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Herança e gênero entre agricultores familiares

Inheritance and Gender Identity Among Brazilian Farming Families

Resumos

Entender as lógicas de transmissão do patrimônio familiar, particularmente no caso da terra, levando-se conta as diferenças de gênero, exige identificar os distintos papéis reservados ao homem e à mulher na dinâmica de reprodução social. A compreensão de tais lógicas distintas requer que investiguemos os diferentes signficados do patimônio territorial em cada contexto social e cultural. Embora a herança seja baseada na noção de consanguinidade, as regras costumeiras não reconhecem os mesmos direitos para todos os filhos. É precisamente sobre essas diferenças de que trataremos nesse artigo, particularmente no que se diz respeito às distintas práticas derivadas das identidades de gênero. Buscar-se-á entender a lógica das diferentes formas de transmitir a herança e sua relação com a reprodução social de famílias de agricultores familiares em duas regiões distintas: no municipio de Nova Pádua, na região de influência de Caxias do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, e na região serrana do estado do Rio de Janeiro, município de Nova Friburgo

reprodução social; agricultura familiar; herança; identidades de gênero


To understand the rules by which family estates are transmitted among farming families, particularly in the case of land and taking into account gender differences, it is necessary to identify the distinct roles reserved to men and women in the dynamics of social reproduction. The understanding of these distinct logics requires the investigation of the different meanings that the territorial patrimony itself has in each social and cultural context. Although inheritance is based on the notion of shared blood, common law rules do not recognize the same rights for all children. It is precisely these differences that we will deal with in this article, particularly in respect to those differences derived from gender identity. We will be seeking to understand the logic of different forms of transmitting inheritances and their relationship with the social reproduction of farming families in two different regions: in southern Brazil (state of Rio Grande do Sul), among descendants of Italian colonists, and in the mountainous region of the state of Rio de Janeiro, among descendants of Swiss and German colonists.

inheritance; gender identities; social reproduction; farming family


Herança e gênero entre agricultores familiares

MARIA JOSÉ CARNEIRO

Resumo: Entender as lógicas de transmissão do patrimônio familiar, particularmente no caso da terra, levando-se conta as diferenças de gênero, exige identificar os distintos papéis reservados ao homem e à mulher na dinâmica de reprodução social. A compreensão de tais lógicas distintas requer que investiguemos os diferentes signficados do patimônio territorial em cada contexto social e cultural. Embora a herança seja baseada na noção de consanguinidade, as regras costumeiras não reconhecem os mesmos direitos para todos os filhos. É precisamente sobre essas diferenças de que trataremos nesse artigo, particularmente no que se diz respeito às distintas práticas derivadas das identidades de gênero. Buscar-se-á entender a lógica das diferentes formas de transmitir a herança e sua relação com a reprodução social de famílias de agricultores familiares em duas regiões distintas: no municipio de Nova Pádua, na região de influência de Caxias do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, e na região serrana do estado do Rio de Janeiro, município de Nova Friburgo

Palavras-chave: reprodução social, agricultura familiar, herança, identidades de gênero.

Compreender as regras de transmissão do patrimônio familiar, em particular a terra, entre agricultores familiares levando-se em conta as diferenças entre os gêneros exige que se reconheçam os distintos papéis reservados a homens e mulheres na dinâmica de reprodução social. Se considerarmos que, além dos bens materiais, outros tipos de bens, simbólicos, são transmitidos de uma geração a outra, verificaremos o papel crucial desempenhado pela mulher na dinâmica dessas famílias, não somente como elemento da produção ou do trabalho, mas também como elemento da reprodução: como guardiãs e transmissoras privilegiadas de valores.1 1 O presente artigo é fruto de uma pesquisa que venho desenvolvendo ao longo dos últimos cinco anos com uma equipe de alunos do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da UFRRJ e de bolsistas de IC e de Aperfeiçoamento do CNPq.

É importante ter-se em mente que as formas de transmissão do patrimônio mudam de acordo com o contexto histórico, econômico, geográfico, institucional, etc. Diferentes práticas sustentam-se em lógicas reprodutivas próprias e, portanto, não podem ser entendidas dentro de um concepção meramente formal, ou seja, da jurisprudência. A diversidade de soluções possíveis é fruto não apenas de diferentes tradições mas, sobretudo, de diferentes sistemas de reprodução cultural, social e econômica. Nestes termos, não existe uma rigidez de regras nem uma diversidade descontextualizada. A transmissão dos direitos sobre a propriedade familiar de uma geração a outra é objeto de múltiplas estratégias que variam de acordo com as condições de cada família, ou seja, com os instrumentos de negociação ou de compensação disponíveis, derivados tanto da sua história específica como da sua inserção na economia e na sociedade.

No entanto, não é sem contradições e tensões que esta situação é vivida. As questões relativas à transmissão da herança podem ser resolvidas, por um lado, no sentido de conduzir à fragmentação do patrimônio familiar e à inviabilidade da manutenção da unidade de produção, e por outro podem atuar no sentido de favorecer a integridade do patrimônio. De um modo ou de outro, é importante considerar tanto os custo individuais na obediência às decisões familiares quanto as perdas ou frustrações dos interesses coletivos em decorrência dos projetos individuais. É assim que situações tais como a partilha dos bens, a escolha do sucessor e a escolha do cônjuge escondem dramas individuais e sentimentos que não podem ser reduzidos à lógica do sistema, na medida em que também afetam a estrutura dos laços afetivos entre os membros da família. Disto nos persuade o estudo de Woortmann & Woortmann sobre a fuga como forma de resolver as dificuldades de realização do casamento em famílias de camponeses pobres do nordeste.2 2 Cf. WOORTMANN, 1993, e GOTMAN e LAFERRÈRE, 1992.

Diversos estudos têm apontado para a relação entre os modelos de partilha da herança e estratégias matrimoniais que têm como objetivo realizar, de maneira menos dramática possível, a passagem do patrimônio familiar de uma geração a outra, sem que a observância dos interesses do grupo seja abandonada ou gravemente ameaçada.3 3 BOURDIEU, 1972, LAMAISON e CLAVERIE, 1982, e SALITOT, 1988. Tais estudos nos revelam que a terra, como parte da ordem simbólica, tem significados que transcendem o seu valor econômico. Bourdieu observa que as estratégias familiares são acionadas para neutralizar a ameaça que cada casamento de um filho traz ao conjunto do patrimônio familiar. Com o objetivo de maximizar os lucros e/ou minimizar os custos (econômicos e simbólicos) do casamento, as famílias realizam alianças em condições diferenciadas, segundo as restrições impostas tanto pelo capital simbólico-cultural quanto pelo capital econômico à disposição de cada uma delas.4 4 BOURDIEU, 1972. Nestes termos, a transmissão do patrimônio e as demais regras de acesso à terra refletem não somente as condições sociais e econômicas das famílias, mas também a hierarquia interna destas últimas, e consolidam relações desiguais entre os indivíduos no interior do grupo familiar e na sociedade. Particularmente, reforçam posições diferenciadas entre os gêneros.

No Brasil, apesar do Código Civil estabelecer a igualdade de condições entre todos os filhos no que se refere ao direito sobre a herança, as regras culturais (os códigos costumeiros) modificam a lei de acordo com os "interesses" de um ator coletivo — a família —, que se impõe aos interesses individuais. Esta prática torna-se realidade principalmente quando o que está em jogo é a manutenção da integridade do patrimônio como condição para o funcionamento da unidade de produção, e para a reprodução de uma identidade social sustentada na propriedade fundiária e no trabalho agrícola. Este fenômeno, observado entre agricultores de origem italiana no sul do país, é também realidade em diversos países ou regiões, sobretudo os da Europa, como relata a bibliografia especializada.5 5 A bibliografia sobre este assunto é extensa; destacaria M. Salitot, 1988a e 1988b; G. Augustins, 1987; G. Augustins e R.Bonnain, 1981; P. Lamaison e E. Claverie, 1982; G. Ravis-Giordani, (dir.), 1987 entre outros. Lamaison e Claverie, num estudo sobre a relação entre o casamento, a violência e o parentesco em Gevaudan, França, dos séculos XVII a XIX, observam que a obediência ao princípio da igualdade universal entre os herdeiros ou a instituição de um herdeiro privilegiado é resultado das condições econômicas e sociais que, combinadas aos projetos familiares, se manifestam também nas estratégias matrimoniais.

Nesses casos, observa-se que as regras de transmissão recebem a legitimidade (com maior ou menor conflito) dos envolvidos na transação, sustentados que se encontram pelo "valor família." A família, entendida por esses atores como uma unidade cujos interesses coletivos devem ser preservados, se impõe como uma entidade supra-jurídica cujas regras internas (do mundo privado, da casa) são tidas como particulares, não devendo ela, portanto, submeter-se às determinações de qualquer ação estranha (exterior) e impessoal da justiça oficial. Assim, o que se estabelece dentro dos limites familiares deve ser respeitado e acatado por aqueles que se reconhecem (e são reconhecidos) como integrantes deste grupo.

De acordo com esta lógica, o pai, responsável pela manutenção do grupo familiar, recebe nominalmente um patrimônio, o direito à propriedade que não é entendido como individual. Ao contrário, a responsabilidade do pai é zelar por este patrimônio coletivo, cuidando de transmiti-lo às demais gerações. Esta propriedade, encarnada na figura do chefe da família, é o símbolo da unidade e da identidade familiar que deverá reproduzir-se no tempo através dos laços familiares e da partilha desigual. É importante registrar que, baseada embora na idéia da consangüinidade, regras consuetudinárias não reconhecem a todos os filhos os mesmos direitos.

Por outro lado, noutras situações — tal como se observou na região serrana do estado do Rio de Janeiro — a prática da partilha generalizada do patrimônio familiar, incluindo o direito da mulher à terra, aponta para condições específicas de produção e de reprodução social das famílias, práticas que são bem distintas daquelas observadas no Sul.

As lógicas de transmissão da propriedade pelo sistema de herança se articulam com os sistemas de reprodução social aos quais essas lógicas estão referidas, e sofrem influências dos valores da sociedade abrangente. Provocam-se assim crises e mudanças também nas relações intra-familiares, sobretudo no que se refere à desigualdade dos direitos entre homens e mulheres. É justamente sobre essas regras e mudanças em curso, sobretudo no tocante às diferenças advindas das identidades de gênero, que iremos tratar neste artigo.

Para entender estas lógicas distintas é certamente necessário buscar os diferentes significados que o próprio patrimônio — no caso, patrimônio territorial — assume em cada contexto social e cultural. Logo, partimos do princípio de que a terra não tem sempre o mesmo significado para os diferentes grupos de proprietários.

Falar de herança na sociedade camponesa implica reconhecer dois processos que se articulam: a escolha do sucessor — aquele que assegura a continuidade da exploração agrícola e a manutenção do grupo familiar — e a partilha dos bens, diretamente associada ao primeiro. Apesar da íntima relação entre os dois processos, trataremos aqui, especificamente, do segundo.

Buscar-se-á entender a lógica das diferentes formas de transmitir a herança, bem como a sua relação com a reprodução social de famílias de agricultores familiares em duas regiões distintas: no município de Nova Pádua, na região de influência de Caxias do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, e na região serrana do estado do Rio de Janeiro, município de Nova Friburgo. Ainda que ambas as regiões estudadas tenham sido originalmente povoadas por imigrantes europeus (descendentes de colonos italianos no primeiro caso e descendentes de colonos suíços e alemães, no segundo), a maneira como se processaram as ocupações desses territórios foi totalmente distinta num e noutro caso, o que, sem dúvida, teve conseqüências sobre a dinâmica de reprodução social desses colonos, resultando em realidades culturais e econômicas díspares para os seus descendentes.6 6 Para desenvolver as questões levantadas neste artigo, recorreu-se sobretudo a entrevistas para levantamento de genealogias, de histórias de famílias e de trajetórias individuais. No caso do estudo sobre os descedentes de migrantes de Nova Friburgo, a participação de uma historiadora na equipe permitiu recorrer-se também à pesquisa de arquivos locais e nacionais na tentativa frustrada de se resgatar as trajetórias de algumas famílias descendentes de migrantes. Além disto, a elaboração de uma dissertação de mestrado na mesma região, por uma integrante da equipe (cf. TEIXEIRA, 1998), ampliou o leque de informações sobre os agricultores dos distritos de Nova Friburgo.

O estabelecimento da agricultura familiar na região colonial italiana de Nova Pádua (RS)

As famílias entrevistadas e observadas no sul do país pertencem a uma única linha de descendência de um dos três irmãos que chegaram no Brasil em 1885 e se instalaram como colonos numa área que recentemente (1993) recebeu autonomia administrativa como município de Nova Pádua, referência ao local de origem dos imigrantes. Estabelecendo-se inicialmente em "colônias,"7 7 O termo "colônia" nesta região era usado, originalmente, para se fazer referência ao lote de terra recebido na época da instalação do migrante. Inicialmente, até 1851, os lotes eram de 77 hectares, diminuindo posteriormente para 48,4 hectares e chegando, finalmente, a 25 hectares a partir de 1889 (BRUM, 1988). Atualmente, este termo acabou por designar a pequena propriedade ou uma área territorial padrão, que na região estudada é de 25 hectares. Assim, os colonos referem-se à extensão das suas propriedades falando em tantas colônias ou tantas colônias e meia. esses migrantes dedicaram-se principalmente à agricultura, que se tornou a base da reprodução social dessas famílias — então bastante numerosas. Tal como o esperado pela política de colonização, desenvolve-se nessa região uma produção de alimentos voltada para o mercado interno, sustentada na pequena propriedade e no trabalho livre — familiar — de homens brancos.8 8 Há vários estudos sobre a colonização italiana no Rio Grande do Sul. Especificamente sobre a constituição do campesinato colonial, sugiro SANTOS, 1984. Sobre o papel atual da cultura italiana na reprodução social das famílias de colonos da região em questão, ver MOCELIN, 1993. Combinando a produção para o consumo próprio com a produção de mercadorias, esse campesinato caracterizou-se pela articulação íntima com o mercado, sofrendo assim as suas ingerências. Além da comercialização dos excedentes das roças de alimentos, esses colonos descendentes de italianos da serra gaúcha dedicaram-se, como se sabe, à produção de uva, inicialmente comercializada in natura e, posteriormente, transformada em vinho ou vendida para as vinícolas.

As transformações de ordem econômica, a partir da década de 40, marcaram o início do desenvolvimento das colônias, devido à expansão do comércio e às novas oportunidades de mercado.9 9 MOCELIN, 1993. A partir dos anos 60, os colonos começam a investir na aquisição de novas tecnologias, o que tem como efeito a melhoria da renda familiar. As décadas de 60 e 70 são marcadas pela diversificação da produção, com a introdução de pomares e hortifrutigranjeiros, possibilitando um rendimento mais regular durante o ano e a inserção no mercado de forma mais competitiva. Este período marca também a inserção definitiva desses produtores no mercado, associada à modernização tecnológica e à racionalização da produção, o que veio a resultar na liberação de parte da mão-de-obra familiar. A consolidação da pequena propriedade acelerou o processo de modernização da região e proporcionou a inserção dos colonos na sociedade de consumo, a partir da década de 70.

Acompanhando o processo de modernização agrícola e da expansão do mercado promovida pela ampliação da rede de rodovias, essas famílias desenvolveram estratégias diferenciadas de reprodução social para os seus filhos ao longo do tempo. Até à década de 60 a terra era o principal meio de sobrevivência, fazendo com que as famílias traçassem estratégias no sentido de ampliar o seu patrimônio e possibilitar assim a instalação de todos os filhos homens em unidades de produção agrícola. A partir dos anos dos 60, os esforços voltam-se para a preparação de alguns dos filhos para enfrentarem o mercado de trabalho urbano, o qual se expandia com o crescimento industrial de Caxias do Sul. Inicialmente, somente os homens migravam; mas o crescimento industrial de Caxias e a divulgação de valores centrados na realização do indivíduo, encarado não mais como um integrante de um coletivo — a unidade familiar — mas como um ser com um certo grau de autonomia, contribuíram para a participação da mulher no mercado de trabalho. Como veremos adiante, estas mudanças introduziram modificações nas práticas de transmissão do patrimônio.

Ainda hoje, a produção de uva é a mais importante de Nova Pádua. No entanto, os colonos que estudamos se distinguem pela produção de frutas de mesa, por possuírem propriedades acima da média do município e por um alto grau de mecanização. Os seus produtos, com melhor preço no mercado, possibilitaram um enriquecimento dessas famílias, sobretudo no início da década de 90. Este enriquecimento é visível na segunda fase de modernização das casas. Em substituição às antigas moradias, construídas em dois ou três andares em que se acomodavam simultaneamente até quatro gerações, as novas casas seguem o padrão urbano — tido como "mais prático e mais adaptado aos novos tempos."

Nova Pádua detém hoje uma população predominantemente rural. Isto revela o peso da agricultura para a manutenção dos seus habitantes e para a economia do município: 86% da população municipal se dedicava à agricultura em 1997, atividade responsável por cerca de 80% do rendimento municipal.

Predominam no município as pequenas propriedades, com cerca de 5 hectares, centradas na mão-de-obra familiar e no contrato eventual de empregados assalariados na época da colheita da uva. Apesar das adversidades geográficas, as propriedades rurais encontram-se bastante desenvolvidas no aspecto tecnológico, responsável pelos índices de produtividade altos relativamente à média nacional. Parte deste sucesso pode ser atribuída ao ethos de migrante, ethos este sustentado pela valorização do trabalho como base para a ascensão social e para a valorização do homem.10 10 MOCELIN, 1993. Esta situação contrasta fortemente com a dos agricultores de Nova Friburgo (RJ), particularmente aqueles dos distritos de Lumiar e São Pedro da Serra, como veremos abaixo.

No entanto, ainda que os valores reconhecidos como próprios à cultura italiana ainda sejam uma forte referência, observa-se entre os componentes das gerações mais novas a elaboração de uma versão moderna desses valores, os quais passam então a conviver com a contraposição entre a noção de indivíduo e a exclusividade da família como locus de socialização e de realização.11 11 CARNEIRO, 1999. O trabalho, por exemplo, que constitui a categoria cultural central no universo das primeiras gerações de colonos, também adquire uma nova significação; deixa de ser a expressão de um valor moral, e passa a ser encarado como tão-somente um meio de realização pessoal.12 12 MOCELIN, 1993. Naturalmente, o sistema de transmissão da herança não está imune a esta nova dinâmica. Durante três gerações, a reprodução social destas famílias de origem italiana se baseava num sistema que produzia herdeiros e deserdados; atualmente, as contradições entre o peso do "valor família" (um coletivo que se impõe aos interesses particulares dos seus membros) e o indivíduo (um valor da sociedade moderna, foco da realização pessoal) constituem uma ameaça para a reprodução do antigo sistema colonial.

A pequena propriedade agrícola na região serrana de Nova Friburgo (RJ)

A origem dos agricultores da região de Nova Friburgo está vinculada à primeira tentativa de colonização promovida no contexto da política colonial de D. João VI, em 1819. Por diversos motivos, a instalação desses agricultores se deu, logo de início, num contexto de grandes dificuldades e crises sucessivas.13 13 CARNEIRO, 2000.

Os lotes originais, com aproximadamente 108 hectares,14 14 NICOULIN, 1995. eram traçados de forma uniforme sobre um mapa, sem que se tomasse em consideração a geografia da região; assim, os chefes de família, após retirarem o seu lote através de um sorteio, tomavam conhecimento das suas características apenas ao desbravarem parte da mata que os cobria. Muitos se depararam com precipícios e solos não apropriados para a agricultura. Ao longo do tempo, este quadro fundiário se foi modificando, influenciado por várias razões: o processo de fragmentação por herança, que obedecia ao sistema de partilha igualitária; a migração de famílias para regiões vizinhas em busca de terras mais apropriadas para o plantio do café; e, mais recentemente, a intervenção de novos agentes integrantes da classe média urbana.15 15 SCHIAVO, 1991, e TEIXEIRA, 1998.

A constante peregrinação em busca de terras mais apropriadas para a agricultura ou de melhores condições de vida fora da atividade agrícola é, a nosso ver, uma importante chave para a compreensão da maneira como se processou a formação e a manutenção desses povoados, podendo fornecer uma explicação para a ausência de uma memória coletiva ou individual sobre os antepassados e seus costumes.16 16 CARNEIRO, 1998b.

A ausência de uma identidade social centrada na origem étnica, bem com a memória genealógica curta, distinguem esses migrantes dos descendentes de colonos europeus que se instalaram no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Ao contrário do que apontam os estudos sobre a colonização européia no sul do país,17 17 Ver SEYFERTH, 1985, e WOORTMANN, 1995. aqui predomina a falta de informação e de registro de memória sobre os ascendentes. Quando muito, há referências vagas sobre a figura de um avô e de um passado envolvido em muita luta pela sobrevivência (tal fator é apresentado como responsável pelo esquecimento de suas trajetórias). A ausência de memória genealógica pode ser interpretada também como um indicador da predominância de uma organização social baseada na família nuclear. Seja pela morte prematura dos avós, seja pela fragmentação e dispersão dos grupos, na região agrícola de Nova Friburgo não chegaram a constituir-se famílias extensas, tal como aconteceu nos núcleos coloniais do sul.

A insuficiência de recursos e a sobrevivência centrada no acesso à terra e na agricultura familiar exigiam freqüentes deslocamentos dessas famílias, em busca de uma condição estável: a propriedade de um lote — que significaria o abandono da condição de "parceiro" ou "colono" — ou terras melhor localizadas ou mais férteis. Além da adversidade da topografia, o costume da partilha igualitária da terra como forma de transmissão da herança também contribuiu para esse deslocamento, na medida em que a fragmentação contínua das propriedades acabou resultando em áreas insuficientes para a atividade agrícola. Diferentemente do processo de reprodução social dos colonos do sul, que contaram com fronteiras agrícolas para se expandirem e com um crescimento industrial que absorvia a mão-de-obra excedente, na região de Lumiar e São Pedro da Serra a fragmentação das propriedades esteve associada à mobilização espacial da população rural, em busca de terras mais férteis. O sistema de parceria surge como uma alternativa para o acesso à terra. Mas por mais perenes que sejam as relações entre proprietário e parceiro, este contrato implica, por princípio, uma relação transitória com a terra; tal fator é responsável pelo agravamento da situação de instabilidade do agricultor. Submetido a constantes negociações pelas condições de acesso à terra, o parceiro é muitas vezes levado ao rompimento do contrato ou à saída voluntária para outras áreas, na expectativa de melhores condições de produção.

O isolamento desses povoados perdurou até bem recentemente. Somente na década de 50 foi aberta uma estrada acompanhando o antigo trajeto das tropas de mula, que ligava o distrito de Lumiar à estrada de acesso à cidade de Friburgo. Mas é somente na década de 80, quando a estrada é asfaltada, que Lumiar começa a sentir e a se ressentir do contato com os "de fora", quando o lugarejo se torna uma atração turística.

Embora façam parte do contingente de pequenos produtores marginalizados no mercado, devido à baixa produtividade que alcançam, os agricultores de Lumiar e São Pedro da Serra não permaneceram alheios ao processo de modernização da agricultura dos anos 60. Favorecida pela abertura da estrada, a produção mercantil vai pouco a pouco se impondo, relegando ao segundo plano a produção para o consumo próprio e aumentando a dependência ao mercado, tanto na esfera da produção como na do consumo. As trocas dão lugar às relações monetárias, nas quais a figura do intermediário surge como mais um elemento de diferenciação entre os agricultores.18 18 SCHIAVO, 1997, e TEIXEIRA, 1998. A intensificação da dependência relativa ao mercado, que perdura até à década de 80, aumenta a fragilidade desses agricultores, integrados a uma rede de troca desigual com os intermediários e comerciantes. Neste contexto, foram poucos os que tiveram sucesso e uma trajetória ascendente pautada na capitalização e na modernização tecnológica. Ao contrário, a maioria deles é hoje composta de pequenos produtores que contam basicamente com a força de trabalho familiar, um pequeno lote de terra e instrumentos rudimentares.19 19 TEIXEIRA, 1998.

Estimulados pela situação favorável do mercado financeiro na década de 70, muitos desses agricultores venderam as suas propriedades, na ilusão de terem vidas melhores com o resultado da aplicação dos recursos obtidos na caderneta de poupança. Resultou daí que boa parte deles vivem hoje como assalariados das fábricas ou como ambulantes nas ruas de Nova Friburgo.

Ainda hoje, a agricultura que se desenvolve na região de São Pedro da Serra e Lumiar é expressão das dificuldades estruturais por que passaram as gerações anteriores. A referência que fazem às sucessivas crises que lhes afetaram a atividade agrícola denota o esforço renovado desses agricultores em redefinirem estratégias de sobrevivência, as quais variam de acordo com as possibilidades apresentadas pelo contexto econômico e social.

Atualmente, a produção agrícola desses distritos é bastante limitada em termos numéricos. A estrutura fundiária fluminense é caracterizada pela predominância de pequenos estabelecimentos agrícolas, com área inferior a 10 hectares, e os distritos de Lumiar e São Pedro da Serra não fogem a este padrão. A região á ocupada por pequenas e médias propriedades rurais, situadas na faixa abaixo de 100 hectares (cerca de 96%), sendo que prevalece a faixa de zero a dez hectares.20 20 TEIXEIRA, 1998. A produção agrícola, nestas condições, conta com o agravante das dificuldades de mecanização, devidas à topografia acidentada e à escassez de crédito e subsídios para o pequeno produtor rural; isto torna a produção pouca competitiva em termos de mercado regional. Há que se registrar também o baixo preço dos produtos desses agricultores no mercado, o que tem contribuído para agravar a sua descapitalização.

Soma-se a essas condições negativas o fato da região ter sido classificada como "área de preservação ambiental" subordinada à fiscalização do IBAMA, cuja legislação tem limitado sobremaneira a continuidade da lavoura ao impedir a queimada das capoeiras21 21 "Capoeira" é o termo utilizado regionalmente para designar a mata de recuperação da fertilidade do solo em áreas anteriormente plantadas por um período longo. A queimada da capoeira para o replantio, técnica tradicionalmente praticada pelos agricultores com poucos recursos para adubação, é hoje proibida pelos organismos de proteção ambiental. e o replantio nessas áreas. Resulta que os agricultores, além de todas as dificuldades a que estão submetidos, estão também sujeitos a multas caso realizem o desmatamento dessas áreas para fins de plantio.

Neste contexto, não espanta que testemunhemos uma crise aparentemente insanável da produção agrícola nesta região, e uma mudança nos padrões de vida que tem efeitos sobre a lógica de reprodução patrimonial. Ao contrário da região de colonização italiana, no Rio Grande do Sul, onde a agricultura se mantém competitiva no mercado, produzindo rendimentos importantes para as suas famílias, na região de Nova Friburgo observa-se uma retração significativa da área em lavouras e um crescimento do número de residências secundárias e de estabelecimentos turísticos, os quais vêm ocupando progressivamente áreas agrícolas. Como conseqüência, estas últimas têm o seu valor de mercado majorado de maneira importante.22 22 TEIXEIRA, 1998.

Juntamente com a expansão da exploração turística na região, a ampliação do mercado de trabalho fora da agricultura tem contribuído também para o abandono da atividade agrícola ou para a sua secundarização em termos econômicos. Uma das consequências disto é a excessiva fragmentação das terras, a qual torna os lotes insuficientes para a atividade agrícola. O recurso ao trabalho assalariado nos estabelecimentos turísticos ou nas construções de casas para os turistas acelera a ruptura entre a estratégia de manutenção da unidade de produção agrícola (centrada na propriedade familiar) e os interesses individuais, os quais se dirigem cada vez mais para a busca de uma remuneração individualizada fora da atividade agrícola. Disto resulta, a partir dos anos 90, uma queda significativa da população dedicada à agricultura, principalmente aquela que se ocupa com esta atividade em tempo integral, o que se reflete na retração acentuada da produção agrícola no mesmo período.23 23 TEIXEIRA, 1998.

A partilha desigual: os "herdeiros" e os "excluídos" entre os 'colonos' de Nova Pádua (RS)

Numa sociedade sustentada pelo trabalho agrícola, o principal bem transmitido é a terra. Esta divide-se entre, por um lado, a terra para exploração agrícola familiar e por outro as demais terras, trabalhadas ou não, adquiridas ao longo do desenvolvimento do ciclo familiar. Na sociedade colonial, a casa paterna recebia significação semelhante à maison descrita por Zonabend (1980) ou à casa analisada por Narotsky (1988). Estruturavam-se neste espaço as relações sociais de produção e de reprodução que orientavam as trajetórias de cada um dos membros do grupo doméstico.

Nas duas primeiras gerações das famílias de colonos,24 24 Os primeiros colonos italianos da região estudada chegaram ao Brasil em 1876. a sucessão e a herança da colônia cabiam normalmente ao filho mais velho.25 25 Este princípio nem sempre é respeitado. O pai tem a autoridade moral de "fazer o sucessor", escolhendo entre seus filhos aquele que melhor se adapta a esta posição (Cf. BOURDIEU, 1972, LAMAISON el alli, 1982, e SALITOT, 1988a). A escolha do sucessor era legitimada e publicitada à comunidade por ocasião do seu casamento. O padrão de família extensa, chegando a agregar até quatro gerações, era coerente com o sistema de reprodução social sustentado exclusivamente na exploração agrícola e na pouca mecanização. Conhecida como "família tronco," esse tipo de organização familiar se caracterizava pela residência patrilocal de um dos filhos e da sua prole, pela residência neolocal dos demais, e pela herança indivisível, na tradição européia. Na região colonial italiana do sul do país, a regra era manter a integridade da exploração agrícola familiar, que deveria ser transmitida ao sucessor. Os demais filhos ou se instalavam em áreas vizinhas recém adquiridas ou seguiam carreira religiosa. Para que estas regras fossem respeitadas, a herança era normalmente transmitida em forma de doação antes da morte do pai.26 26 SEYFERTH, 1985, e WOORTMANN, 1997.

A terceira geração enfrentou uma mudança neste padrão de sucessão. A necessidade de comprar terras para garantir o sustento de todos os filhos homens estendia a subordinação dos filhos à autoridade do pai mesmo após o casamento daqueles. Todos eram obrigados a trabalhar sob a tutela do pai até que fossem adquiridas terras para que os demais herdeiros se instalassem com suas famílias numa nova unidade familiar e de produção. A ultimogenitura se instala como tendência na medida em que são os mais velhos os primeiros a se casarem, ficando o mais novo como responsável pelos pais durante a velhice destes. Trata-se de um mecanismo de preservação da integridade da unidade de produção e de ampliação do patrimônio familiar. O pai continuava contando, assim, com a mão-de-obra do conjunto dos filhos e com a totalidade da renda da exploração agrícola, acumulando recursos que iriam ser revertidos na instalação de todos os filhos homens que permanecessem na colônia e no dote das filhas. Tratava-se também de um mecanismo para assegurar a autoridade do pai como chefe da família por mais tempo. A subordinação dos filhos e das noras à autoridade paterna persistia enquanto permanecessem morando sob o mesmo teto, coisa que se transformou em fonte de conflitos inter-geracionais conforme a sociedade se foi modernizando e criando espaços mais definidos de expressão de interesses e de divergências entre os indivíduos dentro da estrutura familiar.

A terra atribuída a cada filho no momento do casamento era entendida como parte de sua herança ("adiantamento da legítima") e só era legalizada no momento da partilha definitiva, realizada normalmente em vida pelo pai ao atingir idade próxima aos 60 anos. Havia casos em que o filho recebia com a terra a dívida de uma parte do seu valor, que deveria ser paga com o resultado da produção da sua lavoura. O sucessor normalmente recebe o título de propriedade em usufruto enquanto os pais são vivos. A sua parte é sempre maior que a dos demais irmãos, uma forma de contrapartida dos gastos com a manutenção dos pais. Constava da maioria dos atos de transmissão de herança da época a cláusula de revogação do direito à terra caso o filho não cumprisse com este compromisso. Constava também a recusa formal das mulheres ao direito à herança da terra que o Código Civil Brasileiro (de 1916) lhes garantia.

Seguindo a prática costumeira, as mulheres recebiam "a sua parte" em módica quantia de dinheiro e na forma de enxoval, composto de roupas de cama, mesa e banho, utensílios domésticos e, por vezes, máquina de costura. A doação da parte em dinheiro e o tamanho do enxoval dependia dos recursos disponíveis pela família. A prioridade era dada àquele que era socialmente instituído como o responsável pela manutenção da família: o sucessor. "Naquela época não se dava terra (às mulheres) porque elas casavam bem. Seus esposos tinham terra, tinham o alicerce, então eles (os pais) davam uma parte em dinheiro" (agricultor, 70 anos).

Às mulheres restavam, portanto, três opções: o casamento, o ingresso na vida religiosa ou o celibato civil. Ao casar, a mulher ingressava na família do marido. Obedecendo à regra de residência patrivirilocal, ela ia residir com os sogros no caso de se casar com o sucessor, submetendo-se, assim, à autoridade destes até ao fim das suas vidas. As demais se instalavam inicialmente também na casa dos sogros até que os seus maridos recebessem o seu lote de terra e construíssem nele a casa para a nova família. O casamento implicava, assim, na extinção dos direitos da mulheres à terra e na sua reclusão ao espaço doméstico, dentro da lógica da simbiose que se estabelece entre mulher e família e que determina a supremacia dos papéis de mãe e esposa sobre todos os demais.

A partilha, ainda que formalmente, devia sustentar-se numa lógica igualitária, obedecendo ao direito de igualdade entre os herdeiros (os filhos homens, é claro). Embora se submetesse a um princípio aparentemente objetivo, na realidade este tinha forte conteúdo valorativo: o direito à herança da terra era dado àquele que nela trabalhasse. Assim, ficavam excluídos, por princípio, todas as filhas e os filhos homens que saíssem da "colônia" para estudar na cidade. Woortmann confirma esta mesma regra no seu estudo sobre herança entre colonos de origem alemã. Nas suas palavras, a herança é "conquistada." Distinguindo-se dos teuto-brasileiros (e demais brasileiros) urbanos, para quem o direito à herança é definido pelo nascimento, como "direito natural," entre os colonos de origem alemã e italiana o montante de herança que assume a forma legal de "adiantamento da legítima," concedida por ocasião do casamento, era definido de acordo com a contribuição de cada um como parte da força de trabalho familiar. Como lembra a autora, "os direitos e deveres não são dados pela descendência; a descendência abre as possibilidades lógicas de acesso aos bens e status da família, porém não é um direito adquirido pelo indivíduo e seus siblings".27 27 WOORTMANN, 1997, p. 175.

Neste sentido, podemos dizer que a esposa era triplamente excluída da herança da terra na região colonial alemã e italiana. Inicialmente, porque ela não é descendente do proprietário (o marido), depois porque o seu trabalho na lavoura familiar era visto como "ajuda" inerente ao desempenho do seu papel de esposa e, finalmente, porque ela não era tida como capacitada socialmente para exercer o papel de chefe da unidade produtiva.28 28 Esta invisibilidade da participação feminina na esfera produtiva é uma característica das unidades de produção de caráter familiar que permanece até hoje no meio rural brasileiro sob condições de propriedade privada e em que o direito à terra é condicionado ao trabalho investido na propriedade Assim, a terra parte diretamente das mãos do marido para as dos filhos. Com a morte do marido, a esposa entra na dependência do filho, numa posição de disputa com a nora, o que se converte em uma fonte inesgotável de conflitos. A esposa não exerce, portanto, o seu direito de meeira do marido, tal como estabelece o Código Civil.29 29 O Código Civil Brasileiro reconhece três regimes de bens no casamento: no regime de comunhão universal, todos os bens dos cônjuges adquiridos antes ou depois do casamento passarão a pertencer a ambos os cônjuges, tendo cada um direito à metade do patrimônio comum (meação); no regime de comunhão parcial, somente os bens adquiridos depois do casamento integram o patrimônio comum do casal; finalmente, no de separação de bens cada cônjuge é dono exclusivo de todos os seus bens presentes e futuros. Na ocasião da partilha das terras, ela apenas coloca a sua assinatura no ato de doação das terras aos filhos — o "adiantamento de legítima."

Como filha de proprietário, ao se casar ela perdia direito à herança da terra devido ao fato de sair da casa paterna e, portanto não contribuir, com o seu trabalho, para a renda familiar, a qual era convertida, sempre que possível, em mais terras. Além disto, dentro do esforço de se manter a integridade do patrimônio familiar, não se justificaria ceder à mulher parcelas de terras que acabariam integrando o patrimônio de outra família — a do marido. Assim, é socialmente esperado que as filhas "abram mão" da sua parte da herança através de ato em cartório por ocasião da realização da partilha definitiva, evitando desta maneira qualquer conflito futuro ou ameaça à propriedade dos irmãos. Alternativamente, elas vendem ao irmão sucessor a parte que lhes seria de direito. Esta venda tanto se pode realizar materialmente ou apenas simbolicamente, transformando-se o ato de compra e venda numa transação meramente formal, sem conteúdo monetário real. A venda de terra entre irmãos é um mecanismo que permite resguardar o título de propriedade no nome do irmão sucessor, favorecendo a regra de manutenção da integridade do patrimônio. No entanto, esta prática não é muito comum entre os colonos italianos, já que as mulheres só têm direito à terra em situações excepcionais, isto é, quando permanecem solteiras ou quando não têm irmãos. Como observa Moura, essas transações entre irmãos são tidas como preferenciais e, nestes casos, as terras são cotadas por um preço inferior ao preço de mercado.30 30 MOURA, 1978. Na comunidade estudada por Moura, ao sul de Minas Gerais, a mulher herda uma parcela de terra mas dificilmente irá explorá-la já que, ao se casar, irá residir no lote marido.

Filhas mulheres nunca recebem parcelas de terra do pai, já que este as provê de todo o "sustento," abrigadas como estão sempre sob o teto da 'casa demorada' dos pais. Também não recebem 'casa de morada' dentro da terra paternal ao se casar, já que são os seus maridos (e neste quadro estão incluídos os sogros) que devem pôr em prática a regra. A virilocalidade resulta ali da posição específica da mulher face à produção e à propriedade da terra (a mulher não trabalha a terra, portanto não será cabeça dum empreendimento agrícola). E sem isto não se justifica que seja proprietária de uma parcela.

31 31 MOURA, 1978, p. 54.

O dote atribuído às filhas por ocasião do casamento era uma maneira de compensá-la pela desistência da sua parte da herança em terra. Mas sob a justificativa de que ao se casar estaria protegida economicamente pelo marido, o valor do dote era sempre inferior ao valor recebido pelos filhos como herança. Além disto, como a mulher normalmente só recebia bens móveis (utensílios e, nalguns casos, dinheiro) estes eram incorporados imediatamente ao patrimônio da nova unidade familiar, sob a administração do marido.

Celibato e herança

Num texto que se tornou referência clássica para os estudos da reprodução social camponesa, Bourdieu (1962) observa que o celibato masculino constitui um dos mecanismos a que recorre a família camponesa para preservar a integridade da propriedade territorial. No sul do Brasil, e sobretudo entre os colonos de origem italiana — de forte tradição religiosa católica — o celibato religioso e o leigo, de um dos filhos, é uma prática ainda recorrente na maioria das famílias.

Como mecanismo de diminuir a pressão dos herdeiros sobre o patrimônio familiar, no caso de famílias com grande número de filhos homens, é comum que ao menos um dos filhos seja orientado a seguir a carreira religiosa. Ao entrar para o seminário, o rapaz perde o direito à herança da terra por dois motivos: porque recebia a sua parte em forma de estudos e porque não havia trabalhado na terra. Esta lógica regula até hoje a transmissão do patrimônio familiar àqueles que optaram por estudar e se capacitar para uma profissão fora da agricultura, coisa que, dentro do código costumeiro, lhe furta também qualquer direito sobre a participação na partilha definitiva da terra após a morte do pai:

Não [eu não herdei terra], porque eu saí daqui [da colônia]; eu troquei a minha... eu diria assim, a minha herança eu troquei pelo estudo. Então eu ganhei uma parte do terreno em Caxias do Sul (na cidade). Eu ganhei um estudo pago até me formar na Faculdade. Então a minha "terra" foi essa que ganhei da família. Se nós ficássemos em doze (irmãos) aqui, repartindo um pedaço prá cada um... ia ficar pouco prá todo mundo. Então, eu disse, "me paga o estudo, me ponha na Faculdade e eu não preciso mais da terra... (advogado, filho de colono)

Sabe, a minha herança eu renunciei, não quis nada, porque sabe, nós éramos dez irmãos e eu desde a idade pequenininha saí de casa e fui estudar.... Meus pais, quando foi a hora de assinar [a transmissão da terra], quando eles distribuíram a herança, eles me perguntaram: "Tu queres alguma coisa, como as outras?". Eu disse. "Não." Não porque eu achasse que eu roubava dos meus irmãos, "não", é porque eu nunca trabalhei... (professora aposentada).

A formação religiosa, além de ter sido altamente valorizada por esta sociedade, era a única formação profissional alternativa disponível para os filhos de colonos até aos anos 50. As escolas religiosas da região, tidas como de melhor qualidade, intermediavam o ingresso no seminário ou no convento.

Enviar filhos para o convento era uma prática que obedecia a finalidade principal de impedir a fragmentação excessiva do patrimônio familiar, seja pela obrigação da partilha da herança, seja pelo dote32 32 Não foi encontrada a referência ao termo "dote" para designar os bens doados pelos pais à filha na ocasião do seu casamento. a que as moças tinham direito ao se casar.33 33 GROSSI, 1995. Esta mesma autora observa uma coincidência entre o período de esgotamento dos lotes coloniais para a reprodução social da segunda e terceira gerações de colonos (1920-40) e o crescimento do número de conventos e indústrias têxteis na região de Itajaí, em Santa Catarina. Tanto um como outro absorviam mão-de-obra excedente das famílias camponesas. Se por um lado a prole numerosa era desejada, na medida em que se convertia em mão-de-obra para o trabalho agrícola e doméstico, por outro ameaçava a integridade do patrimônio e desencadeava crises de reprodução social.34 34 Em estudo sobre as estratégias de reprodução camponesa na Paraíba, Garcia aponta um paradoxo que consiste na valorização da prole numerosa, sobretudo de homens, como condição para o aumento da produção e acumulação de recursos e a possibilidade de pulverização desse patrimônio pelo processo de herança na geração seguinte (GARCIA, 1989). O mesmo paradoxo é observado por outros autores em outras regiões do país. Ver, entre outros, MOURA, 1978, para Minas Gerais, e GROSSI, 1995, para Santa Catarina.

O ingresso no convento também exigia um dote que funcionava como um distintivo simbólico no interior das comunidades camponesas, já que variavam de montante segundo as posses da família e o status do convento.35 35 GROSSI, 1995. Infelizmente, os dados que dispomos sobre este assunto ainda são insuficientes para uma análise mais detalhada do celibato religioso entre filhos de colonos. As famílias mais pobres pagavam as despesas da formação religiosa com doações de parte da produção e com o trabalho do próprio filho ou filha no convento. No entanto, embora a "opção" pela vida religiosa tivesse um conteúdo econômico forte, seria empobrecedor restringir o significado dessa prática a tal conteúdo. Como sugere Grossi, há que se considerar também a existência de um imaginário social altamente favorável a essa "opção," cuja compreensão exige estudos mais aprofundados.

Também o celibato leigo feminino é ainda muito freqüente entre os colonos de origem italiana. Nas gerações passadas, a presença de um padre ou uma freira entre os filhos era quase uma norma; na atualidade, como aponta a bibliografia e os dados desta pesquisa, em praticamente todas as famílias de colonos há uma filha que não se casou. Suas histórias individuais são diversificadas, mas apresentam um elemento comum: a esperança do casamento ou, no caso das mais velhas, um certo ressentimento por não terem encontrado um marido.

A situação dessas mulheres é extremamente penosa apresentando alguma semelhança com a condição dos celibatários camponeses franceses descrita por Bourdieu (1962). Todas elas exerceram ou exercem um papel fundamental na administração doméstica. Pertencentes a famílias de prole numerosas, essas mulheres auxiliam (ou mesmo substituem) a mãe nas tarefas domésticas e participam igualmente das tarefas produtivas junto com o pai e os irmãos. Sendo embora o casamento, como dissemos acima, um fator de exclusão da mulher do mundo do trabalho e da produção, por outro lado lhe atribui uma posição de poder relativo dentro da unidade doméstica, e o reconhecimento de uma status social. O celibato leigo, pela sua parte, permite o reconhecimento e a visibilidade da participação da mulher na produção, mas tem a contrapartida de lhe subtrair qualquer espaço de poder dentro da esfera doméstica, atribuindo-lhe o status social mais inferior na hierarquia familiar, próximo ao da empregada doméstica. A mulher solteira é, assim, destituída de reconhecimento social.

Após a morte dos pais, era comum que filha "solteirona" permanecesse exercendo as mesmas funções de auxiliar na nova unidade doméstica constituída pelo irmão-sucessor, o que normalmente gerava conflitos com a cunhada e provocava a sua retirada dessa unidade doméstica e no seu deslocamento para outras casas — geralmente de primos ou sobrinhos recém-instalados na vida familiar. Mais recentemente, a migração para a cidade é uma opção que lhe abre a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho mais qualificado, conforme o seu grau de instrução.

No entanto, como o que confere direito a terra é tê-la cultivada, é justificável que as celibatárias recebam uma pequena parcela de terra pela sua participação na lavoura familiar e nas tarefas domésticas, o que lhe garante uma dose de segurança para enfrentar o futuro após a morte dos pais. Como não lhes é reconhecido o direito de exercer o papel de chefe da unidade produtiva, a mulher recebe sempre a menor e a pior parte.

Da partilha eu ganhei aquele terreno em Nova Pádua (na sede municipal)... Meu pai ficou com essa casa mais esse parreiral de quase 2 hectares; o terreno tem 3 hectares e pouco. Daí, como o meu irmão ganhou bastante terra e um terreno bom no plano, então meu pai disse que depois que ele e a mãe morrerem, essa terra vai ficar metade para min e metade para o meu irmão né... mas só se eu não casar. Agora, se eu casar, então muda... Mas isso foi discutido em casa só. Tu sabes, né, porque realmente eu herdei mais que as minhas irmãs... (agricultora, solteira, 45 anos).

Como já se sublinhou, o processo de transmissão do patrimônio é sempre traumático e configura um momento em que a autoridade patriarcal pode ser questionada. Por este motivo, é um assunto que deve ser tratado com reserva mesmo no interior do grupo familiar; os descontentamentos devem ser reprimidos, como pode ser observado no depoimento acima. Os conflitos de que se tem notícia são normalmente manifestados pelos "de fora", ou seja, os genros ou noras que, em situações excepcionais, reclamam os direitos iguais com base no Código Civil. Estes casos, vistos como motivo de vergonha para a família, solucionam-se através de uma negociação interna, evitando-se o recurso à justiça. No entanto, alguns depoimentos coletados apontam para uma mudança nesta prática.

Recorrendo à lógica em vigor, segundo a qual têm direito à terra própria para cultivo aqueles socialmente aptos a assumirem o papel de chefe da unidade produtiva, uma jovem viúva reclama o direito de herdar terras produtivas do pai de seu falecido marido. Esta reivindicação, aparentemente absurda segundo a lógica dos direitos consuetudinários locais, pode sustentar-se em dois fatores: no fato de que ela se manteve na casa do sogro assumindo as tarefas domésticas e participando da produção familiar, tal como uma "celibatária", e pelo fato de que ela é a representante legal dos herdeiros do seu marido — dois filhos homens. Além disto, ela necessitaria de meios de produção para se manter a si e aos filhos após a morte do sogro. Enfrentando reações veladas tanto dos cunhados e cunhadas como do próprio sogro, esta viúva acaba vencendo a demanda, recebe uma boa parcela de terra e, o que é mais controvertido, continua residindo com os filhos e o novo marido na antiga casa da família do sogro. Para evitar constrangimentos e novos conflitos, o sogro, o cunhado (sucessor) e a sua esposa mudam-se para uma casa nova, recém-construída, em frente da antiga. Esta situação excepcional, observada durante o trabalho de campo, pode ser reveladora de mudanças em curso na definição das identidades de gênero em decorrência das transformações recentes nas posições ocupadas pela mulher nesta sociedade, sobre as quais trataremos mais tarde.

Novas alternativas à agricultura e mudança no padrão de herança

Como tentamos demonstrar até aqui, o sistema de herança sofre modificações ao longo do tempo. No entanto, é importante registrar que na chamada "colônia italiana" do Rio Grande do Sul estas mudanças não são percebidas como algo que foge à tradição, tal como ela era praticada pelos antepassados. A tradição é manipulada, modificada e até mesmo negociada, mas ainda é tida como a principal legitimadora das práticas de transmissão da herança e de escolha do sucessor entre os agricultores descendentes de migrantes italianos. É certo, no entanto, que essa "tradição" está sendo colocada em cheque pelas gerações mais jovens, principalmente pelas mulheres, como já nos referimos acima e voltaremos a detalhar mais adiante.36 36 A situação é totalmente distinta na região de Nova Friburgo, onde não existe o recurso à "tradição", seja alemã ou suíça, como legitimadora de práticas culturais.

As estratégias descritas atrás funcionaram com certo sucesso sobretudo nas três primeiras gerações, embora alguns dos filhos mais jovens da segunda geração tenham sido levados a buscar outras alternativas. A escassez de terras na região levou-os a migrarem para o estado de Santa Catarina ou a ingressarem no mercado de trabalho urbano. O desenvolvimento da atividade industrial em Caxias do Sul, nos anos 50 e 60, reforça a tendência à migração dos filhos excluídos da herança quando, na maioria das unidades domésticas, ainda numerosas, apenas um ou no máximo dois filhos permaneciam na atividade agrícola.

A diminuição de terras disponíveis na fronteira agrícola, a mecanização iniciada nos anos 60, diminuindo a necessidade de mão-de-obra na produção familiar, e a força dos valores urbanos sobre os jovens atraíram-nos para o trabalho assalariado, quebrando assim com a identidade entre a unidade familiar e a unidade produtiva. Esta nova realidade introduz mudanças no padrão de sucessão. São os filhos mais velhos que saem de casa para estudar e ingressar no mercado de trabalho urbano, restando ao mais novo a responsabilidade de dar continuidade ao projeto familiar, centrado na manutenção da integridade do patrimônio familiar e na exploração agrícola.

O estímulo da família para que a mão-de-obra excedente saísse da "colônia" exercia forte pressão sobre os filhos não-sucessores. No entanto, apesar das privações a que estavam sujeitos na cidade, os filhos dos colonos não viveram a pressão para sair da casa paterna como uma "exclusão" do processo de herança. Nos primeiros tempos de migração do jovens para a cidade, o abandono da casa paterna era visto com naturalidade, como um dever decorrente da submissão dos indivíduos aos interesses familiares. Mais tarde, esta situação será invertida: dependendo das condições econômicas da propriedade familiar, permanecer na "colônia" passará a representar um fator de exclusão social.

A migração para os centros urbanos passa a ser acompanhada da valorização do estudo e da atração por valores culturais e materiais sustentados no crescimento industrial da cidade de Caxias do Sul. O estudo passa a ser, então, uma nova forma de herança: um investimento no futuro como um caminho alternativo à agricultura.

Eu tenho 41anos e saí com 11 anos, e se eu te opinar, te disser algo do porquê, a única coisa que eu tenho para te falar é que tinha gente da família aqui, tinham os tios que saíram. Saí por convite por família, não por mim. Não, porque na minha época eu não tinha opinião formada ainda, tinha 11 ou 12 anos... não tinha opinião formada ainda. A gente saiu para buscar um estudo, mesmo nossos pais, nossa família influenciou muito pra que a gente saísse para estudar, para que tivesse estudo, tivesse uma formação. Não com o intuito de sair da terra mas para ter uma formação. Só que evidentemente com a idade que eu tenho, com a experiência... todos que saíram não voltaram porque a própria cidade te oferece mais coisas, ela te oferece lazer (...) Hoje não! Hoje se tivesse uma terra para eu voltar nas condições que eu tenho hoje eu até voltaria. (pequeno empresário)

As mulheres só ingressam neste movimento migratório uma geração mais tarde. Ao ir estudar na cidade, elas perdiam o direito à herança da terra, mesmo se não se casassem. Recentemente, em decorrência da pressão dos valores que sustentam os direitos da mulher na sociedade urbana, os pais, dependendo da situação econômica, doam lotes ou apartamentos na cidade para as filhas que migraram.

A oferta de emprego urbano e a valorização do estudo como meio de ascensão social têm efeitos sobre a desvalorização do trabalho agrícola. Ocorre a flexibilização do padrão de herança: não há mais uma regra a seguir, e fica em casa aquele que tiver "mais aptidão" para a agricultura e "menor vocação para os estudos." Idealmente, ainda é o mais novo quem deve ficar, mas esta regra é abandonada face aos projetos individuais e às aptidões pessoais; abrem-se portanto espaços de negociação entre filhos e pais. É claro, no entanto, que esta flexibilidade tem um limite, que é dado pela necessidade de haver um sucessor. No caso de invalidez ou morte do pai, ou do seu sucessor, há sempre um filho que retorna à casa para dar continuidade ao projeto familiar de manter a exploração agrícola.

A partir da década de 70, conforme os vínculos com a cidade se foram estreitando, as transformações no interior da família começaram a ser notadas. Famílias de 3 ou 4 gerações deram lugar a famílias nucleares, ainda que até hoje um filho sempre seja escolhido como responsável pelo cuidado dos pais na velhice. No entanto, observa-se atualmente a tendência à neo-localidade do jovem casal sucessor, o que pode ser entendido como uma decorrência das mudanças nos valores que conformam as identidades de gênero. Com o acesso ao mercado de trabalho, seja como professora primária, balconista ou funcionária da prefeitura, as mulheres conquistaram um maior espaço de individuação tanto na esfera pública como na doméstica. Consequentemente, a resistência das noras a se subordinarem à autoridade das sogras aumenta. A tendência recente à neo-localidade vem, assim, resolver os conflitos inerentes à coabitação de gerações distintas. Seguindo esta nova orientação, até mesmo o filho escolhido como o sucessor constrói a sua casa própria ao lado da casa dos pais, mantendo desta maneira a independência da administração doméstica e preservando a autonomia da nora em relação à sogra.37 37 A mesma prática foi observada entre agricultores dos Alpes franceses (cf. CARNEIRO, 1998a)

Atualmente, são os velhos a residir na casa dos filhos, e a ajudá-los. Com a mecanização, o filho sucessor assume mais rapidamente a posição de chefe da unidade produtiva, deslocando o pai na hierarquia familiar. Estas observações nos permitem sugerir que a destruição das antigas casas e a sua substituição por construções que seguem os padrões arquitetônicos urbanos é uma atitude densa de significados simbólicos, os quais reforçariam esta mudança nos padrões de comportamento e na estrutura familiar.

Uma hipótese explicativa seria a de que as relações familiares altamente hierarquizadas e com forte submissão feminina são coerentes com um padrão de reprodução social sustentado na primazia dos interesses familiares — leia-se na manutenção da unidade produtiva agrícola e da propriedade familiar — sobre os individuais, em decorrência das necessidades impostas pelas condições de produção no passado. Esta situação, como já enfatizamos, estaria em transformação, com conseqüências para as relações sociais de gênero.

Modernização, herança e condição de gênero: mudanças e continuidades

A unificação dos mercados econômico e simbólico em âmbito nacional, decorrente da maior proximidade entre os modos de vida urbano e rural e da ampliação das atividades não-agrícolas no campo,38 38 SILVA e GROSSI, 1998. vem produzindo uma transformação no sistema de referência do mundo rural. O papel da família como instância privilegiada de mediação entre o indivíduo e a sociedade é neutralizado, abrindo-se espaço para estratégias concorrentes e antagônicas entre o indivíduo e a família, o que, sem dúvida, surte efeitos nas relações sociais de gênero e na posição da mulher na sociedade rural. O enfraquecimento da autoridade patriarcal decorrente da própria crise do sistema de reprodução, e o estreitamento das relações entre o campo e a cidade, abrem novos espaços à socialização feminina. As mulheres já não vêem no casamento ou na atividade religiosa as únicas fontes de inserção social. Cada vez mais, elas buscam formação profissional qualificada para o mercado de trabalho urbano. Na geração anterior, esta formação ficava limitada ao curso secundário, já que o mercado de trabalho feminino ainda era restrito às profissões de auxiliar de escritório ou de comércio. Algumas dessas moças eram levadas a trabalhar como empregadas domésticas em residências de classe média urbana, para poderem sustentar, elas próprias, os seus estudos.39 39 Uma pesquisa realizada no oeste de Santa Catarina revelou um processo de "masculinização" do meio rural, em decorrência do viés masculino dos processos sucessórios associado à modernização da família de agricultores que abrem caminho à migração de moças (ABRAMOVAY et alli, 1998). A amplitude deste processo pode ser observada pelos dados para a América Latina, que apontavam um excedente de 5,2 milhões de homens em relação às mulheres na zona rural, em 1995 (CEPAL, 1995 citado por ABRAMOVAY et alli, 1998). Em pesquisa realizada entre alunos da escola secundária da região das colônias italianas, observou-se que um número maior de filhas de agricultores tem intenção de seguir formação universitária e de deixar a localidade de origem. Num universo de 28 filhas de agricultores, apenas 32% apontaram a perspectiva de permanecerem na "colônia", sendo que 85% das moças e 60% dos rapazes revelaram a intenção de seguir carreira universitária. A crise sucessória também foi notada: apenas 46% dos filhos de agricultores tencionavam continuar na atividade agrícola, enquanto somente 7% das filhas aceitavam a idéia de permanecer na "colônia", ou seja, casar com agricultor.

Estes dados, ainda que de um universo reduzido, apontam para a mesma tendência observada em outras pesquisas no Brasil e na Europa.40 40 ABRAMOVAY et alli, 1998, e CARNEIRO, 1998a. Para as moças, a vida na lavoura se torna cada vez menos atraente quando se vislumbra a reprodução do papel da esposa tradicional. Neste sentido, para encontrar uma esposa o jovem agricultor tenta incorporar as mudanças nos papéis desempenhados pelas mulheres na estrutura familiar, o que implica modificar o próprio sistema de produção através da introdução de atividades econômicas sob a responsabilidade das mulheres.41 41 O recurso à pluriatividade foi uma das soluções encontradas pelos agricultores franceses para evitar o celibato (cf. CARNEIRO, 1998a). A questão que permanece é até que ponto estas novas dinâmicas nas relações sociais de gênero podem conviver com a forma de organização de produção familiar.

Contudo, é importante ressaltar que estas mudanças não foram totalmente concluídas. Valores fundados na identidade familiar e na etnicidade oferecem resistência ao processo de individuação no interior da família e à conseqüente transformação das relações sociais de gênero no interior do grupo doméstico. Este processo ambíguo e contraditório apresenta, ao mesmo tempo, uma face moderna, com ênfase na elaboração dos direitos individuais e outra, conservadora, onde o que prevalece são os valores que reforçam o sentimento de pertença à família e à localidade. Neste sentido, entende-se que a intenção (ou desejo) de permanência na região de origem (a colônia) aparece, na maioria dos casos, associada a um projeto de profissionalização próprio, independente da atividade agrícola, o que explica a incidência de moças que se preparam para cursar o terceiro grau. Profissões liberais como a odontologia, por exemplo, permitiriam a combinação de um projeto individualizante com as garantias e proteção oferecidas pelo núcleo familiar.

No entanto, a diversificação de uso da terra promovida por um processo de complexificação do mercado de produtos agrícolas e de valorização da natureza tem aberto novas perspectivas de trabalho para as mulheres. Instalação de pousadas voltadas pra o lazer de camadas média urbanas ou de pequenas oficinas de "produtos da fazenda" (queijos, geléias e doces de fruta, massas caseiras...) atuam no sentido de contribuir para a construção de uma identidade feminina não mais sustentada na simbiose entre mulher e esposa de agricultor. Esta nova realidade, sem dúvida, tem repercussões sobre o processo de herança, na medida em que a terra não está mais associada exclusivamente à atividade agrícola, e em que se amplia o espaço de individualização dentro do núcleo familiar.

Esse processo é particularmente visível entre as mulheres que permaneceram celibatárias justamente em decorrência de imposições da estrutura familiar tradicional. As novas alternativas de trabalho, independentes do casamento, e os novos valores sobre os papéis de gênero aguçam o sentimento de direito à herança da terra, e estimulam as mulheres solteiras a reclamarem pela sua parte.

Partilha generalizada: a repartição da pobreza entre agricultores de Nova Friburgo

Ao contrário da situação observada entre os colonos de origem italiana do sul do país, a regra que predomina na transmissão patrimonial em dois distritos rurais da região serrana do Estado do Rio de Janeiro é a da partilha igualitária generalizada.

Observam-se aí dois processos. O que é definido localmente como herança só ocorre após a morte do ascendente (pai ou mãe) e é dividido de forma tida como equivalente entre todos os irmãos, independentemente da condição de gênero.42 42 Não foi possível obter dados em registros cartoriais que confirmassem esta informação. Ainda que alguns relatos revelem uma distribuição diferenciada de acordo com as condições e as necessidades de cada um, não foi registrada nenhuma reclamação dos informantes quanto a possíveis injustiças na partilha da herança da terra, com exceção de um proprietário bastante idoso que se referiu à disputa entre os filhos pela parte que lhes caberia. Para evitar que a crise eclodisse, o pai confirmou a regra ao decidir que não realizaria a partilha em vida. Esta prática pode ser interpretada como um meio de garantir a sua manutenção na velhice, por parte dos filhos. Associado a este mecanismo encontra-se o segundo procedimento de transmissão de propriedade: a parceria entre pais e filhos, que só ocorre sob algumas condições determinadas.

Ao se casarem, dependendo do tamanho da propriedade, todos os filhos que permanecerem na atividade agrícola recebem, em usufruto, uma parte de terra, delimitada informalmente pelo pai, na qual deverão construir uma casa e explorar a agricultura de maneira a retirar dela o sustento para a sua unidade familiar em formação e pagar um terço da produção aos pais. Estabelece-se então uma relação de parceria entre filhos e pais nos mesmos moldes da que rege a relação entre proprietário e arrendatário não-parentes. Aos filhos homens, de acordo com o tamanho da propriedade familiar, é concedida uma parcela de terra antes mesmo de se casarem, de maneira a obterem rendimentos para construírem as suas futuras casas e formar um fundo de instalação com a parte da produção que lhes cabe. Mas nestes casos, a dívida para com o pai é de metade da produção. Sendo assim, cada propriedade pode abrigar várias pequenas unidades de produção constituídas pelos filhos e suas famílias além da unidade de produção principal formada pelo pai e seus filhos solteiros, que alternam o trabalho na sua roça individual e na coletiva.43 43 A concessão de uma roça individual dentro ou fora da propriedade familiar é uma prática comum entre agricultores familiares em diversas regiões do país, funcionando como uma fonte de renda individualizada, sem prejudicar a lavoura familiar, que se impõe como prioritária em termos de trabalho, e também como espaço de socialização do jovem para a futura posição de chefe de unidade produtiva. A parceria pode ser entendida também como uma forma de remuneração individualizada do trabalho do filho, o que certamente contribuiu para a ruptura da identidade entre família e produção.

Nestas condições, o novo casal se estabelecerá onde houver melhores condições. Caso o rapaz não tenha herdado terra, é-lhe dada a oportunidade de se instalar na propriedade do sogro. A casa paterna normalmente cabe ao último a se casar, independentemente do gênero, já que este ou esta permaneceu cuidando dos pais.

A propriedade da parcela recebida em usufruto é confirmada após a morte do pai, quando se observa o direito de meação do cônjuge sobrevivente. Esta parcela será transmitida legalmente aos filhos após a sua morte, mesmo no caso em que a esposa sobreviva ao marido.

É interessante observar que nesse sistema de reprodução social a prática de inventário resulta no respeito aos direitos igualitários de todos os herdeiros em obediência ao Código Civil Brasileiro, cabendo acertos entre irmãos, quando necessário. Em geral, os filhos que migraram não reclamam a sua parte em terra e aceitam vendê-la, preferencialmente, a um dos irmãos.

Nós não dividimos ainda, só fizemos doação, por enquanto tá tudo global. Eles fazem lavoura, dão a terça prá nós, também trabalham em terreno de outras pessoas porque nosso terreno não é suficiente prá tanta gente. (...) Aí, quando a gente morrer cada um vai ficar com o seu pedaço. (...) Então cada um já fica sabendo onde é o seu lugar, enquanto a gente viver é dono de tudo, tem usos e frutos, depois então cada um já fica com o seu lugar prá não dar problema. (...) Todo mundo recebe o mesmo tamanho, ninguém vai ser privilegiado. Eu disse que esta casa vai ficar com o meu filho que é mais pobre. (agricultora, mãe e esposa de agricultores)

Ao contrário do que ocorre entre os colonos do Sul, aqui não são acionadas estratégias de manutenção da integridade do patrimônio, sendo o sistema igualitário de herança responsável pela fragmentação excessiva da terra. Isto gera uma situação de ameaça estrutural à reprodução social e à manutenção das explorações agrícolas. Nessas condições, torna-se freqüente o recurso ao arrendamento de terras complementares de terceiros ou a atividades não-agrícolas. Estas duas características distinguem o campesinato nesta região como incapaz de se manter exclusivamente na agricultura dentro das condições econômicas atuais.44 44 TEIXEIRA, 1998.

Este sistema de parceria entre parentes tal como foi descrito acima só funciona em comunidades onde há uma forte identidade entre o território físico — a localidade — e as famílias que o habitam. Tal identidade atualiza-se por uma intrincada rede de relações de parentesco, reforçadas por alianças matrimoniais e sobretudo pela prática da endogamia territorial, o que possibilita a permanência da mulher na propriedade paterna, vista como uma exceção à regra.45 45 SCHIAVO, 1997 e 1998. O parentesco é, portanto, uma pré-condição para o acesso à terra e para a regulação dos direitos e deveres de cada indivíduo em relação ao trabalho e à família. Neste sentido, o sistema de parceria, ao preservar o controle da terra por uma determinada família e reforçar, assim, os vínculos simbólicos entre terra/localidade e família, parece responder muito mais à defesa dessa comunidade frente a ameaças externas, cada vez mais presentes, do que à integridade do patrimônio familiar. Ao se tentar manter os filhos vinculados à comunidade, nos moldes acima descritos, aumenta-se o contigente de pessoas comprometidas com a defesa da propriedade e, consequentemente, com a preservação dos hábitos culturais de uma localidade. Ainda que a propriedade tenha sido fragmentada, a identidade atribuída pelo nome familiar é mantida dentro de um sistema de referência simbólico que associa o nome de família a uma dada localidade. Nestes termos, coíbe-se qualquer transação de terra com "pessoas de fora."

A bibliografia sobre transmissão do patrimônio em sociedades camponesas européias tem enfatizado os esforços empreendidos pela família para garantir a reprodução social dos seus filhos sem ameaçar a integridade do patrimônio familiar. A família empenharia todos os esforços possíveis no trabalho de inculcação de valores aos demais membros do grupo familiar, no sentido de legitimar a instituição de um herdeiro único e a exclusão dos demais, como foi observado nas colônias alemãs e italianas do sul do Brasil. No entanto, esta prática não foi observada entre agricultores, também de origem européia (alemã e suíça), habitantes da região serrana do estado do Rio de Janeiro.

Prevalece aí a partilha igualitária, onde homens e mulheres têm os mesmos direitos. Resta, portanto, entender a lógica deste sistema.46 46 Nossos dados são limitados à pesquisa de campo. Não foi possível encontrar informações sobre o transmissão no decorrer da história. A desorganização dos arquivos locais não permitiu este tipo de análise, ainda que um levantamento sobre o processo de transmissão desde a primeira geração de algumas famílias tenha sido ensaiado. Cabe investigarmos a lógica da prática da partilha generalizada, que tem produzido situações de incompatibilidade entre o sistema de transmissão da terra e a reprodução social.

Um processo semelhante de partilha igualitária foi observado por Seyferth entre colonos de origem alemã em Santa Catarina, onde a fragmentação da propriedade entre os herdeiros aparece associada ao recurso ao trabalho assalariado, dando origem à categoria social de duploativos ou operário-camponeses. Ali, contudo, ao contrário do que foi observado entre os camponeses de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, a partilha da terra só se realiza entre os herdeiros homens, sendo a mulher excluída da herança da terra. Quando a partilha é realizada após a morte do pai, as moças são levadas, por obrigação social, a vender a sua parte a um ou mais irmãos por ocasião do inventário. Esta venda geralmente não resulta em rendimento para a mulher, já que é regida pela necessidade de legalizar a titulação da terra ao irmão, excluindo-se, portanto, o valor monetário da transação.

A autora aponta a aproximação do mercado de trabalho urbano e a insuficiência de terras como alguns dos elementos explicativos desta prática. Apesar da regra da partilha compartilhada, a subdivisão da terra é desigual, favorecendo um dos filhos, o qual herda a unidade de produção enquanto que aos demais cabe apenas, a título de indenização, uma pequena parcela para construir a sua moradia. "Os arranjos de herança, então, dependem das estratégias reprodutivas desse campesinato, entre elas a colocação de alguns filhos no mercado de trabalho urbano".47 47 SEYFERTH, 1985, p. 20.

Portanto, nestas condições de escassez de terras, a herança igualitária ou compartilhada se submete a um princípio maior que é o da manutenção de ao menos um filho na condição de camponês, o que implica a obediência de duas regras: a exclusão das filhas como herdeiras e a distribuição desigual de terras entre os demais filhos homens. A colônia permanece portanto indivisível como unidade de produção familiar, sob a administração de um dos filhos. O acesso à terra pelos demais, ainda que insuficiente para garantir uma reprodução com base na produção agrícola, é uma condição necessária para assegurar aos filhos excluídos a identidade de colono/camponês, mesmo que trabalhem em fábrica.

Em contextos nos quais a situação fundiária é um impeditivo da reprodução social do campesinato, a partilha igualitária é uma prática associada ao recurso a outros mecanismos de reprodução social, como o trabalho assalariado, atividades não agrícolas, ou mesmo o sistema de parceria.

Retornando à situação observada na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, vimos que a partilha igualitária está articulada ao sistema de parceria, seja entre membros de uma mesma unidade familiar (pai/sogro e filhos) seja entre "estranhos." Diferentemente do sistema de herança compartilhada descrito por Seyferth, o modelo posto em prática na região de Nova Friburgo inclui a mulher como herdeira em condições iguais às dos irmãos, pelo menos idealmente. No entanto, esta igualdade, ainda que não questionada pelos informantes, esconde algumas peculiaridades. Aqui, o princípio que rege originalmente o direito à terra é também o da participação na produção familiar. Reconhece-se o trabalho feminino na lavoura, em condições semelhantes ao do homem, ainda que caiba a este a posição de chefe da unidade produtiva, mesmo quando é a mulher quem assume, de fato, essa função.48 48 Uma situação inversa foi observada entre agricultores dos Alpes franceses, onde a mulher é formalmente chefe da unidade produtiva, para ter direitos previdenciários, ao passo que o homem, operário, é reconhecido pela mulher como responsável pela administração da produção (cf. CARNEIRO, 1998a) Cabe enfatizar que a participação nas tarefas agrícolas não modifica a posição da mulher na hierarquia familiar. Mesmo em situações em que esta assume quase por completo a atividade produtiva, ela permanece na posição de auxiliar do homem.49 49 TEIXEIRA, 1996. Neste sentido, a desigualdade entre os gêneros não está calcada na invisibilidade social do trabalho feminino ou na não-participação do processo produtivo, mas nos valores ideológicos que sustentam uma sociedade patriarcal.

Como explicarmos, então, o direito da mulher à terra?

Primeiramente, é importante reconhecer que a subdivisão da propriedade familiar apenas obedece à igualdade entre os herdeiros conforme a importância da lavoura para a reprodução social. Assim, a maneira de se realizar a partilha variará em função do interesse que os demais irmãos do gênero masculino tenham sobre a terra. Não obstante a divisão da herança decorrente do processo de inventário ser regulada pelo Código Civil Brasileiro, é recorrente o remanejamento dos títulos de propriedade quando existe um irmão, ou vários, interessados no terreno. Nestes casos, o costume dita o privilégio deste ou destes em detrimento da mulher, que é levada a doar ou a vender a sua parte nos moldes acima descritos. No entanto, para entendermos a lógica deste sistema, devemos levar em conta algumas características deste campesinato.

Os dados sobre a origem desta colonização são precários, mas suficientes para que seja possível identificar que não há mulheres titulares dos lotes coloniais. A má qualidade do solo, excessivamente acidentado, e a inexistência de vias de acesso para escoar a produção, entre outros fatores, fizeram com que se produzisse aí um campesinato ameaçado desde a sua instalação. Uma estratégia para os que permaneceram foi, desde sempre, a troca das terras originais por terras melhores. Como dissemos acima, a mobilidade espacial dentro de um território restrito se constituiu numa característica desse campesinato, marcando as histórias dos indivíduos e os ciclos de vida familiar, estando articulada com as estratégias de constituição e de transmissão do patrimônio familiar. Este último não é constituído com base numa territorialidade definida. Os constantes deslocamentos, sejam decorrentes de transações de compra e venda, sejam decorrentes da relação de parceria, inibem a construção de um sistema simbólico que associe uma determinada propriedade fundiária à identidade familiar, como ocorre com o campesinato europeu e com o do sul do país. Além disso, há que se levar em conta um fator cultural: vários desses colonos não tinham, originalmente, vínculo com a atividade agrícola antes de migrarem para o Brasil. A ausência de um valor moral atribuído à terra (associado ao valor família) é um dos fatores explicativos para a ausência de estratégias voltadas para a manutenção da propriedade familiar, o que teria favorecido a prática da herança compartilhada e as inúmeras transações de compra e venda entre os pequenos proprietários. Como uma prática contraditória do ponto de vista da reprodução camponesa, a venda da terra é um mecanismo de sobrevivência. Vários informantes se referiram à perda da propriedade pelo pai que foi levado a vender a terra "para viver" ou "para beber."

Inicialmente, antes da localidade se tornar uma atração turística, o baixo valor da terra como mercadoria, as dificuldades de se garantir a reprodução familiar com base na atividade agrícola e a ausência da valorização simbólica da terra, associada a um nome de família, são fatores que certamente contribuíram para a inclusão da mulher como herdeira. A ausência de mecanismos voltados para a preservação da propriedade familiar está, assim, diretamente relacionada com a utilização da terra como uma mercadoria como qualquer outra, bem como com o processo de transmissão da herança através das regras do Código Civil, pelas vias do inventário post mortem.

Quando a terra não simboliza a linha de ascendência e perde o seu valor como meio de produção, a preservação da propriedade deixa de ter sentido, e passa a ser uma questão a ser resolvida por indivíduos e não pela família. Neste contexto, entende-se a partilha generalizada: a mulher herda uma parcela de terra já destituída de valor econômico (porque inviável para a agricultura) e de valor simbólico (porque não é atributo de identidade social).

No entanto, esta situação está-se modificando rapidamente com a exploração da terra para fins turísticos. A procura de terras por pessoas da cidade para instalação de pousadas ou de casas secundárias tem provocado uma valorização vertiginosa dessas terras, justamente aquelas menos apropriadas para a atividade agrícola, o que tem favorecido igualmente tanto herdeiros homens quanto mulheres. Resta pesquisar as implicações deste processo, ainda recente, nas relações sociais entre os gêneros e na posição da mulher nessa sociedade.

Considerações finais

Como tentamos demonstrar, os padrões de transmissão do patrimônio familiar tendem a acompanhar as transformações econômicas e sociais que afetam os modelos de reprodução social dos agricultores familiares das regiões estudadas. Observou-se, sobretudo nos distritos estudados do município de Nova Friburgo, uma ruptura do laço absoluto entre família e propriedade associada à perda da identificação da terra com a atividade agrícola, o que constitui uma das mudanças mais profundas nas sociedades rurais contemporâneas e engendram mudanças nas práticas de partilha da herança. Como vimos, na busca freqüente por melhores terras a situação de migrante se eterniza, estimulando a dispersão dos novos núcleos familiares que se formam com o casamento. É de se supor, portanto, que as lembranças dos antepassados, o que poderíamos chamar de "uma tradição," se perderam com estes constantes deslocamentos, impedindo a atualização dos registros da memória sobre traços da cultura originária e a capacidade de reelaboração destes traços como marcas definidoras de uma identidade social. A dispersão constante impediu, portanto, a formação de núcleos sociais mais estáveis, o que sem dúvida contribuiu para, nos termos de Halbwachs (1990), destruir as condições necessárias à reprodução e transmissão da memória sobre a cultura originária. Para este autor, a evocação de lembranças se apoiam nos "quadros sociais da memória" entendidos como o meio que envolve o indivíduo, como o tempo, o espaço, os eventos compartilhados (comemorações, festas) e as pessoas. O desaparecimento ou a transformação dos quadros da memória favorece o desaparecimento ou a transformação das nossas lembranças. Neste sentido, é possível sugerir que a perda de referências espaciais e pessoais, sobretudo da família, seja um elemento explicativo para a ausência da construção de uma identidade sustentada na origem étnica.50 50 CARNEIRO, 2000.

Não é portanto de se estranhar que neste contexto não tenhamos encontrado, imbuído na lógica de transmissão da herança, o "valor família." A terra, neste caso, não adquire um valor patrimonial associado a uma família e a uma historia familiar a ser preservada pela memória coletiva. A terra assume o caráter de um bem no sentido de uma mercadoria. O seu valor de troca impõe-se a qualquer outro valor simbólico que possa ter tido no passado, o que é expresso pela excessiva fragmentação das propriedades, seja como uma decorrência das práticas de partilha de herança, seja como resposta à demanda do mercado de terras relacionada com a mudança na forma de utilização do solo.

Neste contexto, os fatores de ordem econômica (a crise da agricultura e a valorização da terra para fins turísticos) se somam às condições sócio-históricas no reforço à regra da partilha generalizada do patrimônio familiar, o que por sua vez tem contribuído para acelerar a fragmentação das propriedades e o abandono da atividade agrícola. Como alternativa, as atividades não-agrícolas exercem maior atração sobre os jovens, que não se sentem mais no compromisso moral de seguirem a atividade dos seus pais. Assim, a sucessão deixa de ser um problema, porque a terra não é mais valorizada como um bem associado à memória da família e à identidade social de agricultor. Em transformação, essa identidade sofre uma desvalorização crescente, decorrente muito mais do baixo rendimento que promove do que da formulação de imagens negativas associadas à atividade de agricultor. Abramovay vai no mesmo sentido quando afirma que "a profissão de agricultor perde o caráter "moral" que já teve no passado e coloca-se como uma possibilidade entre outras. Acaba a fusão entre o destino da unidade produtiva e o da própria família".51 51 ABRAMOVAY et alli, 1998. Concluímos, assim, que nestas condições, em que a propriedade territorial é destituída de valor simbólico e econômico (como meio de produção), a mulher se torna herdeira da terra sob um sistema de transmissão da herança regido pela partilha generalizada. No entanto, cabe perguntar, para pesquisas futuras, até que ponto esta situação sofrerá modificações em decorrência da valorização da terra devido à especulação imobiliária provocada pela exploração turística.

Em Nova Pádua, município essencialmente agrícola, a situação é um pouco distinta, acenando com os limites deste processo. As mudanças observadas dizem respeito à mulher fora da relação conjugal: a solteirona (celibatária). Somente nesta situação lhe é possível reivindicar o direito à sua parte na herança da terra, seja como mercadoria que lhe propiciará um valor que poderá ser aplicado em outros fins, seja como um bem que poderá ter outra utilização que não a agricultura.

No entanto, a situação é diferente quando a mulher ocupa a posição de esposa em uma estrutura familiar que integra ao mesmo tempo as relações de parentesco e de produção. Nesta situação, acreditamos que a capacidade de ruptura com a identificação entre trabalho agrícola e trabalho doméstico, e por conseguinte com a subordinação da esposa ao marido, é muito pequena. Sustentado pela ideologia patriarcal, o trabalho feminino no contexto da agricultura familiar está subordinado às regras do contrato conjugal, sendo portanto entendido como parte do sistema de obrigações recíprocas que se estabelece entre os cônjuges, o que impede a formalização jurídica de um contrato de trabalho, como observaram Lagrave e Caniou (1987) para a realidade francesa. Nestes termos, ser agricultora não é uma profissão, mas um estatuto matrimonial. Quando casada, a mulher passa a dever várias obrigações frente ao marido, o que na agricultura implica participar dos trabalhos da lavoura. Como foi observado em uma aldeia dos Alpes, as regras de transmissão de herança também variam em função do contexto sócio-econômico. A tendência a privilegiar um herdeiro, no caso o irmão mais novo, escolhido como sucessor, também tem sofrido resistências, na medida em que cresce o valor mercantil da terra e diminui o seu valor como meio de produção.

Voltando ao Brasil, a incapacidade social da mulher para assumir a chefia da unidade de produção, em ambas as regiões estudadas, pode ser justificada pelo fato de que isto seria contrário ao direito matrimonial segundo a legislação em vigor anterior à Constituição de 1988, que instituía o marido como chefe de família e responsável exclusivo dos bens comuns e da manutenção familiar.52 52 Para uma análise da situação francesa, ver CANIOU, J. 1987. Com a nova Constituição (1988), os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal passam a ser exercidos igualmente pelo homem e pela mulher, sendo mesmo reconhecida como entidade familiar a união estável, ou seja, não formalizada, entre o homem e a mulher. Além disto, a mulher passa a ter direito ao título de domínio e à concessão de uso da terra, independentemente do seu estado civil, tanto na área urbana como na rural.53 53 CFEMEA, 1994. No entanto, resta saber até que ponto a força dessas leis se impõe às práticas derivadas da tradição cultural sustentada, por sua vez, por formas de organização social e econômica que lhes são contrárias.

Neste sentido, concluímos que o acesso da mulher à terra por herança depende tanto da posição específica da mulher no processo produtivo quanto dos valores que sustentam esta posição e, mais particularmente, do valor (econômico e simbólico) da terra. Embora os direitos legais sejam importantes como uma condição para a igualdade entre os gêneros, eles não são, contudo, suficientes. Por outro lado, se as relações assalariadas, seja no mercado de trabalho urbano seja em atividades não-agrícolas no campo, têm contribuído para a individualização dentro da esfera familiar, quebrando com a simbiose entre mulher e família, nas relações de trabalho familiar a esposa tem sua autonomia econômica neutralizada pelas imposições devidas a um sistema que articula produção e parentesco. Dentro desta estrutura, ao se casar ela perde a possibilidade de ter reconhecida como "trabalho" a sua participação na lavoura familiar. Este passa a ser representado como uma "ajuda" decorrente do exercício do seu papel de esposa. Nestas condições, as mulheres não são legitimadas na demanda do seu direito legal à terra. Isto pode ser percebido tanto no que se refere à herança (demanda legal ou mesmo diretamente ao pai) quanto no que se refere à posição de titular em assentamentos do INCRA, após a separação do marido.54 54 FERRANTE,1998. Isto aponta para a necessidade de, no processo de reforma agrária, o título de acesso legal à terra ser conjunto, i.e., do casal (DEERE, 1999).

Se quisermos testar a argumentação desenvolvida aqui para o contexto da reforma agrária, é importante sublinhar que o processo de reforma agrária brasileiro supõe a construção de uma nova sociedade da qual a mulher é, naturalmente, excluída como ator social.55 55 FERRANTE, 1998. Centrado na lógica da modernização tecnológica, o processo de construção do assentado como personagem social e político implica a exclusão das mulheres, por imposição dos valores que informam a ação do poder público e dos próprios agricultores, para quem a mulher não está capacitada para tomar decisões referentes à organização produtiva e muito menos para manipular técnicas "modernas." Nestes termos, pouco interfere o fato da legislação sobre a seleção de assentados não incluir nenhuma discriminação específica da mulher como titular da terra. As discriminações culturais que informam e ao mesmo tempo são reforçadas pelas relações de gênero agem, por si sós, na exclusão das mulheres, que só passam pelo crivo do processo de seleção legal como candidatas a lotes no caso de serem viúvas, mães solteiras ou quando for comprovada a impossibilidade do marido.56 56 FERRANTE, 1998.

No entanto, se por um lado ocorre a exclusão da mulher dos processos decisórios e de sua condição de titular do lote, por outro a sua presença é condição altamente valorizada para a seleção do candidato, já que a imposição de um modelo de agricultura familiar pressupõe a existência de uma família, identificada pela presença da esposa. Reproduz, assim, uma organização familiar constituída com base na íntima articulação entre as esferas do parentesco e da produção, o que, como vimos, é responsável pela invisibilidade do trabalho da mulher e pela sua exclusão da condição de chefe da unidade produtiva. Neste contexto, entende-se que lhe seja negado o direito ao acesso à terra, seja como herdeira, seja como titular de um lote no processo de reforma agrária.

[Recebido para publicação em julho de 2000]

Inheritance and Gender Identity Among Brazilian Farming Families

Abstract: To understand the rules by which family estates are transmitted among farming families, particularly in the case of land and taking into account gender differences, it is necessary to identify the distinct roles reserved to men and women in the dynamics of social reproduction. The understanding of these distinct logics requires the investigation of the different meanings that the territorial patrimony itself has in each social and cultural context. Although inheritance is based on the notion of shared blood, common law rules do not recognize the same rights for all children. It is precisely these differences that we will deal with in this article, particularly in respect to those differences derived from gender identity. We will be seeking to understand the logic of different forms of transmitting inheritances and their relationship with the social reproduction of farming families in two different regions: in southern Brazil (state of Rio Grande do Sul), among descendants of Italian colonists, and in the mountainous region of the state of Rio de Janeiro, among descendants of Swiss and German colonists.

Key words: inheritance, gender identities, social reproduction, farming family.

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  • ZONABEND, Françoise. La mémoire longue Paris: Puf, 1980.
  • 1
    O presente artigo é fruto de uma pesquisa que venho desenvolvendo ao longo dos últimos cinco anos com uma equipe de alunos do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da UFRRJ e de bolsistas de IC e de Aperfeiçoamento do CNPq.
  • 2
    Cf. WOORTMANN, 1993, e GOTMAN e LAFERRÈRE, 1992.
  • 3
    BOURDIEU, 1972, LAMAISON e CLAVERIE, 1982, e SALITOT, 1988.
  • 4
    BOURDIEU, 1972.
  • 5
    A bibliografia sobre este assunto é extensa; destacaria M. Salitot, 1988a e 1988b; G. Augustins, 1987; G. Augustins e R.Bonnain, 1981; P. Lamaison e E. Claverie, 1982; G. Ravis-Giordani, (dir.), 1987 entre outros.
  • 6
    Para desenvolver as questões levantadas neste artigo, recorreu-se sobretudo a entrevistas para levantamento de genealogias, de histórias de famílias e de trajetórias individuais. No caso do estudo sobre os descedentes de migrantes de Nova Friburgo, a participação de uma historiadora na equipe permitiu recorrer-se também à pesquisa de arquivos locais e nacionais na tentativa frustrada de se resgatar as trajetórias de algumas famílias descendentes de migrantes. Além disto, a elaboração de uma dissertação de mestrado na mesma região, por uma integrante da equipe (cf. TEIXEIRA, 1998), ampliou o leque de informações sobre os agricultores dos distritos de Nova Friburgo.
  • 7
    O termo "colônia" nesta região era usado, originalmente, para se fazer referência ao lote de terra recebido na época da instalação do migrante. Inicialmente, até 1851, os lotes eram de 77 hectares, diminuindo posteriormente para 48,4 hectares e chegando, finalmente, a 25 hectares a partir de 1889 (BRUM, 1988). Atualmente, este termo acabou por designar a pequena propriedade ou uma área territorial padrão, que na região estudada é de 25 hectares. Assim, os colonos referem-se à extensão das suas propriedades falando em tantas colônias ou tantas colônias e meia.
  • 8
    Há vários estudos sobre a colonização italiana no Rio Grande do Sul. Especificamente sobre a constituição do campesinato colonial, sugiro SANTOS, 1984. Sobre o papel atual da cultura italiana na reprodução social das famílias de colonos da região em questão, ver MOCELIN, 1993.
  • 9
    MOCELIN, 1993.
  • 10
    MOCELIN, 1993.
  • 11
    CARNEIRO, 1999.
  • 12
    MOCELIN, 1993.
  • 13
    CARNEIRO, 2000.
  • 14
    NICOULIN, 1995.
  • 15
    SCHIAVO, 1991, e TEIXEIRA, 1998.
  • 16
    CARNEIRO, 1998b.
  • 17
    Ver SEYFERTH, 1985, e WOORTMANN, 1995.
  • 18
    SCHIAVO, 1997, e TEIXEIRA, 1998.
  • 19
    TEIXEIRA, 1998.
  • 20
    TEIXEIRA, 1998.
  • 21
    "Capoeira" é o termo utilizado regionalmente para designar a mata de recuperação da fertilidade do solo em áreas anteriormente plantadas por um período longo. A queimada da capoeira para o replantio, técnica tradicionalmente praticada pelos agricultores com poucos recursos para adubação, é hoje proibida pelos organismos de proteção ambiental.
  • 22
    TEIXEIRA, 1998.
  • 23
    TEIXEIRA, 1998.
  • 24
    Os primeiros colonos italianos da região estudada chegaram ao Brasil em 1876.
  • 25
    Este princípio nem sempre é respeitado. O pai tem a autoridade moral de "fazer o sucessor", escolhendo entre seus filhos aquele que melhor se adapta a esta posição (Cf. BOURDIEU, 1972, LAMAISON el alli, 1982, e SALITOT, 1988a).
  • 26
    SEYFERTH, 1985, e WOORTMANN, 1997.
  • 27
    WOORTMANN, 1997, p. 175.
  • 28
    Esta invisibilidade da participação feminina na esfera produtiva é uma característica das unidades de produção de caráter familiar que permanece até hoje no meio rural brasileiro sob condições de propriedade privada e em que o direito à terra é condicionado ao trabalho investido na propriedade
  • 29
    O Código Civil Brasileiro reconhece três regimes de bens no casamento: no regime de
    comunhão universal, todos os bens dos cônjuges adquiridos antes ou depois do casamento passarão a pertencer a ambos os cônjuges, tendo cada um direito à metade do patrimônio comum (meação); no regime de
    comunhão parcial, somente os bens adquiridos depois do casamento integram o patrimônio comum do casal; finalmente, no de
    separação de bens cada cônjuge é dono exclusivo de todos os seus bens presentes e futuros.
  • 30
    MOURA, 1978.
  • 31
    MOURA, 1978, p. 54.
  • 32
    Não foi encontrada a referência ao termo "dote" para designar os bens doados pelos pais à filha na ocasião do seu casamento.
  • 33
    GROSSI, 1995. Esta mesma autora observa uma coincidência entre o período de esgotamento dos lotes coloniais para a reprodução social da segunda e terceira gerações de colonos (1920-40) e o crescimento do número de conventos e indústrias têxteis na região de Itajaí, em Santa Catarina. Tanto um como outro absorviam mão-de-obra excedente das famílias camponesas.
  • 34
    Em estudo sobre as estratégias de reprodução camponesa na Paraíba, Garcia aponta um paradoxo que consiste na valorização da prole numerosa, sobretudo de homens, como condição para o aumento da produção e acumulação de recursos e a possibilidade de pulverização desse patrimônio pelo processo de herança na geração seguinte (GARCIA, 1989). O mesmo paradoxo é observado por outros autores em outras regiões do país. Ver, entre outros, MOURA, 1978, para Minas Gerais, e GROSSI, 1995, para Santa Catarina.
  • 35
    GROSSI, 1995. Infelizmente, os dados que dispomos sobre este assunto ainda são insuficientes para uma análise mais detalhada do celibato religioso entre filhos de colonos.
  • 36
    A situação é totalmente distinta na região de Nova Friburgo, onde não existe o recurso à "tradição", seja alemã ou suíça, como legitimadora de práticas culturais.
  • 37
    A mesma prática foi observada entre agricultores dos Alpes franceses (cf. CARNEIRO, 1998a)
  • 38
    SILVA e GROSSI, 1998.
  • 39
    Uma pesquisa realizada no oeste de Santa Catarina revelou um processo de "masculinização" do meio rural, em decorrência do viés masculino dos processos sucessórios associado à modernização da família de agricultores que abrem caminho à migração de moças (ABRAMOVAY et alli, 1998). A amplitude deste processo pode ser observada pelos dados para a América Latina, que apontavam um excedente de 5,2 milhões de homens em relação às mulheres na zona rural, em 1995 (CEPAL, 1995 citado por ABRAMOVAY et alli, 1998).
  • 40
    ABRAMOVAY et alli, 1998, e CARNEIRO, 1998a.
  • 41
    O recurso à pluriatividade foi uma das soluções encontradas pelos agricultores franceses para evitar o celibato (cf. CARNEIRO, 1998a).
  • 42
    Não foi possível obter dados em registros cartoriais que confirmassem esta informação.
  • 43
    A concessão de uma roça individual dentro ou fora da propriedade familiar é uma prática comum entre agricultores familiares em diversas regiões do país, funcionando como uma fonte de renda individualizada, sem prejudicar a lavoura familiar, que se impõe como prioritária em termos de trabalho, e também como espaço de socialização do jovem para a futura posição de chefe de unidade produtiva.
  • 44
    TEIXEIRA, 1998.
  • 45
    SCHIAVO, 1997 e 1998.
  • 46
    Nossos dados são limitados à pesquisa de campo. Não foi possível encontrar informações sobre o transmissão no decorrer da história. A desorganização dos arquivos locais não permitiu este tipo de análise, ainda que um levantamento sobre o processo de transmissão desde a primeira geração de algumas famílias tenha sido ensaiado.
  • 47
    SEYFERTH, 1985, p. 20.
  • 48
    Uma situação inversa foi observada entre agricultores dos Alpes franceses, onde a mulher é formalmente chefe da unidade produtiva, para ter direitos previdenciários, ao passo que o homem, operário, é reconhecido pela mulher como responsável pela administração da produção (cf. CARNEIRO, 1998a)
  • 49
    TEIXEIRA, 1996.
  • 50
    CARNEIRO, 2000.
  • 51
    ABRAMOVAY et alli, 1998.
  • 52
    Para uma análise da situação francesa, ver CANIOU, J. 1987.
  • 53
    CFEMEA, 1994.
  • 54
    FERRANTE,1998. Isto aponta para a necessidade de, no processo de reforma agrária, o título de acesso legal à terra ser conjunto, i.e., do casal (DEERE, 1999).
  • 55
    FERRANTE, 1998.
  • 56
    FERRANTE, 1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      2001

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2000
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