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Pedagogia cultural, gênero e sexualidade

Cultural pedagogy, gender, and sexuality

Resumos

A publicidade é um dos artefatos que estão inseridos em um conjunto de instâncias culturais e como tal funciona como mecanismo de representação, ao mesmo tempo em que opera como constituidora de identidades. Muito mais do que seduzir o/a consumidor/a ou induzi-lo/a a obter determinado produto, a publicidade comporta um tipo de pedagogia e de currículo culturais. Estes, entre outras coisas, produzem valores e saberes; regulam condutas e modos de ser; re-produzem identidades e representações; constituem certas relações de poder e ensinam modos de ser mulher e de ser homem, formas de feminilidade e de masculinidade.

gênero; sexualidade; pedagogia cultural; currículo cultural; publicidade


Advertising is one of the artifacts that are part of a set of cultural instances and, as such, it works as a mechanism of representation and operates as a mechanism for the constitution of identities. More than seducing consumers or inducing them to obtain a given product, advertising conveys a kind of cultural pedagogy and curriculum. These, among other things, produce values and knowledge, regulate behaviors and ways of being, re-produce identities and representations, constitute certain power relations and teach ways of being either a woman or a man, forms of either femininity or masculinity.

gender; sexuality; cultural pedagogy; cultural curriculum; advertising


Artigos

RUTH SABAT

Pedagogia cultural, gênero e sexualidade

Resumo: A publicidade é um dos artefatos que estão inseridos em um conjunto de instâncias culturais e como tal funciona como mecanismo de representação, ao mesmo tempo em que opera como constituidora de identidades. Muito mais do que seduzir o/a consumidor/a ou induzi-lo/a a obter determinado produto, a publicidade comporta um tipo de pedagogia e de currículo culturais. Estes, entre outras coisas, produzem valores e saberes; regulam condutas e modos de ser; re-produzem identidades e representações; constituem certas relações de poder e ensinam modos de ser mulher e de ser homem, formas de feminilidade e de masculinidade.

Palavras-chave: gênero, sexualidade, pedagogia cultural, currículo cultural, publicidade.

A maioria dos estudos realizados no campo educacional esteve por muito tempo voltado para a instituição escolar como espaço privilegiado de operacionalização da pedagogia e do currículo. Hoje, entretanto, torna-se imprescindível voltar a atenção para outros espaços que estão funcionando como produtores de conhecimentos e saberes, e a mídia é apenas um desses exemplos.

E é tomando a mídia como campo de pesquisa que discuto as representações de gênero e sexualidade na publicidade, a partir da perspectiva dos Estudos Culturais. A publicidade é um dos artefatos que estão inseridos em um conjunto de instâncias culturais e como tal funciona como mecanismo de representação, ao mesmo tempo em que opera como constituidora de identidades culturais. Muito mais do que seduzir o/a consumidor/a, ou induzi-lo/a a consumir determinado produto, tais pedagogia e currículo culturais, entre outras coisas, produzem valores e saberes; regulam condutas e modos de ser; fabricam identidades e representações; constituem certas relações de poder. Analiso em imagens publicitárias as representações de gênero e sexualidade e nesse contexto argumento que existem formas determinadas de pedagogia e de currículo sendo operadas em diversas instâncias sociais, por diferentes artefatos culturais.

Inicio analisando as representações de gênero e sexualidade em duas propagandas de roupas infantis, utilizando como ferramenta de análise a semiótica barthesiana. Em seguida, discuto a importância da relação entre texto e imagem enquanto elementos indissociáveis na re/produção de representações culturais. Num terceiro momento, apresento a forma como o discurso publicitário opera com o objetivo de re/afirmar valores e hábitos. Finalizo trazendo as argumentações sobre identidades de gênero e sexuais que estão dentro da perspectiva pós-estruturalista.

O que eu vou ser quando crescer?

Na primeira propaganda, um menino de mais ou menos dois anos de idade está sentado sobre uma mesa, numa sala que parece ser um escritório.1 1 Nova, ano 25, n. 2, fevereiro de, 1997, p. 31. O ambiente reflete sobriedade, considerando alguns significantes como a madeira pesada e escura do móvel, a poltrona em couro e as cortinas discretas. À esquerda vemos parte de um computador que, por estar desligado e isolado de outros acessórios que sempre o acompanham — disquetes, livros, papéis — mais parece um elemento natural à cena, ao mesmo tempo em que dá um discreto toque de modernidade. A composição da imagem em branco e preto complementa o ar de sofisticação, ao mesmo tempo em que empresta à criança a idéia de um futuro que já é presente: sua história já está determinada. Por sua atitude natural, pés descalços, sorriso moleque, o menino — que segura um carrinho de brinquedo e tem o olhar voltado para fora da cena — converge para si a atenção do leitor ou da leitora. O desenho de um cachorro estampado em sua camiseta é a imagem da autoconfiança, qualidade necessária a seu futuro do modo como está traçado: qualidade "intrínseca" à masculinidade.

A presença do menino aqui nesse ambiente tão sóbrio faz com que ele represente o futuro, uma relação comumente estabelecida quando se trata de crianças. Em contrapartida, a sobriedade do ambiente não remete ao passado, mas sim à idéia de que o lugar do menino já está aqui, está pronto e é este. O ambiente, ao mesmo tempo, remete para a desejada clientela do produto que, com certeza, não inclui pessoas da classe trabalhadora, pois a qualidade dos móveis aponta para uma sofisticação diretamente ligada a um nível sócio-econômico mais elevado.

A mensagem lingüística que está na parte superior da página diz: "Grandes decisões. Por enquanto ele precisa de Tip Top". Por enquanto as decisões ainda não pertencem a ele, nem mesmo no que se refere à roupa que deve vestir. Podemos constatar isso através da explicação técnica sobre o material utilizado na confecção do tecido, que é antes de tudo o que justifica sua legitimidade, tanto quanto a legitimidade daquele ambiente próprio à tomada de grandes decisões.

A outra propaganda nos diz: "Futura mamãe. Por enquanto ela precisa de Tip Top".2 2 Nova, ano 25, n. 2, fevereiro de 1997, p. 33. Na imagem, ocupando o centro e o lado esquerdo da página, vemos uma menina que aparenta dois anos de idade. Ela segura atrás de si um carrinho de bebê de brinquedo, onde traz uma boneca (o vestido não deixa dúvidas de que se trata de uma boneca). A roupa da menina é uma saia e uma blusa na qual vemos, apenas parcialmente, o desenho do ursinho Puff. Com os pés descalços, a menina olha diretamente para a leitora ou para o leitor.

Aqui não há cenário. A composição da fotografia em branco e preto mostra a menina com seu carrinho de bebê. É só. No fundo preto há um foco de luz que se reflete atrás da criança como uma luz no fim do túnel. Essa idéia é reforçada pelo olhar triste da "futura mamãe". Ao que parece este é seu lugar de passagem para aquilo que ela se tornará: a forma como seu cabelo está penteado nos remete a uma pequena mulher, e a ela resta cumprir esse papel.

Alguns signos presentes nas duas propagandas têm força maior na leitura de como o gênero está representado. Sem dúvida, a força do texto conduz o leitor e a leitora pelas mãos ao desenhar o futuro daquelas crianças: "grandes decisões" para o menino, "futura mamãe" para a menina. Entretanto, se retirarmos essas frases da imagem, ainda podemos identificar outros signos que compõem representações específicas sobre o futuro homem e a futura mulher que estão sendo narradas ali. O carrinho de bebê para a menina, seu olhar triste e submisso, contrastam com o sorriso maroto e confiante do menino sentado sobre a mesa, sobre o futuro. É como se o que está por vir estivesse sob seu controle e ele fosse dono até mesmo do desconhecido, enquanto a menina traz em seu olhar a insegurança de quem será conduzida a algum lugar, o que não depende de sua vontade; a ela resta cumprir seu destino.

De outro modo, se tentamos substituir o menino pela menina, e vice-versa, em cada uma das imagens, podemos perceber como a narrativa torna-se diferente e, em certo sentido, improvável. Se, por um lado, é possível imaginar a menina sentada naquela mesa, de modo que a imagem continue a fazer sentido, por outro lado, o que pensar de uma propaganda que fale do futuro mostrando um menino brincando de boneca? Nesse caso, pensar em termos de deslocamento de significantes serve como meio de identificar como a representação da mulher — mesmo que ainda esteja bastante ligada a representações mais tradicionais, como a maternidade, por exemplo — consegue dispor de um número maior de significados do que a representação do homem.

Os anúncios se propõem a vender roupas infantis, e vender é a função da publicidade. Entretanto, como destaca Everardo Rocha,3 3 ROCHA, 1994, p. 27. "um produto vende-se para quem pode comprar, um anúncio distribui-se indistintamente"; ou seja, posso nunca comprar uma roupa Tip Top, mas estou consumindo seus anúncios, não apenas por estar trabalhando com eles aqui, mas porque esteticamente são atraentes. Eles convidam a leitora ou o leitor a parar e olhar para a imagem. O simples fato de trazerem crianças, por si só, já é um elemento atrativo, visto que em nossa sociedade uma criança sempre nos remete a significados como pureza, inocência, esperança. A imagem de uma criança tem um grande apelo afetivo, além do quê, incorpora a idéia de tempo futuro.

É precisamente em situações como essas que podemos ir aos poucos identificando e traçando pistas de uma pedagogia e de um currículo cultural que se encontram na publicidade. É fácil imaginar que o que quer que seja mostrado num anúncio publicitário — cenários, situações, pessoas, paisagens — tem significativa importância, pois trata-se de um momento que está ali fixado e que, como tal, ele parece estar nos dizendo: este momento está aqui porque ele é importante e faz parte de nossa vida cotidiana. A publicidade não inventa coisas; seu discurso, suas representações, estão sempre relacionados com o conhecimento que circula na sociedade. Suas imagens trazem sempre signos, significantes e significados que nos são familiares.

No caso desses dois anúncios são ensinados modos de conduta para o menino e para a menina, crianças de cerca de dois anos de idade que já têm seus espaços delimitados, seus caminhos traçados, suas identidades configuradas. Mas é preciso não esquecer: o público para o qual a propaganda está voltada certamente não inclui tal faixa etária. Muito mais do que crianças, são jovens, mulheres e homens que vão lê-la, e são principalmente eles e elas que aprendem com essa pedagogia, que ensina através das imagens e que tem seus signos produzidos socialmente pela cultura.

A escritura visual

Em um anúncio publicitário, imagem e texto constituem uma unidade narrativa que tem como objetivo proporcionar ao/à consumidor/a uma leitura correta a respeito daquele produto que está sendo anunciado. Na publicidade, normalmente, essa é a função do texto: informar sobre as qualidades e as vantagens de um produto ou serviço. Para Roland Barthes, a presença do texto, que ele chama mensagem lingüística, é inevitável. Já que sua função é exatamente a fixação do sentido das imagens, tal mensagem seria uma das técnicas desenvolvidas pelas sociedades, "destinadas a fixar a cadeia flutuante dos significados, de modo a combater o terror dos signos incertos".4 4 BARTHES, 1990, p. 32. A palavra impediria que a leitora ou o leitor atribuíssem a elementos da cena significados que não tivessem relação com o produto anunciado. Desse modo, a mensagem lingüística estaria exercendo controle sobre a imagem e, digo ainda, sobre aquele/a que olha.

De modo algum compreender a mensagem lingüística como fixadora significa que ela desempenhe efetivamente esta função; afinal a presença do texto ou da legenda não anula toda a rede de significados culturais que a leitora e o leitor trazem consigo, impedindo-a/o de fazer inferências que podem ir além da tentativa de fixar sentido pela palavra. Ao mesmo tempo, aceitar a possibilidade de que a palavra pode fixar os significados de uma imagem é afirmar que há entre elas uma relação direta de correspondência, ou seja, é afirmar ser possível através de palavras traduzir uma imagem em todas as suas dimensões. Sendo texto e imagem linguagens diferentes, a única relação possível entre eles é de articulação, de complemento ou de justaposição, mas nunca de substituição.

Ao buscar os signos das imagens, de alguma forma tentei trabalhar sobre os limites, sobre o espaço tênue que separa palavra e imagem, movimentando-me entre esses dois domínios. Entretanto, considerando que o material analisado é apenas a publicidade impressa, as próprias letras, as frases no papel, podem ser consideradas também imagens.5 5 MITCHELL, 1996. Elas também são signos, assim como outros elementos que estão ali, e portanto podem ser tomadas como significantes, embora numa relação mais distante, uma vez que o significado das palavras sempre nos parece menos polissêmico do que o significado das imagens.

Vendendo produtos e consumidoras/es

O que torna o exercício de análise ainda mais difícil é a forma como a publicidade se impõe. Os anúncios publicitários têm uma estrutura simbólica que se destina a nos convencer da importância e da necessidade que determinado produto pode ter em nossas vidas. É através da publicidade que o produto massificado, produzido em larga escala, é revestido de pessoalidade, de humanidade sendo associado aos sujeitos. A publicidade utiliza-se de um discurso de particularidade que leva o/a consumidor/a a estabelecer com o produto um tipo de relação pessoal. É como se aquele produto tivesse sido criado especialmente para cada um de nós, individualmente. Cria-se uma espécie de valor simbólico, que é um elemento constante no discurso publicitário, pois é através dele que são tecidas as relações entre produto e consumidor/a; é através dele que o produto desperta em nós algo tão subjetivo como o desejo.6 6 DA MATTA, 1984.

Nesse sentido, vários artifícios são usados para convencer o/a consumidor/a das qualidades e vantagens de determinado produto. Ao utilizar mulheres para divulgar marcas de sabão em pó, ou homens para divulgar marcas de cigarros mais fortes, o discurso publicitário está se apropriando de significados que estão circulando nas relações sociais. Ao mesmo tempo, ele está reafirmando — e naturalizando — essas mesmas representações através de algumas estratégias, como por exemplo mostrar as mulheres quase sempre dentro de casa, fazendo atividades manuais, ou expondo o corpo como objeto do prazer masculino. Quanto aos homens, estes são mostrados freqüentemente relacionados à força, à determinação; aparecem muito mais em ambiente abertos, próximos da natureza; o ambiente fechado fica restrito ao escritório: o discurso publicitário nos vende para nós mesmas/os.7 7 WILLIAMSON, 1994.

Ao utilizar essas estratégias como forma de atingir consumidoras/es, a publicidade está trabalhando a partir de um currículo cultural que é constituído nas relações sociais e que opera como constituidor dessas mesmas relações. Tal currículo cultural faz parte de uma pedagogia específica, composta por um repertório de significados que, por sua vez, constroem e constituem identidades culturais hegemônicas. Pelas imagens publicitárias, podemos observar como as relações de gênero estão sendo vistas por determinada sociedade, ou seja, quais os significados mais ligados às mulheres e aos homens, ou quais os significantes mais diretamente relacionados aos comportamentos masculinos e femininos desejados socialmente.

Na disposição de vender determinada idéia ou produto, é produzida uma pedagogia que narra o sujeito como independente e livre para escolher, ao mesmo tempo em que opera com mecanismos de (auto)controle e de (auto)regulação, normatizando as relações sociais e materializando-as através das imagens. Os carros utilitários, por exemplo, aparecem sempre dirigidos por homens; a exceção é quando a mulher está indo levar os/as filhos/as à escola: nesse momento ela precisa de um carro grande, não para vencer obstáculos de um rally, mas sim para carregar a prole. Portanto, é importante não esquecer que o discurso publicitário não é autônomo, não tem vida própria: quando a publicidade fala, também nós estamos falando. Os produtos anunciados são construídos pelo discurso publicitário como objetos portadores de qualidades humanas, que são capazes de mudar o presente e o futuro, que podem controlar e conduzir desejos, que solucionam nossos problemas, que dizem coisas a respeito de nós mesmas/os.

Pensar no plural

Identificamo-nos com diferentes categorias que se formam em torno do sexo, da raça/etnia, da sexualidade, por exemplo. A teoria social contemporânea tem discutido a identidade em termos culturais, o que significa dizer que sua constituição é compreendida a partir de uma perspectiva na qual importam momentos determinados histórica e culturalmente, que constituem identidades não definitivas, nem universais. As identidades culturais são constituídas a partir das diferentes formas como grupos sociais se reconhecem entre si. Ou seja, as identidades culturais não são dadas a priori, não são preexistentes aos sujeitos, elas se constituem no processo de representação de um grupo, sempre em relação a outros grupos, que carregam características diferentes daquele que está sendo representado. A questão das identidades emerge em meio a processos de desigualdade, produzidos a partir de diferenças. Emerge quando grupos sociais não se reconhecem como iguais. Das identidades culturais, importam-me aqui, particularmente, as identidades de gênero e as identidades sexuais.

O gênero está presente nos estudos feministas desde o final da década de 60 e tem sido abordado a partir de perspectivas diversas que vão desde a teoria marxista até a perspectiva pós-estruturalista. Não há um marco teórico único de onde partem as discussões de gênero. Os movimentos feministas não têm a mesma posição teórica ou política e isso faz com que os direcionamentos ou estratégias de luta dos diversos grupos também sejam diferentes. Por esse motivo, é necessário dizer que a forma como utilizo o conceito de gênero neste artigo está inserida na perspectiva pós-estruturalista, na qual ele tem suas especificidades também.

Como categoria de análise na perspectiva pós-estruturalista, gênero surge como um conceito para se referir a masculinos e femininos de forma diferente do que se compreendia como sexo.8 8 SCOTT, 1995. Aqui é enfatizado o aspecto relacional entre mulheres e homens, rejeitando o sentido de determinismo biológico e passando a envolver valores construídos socialmente que não dizem respeito unicamente às mulheres, mas a femininos e masculinos.

Utilizando-se do potencial analítico do conceito de gênero, pesquisadoras e pesquisadores feministas vão tentar desconstruir as perspectivas de estudo baseadas em distinções tradicionais, desafiando por exemplo o argumento clássico de que as diferenças biológicas justificam os papéis sociais pré-determinados que as mulheres e os homens devem desempenhar na sociedade. Para Guacira Louro, "[é] necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas, que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico".9 9 LOURO, 1997, p. 21.

O movimento feminista ganha força no início dos anos 70, quando a teorização feminista, através dos Estudos Feministas, pretendia uma virada epistemológica e não apenas a adaptação da história oficial à história das mulheres. De fato, os Estudos Feministas começam se preocupando com as mulheres para em seguida estudar a construção social de femininos e masculinos.10 10 LOURO, 1998. As verdades elaboradas a partir das diferenças biológicas que naturalizavam as relações estavam fortemente inscritas em mecanismos de poder, mesmo tendo como ponto de partida o determinismo biológico ou a causalidade econômica. Mas a idéia de poder presente nesses movimentos colocava a mulher numa posição vitimizada, sofrendo a opressão social e limitada a alguns movimentos organizados de resistência. Essa nova perspectiva permitiu uma análise do gênero totalmente inserida no campo histórico-social, desconsiderando o caráter exclusivamente biológico do sexo, pois este passou a ser visto também como uma construção social e histórica, como "uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado".11 11 LOURO, 1997, p. 75.

As identidades sexuais não são naturais e sim adquiridas, mas não é exatamente essa a idéia mais comum. Existe um discurso de heteronormatividade,12 12 Michael Werner apud BRITZMAN, 1996, p. 79. isto é, uma "obsessão com a sexualidade normalizante, através de discursos que descrevem a situação homossexual como desviante". Nesse sentido, condutas sexuais que fogem da heterossexualidade são consideradas problemas clínicos da psicologia ou da medicina. Essa medicalização da sexualidade atribui às identidades sexuais um caráter natural, separado de um conjunto de fatores culturais que estão aí presentes. Entendo que as formas de exercer a sexualidade precisam ser discutidas como construções sociais que resultam de um conjunto de regras traçadas para a organização social de um determinado grupo e que como tal estão atravessadas por relações de poder. Tais relações constroem modelos de comportamento que devem ser aceitos ou que são recusados por sua "ausência de normalidade" e dessa forma desafiam as representações dominantes.

A publicidade propõe representações de mulheres, de homens, de crianças, negras/os, velhas/os etc. Ela constrói um tipo de sexualidade adequado a cada sexo, ao mesmo tempo em que tenta preservar essas sexualidades. Mas a publicidade também subverte padrões já estabelecidos, não como forma de contestação e sim como um modo de chamar atenção para o produto que está à venda. Desse modo, encontramos alguns anúncios publicitários que trazem casais homossexuais, negras e negros e/ou pessoas com padrões de beleza que fogem da estética dominante. Ainda assim, esses casos são poucos e constituem muito mais uma apresentação de discursos que já circulam pela sociedade, como a homossexualidade por exemplo, do que uma decisão de tornar visíveis determinadas questões entendidas como "tabus" sociais. Para dizer de outro modo, quando a publicidade se utiliza da homossexualidade para vender algum produto ou serviço é porque de alguma forma esse discurso já está circulando na sociedade. Entretanto, é preciso não esquecer que ao apresentar esses sujeitos a publicidade os está ao mesmo tempo produzindo.

Na perspectiva de análise aqui utilizada, identidades sexuais carregam marcas de diferentes práticas sociais e culturais que são construídas através dos discursos produzidos na sociedade, pelos processos de representação. Segundo Jeffrey Weeks, "[a] sexualidade tem tanto a ver com as palavras, as imagens, os rituais e as fantasias como com o corpo".13 13 WEEKS, 1993, p. 6. Original em inglês. Tradução do espanhol. Portanto, as identidades sexuais são constituídas em meio a representações culturais e a relações de poder estabelecidas por um sistema de significados dominante, que impõe formas de comportamento e naturaliza relações que são construídas.

Por outro lado, ainda que apareçam com menor freqüência, comportamentos e hábitos recusados não estão de todo excluídos; podemos encontrar representações que ultrapassam o limite dos padrões normalizadores, provocando conflitos entre os modelos estabelecidos. É a partir de tais representações e das relações de poder nelas envolvidas que devemos buscar compreender de que maneira identidades de gênero podem ser constituídas e representadas pela publicidade.

É a partir dessa noção de identidade que as identidades de gênero e sexuais estão sendo vistas aqui. Deborah Britzman ressalta que mesmo as identidades heterossexuais são construídas, ou seja, elas não são naturais e estão em oposição às identidades homossexuais que seriam consideradas como desviantes.14 14 BRITZMAN, 1996. Ambas são negociadas em meio às relações sociais e de poder. Ambas estão relacionadas, mas nenhuma delas é de fácil definição, assim como não é simples compreender as relações que se estabelecem entre elas.

Construídas como são em meio a relações sociais, essas identidades também podem ser observadas nos anúncios publicitários se olhamos para os diferentes signos neles presentes. Para que questões de gênero ou de sexualidade sejam identificadas em algumas imagens, nem sempre é necessária a figura de um sujeito feminino ou masculino. Muitas vezes, simples objetos carregam marcas que aprendemos a relacionar com características próprias de femininos e masculinos. O que busco em minhas análises é identificar significantes que, em função de seu lugar em determinada cultura, contribuem para constituir identidades de gênero ou sexuais.

A masculinidade hegemônica, por exemplo, marcada por características como força física, agressividade, competitividade e heterossexualidade, nas últimas décadas está sendo minada por outros códigos de representação. Nesse ponto, é preciso dizer que falar em masculinidade hegemônica não significa dizer que existe uma forma correta de ser homem. Significa, isso sim, dizer que há um padrão construído que envolve determinados tipos de comportamentos, de sentimentos, de interesses. São todos significantes construídos junto a significados que constituem em determinado momento histórico o que é percebido como masculinidade, ou melhor, como a masculinidade, que se opõe à femininidade e que se sobrepõe a outras formas de masculinidade.

Segundo Robert Connell, uma forma de masculinidade específica "tem outras formas de masculinidades agrupadas em torno dela".15 15 CONNELL, 1995, p. 189. Há algumas décadas essas outras masculinidades vêm sendo representadas, tornando-se mais e mais visíveis, principalmente em instâncias culturais como a moda, com todo o aparato que a sustenta, ou seja, a mídia.

A conotação sexual em propagandas direcionadas ao público feminino é muito menor. Segundo Richard Taflinger, isso acontece porque o sexo para as mulheres tem mais significado em termos de futuro, ou seja, em termos de constituição da família, de realização da maternidade, enquanto que para a propaganda o que importa é vender um produto agora.16 16 TAFLINGER, 1998. Por isso a forma usada com mais freqüência nas propagandas dirigidas a mulheres é o romantismo. São contextos em que homens aparecem em ambientes ou situações românticas e não sensuais ou sexuais. Ignorando todos os movimentos das mulheres no sentido de tentar minar esses significados, a pedagogia da mídia insiste em significados construídos em momentos históricos em que as relações entre mulheres e homens eram permeadas por outros processos de significação.

O homem que serve de modelo carrega a conotação da representação mais corrente que se tem sobre masculinidade, aquela ligada à força, à virilidade, ainda que seu olhar, seu sorriso, estejam mais próximos do que ficou conhecido como o "homem da nova era", ou seja, aquele que privilegia maneiras suaves e carinhosas — atributos considerados marcadamente femininos. Entretanto essas últimas características são bem menos freqüentes na publicidade, como se pode verificar nas propagandas de carros utilitários, em cuja grande maioria o que vemos são homens e até meninos — sempre pessoas do sexo masculino — enfrentando as adversidades da natureza, atravessando estradas de terra, com diversos obstáculos. Eles são mostrados em ambientes abertos, amplos, sempre relacionados com o público, muito pouco com o doméstico.

Os significantes são muito semelhantes e utilizados como forma de ensinar por repetição. São significantes que vão constituindo um currículo cultural e, no caso deste estudo, ensinando representações hegemônicas de gênero. Tal como o currículo escolar, o currículo cultural envolve um conhecimento organizado em torno de relações de poder, de regulação e controle. Não se trata de afirmar que existe um lugar onde tal organização é detalhadamente planejada, mesmo porque tal lugar não existe. O que importa aqui é relacionar o conhecimento produzido pela publicidade com as práticas de autocontrole e auto-regulação que se concretizam na vida cotidiana, através do corpo, do comportamento, das relações sociais estabelecidas.

As representações, tais como aparecem na publicidade, não apenas refletem as diferenças tramadas nas relações de gênero, como também ajudam a constituí-las. A reprodução da diferença se dá socialmente através da representação e tem relação direta com as relações de poder que existem na sociedade. Aprendemos, por exemplo, que masculinidade e heterossexualidade são categorias idênticas, naturais e inquestionáveis. Nesse sentido é que devemos compreender a heterossexualidade também como um significante, e como tal produzida pela linguagem em meio a relações de poder. Segundo Deborah Britzman, "[n]enhuma identidade sexual — mesmo a mais normativa — é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha".17 17 BRITZMAN, 1996, p. 74. Grifos de Britzman.

Os códigos de masculinidade, assim como os de heterossexualidade, envolvem negociar e compartilhar significados nas próprias relações sociais. Compreender a identidade heterossexual como (re)produzindo-se permanentemente significa aceitar que a heterossexualidade — nesse caso a masculina — não é sempre prazerosa e tranqüila. Ao homem heterossexual atribuem-se funções como o sustento financeiro da família, o controle sobre suas emoções, o gosto por esportes, só para citar alguns dos elementos que compõem o capital sexual. Esses elementos, se ausentes em um homem, parecem "comprometer" sua sexualidade. Nesses termos é que a heterossexualidade pode ser entendida como um peso, como um caminho que, para ser trilhado, impõe normas rígidas a serem cumpridas. A impossibilidade de pôr em xeque essas normas, esses signos, está ligada ao caráter supostamente natural da heterossexualidade que prescinde de um questionamento de si própria como problemática. O problema é sempre a homossexualidade como seu outro, e é nesse sentido que Deborah Britzman afirma que "a rearticulação do significante "homossexualidade" exige que a heterossexualidade seja desvinculada dos discursos da naturalidade e dos discursos da moralidade. A heterossexualidade deve ser vista como uma possibilidade entre muitas".18 18 BRITZMAN, 1996, p. 83.

É precisamente em meio a esses discursos que representações hegemônicas de heterossexualidade são produzidas, e em torno dessas representações várias outras estão agrupadas, com menor visibilidade social. Entretanto, o fato de essas outras representações serem menos visíveis não significa que elas não encontrem espaços em diversas instâncias culturais.

E assim...

Ainda que sejam poucas, é possível localizar algumas rupturas em representações de feminino/masculino ou homo/heterossexualidade nas propagandas; algumas mostram homens e mulheres em espaços sociais até então restritos a apenas um dos sexos. Atualmente vemos propagandas de carros, cigarros, bebidas, em que mulheres estão presentes, ou propagandas de alimentos e equipamentos de cozinha feitas por homens. Entretanto, principalmente no que diz respeito aos homens, essa ruptura é imediatamente questionada, já que a representação é sempre marcada pela presença incomum de uma pessoa do sexo masculino em espaços sociais considerados femininos. Um claro exemplo são as propagandas de alimentos que mostram o homem cozinhando, quase sempre como hobby. Vale dizer que nas propagandas que pesquisei não encontrei imagens que trouxessem algumas dessas supostas rupturas em relação aos homens. Quanto às mulheres, é mais fácil encontrar propagandas onde somos mostradas ocupando espaços socialmente considerados masculinos; o mais freqüente deles é o escritório, o local público de trabalho. Contudo, a representação que permanece tendo mais força é aquela que relaciona femininidade ao corpo perfeito ou à possibilidade de maternidade e de família.

Em qualquer desses aspectos o que percebemos é que há uma pedagogia, um determinado tipo de currículo que opera através de uma lista de procedimentos e técnicas voltados para produzir e reproduzir tipos específicos de comportamentos, valores, hábitos, atitudes pessoais diretamente conectados com o tipo de sociedade na qual estão inseridos. É, sem dúvida, uma forma de regulação social que tem funcionado no sentido de manter tipos de espaços de segregação de gênero e de sexualidade

Referências bibliográficas

[Recebido para publicação em dezembro de 2000]

Cultural pedagogy, gender, and sexuality

Abstract: Advertising is one of the artifacts that are part of a set of cultural instances and, as such, it works as a mechanism of representation and operates as a mechanism for the constitution of identities. More than seducing consumers or inducing them to obtain a given product, advertising conveys a kind of cultural pedagogy and curriculum. These, among other things, produce values and knowledge, regulate behaviors and ways of being, re-produce identities and representations, constitute certain power relations and teach ways of being either a woman or a man, forms of either femininity or masculinity.

Keywords: gender, sexuality, cultural pedagogy, cultural curriculum, advertising.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      2001

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2000
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