação com o ambiente. O desenvolvimento motor, que permite uma maior firmeza do corpo do bebê, possibilita a ele estar no colo da mãe e reparar no seu rosto e, assim, a comparar com outras pessoas, contribuindo para sua própria diferenciação psíquica com relação ao cuidador primário. A presença da mãe, para Mahler et al. (1977Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (1977). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (J. A. Russo, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), é é de extrema importância para o desenvolvimento emocional do bebê em termos de alcançar a separação-individuação psíquica ao longo do processo de desenvolvimento.

Com isso, conjuntamente ao processo de separação-individuação do bebê, estrutura-se um momento correlato nas próprias mães (Colarusso, 1990Colarusso, C. A. (1990). The third individuation: The effect of biological parenthood on separation-individuation processes in adulthood. Psychoanalitical Study of the Child, 45, 179-194. doi: 10.1080/00797308.1990.11823516
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). Com a maternidade, ocorre a reedição do processo de separação-individuação infantil da mãe, bem como uma ressignificação da relação estabelecida com seus próprios pais. Tais aspectos, segundo Colarusso, repercutem na relação entre mãe-bebê, já que o processo de separação-individuação está imerso em uma grande complexidade, por envolver tanto o mundo psíquico do bebê quanto o de sua mãe.

É relevante destacar que a teoria do processo de separação-individuação investiga o contexto de cuidados maternos dispensados ao bebê, e não abordou o cuidado em ambientes coletivos, como a creche. Na verdade, são raros os estudos que buscam entender a experiência dos bebês em creche e suas mães a partir da teoria de Mahler et al. (1977Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (1977). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (J. A. Russo, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Um deles é o estudo de Bossi et al. (2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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), que investigou a adaptação de 13 bebês à creche durante as subfases do processo de separação-individuação, a saber, diferenciação (quatro a sete meses), exploração (10 a 15 meses) e reaproximação (19 a 21 meses). Participaram do estudo mães e pais da cidade de Porto Alegre (RS), que responderam a entrevistas sobre a adaptação de seus filhos à creche. Os dados revelaram diferentes reações dos bebês (choro, adoecimento, recusa em se alimentar) e sentimentos parentais (insegurança, desconfiança, tranquilidade) durante este período e nas diferentes subfases do processo de separação-individuação. Inclusive, dependendo do contexto de creche e da relação pai-mãe-bebê, as reações dos bebês e os sentimentos parentais contribuíram não somente para promover a adaptação à creche, mas também para dificultar ou até mesmo impedir que este período ocorresse.

Diferentes reações por parte dos bebês e das crianças pequenas também são ressaltadas em outros estudos que abordam a adaptação à creche, e podem aparecer na forma de gritos, choro, mau humor, alterações de apetite, resistência ao sono, comportamentos regressivos, isolamento, passividade, agressividade e acometimentos de saúde (Bossi et al., 2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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; Datler et al., 2012Datler,W., Ereky-Stevens, K., Hover-Reisner, N., & Malmberg, L.-E. (2012). Toddlers’ transition to out-of-home day care: Settling into a new care environment. Infant Behavior & Development, 35(3), 439-451. doi: 10.1016/j.infbeh.2012.02.007
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; MEC, 1998Ministério da Educação e Cultura. (1998). Referencial curricular nacional para a educação infantil. Vol. 1. Brasília, DF: MEC. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf
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; Vasconcellos et al., 2012Vasconcellos, V. M. R., Seabra, K. C., Eisenberg, Z. W., & Moreira, A. R. C. P. (2012). O lugar da creche nos debates sobre parentalidade e coparentalidade. In C. A. Piccinini & P. Alvarenga (Orgs.), Maternidade e paternidade: A parentalidade em diferentes contextos (pp. 341-365). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Essas manifestações podem variar de acordo com características de temperamento da criança, segurança do vínculo mãe-bebê, idade com que se inicia a adaptação à creche, dentre outros. Isso porque essas manifestações do bebê não ocorrem, unicamente, como uma consequência da adaptação à creche, mas sim por ser algo esperado no seu processo de desenvolvimento, ao considerar as características do psiquismo do bebê, ainda em formação.

Já por parte da família, outros estudos também ressaltam que os sentimentos parentais podem influenciar a adaptação, de modo que precisam ser refletidos pelos pais e, se possível, acolhidos pela escola. Por exemplo, estudo de Bossi e Piccinini (in press)Bossi, T. J., & Piccinini, C. A. (s.d.)(in press). A vivência materna do processo de separação-individuação de bebês que frequentavam ou não a creche. Temas em Psicologia. com três mães de bebês que estavam em adaptação à creche aos seis meses de idade, na cidade de Porto Alegre, revelou que alguns sentimentos maternos pareciam beneficiar a adaptação. A tranquilidade e a segurança da mãe com relação aos cuidados oferecidos pela equipe da creche contribuíram para que a adaptação ocorresse de forma rápida (durante as duas semanas iniciais) e sem reações de choro prolongado ou outras manifestações que sinalizassem sofrimento pela criança (p.ex. isolamento, adoecimento, etc.). Por outro lado, pode-se considerar que as reações dos bebês também influenciaram os sentimentos maternos, já que no início da vida se considera a relação estabelecida entre a díade mãe-bebê, de modo que os sentimentos e reações da mãe e do bebê são influenciados mutuamente (Winnicott, 1969/1994Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In C. Winnicott, R. Shepherd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (J. O. A. Abreu, Trad., pp. 195-202). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho originalmente publicado em 1969)).

Além de aspectos dos bebês e dos pais, características das educadoras e da qualidade do atendimento oferecido pela creche, tais como razão adulto-criança, espaço físico, planejamento da rotina, cuidado afetivo e capacitação da equipe da creche, tendem a influenciar a adaptação dos bebês (Rapoport & Piccinini, 2001Rapoport, A., & Piccinini, C. A. (2001). O ingresso e adaptação de bebês e crianças pequenas à creche: Alguns aspectos críticos. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14(1), 81-95. doi: 10.1590/S0102-79722001000100007
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). Isso porque as educadoras devem servir como suporte emocional para os bebês, no sentido de serem as cuidadoras substitutas às mães, de modo a oferecer o que o bebê necessita, contribuindo para evitar prejuízos psíquicos devido à ausência materna.

Considerando o exposto, o objetivo do presente estudo foi investigar a adaptação de bebês à creche aos seis meses de idade. Buscou-se identificar, a partir do relato materno, os aspectos que facilitaram ou não a adaptação. A idade de seis meses foi a escolhida já que a maioria das mães participantes do estudo dispunha de licença maternidade com essa duração e optaram por adaptar os filhos à creche ao final do benefício. Com isso, torna-se importante discutir a adaptação à creche nesta faixa etária, por ser a idade que tende a apresentar expressivo número de matrículas na creche, após a ampliação da licença maternidade de 120 para 180 dias em alguns setores trabalhistas, como funcionárias públicas e de empresa privada, que aderiram ao programa “empresa cidadã”, desde o ano de 2010. Cabe ressaltar que o diferencial deste estudo é considerar a percepção das mães sobre a adaptação de seus bebês à creche aos 6 meses de idade, o que não é comum nos estudos sobre essa temática que tendem a considerar bebês maiores e crianças (Ahnert et al., 2004Ahnert, L., Gunnar, M. R., Lamb, M. E., & Barthel, M. (2004). Transition to child care: Associations with infant-mother attachment, infant negative emotion, and cortisol elevations. Child Development, 75(3), 639-650. doi: 10.1111/j.1467-8624.2004.00698.x
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; Datler et al., 2012Datler,W., Ereky-Stevens, K., Hover-Reisner, N., & Malmberg, L.-E. (2012). Toddlers’ transition to out-of-home day care: Settling into a new care environment. Infant Behavior & Development, 35(3), 439-451. doi: 10.1016/j.infbeh.2012.02.007
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; Zhang, 2015Zhang, X. (2015). Difficult temperament moderates the effect of family conflict on Chinese children’s behavior problems and social competence during the transition to nursery care. Journal of Family Violence, 30(4), 501-513. doi: 10.1007/s10896-015-9693-y
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), serem observacionais (Ahnert et al., 2004Ahnert, L., Gunnar, M. R., Lamb, M. E., & Barthel, M. (2004). Transition to child care: Associations with infant-mother attachment, infant negative emotion, and cortisol elevations. Child Development, 75(3), 639-650. doi: 10.1111/j.1467-8624.2004.00698.x
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; Almeida & Rossetti-Ferreira, 2014Almeida, L. S., & Rossetti-Ferreira, M. C. (2014). Transformações da relação afetiva entre o bebê e a educadora na creche. Análise Psicológica, 32(2), 173-186. doi: 10.14417/ap.868
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; Datler et al., 2012Datler,W., Ereky-Stevens, K., Hover-Reisner, N., & Malmberg, L.-E. (2012). Toddlers’ transition to out-of-home day care: Settling into a new care environment. Infant Behavior & Development, 35(3), 439-451. doi: 10.1016/j.infbeh.2012.02.007
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) ou consideram o relato dos educadores (Bang, 2014Bang, Y.-S. (2014). Teacher caregivers’ perceptions of toddlers’ adaptation a childcare center. Social Behavior and Personality, 42(8), 1279-1292. doi: 10.2224/sbp.2014.42.8.1279
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; Peixoto et al., 2014Peixoto, C., Coelho, V., Pinto, A. I., Cadima, J., Barros, S., & Pessanha, M. (2014). Transição de bebés do contexto familiar para a creche: Práticas e ideias dos profissionais. Sensos-e, 1(2), 1-12. Recuperado de http://sensos-e.ese.ipp.pt/?p=6599
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).

Método

Participantes

Participaram deste estudo 20 mães com bebês de seis meses de idade (55% meninos) que estavam em adaptação à creche. Todas residiam em Porto Alegre ou na região metropolitana, a maioria era primípara (70%) e estavam casadas ou em união estável com o pai do bebê. Elas tinham idades entre 28 e 42 anos e o nível de escolaridade variou de Ensino Médio (11 anos de estudo) a Pós-Graduação (25 anos de estudo).

As participantes foram selecionadas entre as integrantes do estudo longitudinal denominado “Impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo infantil: Estudo longitudinal do sexto mês de vida do bebê ao final dos anos pré-escolares” (CRESCI) (Piccinini, Becker, Martins, Lopes & Sperb, 2011Piccinini, C. A., Becker, S. M. S.; Martins, G.D.F.; Lopes, R. C. S.; & Sperb, T.M. (2011). O impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo infantil: estudo longitudinal do sexto mês de vida do bebê ao final dos anos pré-escolares - CRESCI. Projeto de pesquisa não publicado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.) que tem como objetivo investigar o impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo de crianças, desde seu sexto mês até o final dos anos pré-escolares. Mais especificamente, busca comparar, ao longo desse período, o desenvolvimento de crianças que frequentaram ou não a creche, e relacioná-lo a qualidade dos ambientes institucional e familiar. As participantes deste estudo longitudinal foram selecionadas em duas creches públicas federais da cidade de Porto Alegre. Estas creches contavam com uma razão adulto/criança de um adulto para cada quatro bebês no berçário. Especificamente para este estudo foram selecionadas todas as mães cujos bebês estavam em adaptação à creche aos seis meses de idade.

Instrumentos

Entrevista sobre a adaptação do bebê à creche - versão mãe (NUDIF/CRESCI, 2011aNúcleo de Infância e Família/Projeto CRESCI - NUDIF/CRESCI (2011a). Entrevista sobre a adaptação do bebê à creche - versão mãe. Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Material não publicado. ). A adaptação à creche foi investigada com esse instrumento, aplicado um mês após o início da adaptação do bebê à creche. Trata-se de uma entrevista estruturada, aplicada de forma semidirigida, que é composta de blocos de questões que investigam vários aspectos do período de adaptação e seus efeitos no bebê e na família, tais como (1) as reações do bebê neste período; (2) as mudanças de comportamento após a entrada na creche; e (3) os sentimentos maternos. Para fins de análise do presente estudo, foram particularmente examinadas as questões que versavam sobre os aspectos que facilitaram ou não a adaptação do bebê à creche aos seis meses de idade.

Ficha de dados demográficos da família (NUDIF/CRESCI, 2011bNúcleo de Infância e Família/Projeto CRESCI - NUDIF/CRESCI (2011b). Ficha de dados demográficos da família. Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Material não publicado.). Além da entrevista com as mães, foram considerados para este estudo os dados oriundos dessa ficha, aplicada na primeira fase do estudo, que permitiram caracterizar os participantes.

Procedimento

Coleta de dados. De acordo com os procedimentos do Projeto CRESCI, as mães foram convidadas a participar do estudo ainda antes da entrada do bebê na creche. Nesse primeiro momento, as mães foram informadas sobre os objetivos do estudo, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e preencheram a Ficha de dados demográficos da família. Um mês após a entrada do bebê na creche, as mães foram solicitadas a responderem a Entrevista sobre a adaptação do bebê à creche - versão mãe. Essa entrevista teve duração média de 60 minutos e foi gravada em áudio e posteriormente transcrita para fins de análise.

Análise dos dados. As respostas à entrevista materna sobre a adaptação do bebê foram examinadas através de análise de conteúdo qualitativa (Laville & Dionne, 1999Laville, C., & Dionne, J. (1999). A construção do saber: Manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre, RS: Artmed.), na qual foram considerados os relatos maternos referentes aos aspectos que facilitaram ou não a adaptação do bebê à creche. Seguindo Laville e Dionne, as entrevistas foram exploradas e analisadas buscando-se extrair relatos relacionados à adaptação à creche. Embora não se caracterize por um método rígido, há aspectos que devem ser considerados a fim de manter o rigor na análise qualitativa. Com base nesses autores, procedeu-se da seguinte forma: (1) foi realizada a conferência da transcrição com o áudio da entrevista; e (2) as entrevistas foram lidas exaustivamente, de modo independente por duas das autoras do presente estudo, para demarcar os relatos maternos sobre aspectos que facilitam ou não a adaptação do bebe à creche. Eventuais dúvidas e discordâncias foram discutidas pelas duas primeiras autoras, até que se chegasse a um consenso (Roller & Lavrakas, 2015Roller, M. R.; & Lavrakas, P. J. (2015). Applied qualitative research design: a total quality framework approach. New York, NY: The Guilford Press.) e na ausência se recorria ao terceiro autor.

Considerações éticas

O Projeto CRESCI foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Protoloco nº 2010070) e as participantes assinaram o TCLE. Foi explicado os objetivos do estudo, o sigilo, a confidencialidade dos dados, bem como o caráter voluntário da participação. Para preservar o sigilo e a identidade das participantes, a autoria dos relatos foi identificada pela letra “M”, referente à mãe, seguida do número do caso.

Resultados

Para fins de exposição, destacam-se, a seguir, os relatos maternos associados aos aspectos que facilitam ou não a adaptação do bebê à creche, em particular aqueles relacionados à mãe, ao bebê e á creche.

Com relação às mães, a maioria (80%) relatou aspectos pessoais que tenderam a facilitar a adaptação do bebê à creche. A tranquilidade frente à adaptação do filho e a segurança em deixá-lo na creche foram os relatos predominantes: “Então eu acho que a nossa atitude de tranquilidade ajudou muito ela a ficar feliz lá (na creche)” (M6); “Tinha várias mães que ficavam nervosas, algumas choravam preocupadas com os filhos e eu até me sentia culpada (sentia-se culpada por não ficar preocupada) porque eu largava ele ali e saía muito tranquila” (M7).

A confiança na equipe da creche foi ressaltada como facilitador da adaptação por cinco mães. Entre estas, uma destacou que a experiência de já ter deixado a filha mais velha na mesma creche contribuiu nesse sentido: “Primeiro porque eu já conheço a creche, confio, gosto. E segundo, eles (equipe) são bem qualificados” (M1). Na mesma direção, duas mães ressaltaram as boas referências que possuíam: “Já conheço outras pessoas que tem seus filhos aqui, então já ouvi falar da creche, eu vim bem tranquila” (M16). Ainda, uma mãe mencionou a sua própria experiência positiva de entrada na escola como facilitador da sua separação em relação ao filho: “Eu sempre fui diferente, sempre gostei de ir pro colégio, então eu tinha expectativas superpositivas (com relação à adaptação)” (M17).

Por outro lado, muitas mães (50%) relataram aspectos delas próprias que tenderam a não facilitar a adaptação do bebê à creche. Por exemplo, cinco mães ressaltaram que se sentiam angustiadas nos primeiros momentos do bebê na creche, seja por não saberem se ele iria gostar do novo ambiente, seja por não acompanharem a adaptação na sala do berçário: “No começo a gente fica com uma aflição, assim, aquela aflição normal de, se ele tá bem, se tá gostando, se tá se divertindo. Mas, eu tô percebendo que sim, que ele tá muito bem” (M9).

Também, uma mãe sentia-se culpada por deixar a filha chorando na creche e acabava por compensar o sofrimento dela fazendo todas as suas vontades em casa. Esse aspecto foi ressaltado pela mãe como um não facilitador da adaptação, uma vez que a criança chegava à creche e não tinha alguém exclusivo para seguir atendendo as suas demandas: “Nos primeiros dias eu ficava muito mal, chegava em casa e fazia tudo o que ela queria. Deixava ela quanto tempo ela quisesse na teta, no colo. Na primeira semana foi assim pra compensar o choro dela” (M19).

Nessa mesma direção, duas mães mencionaram o sentimento de insegurança por deixar o bebê na creche: “Me senti um pouquinho insegura por um tempo, um pouquinho em dúvida” (M4). Por fim, duas mães frisaram o desejo de não se separarem dos bebês: “Bem complicados (os primeiros dias na creche), uma porque tu sente falta, né? Porque é acostumada a ficar o tempo inteiro com ela. Aí tu fica com aquela coisa também de achar que ela tá sentindo falta, né?” (M15).

Com relação aos próprios bebês, a maioria das mães (85%) relatou aspectos dos bebês que tenderam a facilitar a adaptação à creche. Aspectos relativos à personalidade e ao temperamento foram os relatos predominantes, tais como o bebê ser “meio independente” (M14), alegre, sociável, receptivo, bem humorado, tranquilo, aberto às descobertas e não estranhar pessoas fora do convívio familiar: “Acho que o fato de ela ser tranquila, de ir com as pessoas, de não estranhar” (M11); “Eu acho que por esse jeito, assim, nunca chorou de ir num colo estranho, sempre foi muito social, de brincar com todo mundo e ir no colo de todo mundo. Então, isso acabou não prejudicando ele na creche, né?” (M9). Uma mãe mencionou a característica pessoal do bebê de se adaptar rápido a diferentes ambientes: “Acho que ele se adapta talvez mais rápido que os outros [bebês]” (M5).

Outros relatos predominantes referiram-se ao não estranhamento por parte dos bebês e consequente aceitação em relação às educadoras e à creche: “Ela não estranhou as pessoas em nenhum momento” (M19); “Nunca estranhou o espaço, nunca estranhou as professoras” (M4). Nesse sentido, duas mães ressaltaram a idade com que o bebê entrou na creche (seis meses) como um aspecto facilitador da adaptação, por ter permitido que não estranhassem outras pessoas: “A idade dele também acho, porque ele entrou com seis meses e meio, então não é uma idade de muito estranhamento” (M2). Nesse mesmo sentido, três mães salientaram o convívio dos bebês com outras pessoas fora do ambiente familiar antes da entrada na creche: “Acho que facilitou o convívio em casa com a família, até sair na rua com minha irmã, sobrinhos, amigos. Fiz isso porque estava nos planos ele vir pra creche” (M17).

Da mesma forma, o fato de o bebê não ter chorado durante o período de adaptação foi ressaltado por oito mães: “Desde os primeiros dias, nunca chorou, assim, que elas [educadoras] relataram. Ele sempre ficou muito bem” (M6); “Nunca precisaram me chamar, ele não chorou” (M8). Ainda uma mãe ressaltou o fato de a filha ter chorado menos ao longo do tempo e conseguido ficar bem na creche: “O que eu mais gostei são os avanços que ela tem lá mesmo na adaptação. Por exemplo, hoje ela ficou um pouquinho mais ou chorou menos, ou ficou mais tempo no carrinho, tomou banho de sol e não chorou” (M19). Nessa mesma direção, quatro mães destacaram o bem-estar do bebê na creche, no sentido de conseguir brincar, se alimentar, interagir nas brincadeiras e manter sua rotina de funcionamento esfincteriano: “Porque se ele fazia tantas vezes por dia cocô, ele continua fazendo, ele nunca ficou sem fazer cocô ou fazer xixi, ou sei lá alguma coisa, porque isso poderia influenciar, mas não, ele se alimenta bem, ele mama bem” (M5); “Na segunda semana [de adaptação], quando eu perguntei ‘ele chorou?’, ‘não, capaz, brincou, mamou, comeu frutinha’” (M20).

Ainda, três mães destacaram o não adoecimento dos bebês durante o período de adaptação, o que permitiu a eles não se ausentarem da creche no decorrer desse momento: “Ela não teve febre em nenhum momento, não precisou se afastar em nenhum momento, assim, né?” (M14). Além disso, uma mãe enfatizou como facilitador da adaptação o início bem sucedido da alimentação sólida: “Eu acho que facilitou o fato dela gostar dos alimentos, ter iniciado bem o processo de alimentação, a introdução dos alimentos fora a mama, então facilitou porque estando lá [na creche] ela também ficava bem alimentada” (M11).

Por outro lado, a maioria das mães (80%) relatou aspectos dos bebês que tenderam a não facilitar a adaptação à creche. O adoecimento apresentou-se como relato predominante, com destaque para resfriados, gripes, conjuntivite, bronquiolite e viroses: “Durante a adaptação ele teve bronquiolite (...). Acabou ficando uma semana de atestado em casa, na última semana da adaptação, até a gente teve medo que ele não conseguisse retornar” (M5). Além disso, nove mães destacaram o estranhamento dos bebês ao novo ambiente, acompanhado de reações de choro. Entre essas, uma ressaltou que o choro excessivo do bebê não permitiu que ele finalizasse todo o tempo de adaptação estipulado para os primeiros dias: “Já teve um dia que ela ficou só 45 minutos, porque ela tava chorando demais” (M19). Já outra mãe frisou como aspecto não facilitador, o fato de o bebê não querer interagir com as educadoras nos primeiros momentos: “E no começo, no momento da adaptação, quando eu alcançava ele [para as educadoras], ele se esquivava delas” (M20).

Além disso, cinco mães ressaltaram a rejeição do bebê aos alimentos ou a necessidade de amamentação ao seio: “A mamadeira que ela ainda nega, e alguns alimentos que ela tá experimentando, então, ela acaba rejeitando mais alimentos do que aceitando” (M18). Outro aspecto que duas mães ressaltaram foi o fato de o bebê não conseguir dormir na creche: “Ele não conseguia dormir muito tempo, né? Ele fazia um soninho muito curto e eu percebia que ele vinha com carinha de cansado ou meio chororô” (M7).

Com relação à creche, a maioria das mães (80%) relatou aspectos da creche que tenderam a facilitar a adaptação dos bebês. Características das educadoras, como serem afetivas, receptivas e qualificadas para o trabalho na educação infantil, foram os relatos predominantes: “Depois ele começou a dar os bracinhos quando elas chamam ele, até porque elas são muito carinhosas, muito brincalhonas” (M20).

A estrutura da creche, no sentido de ser um espaço adequado para os bebês, foi destacado por sete mães: “Eu acho que o ambiente, isso facilitou pra adaptação a questão dele ter um ambiente pra brincar” (M7); “Eu acho que é um ambiente bem iluminado, tem uma porta que abre pra rua, tem bastante brinquedo, tem colchonete no chão. Eu acho que isso proporciona que ela não se sinta fechada, presa, que possa brincar e interagir” (M16). Nessa mesma direção, três mães enfatizaram a organização e a flexibilidade em relação aos horários na creche como facilitadores da adaptação: “As pessoas estavam bem compreensivas, lidando com as diferenças entre as crianças. E tem tolerância, assim, de eu ir lá em tal horário, de levar ela um pouco mais tarde porque ainda tá mamando. Então são flexíveis, são tolerantes” (M14).

Ainda, uma mãe mencionou a possibilidade de a família acompanhar o período de adaptação do bebê, mantendo-se na creche para atendê-lo quando necessário: “Eu acho que eu fui recebida muito bem, assim, porque eles têm uma coisa muito de botar a família no cuidado da criança, né? Que essa adaptação eu acho que não são todas as creches que fazem” (M20). Outra mãe ressaltou a disponibilidade da equipe da creche em atender tanto o bebê quanto a ela, neste período de adaptação: “Elas [educadoras] acharam por bem fazer essa integração, essa reunião para o turno da manhã e da tarde, para os pais se conhecerem e falarem, trocarem percepções (...). Foi tudo muito bem, elas sempre se colocaram bem à disposição” (M6). Por fim, o cuidado da creche com relação à alimentação das crianças, no sentido de respeitar as especificidades de cada bebê, foi salientado por uma mãe: “E a questão da alimentação, da atenção com a nutrição das crianças, o acompanhamento do cardápio, da nutricionista, eu achei muito bom” (M12).

Por outro lado, nenhum aspecto não facilitador da adaptação foi destacado pelas mães com relação à creche. Isto pode indicar a satisfação das mães em relação aos cuidados do bebê na creche, que como foi dito apresentava razão adulto-criança de um adulto para grupo de quatro crianças. Mas pode também estar associado ao fato de as mães não quererem mencionar aspectos negativos sobre a creche.

Discussão

Os resultados revelaram diversos aspectos que facilitaram ou não a adaptação do bebê à creche aos seis meses, o que remeteu, principalmente, às características da mãe, do bebê, das educadoras e da creche. Com isso, pode-se perceber a complexidade do fenômeno estudado, por envolver não apenas o bebê, mas também outros implicados neste período, como a família e a equipe de educadoras (Bossi et al., 2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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; MEC, 1998Ministério da Educação e Cultura. (1998). Referencial curricular nacional para a educação infantil. Vol. 1. Brasília, DF: MEC. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf
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).

Os sentimentos mais comuns entre as mães, destacados como facilitadores, foram a tranquilidade frente à adaptação do bebê à creche, influenciados pela confiança na equipe de educadoras, pelas experiências prévias com outros filhos que frequentaram a mesma creche ou pelas boas indicações que receberam em relação à instituição. Esses resultados estão na direção dos encontrados por Bossi e Piccinini (in press)Bossi, T. J., & Piccinini, C. A. (s.d.)(in press). A vivência materna do processo de separação-individuação de bebês que frequentavam ou não a creche. Temas em Psicologia. em que a tranquilidade materna estava atrelada ao conhecimento da qualidade da creche, as boas indicações recebidas e ao atendimento afetivo dispensado ao bebê pelas educadoras. Tais aspectos pareceram facilitar a adaptação e proporcionaram que esta ocorresse nas primeiras semanas dos bebês na instituição. Cabe ressaltar que uma mãe do presente estudo mencionou a sua própria experiência positiva de entrada na escola como facilitador da separação em relação ao filho no período de adaptação. Isso parece remeter a aspectos infantis satisfatórios do processo de separação-individuação da própria mãe, reeditado na relação estabelecida com o filho (Colarusso, 1990Colarusso, C. A. (1990). The third individuation: The effect of biological parenthood on separation-individuation processes in adulthood. Psychoanalitical Study of the Child, 45, 179-194. doi: 10.1080/00797308.1990.11823516
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), o que proporcionou uma vivência da adaptação sem maiores sofrimentos para a mãe e o bebê.

No entanto, também foram ressaltados sentimentos maternos que pareceram não facilitar a adaptação, tais como culpa e insegurança por deixar o filho na creche, bem como sentimentos de angústia e preocupação em relação aos primeiros dias. Tais sentimentos são esperados durante o período de adaptação dos bebês à creche (Bossi et al., 2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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; MEC, 1998Ministério da Educação e Cultura. (1998). Referencial curricular nacional para a educação infantil. Vol. 1. Brasília, DF: MEC. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf
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), ainda mais aos seis meses de idade, momento em que a fase simbiótica entre mãe-bebê encontra-se fortemente estruturada (Mahler et al., 1977Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (1977). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (J. A. Russo, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Dessa forma, considerando essa simbiose e a mutualidade entre mãe-bebê (Winnicott, 1969/1994Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In C. Winnicott, R. Shepherd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (J. O. A. Abreu, Trad., pp. 195-202). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho originalmente publicado em 1969)), os sentimentos maternos podem influenciar as próprias reações dos bebês durante o período de adaptação, no sentido de promover (ou não) uma adaptação menos difícil para mãe-bebê.

Da mesma forma, esses sentimentos maternos podem estar relacionados, de certa forma, às reações do próprio bebê no período de adaptação. Com relação aos aspectos que facilitaram a adaptação por parte do bebê, relatados pelas mães do presente estudo, os mais comuns relacionaram-se à personalidade e ao temperamento dos bebês (ser alegre, sociável, receptivo, bem-humorado) e ao fato de não terem manifestado reações de choro, ao menos para a maioria dos casos, o que parecia tranquilizar as mães quanto ao bem-estar dos filhos na creche. Aspectos relacionados à capacidade de interagir e brincar na creche, assim como manter o padrão de alimentação e funcionamento esfincteriano, também foram destacados como facilitadores. A literatura (Bossi et al., 2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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; MEC, 1998Ministério da Educação e Cultura. (1998). Referencial curricular nacional para a educação infantil. Vol. 1. Brasília, DF: MEC. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf
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) ressalta que reações de choro são as mais comuns no momento de adaptação, já que essa é uma forma de comunicação do bebê em diferentes faixas etárias. Por exemplo, estudo de Bossi et al. (2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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) que investigou a adaptação de bebês em diferentes idades (4-7, 10-15 e 19-21 meses) apontou que reações de choro fizeram-se presentes em todas as faixas etárias investigadas, embora na idade próxima aos seis meses outras reações intensas também foram manifestas (p.ex. isolamento, adoecimento). O estudo ainda mostrou que embora presente, o choro não impediu que a adaptação ocorresse para a maioria dos bebês já que, com o tempo, o choro diminuiu, o que sugere que eles conseguiram se sentir mais seguros na creche. No entanto, é importante ressaltar que a ausência de choro não necessariamente sinaliza que o bebê não esteja sofrendo durante o período de adaptação, uma vez que os bebês tendem a manifestar seus sofrimentos de diferentes formas (demonstrando apatia, não se alimentando adequadamente, dormindo por longos períodos). Por vezes, esses aspectos acabam negligenciados e não sendo entendidos como expressão de sofrimento do bebê. No presente estudo, as mães também ressaltaram outras reações para além do choro, como o adoecimento e a recusa em alimentar-se, por exemplo.

O não estranhamento do bebê frente a lugares e pessoas desconhecidos também foi ressaltado, sendo que para algumas mães, a idade de seis meses mostrou-se adequada para a adaptação à creche. Isso parece ter contribuído para a adaptação, mas cabe destacar que a qualidade da relação mãe-bebê estabelecida até então pode ter colaborado para que essa interação com o ambiente não se transformasse em ansiedade aguda com relação a estranhos (Mahler et al., 1977Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (1977). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (J. A. Russo, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Isso porque, aos seis meses, já é possível o bebê apresentar reações a estranhos, comumente atribuídas aos oito meses de idade. Por se encontrar na subfase de diferenciação do processo de separação-individuação (Mahler et al., 1977Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (1977). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (J. A. Russo, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), prevalece a curiosidade na comparação do familiar com o não familiar. E no momento em que o bebê está em um ambiente desconhecido e sem a referência do que lhe é familiar (a mãe ou outra figura afetiva), reações de estranhamento podem prevalecer, o que ocorreu em alguns casos.

No entanto, aspectos que não facilitaram a adaptação, por parte do bebê, também foram ressaltados, em particular o adoecimento. Contudo, não é possível afirmar se os acometimentos de saúde ocorreram devido ao maior convívio e contato com outras pessoas ou se foi consequência de uma reação emocional do bebê, ou ambos. Apesar disso, esse indicador se apresentou como um não facilitador da adaptação, tendo em vista que, ao adoecer, o bebê não frequentava a creche e criava muita ansiedade na mãe. Tal aspecto mostra que a adaptação deve ser entendida como um processo, que precisa ser reestruturado frente a situações que colocam a necessidade de um novo acolhimento à criança (Vitória & Rossetti-Ferreira, 1993Vitória, T., & Rossetti-Ferreira, M. C. (1993). Processos de adaptação na creche. Cadernos de Pesquisa, (86), 55-64. Recuperado de http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/939/944
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).

Reações de estranhamento do bebê frente ao novo ambiente, choro, dificuldade de interação com as educadoras, rejeição a alimentos e dificuldades no sono também foram salientadas pelas mães. Tais reações são esperadas por parte do bebê, por serem formas de comunicação a fim de sinalizar aspectos emocionais e de interação. Dessa forma, não estão necessariamente atreladas ao ingresso na creche em si, mas sim a etapa do desenvolvimento infantil e ao psiquismo do bebê ainda em formação. Por isso, essas reações aparecem documentadas na literatura sobre adaptação à creche em diferentes faixas etárias (Bossi et al., 2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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; Datler et al., 2012Datler,W., Ereky-Stevens, K., Hover-Reisner, N., & Malmberg, L.-E. (2012). Toddlers’ transition to out-of-home day care: Settling into a new care environment. Infant Behavior & Development, 35(3), 439-451. doi: 10.1016/j.infbeh.2012.02.007
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; Vasconcellos et al., 2012Vasconcellos, V. M. R., Seabra, K. C., Eisenberg, Z. W., & Moreira, A. R. C. P. (2012). O lugar da creche nos debates sobre parentalidade e coparentalidade. In C. A. Piccinini & P. Alvarenga (Orgs.), Maternidade e paternidade: A parentalidade em diferentes contextos (pp. 341-365). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). À medida que essas reações passam a ser utilizadas com menor frequência ou deixam de ser utilizadas, passa-se a considerar o bebê como adaptado a creche. No entanto, para isso ocorrer, não somente a postura das mães frente à adaptação tende a influenciar as reações dos bebês, mas também os comportamentos das educadoras frente à mãe e ao bebê. Além disto, depende das próprias capacidades do bebê em se adaptar ao novo contexto e a tudo o que isto implica.

Nesse sentido, características das educadoras como serem afetivas e atenciosas com os bebês, bem como características do funcionamento da creche, tais como flexibilidade dos horários e o convite e o envolvimento da família para participar do período de adaptação, mostraram-se como importantes para as participantes do presente estudo. A adaptação gradual do bebê à creche e com a presença da mãe ou outra figura afetiva é ressaltado na literatura como facilitador da adaptação, e seria importante que isto se tornasse procedimento padrão em todas as creches, o que, lamentavelmente, ainda não acontece (Ahnert et al., 2004Ahnert, L., Gunnar, M. R., Lamb, M. E., & Barthel, M. (2004). Transition to child care: Associations with infant-mother attachment, infant negative emotion, and cortisol elevations. Child Development, 75(3), 639-650. doi: 10.1111/j.1467-8624.2004.00698.x
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; Bang, 2014Bang, Y.-S. (2014). Teacher caregivers’ perceptions of toddlers’ adaptation a childcare center. Social Behavior and Personality, 42(8), 1279-1292. doi: 10.2224/sbp.2014.42.8.1279
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; Peixoto et al., 2014Peixoto, C., Coelho, V., Pinto, A. I., Cadima, J., Barros, S., & Pessanha, M. (2014). Transição de bebés do contexto familiar para a creche: Práticas e ideias dos profissionais. Sensos-e, 1(2), 1-12. Recuperado de http://sensos-e.ese.ipp.pt/?p=6599
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). Isso porque o ambiente da creche e as educadoras tornam-se, aos poucos, uma referência para os bebês, o que possibilita o bem-estar deles na creche.

Cabe ressaltar que as escolas participantes deste estudo foram duas creches públicas federais, que representam apenas 0,2% das escolas de educação infantil no Brasil (INEP, 2014Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. (2014). Censo Escolar da Educação Básica 2013: Resumo técnico. Brasília, DF: INEP. Recuperado de http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/resumos_tecnicos/resumo_tecnico_censo_educacao_basica_2013.pdf
http://download.inep.gov.br/educacao_bas...
). Isso permite pensar que o arranjo relacionado à organização de rotinas, de estrutura física e de equipe de trabalho pode ser diferenciado das demais escolas, seja de iniciativa municipal ou privada. Sabe-se que nas creches pesquisadas, a razão adulto-criança era de uma educadora para grupo de quatro bebês, quando a realidade predominante e aceita por lei é de um adulto para cada seis a oito bebês de zero e um ano (MEC, 2013Ministério da Educação e Cultura. (2013). Diretrizes curriculares nacionais gerais da educação básica. Brasília, DF: MEC . Recuperado de http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file
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). Isso já coloca diferenças quanto à possibilidade de oferecer um cuidado mais individualizado a cada bebê durante o período de adaptação. Tais características devem ser consideradas, já que a qualidade da creche tende a influenciar as percepções e sentimentos maternos, assim como o modo como são organizados os momentos de acolhimento à família e a adaptação dos bebês. Com isso, torna-se relevante, inclusive, discutir e repensar as diretrizes para a educação infantil que permitem até oito bebês para cada educador. Isso, de certa forma, limita o cuidado que considere as particularidades de cada criança, característica importante de ser considerada quando se trabalha junto a bebês que necessitam que suas necessidades emocionais sejam adequadamente atendidas.

Antes de finalizar, cabe ressaltar algumas limitações deste estudo. Em primeiro lugar, o uso de entrevistas pode ter suscitado o fenômeno de desejabilidade social, o que pode ter influenciado no fato de as mães não relatarem aspectos não facilitadores por parte da creche. Como elas necessitavam da creche como forma de cuidado para seus filhos e precisavam acreditar que haviam feito uma boa escolha, elas podem não ter se permitido destacar críticas com relação à escola durante o período de adaptação. Sugere-se que os próximos estudos realizem um acompanhamento mais longo, com novas entrevistas aos três e seis meses após o período de adaptação do bebê à creche, o que trará novos conhecimentos sobre este processo. Isso porque, ao longo deste período, se instaura uma rotina diária e é possível que as mães se permitam elaborar críticas em relação à creche, mesmo porque terão mais conhecimentos sobre a instituição para poder fazê-lo. Nesse mesmo sentido, cabe ressaltar que as entrevistas foram realizadas um mês após o início da adaptação do bebê, que foi aqui considerado como o período de adaptação (Rapoport & Piccinini, 2001Rapoport, A., & Piccinini, C. A. (2001). O ingresso e adaptação de bebês e crianças pequenas à creche: Alguns aspectos críticos. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14(1), 81-95. doi: 10.1590/S0102-79722001000100007
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). Não se manteve contato com as famílias nos meses posteriores, o que seria interessante, já que a adaptação pode sofrer retrocessos ao longo do desenvolvimento da criança.

Além disso, cabe ressaltar que o elevado nível escolar das participantes ajudou na riqueza das falas maternas quanto aos seus sentimentos e percepções com relação à adaptação do bebê à creche. No entanto, o modelo de análise utilizado pode não ter captado em profundidade esses aspectos ressaltados, o que poderia ser alcançado em um estudo de caso. Além disto, a análise realizada separadamente com relação aos aspectos associados às mães, aos bebês e à creche se deu apenas para fins didáticos, já que, na prática, essas características se entrelaçam, de modo que os comportamentos dos bebês, os sentimentos maternos e as reações das educadoras tendem a se influenciar mutuamente (Bossi et al., 2014Bossi, T. J., Soares, E., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2014). Adaptação à creche e o processo de separação-individuação: Reações dos bebês e sentimentos parentais. Psico, 45(2), 250-260. doi: 10.15448/1980-8623.2014.2.16283
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). Percebeu-se, ainda, que as mães não destacaram aspectos referentes às interações dos bebês com seus colegas e das educadoras entre si durante o período de adaptação, que também são aspectos importantes, já salientados na literatura (Amorim, Vitoria, & Rossetti-Ferreira, 2000Amorim, K. S., Vitoria, T., & Rossetti-Ferreira, M. C. (2000). Rede de significações: Perspectiva para a análise da inserção de bebês na creche. Cadernos de Pesquisa, (109), 115-144. doi: 10.1590/S0100-15742000000100006
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), como relações que ocorrem no ambiente da creche, para além das já citadas no presente estudo. A ausência desses aspectos nos relatos maternos pode ter ocorrido pelo fato de os bebês serem ainda pequenos e terem capacidade limitada de locomoção, demandando que as educadoras os colocassem uns perto dos outros a fim de estimular uma possível interação. Também, o fato de várias mães terem ressaltado que não puderam ficar com os bebês na sala do berçário limitou suas observações quanto às interações deles com os pares e das educadoras entre si.

Os resultados do presente estudo revelam a complexidade do período de adaptação, que envolve aspectos do desenvolvimento do bebê, da relação mãe-bebê e da dinâmica da própria creche, em particular da relação educadora-bebê. É plausível pensar que a creche exerce grande impacto frente aos aspectos facilitadores ou não deste período, no sentido de poder potencializar aqueles e amenizar estes, o que contribui para uma adaptação mais satisfatória para o bebê e a família (e as educadoras). Da mesma forma, a estruturação de um vínculo inicial entre educadora-bebê possibilita que as educadoras também se tornem figuras afetivas para os bebês, o que pode possibilitar o seguimento de seu processo de separação-individuação, por exemplo, mesmo distante da figura materna. Com isso, intervenções psicoeducativas, reflexivas e de sensibilização no contexto de creche merecem ser pensadas, a fim de proporcionar um acolhimento adequado a todos os envolvidos no período de adaptação, o que trará maior confiança às mães, às educadoras e, consequentemente, aos bebês. Dessa forma, a mãe tenderá a sentir-se mais segura com relação aos cuidados oferecidos na creche, e isto será transmitido e sentido pelo bebê. A própria educadora se beneficiará destas intervenções, proporcionando um cuidado ainda mais adequado e estimulador, ao ser ela mesma acolhida e acompanhada nos seus cuidados e interação com cada bebê.

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  • 1
    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (Processo No. 23038.009963/2010-27) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo No. 150512/2017-1).
  • 5
    Como citar este artigo: Bossi, T. J., Brites, S. A. N. D., & Piccinini, C. A. (2017). Adjustment of babies to daycare: Aspects that facilitate adjustment or not. Paidéia, 27(Suppl. 1), 448-456. doi:10.1590/1982-432727s1201710

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2017
  • Revisado
    15 Set 2017
  • Aceito
    18 Out 2017
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