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Percolação e o fenômeno epidêmico: uma abordagem temporal e espacial da difusão de doenças

Percolation and the epidemic phenomenon: a temporal and spatial approach of the illness spread

Resumos

O fenômeno da difusão epidêmica é considerado tanto no aspecto temporal quanto geográfico. A dinâmica populacional é descrita através da simulação Monte Carlo e a idéia de conectividade é utilizada na construção da analogia entre o fenômeno epidêmico e o da percolação, envolvendo coordenadas espaciais. O modelo estudado considera uma população idealizada, disposta em uma rede bidimensional e o mecanismo de espalhamento da doença, essencialmente estocástico, processa-se através de contatos efetivos entre vizinhos adjacentes. Vários graus de vizinhança e de heterogeneidade espacial, envolvendo diferentes concentrações de imunes e susceptíveis, foram considerados. Uma generalização do conceito de percolação é utilizada como instrumento de medida, possibilitando a identificação do estado, ou fase epidêmica, no aspecto geográfico. Os resultados obtidos permitem associações à vários conceitos da Epidemiologia (imunidade de massa, processo e estado epidêmico) através de uma visão ampla, envolvendo explicitamente as dimensões espaciais. Alguns resultados numéricos encontrados incluem: (i)- determinação da duração do processo epidêmico em função da distribuição espacial inicial de indivíduos infectados, (ii)- efeito do "escudo topológico", na redução da difusão epidêmica.

resistência à doenças; simulação Monte Carlo; percolação


The phenomenon of epidemic spread is studied, considering equally the temporal and the geographic features. The populational dynamics is described through the Monte Carlo simulation, and the idea of connectivity is used to build an analogy between percolation and the epidemic phenomenum including spatial coordinates. The model considers an idealized population distributed in a bidimentional net, and the illness spread mechanism, essentially stochastic, is processed through effective contacts between the adjacent populational neighbours. Many degrees of neighbourhood were used, as well as several degrees of spatial heterogeneity, including different immune and susceptible concentrations. A generalized concept of percolation is used as a measurement instrument, making possible the identification of an epidemic state, or phase, in a geographic feature. The results allow many concepts of Epidemiology to be taken into consideration (as mass immunity, epidemic process and state) through a wider point of view, involving explicitly the spatial dimensions. Some numeric results include: (i)- the determination of the duration of the epidemic process as a function of the initial spatial distribution of infected individuals (ii)- the effect of the "topological shield" in the reduction of the epidemic spread.

illness resistance; Monte Carlo simulation; percolation


PERCOLAÇÃO E O FENÔMENO EPIDÊMICO:

UMA ABORDAGEM TEMPORAL E ESPACIAL DA DIFUSÃO DE DOENÇAS

C.B. dos SANTOS1; D. BARBIN2; A. CALIRI3

1Depto. de Física e Matemática-FFCLRP/USP, Ribeirão Preto, SP.

2Depto. de Matemática e Estatística-ESALQ/USP, C.P. 9, CEP: 13418-900 - Piracicaba, SP.

3Depto. de Física e Química-FCFRP/USP, Ribeirão Preto.

RESUMO: O fenômeno da difusão epidêmica é considerado tanto no aspecto temporal quanto geográfico. A dinâmica populacional é descrita através da simulação Monte Carlo e a idéia de conectividade é utilizada na construção da analogia entre o fenômeno epidêmico e o da percolação, envolvendo coordenadas espaciais. O modelo estudado considera uma população idealizada, disposta em uma rede bidimensional e o mecanismo de espalhamento da doença, essencialmente estocástico, processa-se através de contatos efetivos entre vizinhos adjacentes. Vários graus de vizinhança e de heterogeneidade espacial, envolvendo diferentes concentrações de imunes e susceptíveis, foram considerados. Uma generalização do conceito de percolação é utilizada como instrumento de medida, possibilitando a identificação do estado, ou fase epidêmica, no aspecto geográfico. Os resultados obtidos permitem associações à vários conceitos da Epidemiologia (imunidade de massa, processo e estado epidêmico) através de uma visão ampla, envolvendo explicitamente as dimensões espaciais. Alguns resultados numéricos encontrados incluem: (i)- determinação da duração do processo epidêmico em função da distribuição espacial inicial de indivíduos infectados, (ii)- efeito do "escudo topológico", na redução da difusão epidêmica.

Descritores: resistência à doenças, simulação Monte Carlo, percolação

PERCOLATION AND THE EPIDEMIC PHENOMENON: A TEMPORAL AND SPATIAL APPROACH OF THE ILLNESS SPREAD

ABSTRACT: The phenomenon of epidemic spread is studied, considering equally the temporal and the geographic features. The populational dynamics is described through the Monte Carlo simulation, and the idea of connectivity is used to build an analogy between percolation and the epidemic phenomenum including spatial coordinates. The model considers an idealized population distributed in a bidimentional net, and the illness spread mechanism, essentially stochastic, is processed through effective contacts between the adjacent populational neighbours. Many degrees of neighbourhood were used, as well as several degrees of spatial heterogeneity, including different immune and susceptible concentrations. A generalized concept of percolation is used as a measurement instrument, making possible the identification of an epidemic state, or phase, in a geographic feature. The results allow many concepts of Epidemiology to be taken into consideration (as mass immunity, epidemic process and state) through a wider point of view, involving explicitly the spatial dimensions. Some numeric results include: (i)- the determination of the duration of the epidemic process as a function of the initial spatial distribution of infected individuals (ii)- the effect of the "topological shield" in the reduction of the epidemic spread.

Key Words: illness resistance, Monte Carlo simulation, percolation

INTRODUÇÃO

Mesmo em nossos dias, depois de um significativo desenvolvimento da ciência/tecnologia, e dos séculos contados a partir da introdução pelo Homem da prática agrária, a epidemia de doenças em plantas implica em uma significante perda de alimentos, fibras e reservas biológicas em todo o mundo. Desse modo, esforços contínuos para uma ação efetiva são necessários. E é através da Epidemiologia que todos os conhecimentos sobre fatores relacionados ao agente patogênico, ao hospedeiro e ao meio ambiente, relativos à história natural da doença e ao mecanismo de propagação da mesma, são agregados para uma planificação da estratégia de solução de problemas da população, ou seja, para obtenção de medidas preventivas aplicáveis. O moderno conceito de Epidemiologia baseia-se em seu significado etimológico: "a ciência dos fatores que exercem seus efeitos na, sobre, ou para a população" (Leavel & Clark, 1978). Clark (1955) afirma que Epidemiologia é o campo da ciência referente às relações entre vários fatores e condições que determinam as freqüências e distribuições de um processo infeccioso, uma doença ou um processo fisiológico em uma população. De forma geral, a tendência é utilizar o termo para se referir a eventos onde ocorram fenômenos de difusão de algum tipo de agente em uma determinada população. Em suma, a Epidemiologia é o estudo - envolvendo aspectos temporais e espaciais - das alterações ocorridas em uma população, devido a um complexo número de fatores, relacionado sempre a uma específica população de agentes patogênicos.

Segundo Fegies & Bergamin Filho (1985) "a incorporação de unidades de espaço aos modelos epidemiológicos, que até então, eram fundamentados exclusivamente na descrição do progresso da doença em função do tempo, se constitui um dos atuais desafios da Epidemiologia uma vez que estes modelos tendem a ser muito mais complicados do que simples modelos de doença em função do tempo". De fato, uma teoria suficientemente geral, que combine a variável tempo com as dimensões espaciais, envolvidas na dispersão epidêmica de doenças, embora de muita importância, ainda não existe. Contudo, vários aspectos desta deficiência podem ser satisfatoriamente sanados através de simulações computacionais (Kampneijer & Zadoks, 1977; Zadoks, 1979; Jeger, 1982; Lannou, 1992 e Shaw, 1994). As grandes vantagens que oferecem os métodos computacionais estão relacionados com a generalidade com que se pode tratar problemas neste campo. Não há limites de complexidade que não possam ser analisados com as modernas facilidades computacionais disponíveis, uma vez que trabalha-se sempre com sistemas "finitos", nos quais uma população de N = 1000, 10000 ou 100000 indivíduos é significativamente representativa para o problema em foco. No caso extremo, para cada unidade de tempo computacional (passo Monte Carlo), um número da ordem de N2 interações deverá ser atualizado. Assim, nestas simulações, pode-se incorporar detalhes ao sistema para verificar sua relevância, assim como alterar hipóteses iniciais e verificar suas conseqüências, sem que isso implique em qualquer dificuldade essencial. No momento, altos graus de sofisticação e eficiência têm sido atingidos com os métodos de simulação computacional, sendo os mesmos hoje considerados como parte integral da ciência, tanto no campo teórico/experimental como no aplicado (Gould & Tobochnik, 1988). Entre os vários métodos de simulação, destaca-se o método Monte Carlo que, em suma, mescla processos estocásticos e vínculos configuracionais do sistema (Bratley et al., 1983; Binder, 1984 e Binder & Heerman, 1988).

Neste trabalho, um modelo para a difusão epidêmica que envolve tanto variáveis temporais quanto as espaciais é proposto. O mecanismo pelo qual os agentes infectantes se propagam é considerado como essencialmente estocástico, com a chance por unidade de tempo de um indivíduo da população de susceptíveis se contagiar dependendo da configuração vizinha de indivíduos infectantes. A evolução temporal do sistema é determinada por simulação Monte Carlo.

O conceito de estado epidêmico foi estabelecido em função da abrangência geográfica da dispersão dos indivíduos infectados, em relação à área total considerada. Além da descrição da evolução temporal e espacial, é de interesse poder qualificar a gravidade e extensão de uma epidemia, através de meios adequados. De fato, a natureza de uma epidemia localizada, mesmo que o número de casos seja relativamente grande, pode ser muito diferente daquela que envolve uma grande extensão geográfica, mesmo que a fração de ocorrência seja pequena. Assim, somente o número de casos, por si só, não fornece toda a informação desejável e peculiaridades espaciais precisam estar presentes. Para cumprir essa finalidade, utilizou-se do conceito de percolação de sítios - generalizado neste trabalho, envolvendo vários níveis de vizinhos para melhor qualificar um sistema epidêmico - e o de "cluster" percolante, cuja existência, conectando um extremo a outro do sistema, caracteriza o estado epidêmico, diferenciando geograficamente um processo epidêmico localizado de uma pandemia. Assim, o termo epidemia é tratado tanto como processo quanto como estado.

A proposta de se usar o conceito de percolação como instrumento de medida do estado epidêmico, no aspecto geográfico, juntamente com o método de simulação Monte Carlo para a caracterização temporal da dinâmica epidêmica, exigiu que várias etapas conceituais e técnicas fossem superadas. Os temas desenvolvidos neste trabalho integram os seguintes itens: (i)- imunidade de massa: considerando o conceito generalizado de percolação, envolvendo várias camadas de vizinhos em relação a um indivíduo da população, determina-se inicialmente, para todos os casos envolvendo até quintos vizinhos, as frações mínimas de imunes presentes que não permite que haja percolação no sistema; (ii)- duração do processo epidêmico: no intuito de se determinar a melhor distribuição inicial dos indivíduos infectantes no sentido de se reduzir o tempo de duração do processo epidêmico, quatro possíveis casos foram considerados: distribuição aleatória dos indivíduos, todos agrupados no centro do sistema, num dos vértices e no centro de um dos lados do sistema; (iii)- topologia da rede: vários tipos de contatos na rede foram considerados, envolvendo em uma primeira abordagem, somente até primeiros vizinhos e, em uma segunda abordagem, até quintos vizinhos; (iv)- diagrama de fase: definindo p1 como a probabilidade de infecção, por unidade de tempo, de um susceptível através do contato com um único primeiro vizinho contaminado e introduzindo um tempo médio de sobrevivência ts, a cada indivíduo infectado, um diagrama de fase no espaço dos parâmetros (ts, p1) foi estabelecido, descrevendo uma região que corresponde ao estado epidêmico e outra ao estado não epidêmico. Nesta abordagem, o modelo adotado não permitiu uma discussão específica do estado endêmico, assunto este que será objeto de trabalho futuro.

Modelo Epidêmico e o Método Monte Carlo de Simulação

Como mencionado anteriormente, espacialmente, o sistema epidêmico será representado por uma rede bidimensional, onde cada sítio descreve um indivíduo ou uma microrregião do sistema. Assim, cada sítio da rede possui um atributo próprio que descreve sua conectividade geográfica para com as regiões (sítios) vizinhas. Então, para um par de vizinhos, descritos por i e j , atribuímos um valor sij = 1 se sua conectividade existe (por exemplo se os vizinhos são susceptíveis); do contrário, sij = 0 (como no caso de um imune e um susceptível, por exemplo).

Nesta abordagem, o fenômeno epidêmico é considerado como um processo descrevendo a evolução entre dois estados de equilíbrio isto é, estados nos quais flutuações do sistema representam processos reversíveis que mantêm o mesmo inalterado. Nesse contexto, quando a estabilidade do sistema epidêmico é quebrada através de alguma perturbação como, por exemplo, pela introdução de agentes infectantes novos, a evolução temporal e espacial do sistema se processa de forma dependente da rede de interações conectando cada sítio a vizinhos específicos. Assim, toda dinâmica do processo decorre do tratamento estocástico destas interações.

Para descrever a evolução temporal e espacial deste processo, seja a função probabilidade por unidade de tempo formal, variando de sítio a sítio, dependente de fatores locais e globais, descrita abaixo:

pi = pi (s i, jJ i, j, x i, j, m) (1)

onde i e j rotulam sítios da rede; Ji,j descreve o tipo de interação entre os sítios i e j (em geral Ji,j ¹ Jj,i) isto é, descreve como o sítio j influencia o sítio i (a soma sobre j determinando a influência de todos os vizinhos j's relevantes); o fator si,j pode assumir valores 0 ou 1, como anteriormente descrito; o termo xi representa características específicas do sítio i, como grau de susceptibilidade e, finalmente, m descreve a ação global sobre o sistema. Tal fator global age de forma idêntica sobre todos os sítios, como, por exemplo, alterações das condições climáticas (mudança significante de temperatura etc), em contraste com, os fatores locais que levam em consideração somente aspectos particulares dos pares de sítios considerados, assim como características próprias do sítio em questão.

O modelo introduzido aqui considera que uma doença se propaga através de contatos adequados entre vizinhos. Seja inicialmente, somente a influência dos primeiros vizinhos significante para a transmissão de uma doença. Desse modo, se um sítio vazio (susceptível) possui n primeiros vizinhos contaminados, e se sua chance de contágio para cada vizinho contaminado for p1, então a probabilidade p* dele se transformar em um enfermo (através de n contatos efetivos) é dada por:

p* = 1 - (1 - p1 )n (2)

onde p1 é a probabilidade de contaminação através de um único contato efetivo com um primeiro vizinho ocupado (contaminado). Neste trabalho, contudo, considera-se o caso genérico onde primeiros, segundos, terceiros, quartos e quintos vizinhos são diferenciados. Desse modo, se um sítio vazio possui n vizinhos contaminados, onde , e se sua chance de contágio para cada tipo-i de vizinho for pi, a probabilidade , dele se transformar em um enfermo (através de n1 contatos efetivos com primeiros tipo-1 vizinhos ocupados, n2 contatos efetivos com tipo-2 vizinhos, ..., n5 contatos efetivos com tipo-5 vizinhos ocupados) é dada por:

(3)

onde pi é a probabilidade de contaminação através de um contato efetivo com um tipo-i vizinho contaminado.

Redes de dimensões 100 X 100 são utilizadas e as seguintes relações para os valores dos pi's: p2 = 0,8 p1; p3 = 0,4 p1; p4 = 0,2 p1 e p5 = 0,05 p1, são consideradas. Assim, são construídos módulos computacionais capazes de executar, de forma geral, simulações de um sistema específico como cada caso particular possível do modelo acima delineado. As implementações foram obtidas através de simulação Monte Carlo, que de forma geral e simplificada, segue os seguintes passos, após as condições iniciais serem estabelecidas (introdução de alguns poucos infectantes):

- seleciona-se aleatoriamente um sítio i do sistema;

- se o sítio i corresponde a um susceptível, gera-se um número aleatório ri:

- determina-se o valor de pr*;

- se pr* ³ ri, altera-se então o estado do sítio i para infectado;

- se pr* < ri nada acontece ao referido sítio;

volta-se ao item 1 por um número de vezes pré determinado que convencionou-se chamar de passo Monte Carlo, que é utilizado como unidade de tempo e corresponde a uma varredura completa na rede. O sistema pára após todos os infectados serem removidos, ou quando um certo número de passos Monte Carlo for executado sem que um único susceptível seja infectado.

Uma outra generalização empregada neste trabalho refere-se ao que convenciona-se chamar de tempo de sobrevida ts. Se um indivíduo (sítio) é infectado (ocupado) no instante t, no instante posterior t + ts, o mesmo passa à condição de removido (morto ou imune), e portanto não mais volta a ser susceptível ou infectar outro susceptível.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Imunidade de massa, processo e estado epidêmico: Inicialmente, foi concentrado o interesse no fenômeno epidêmico em si. Mais especificamente, o primeiro objetivo foi caracterizar o estado epidêmico através da analogia com o conceito de percolação. Nesse intuito, foram analisadas diversas condições iniciais, caracterizadas por diferentes frações de indivíduos imunes e espalhados aleatoriamente por entre os susceptíveis. Note que na prática os imunes alteram a conectividade da rede, isto é, se o indivíduo i é imune, então si,j = 0 para qualquer j. A interação entre infectados e susceptíveis foi considerada através de contatos efetivos e, distâncias correspondentes até no nível de quinto vizinho na rede, foram incluídos. Os resultados são apresentados na TABELA 1 que registra os valores representativos das frações médias críticas de indivíduos imunes necessárias para que o sistema não alcance o estado epidêmico, ou seja, para que não se verifique a presença de um "cluster" percolante. Tais frações correspondem aos valores complementares que determinam as probabilidades críticas de ocupação dos sítios para que ocorra percolação, considerando somente a interação de 1os vizinhos, depois de até 2os vizinhos etc., até o caso que envolve dos 1os vizinhos aos 5os vizinhos (Tatsumi, 1980). Deste modo fica evidente que o aparecimento do "cluster" percolante de indivíduos infectados ocupando uma fração crítica pc do sistema é evitado com uma fração de ocupação (1 - pc) de imunes sobre o mesmo. Este resultado, além de comprovar o funcionamento adequado do programa computacional, mostra-se robusto em relação aos detalhes dos mecanismos de transmissão de uma moléstia.

A analogia entre o conceito de percolação ("cluster" percolante) e o conceito de imunidade de massa é imediata. Não é necessário que 100% da população seja imune à um determinado tipo de doença para que haja um controle da mesma, mas a porcentagem de imunes necessita assegurar o controle, mesmo com variações da doença e das condições da população (Brock et al., 1984).

Assim, nesse contexto, um sistema no estado epidêmico pode ser diferenciado de um outro no estado não epidêmico pela existência do "cluster" percolante. O fato de existir uma distância máxima permitida entre dois infectados para que os mesmos sejam considerados como pertencentes a um único "cluster" pode ser julgado como restritivo, porém configurações com alta homogeneidade podem ser mostradas como estatisticamente desprezíveis e, portanto, não deve alterar significativamente os resultados.

A idéia de estados, como os aqui analisados, necessariamente envolve a expectativa de transição entre os mesmos, quando de alguma forma, perturbações significativas são introduzidas. Desta forma, entende-se aqui como processo epidêmico qualquer evolução temporal do número de infectados do sistema, independente se o sistema evolui para um aumento ou diminuição deste número.

Aqui, também, um conceito importante é o de multilinhas (Wolf, 1985). Cada um dos indivíduos faz parte de um todo e é de interesse que os fenômenos de resistência e susceptibilidade sejam considerados no grupo como um todo. Além do agente patogênico e suas fontes de transmissão, a proporção de imunes e susceptíveis bem como sua distribuição sobre o sistema são parâmetros que devem ser levados em consideração. Evidentemente, que quando o aspecto dinâmico é incorporado ao sistema, estas frações serão de alguma forma influenciadas pelos diversos parâmetros que poderão ser incluídos ao modelo.

Duração do processo epidêmico: A influência da distribuição espacial inicial dos indivíduos infectados no tempo de duração do processo epidêmico é muito forte. Sua determinação, além de reproduzir importantes resultados da Epidemiologia, (Watve & Jog, 1997), tem implicação direta na eficiência dos programas computacionais, em vários sentidos (o tempo propriamente dito e a diminuição dos efeitos de tamanho do sistema, por exemplo). Para este estudo, uma fração de 1% de indivíduos do sistema foram "infectados" e distribuídos por entre os susceptíveis de quatro formas diferentes, a saber: concentrados no centro do sistema; concentrados em um de seus vértices (rede quadrada); concentrados no centro de um dos lados do sistema e espalhados aleatoriamente. Utilizou-se o modelo expresso pela equação (3), onde o valor de p1 foi fixado em 0,01. Os valores obtidos para os tempos médios estão apresentados na TABELA 2, revelando claramente que o tempo de duração do processo é tanto menor quanto maior for a "área de contato" entre infectados e susceptíveis.

A análise de variância (a = 0,05) empregada na comparação dos tempos finais de infecção para as quatro diferentes distribuições iniciais de infectados, forneceu F = 2370,58 (p << 0,05). Foi utilizada a transformação y = (x + 0,5)½ para a homogeneidade das variâncias. Pelo resultado do teste de comparações múltiplas de Tukey todos os tempos são estatisticamente diferentes entre si, confirmando assim que o processo epidêmico desenvolve-se mais rapidamente quando os infectados estão inicialmente espalhados aleatoriamente sobre o sistema e de forma mais lenta quando os mesmos encontram-se agregados em uma certa área geográfica.

Tais resultados realmente confirmam que a distribuição espacial inicial dos infectados pode causar um impacto substancial sobre o processo epidêmico. De fato, quando um certo número h de infectados estão inicialmente espalhados aleatoriamente sobre o sistema, o tempo médio de duração do processo epidêmico (isto é, infecção total dos susceptíveis) é muito menor do que o tempo médio de duração quando o mesmo número h de infectados encontram-se agregados em uma certa área geográfica. Neste caso as simulações mostram então que o processo epidêmico desenvolve-se de uma maneira muito mais lenta - podendo então ser mais facilmente controlado - quando os infectados encontram-se a uma determinada área geográfica menor do sistema.

Topologia da rede: Para se estabelecer o modo pelo qual vizinhos mais distantes influenciam a infecção de susceptíveis, dois casos foram analisados através do modelo probabilístico descrito pela equação 3. Em um dos casos, interações até quintos vizinhos foram consideradas, enquanto que no outro, somente interações até segundos vizinhos. Em ambos os casos o valor de p1, isto é, a probabilidade de infecção por unidade de tempo através do contato com um único primeiro vizinho contaminado, foi fixado em p1 = 0,03. Os resultados para tamanho médio do primeiro "cluster" percolante (S0) (tamanho de um "cluster" é associado ao número de sítios à ele pertencentes e não à sua dimensão espacial), tempo médio para o aparecimento do primeiro "cluster" percolante (t0) e tempo médio de duração da epidemia (tf), obtidos através de 30 simulações para cada caso, estão apresentados na TABELA 3.

O resultado do teste t de Student (a = 0,05) mostra diferenças significativas entre todas as variáveis estudadas em ambos os casos: quando contatos somente até segundos vizinhos são considerados, o tamanho médio do primeiro "cluster" percolante S0 = 6813,30 é estatisticamente maior do que aquele resultante quando contatos entre até quintos vizinhos são permitidos S0 = 6377,53 (t = -2,92, p = 0,005). Quanto aos tempos médios, tanto o de aparecimento do primeiro "cluster" percolante quanto o de duração da epidemia, são estatisticamente maiores no caso onde contatos efetivos somente entre até segundos vizinhos são considerados. Na comparação entre os tempos médios de aparecimento do primeiro "cluster" percolante, obteve-se p << 0,05 (t = -52,10) e, na comparação entre os tempos médios de duração da epidemia, p << 0,05 (t = -53,98). Para estas duas últimas comparações, foram feitas, respectivamente, as transformações y = log x e y = (x+0,5)1/2, para homogeneizar as variâncias. Essas transformações foram obtidas utilizando-se as escalas de potência de Tukey.

O conjunto destes resultados significa que quanto maior o alcance do efeito de um indivíduo infectante sobre um susceptível, mais efetivo é o processo de difusão epidêmica, o qual desenvolve-se muito rapidamente, embora o primeiro "cluster" percolante revele-se menor, sendo, portanto, menos denso do que aquele formado quando contatos entre vizinhos distantes são proibidos.

Diagrama de fase: Em todas as simulações consideradas até aqui, o critério adotado para finalizar o processo epidêmico foi o esgotamento total dos susceptíveis (que, em algum tempo foram infectados). Mas, a não ser que a doença seja extremamente severa, tal fato não é muito realístico. Assim, incorpora-se nas simulações um tempo médio de sobrevida, ts, associado aos indivíduos infectados, ou seja, um indivíduo infectado passa a condição de removido, caso se encontre naquele estado a um tempo maior que ts Considerando vários valores para a probabilidade de infecção por unidade, ou mais precisamente, 0,01 £ p1 £ 0,08, a ocorrência ou não do fenômeno da percolação foi analisado para diversos valores do tempo médio de sobrevida, (0 £ ts £ 10). Os resultados obtidos são mostrados, na forma de um diagrama de fase, na Figura 1. A sua análise revela que para os vários valores de probabilidades de infecção, p1, existem tempos de sobrevidas limites que "garantem" a sobrevivência de susceptíveis. Para cada ponto (p1, ts) um total de 100 amostras foram analisadas. A região mais escura representa aproximadamente 100% de percolação e a mais clara, aproximadamente 0% de percolação. Nota-se ainda que, para valores altos de p1, o tempo de sobrevida dos infectados deve ser extremamente curto para que susceptíveis sejam protegidos. Logo, o controle do tempo de remoção dos infectados (em função das probabilidades de infecção) pode ser um modo eficiente de se evitar grandes desastres epidêmicos.

Figura 1
- Diagrama de fase estado epidêmico / estado não epidêmico.

A Figura 2 mostra diversos estágios da evolução epidêmica durante uma simulação, como ilustração. Os valores dos parâmetros envolvidos na dinâmica foram p1 = 0,03, (i) ts = 2 e (ii) ts = 4. A Figura 2(a) descreve o desenvolvimento do processo epidêmico quando ts = 2. O processo finalizou-se no tempo médio equivalente a 237 passos Monte Carlo, com um número médio de indivíduos acometidos pela doença (removidos - sítios brancos e infectados - sítios vermelhos) equivalente a 61% da população. Notar que no final do processo (após 200 passos Monte Carlo) "ilhas" de indivíduos susceptíveis (sítios verdes), protegidos pelos removidos, podem ser vistas, isto é, a rápida remoção dos infectados, "barreiras" de indivíduos nesse estado vão se formando ao redor dos susceptíveis restantes do sistema, acabando por protegê-los, o que não ocorre em 2(b), quando ts = 4. Vale ressaltar que o processo epidêmico, nesse caso, finalizou-se no tempo médio equivalente a 179 passos Monte Carlo, com um número médio de indivíduos acometidos pela doença equivalente a 91% da população. Finalmente, para completar a ilustração, na Figura 3 são mostradas as curvas epidêmicas para ambos os casos. Ao se compararem as duas curvas epidêmicas nota-se que aquela equivalente ao tempo médio de sobrevida, ts , igual a 4 representa uma epidemia mais rápida, embora mais severa, do que aquela equivalente à ts = 2.

Figura 2
- (a) Evolução da dinâmica do processo epidêmico, quando um tempo de sobrevida, ts é assumido igual a ts = 2; (b) evolução da dinâmica do processo epidêmico, quando um tempo de sobrevida, ts é assumido igual a ts = 4.
Figura 3
- Curvas epidêmicas (número de infectados por unidade de tempo em função do passo Monte Carlo).

CONCLUSÃO

Neste trabalho, a introdução do conceito generalizado de percolação possibilita o estabelecimento de um estado epidêmico, em direta analogia com o "cluster" percolante, que por definição conecta um extremo a outro do sistema considerado. A introdução sistemática de imunes dispersos de forma aleatória na população de susceptíveis, permitiu a determinação de frações daqueles que evitam a difusão incontrolável da doença na população, indicando que quanto maior o poder de disseminação da doença, medido através dos diversos graus de vizinhança envolvidos, maior será a fração dos imunes necessária para que um efeito de blindagem se verifique, dando uma interpretação topológica ao conceito de imunidade de massa, basicamente devido ao aumento da "superfície de contato" entre infectados e susceptíveis. A incorporação de um tempo médio de sobrevivência, como um atributo adicional a cada indivíduo infectado, possibilitou associar à população duas fases distintas, epidêmica ou não. O rigor desta classificação, determinada por uma área no diagrama de fases, pode parecer sem importância prática, principalmente nas imediações da referida área, onde as diferenças na extensão do processo epidêmico não são significativas. Contudo, do ponto de vista do entendimento dos mecanismos envolvidos na difusão epidêmica, a identificação de diferentes fases do sistema é importante. Por exemplo, tal habilidade pode significar um ganho na nossa capacidade de descrever toda a dinâmica epidêmica, através do conhecimento dos valores dos parâmetros e atributos envolvidos.

AGRADECIMENTO

À CAPES pelo apoio financeiro.

Recebido para publicação em 10.07.97

Aceito para publicação em 05.05.98

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 1999
  • Data do Fascículo
    1998

Histórico

  • Aceito
    05 Maio 1998
  • Recebido
    10 Jul 1997
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