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Feminismo Fora do Centro: Entrevista com Ella Shohat

Ponto de vista

Feminismo Fora do Centro: Entrevista com Ella Shohat

NIA WEIDNER MALUF

CLAUDIA DE LIMA COSTA

Ella Shohat é hoje, nos Estados Unidos, uma das principais pensadoras sobre as articulações entre cinema, teorias feministas e estudos pós-coloniais. Desde a publicação de Israeli Cinema: East/West and the Politics os Representantions (Austin: University of Texas Press, 1989), Ella vem buscando articular as teorias feministas do cinema com a crítica pós-colonial. Nesse livro, ela rediscute a teoria feminista clássica sobre o cinema, que universaliza o "feminino" e o olhar masculino. A partir de sua proposta de uma etnografia feminista do cinema, Ella questiona os pressupostos de que o olhar no cinema é sempre masculino e de que a mulher é sempre o objeto desse olhar. Articulando as questões de gênero com questões de classe e etnia, ela mostra como as relações de dominação são bem mais complexas e como elas se reproduzem também entre mulheres. A percepção dessa diferença e da forma como ela vai reaparecer nos diversos textos culturais, nas representações cinematográficas e nas teorias do cinema e, sobretudo, no discurso e na crítica feminista permanece uma das preocupações centrais de seus trabalhos posteriores.

Uma de suas reflexões mais contundentes nesta entrevista é o questionamento de uma história linear do feminismo e do estabelecimento de qualquer autoridade prévia sobre este. A questão de quem detém a fala (e a autoridade da fala) sobre o feminismo tem aparecido em diferentes textos contemporâneos. Ella Shohat, no entanto, chega a essa discussão por um caminho transverso. Ela parte de um olhar antropológico sobre a experiência de gênero em diferentes comunidades e práticas culturais, na relação dessas comunidades entre si, entre leste e oeste, primeiro e terceiro mundo, mulheres brancas e mulheres não brancas, para desvendar um outro feminismo, não o feminismo civilizador do ocidente, mas o feminismo relacional das diferentes comunidades e práticas sociais. Nesse sentido, seria preciso falar em feminismo no plural.

Essa crítica é aprofundada em Dangerous Liaisons: Gender, Nation, and Postcolonial Perspectives (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997), coletânea organizada com Anne McClintock e Aamir Mufti, onde diversos artigos aprofundam a análise multicultural da cultura contemporânea e onde são discutidas as raízes da crítica pós-colonial entre os intelectuais migrantes do terceiro mundo nos Estados Unidos.

Seu mais recente livro, Talking Visions: Multicultural Feminism in a Transnational Age (Cambridge: MIT Press, 1999. 566p.), uma coletânea reunindo artigos e imagens cujos autores vêm de diferentes áreas de pesquisa e de atuação _ acadêmicos, artistas, ativistas políticos e culturais, entre outros _, traz uma visão diversificada desse feminismo multicultural, ligado a diferentes comunidades, práticas e filiações culturais e políticas, sem no entanto, como ela própria comenta, "fazer uma celebração essencialista das diferenças". O livro reúne diferentes gêneros textuais e visuais: ensaios, testemunhos, performances, colagens, poemas em prosa e fotomontagem, o que por si só traz um desafio epistemológico, ao quebrar com fronteiras disciplinares e culturais e ao trazer a reflexão sobre diferentes formas de expressão não canônicas no meio acadêmico.

Seu premiado livro, Unthinkig Eurocentrism: Multiculturalism and the Media (New York: Routledge, 1994), escrito com Robert Stam e em vias de ser publicado no Brasil em breve, analisa o processo de descolonização da cultura global, estendendo a análise pós-colonial, para além do cinema, a outras formas de comunicação de massa e de cultura popular, incluindo as chamadas mídias não-eurocêntricas, como o rap, filmes produzidos fora do centro e outras formas de mídia nativa.

Ella Shohat esteve no Brasil em outubro de 2000, para fazer a conferência de abertura do IV Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (Socine), em Florianópolis, e gentilmente concedeu esta entrevista à Revista Estudos Feministas. Agradecemos a José Gatti, coordenador do Encontro Anual da Socine, e a Vanessa Pedro, que participou da entrevista.

Revista de Estudos Feministas (REF): Qual o seu objetivo com o seu último livro, Talking Visions?

Ella Shohat (ES): Em Talking Visions, tentei proporcionar um espaço para diversas bases sociais e para diversos discursos relacionados à interseção entre raça, gênero, nação e sexualidade. O livro é o resultado de um encontro que organizei no New Museum of Soho, em Nova Iorque, que é, em diversos sentidos, um espaço urbano bastante "branco". Meu objetivo era justamente o de trazer àquele espaço diferentes artistas não brancos que apresentassem suas visões e seus trabalhos alternativos. O livro não é uma celebração essencialista da identidade e da diferença, com colaboradoras latinas falando pela "mulher latina", ou participantes negras falando pela "mulher negra". Não podemos reduzir nenhuma comunidade a uma representativa que fale em seu nome. O propósito do livro, em todo caso, não é o de simplesmente incluir pessoas representativas de diferentes origens, mas representações de diferentes questões em jogo.

REF: Por que você escolheu Talking Visions como título do livro? O que você quer dizer com "visões falantes"? Onde fica a ênfase, em "falante" ou em "visão"?

ES: Ah, é um jogo de palavras. Em primeiro lugar, o "talking" refere-se literalmente à inscrição de falas e diálogos, mas também metaforicamente à fala que faz com que os silêncios (sociais) falem. Já "visions" se refere também a ambos os sentidos: um sentido literal da visão requerida pelo leitor para olhar as imagens, e metaforicamente no sentido de mapear o desejo social. O título refere-se também ao diálogo criativo que acontece no livro entre a palavra e a imagem.

REF: O livro também marca uma posição sobre a importância da cultura para a transformação social, não?

ES: Parcialmente porque, apesar do livro ser interdisciplinar, ele não é necessariamente apenas sobre cultura. É claro que isso depende de como a gente define cultura. Nós não definimos cultura no sentido clássico da palavra, como na arte, mas no seu sentido dado pelos Estudos Culturais. Cultura inclui tudo o que a gente pensa e faz. E o subtítulo do livro, Multicultural Feminism in a Transnational Age, indica um campo de ação mais abrangente. Muitos livros publicados nos Estados Unidos sobre raça e sexualidade tendem a ser muito centrados nos Estados Unidos, esquecendo o fato de que os Estados Unidos existem em relação com outras geografias, especialmente na era da globalização e pelo seu status imperial, seus imigrantes, seus refugiados, e daí em diante. A "era transnacional" no título é uma tentativa de colocar em primeiro plano a questão da relacionalidade _ um conceito que Robert Stam e eu desenvolvemos em nosso livro Unthinking Eurocentrism. Apesar de as regiões terem as suas especificidades, a idéia é discutir comunidades não como isoladas umas das outras, na medida em que todas as histórias e geografias estão mutuamente implicadas. Elas devem ser analisadas umas em relação às outras. Na introdução, situei os artigos no interior de uma rede que é ao mesmo tempo local e global. Quis desfazer essa falsa dicotomia.

REF: Há uma forte ênfase na teorização contemporânea em temas transnacionais, em questões globais e na interseção entre o local e o global. Mas, quando se olha de perto essa tendência teórica, o que se vê é a mesma dicotomia emoldurando as questões, agora numa esfera mais larga. Duas entidades separadas são colocadas, o local e o global, que eventualmente se encontram em algum lugar, seja onde for! Assim, como você "des-dicotomiza" o local e o global em seu livro?

ES: O livro tenta transcender múltiplas dicotomias: imagem/texto, teoria/práxis. tempo/espaço, classe/raça, feminismo/multiculturalismo, etc. O livro tenta ver como existe algo local em tudo que é global e vice-versa, dessa maneira indo além de tais bifurcações. É difícil imaginar um espaço que não seja ao mesmo tempo local e global. Por exemplo, podemos pensar no colonialismo como uma forma de globalização, não apenas em termos econômicos, mas também em termos de difusão de idéias eurocêntricas. O colonialismo foi uma forma de expansão de pessoas, idéias e sistemas políticos europeus pelo mundo. É claro que a globalização se intensificou nas últimas duas décadas, mas seus antecedentes nos levam ao início do colonialismo, por volta de 1492. Num mundo que já foi durante muitos séculos completamente interconectado economicamente, politicamente e mesmo culturalmente, como poderemos separar o que é local daquilo que é global? Mesmo os Kaiapó não são isolados; suas lutas os colocam no interior de discursos e de leis que estão situados ao mesmo tempo na Nação-Estado brasileira e na arena internacional.

REF: Na sua visão, o conceito de multiculturalismo nos fornece instrumentos teóricos e políticos para problematizar dicotomias, incluindo a dicotomia local-global?

ES: A idéia do multiculturalismo não significa simplesmente o fato de "muitas culturas". É um projeto ao mesmo tempo político e epistemológico. Além disso, o conceito de multiculturalismo deve ser definido em relação ao de eurocentrismo. Eu me sinto desconfortável com a imagem do multiculturalismo como mera celebração das várias culturas do mundo, todas dançando de mãos dadas. Para isso podemos ir à Disneylândia. Isso é uma caricatura do multiculturalismo. O multiculturalismo foi muito atacado, não só no nos Estados Unidos, mas também no Brasil e na França. Por exemplo, em um artigo que saiu no ano passado no Le Monde Diplomatique, os sociólogos Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant argumentaram que o multiculturalismo não é um conceito, não é uma teoria, não é um movimento social, ao mesmo tempo em que reivindica ser tudo isso. Eles escreveram que o multiculturalismo é basicamente um produto da hegemonia anglo-americana, um instrumento da globalização e do imperialismo norte-americano. Robert Stam e eu estamos neste momento escrevendo um livro sobre a recepção do multiculturalismo em diferentes contextos internacionais, chamando a atenção para como todo o debate multicultural nos Estados Unidos foi usado e abusado fora desse contexto. Apesar de nós também criticarmos certas versões do multiculturalismo (por exemplo, o foco em temas raciais nos Estados Unidos que negligencia as políticas globais do país), precisamos estar cientes sobre como os ataques ao multiculturalismo por intelectuais de esquerda servem para reproduzir premissas e poderes eurocêntricos. Esses ataques ao multiculturalismo são muito perigosos: como eles se difundem globalmente, ajudam a silenciar diversas resistências "locais". Quer se trate do movimento negro, ou do movimento feminista, para os antagonistas do multiculturalismo, são todos importações americanas! Se os norte-africanos na França estão lutando por seus direitos, será dito que eles estão importando uma tendência norte-americana (e norte-americano significa freqüentemente norte-americano branco), esquecendo o fato de que nos Estados Unidos o multiculturalismo começou como um movimento de pessoas não brancas. Certamente a Benetton usa o logotipo "United Colors of Benetton", mas isso por si só não desqualifica a crítica multiculturalista radical. Você pode ser cooptado, mas todo movimento político enfrenta a cooptação.

Outros críticos argumentam que o multiculturalismo não tem nada a ver com o mundo real, que se restringe à academia e aos debates sobre inovação curricular. O que esses críticos não compreendem é que tais currículos são elaborados para um grande número de pessoas e que é importante sim como alunos e alunas irão estudar história, geografia, antropologia e literatura! Além disso, se a academia é apresentada como tendo pouco impacto nos debates públicos, isso pode estar acontecendo porque nós, acadêmicos/as críticos, somos muitas vezes afastados/as dos debates públicos no contexto dos Estados Unidos por uma cultura corporativa que impõe limites ao acesso desses críticos aos meios de comunicação. Mas em todo caso a pedagogia, na academia e nas escolas, é parte do mundo real!

REF: Como você vê o feminismo nesse contexto?

ES: Depende de como nós narramos o feminismo. É por isso que considero o multiculturalismo central para o feminismo. Talking Visions oferece uma crítica da narrativa-mestra linear sobre como o feminismo começou, e esta é geralmente um tipo de narrativa extremamente eurocêntrica, que imagina mulheres lutando para empoderar-se no "ocidente" e posteriormente difundirem para o mundo "atrasado". O que é suprimido nessa narrativa modernizadora são as "outras" mulheres pelo mundo, lutando outras batalhas, mas que são desqualificadas como feministas pelo fato de não usarem esse rótulo para si. Tome o movimento anti-colonialista na Argélia. Como alguém pode não chamá-lo de luta feminista quando as mulheres argelinas estavam lutando pelo empoderamento no interior do movimento anti-colonial? Não poderíamos chamar isso de feminismo somente porque nós utilizamos essa palavra num sentido extremamente limitado e eurocêntrico? Mas essa espécie de subversão anti-patriarcal e, até em alguns momentos, anti-heterossexista no interior das lutas anti-colonialistas, permanecem marginais para o cânone feminista, porque, infelizmente, um tipo de feminismo retém o poder de nomear e de narrativizar. Eu estou argumentando que nós devemos redefinir o que entendemos por feminismo, alargar seus significados para incluir a diversidade das lutas.

Não podemos ver as mulheres muçulmanas somente como vítimas. Precisamos compreendê-las também como mulheres que exerceram um certo poder. O direito das mulheres ao prazer e ao orgasmo está colocado na lei islâmica. Mas, reduzir a cultura muçulmana a um termo, "fundamentalismo", é perder um quadro mais complexo. Tomemos o caso da clitoridectomia. Todos nós reagimos fortemente a essa prática, porque ela nega o prazer à mulher, reforça a ideologia de que as mulheres são impuras, exclui do casamento as mulheres que não a praticam. Contudo, muitas mulheres em várias partes do mundo praticam e iniciam outras mulheres na clitoridectomia. Talking Visions tenta observar as contradições geradas pelas práticas feministas. Quando mulheres participam de práticas opressivas, como nós, como feministas, devemos reagir a elas? A questão fica mais complicada em uma perspectiva dos direitos humanos e do cruzamento internacional das fronteiras. A princípio, essas mulheres podem pedir asilo nos Estados Unidos como refugiadas, alegando que sofrem uma opressão de gênero (a clitoridectomia). No entanto, elas só podem solicitar entrada nos Estados Unidos se a natureza "bárbara" de sua cultura for reforçada aos olhos ocidentais. As feministas eurocêntricas lutam para salvar as mulheres africanas de uma forma que reproduz os discursos coloniais sobre a África.

Simplesmente discutir a clitoridectomia como bárbara apaga as lutas das mulheres no Quênia ou no Egito contra tais práticas e anula a complexidade das culturas africanas, que não podem ser reduzidas a essas práticas. O problema, assim, não é somente a prática, mas que narrativa colocamos em ação para resistir a essas práticas. O desafio é evitar as fantasias salvadoras _ que nos levam de volta às narrativas coloniais. Eu me lembro do filme Around the World in 80 Days, em que David Niven salva uma princesa indiana (Shirley McLaine) da sati (a cremação da viúva). Hoje, são as feministas eurocêntricas que representam o papel de heroínas das narrativas modernizadoras. Implícita nessa narrativa salvadora está a suposição de que o "ocidente" superou sua própria opressão de gênero. Assim, o que eu estou querendo dizer é que, para nós, a questão não é simplesmente se devemos ou não condenar uma prática específica, mas como falar sobre ela, como representá-la e em que contexto. A análise feminista está confrontada com, e deve situar as práticas dentro de, um complexo contexto (econômico, social, político e cultural) local/global.

Um problema que eu tenho com as colegas feministas que escrevem sobre gênero e colonialismo é a suposição de que patriarcado e homofobia existem ou existiram em todos os lugares e em todos os tempos. Eu considero essa afirmação extremamente ahistórica. Por exemplo, entre os nativos norte-americanos há diferentes tradições que não são caracterizadas pela homofobia, pelo patriarcalismo, e que são marcadas por estruturas igualitárias, onde a questão da identidade de gênero é bastante fluída. Quando os colonizadores chegaram nas Américas, eles não somente ocuparam terras indígenas como impuseram novas estruturas que eram patriarcais. Annette Jaines, em Talking Visions, analisa essa imposição: os colonizadores não negociavam com mulheres indígenas que detinham o direito de representar seu povo.

REF: Você percebe hoje outras narrativas salvadoras sendo articuladas em torno das mulheres do "Terceiro Mundo" além daquelas das feministas (brancas) ocidentais?

ES: Agora as mulheres não brancas estão fazendo salvamento também! Por exemplo, Pratibha Parmar e Alice Walker fizeram um filme sobre mutilação genital e infelizmente caíram na mesma narrativa salvadora que mencionei antes (veja o livro delas, Warrior Marks: Female Genital Mutilation and the Sexual Blinding of Women [ed. Alice Walker, Pratibha Parmar, and Vicki Austin-Smith. Harvest Book, 1996]). Na narrativa desse filme está embutido um conjunto de pressupostos eurocêntricos. Essa narrativa implicitamente reproduz uma relação voyeurística com a vagina das mulheres negras. Isabelle Gunning, em Talking Visions, também aborda o fato de que o filme solapa a oposição das mulheres africanas à clitoridectomia.

Ainda, o filme Fire Eyes, de Soraya Mire, uma somaliana em Los Angeles que sofreu ela própria a clitoridectomia, trata do contexto cultural dessas práticas. Ela fez um filme de tal modo que leva o espectador a entender porque muitas mulheres aceitam essas práticas. O filme dá um quadro bem mais complexo da clitoridectomia do que simplesmente dizer: "oh, essas mulheres horríveis forçando umas às outras!". Enfatiza a natureza sedutora do amor comunitário e do desejo de pertencer, que não pode ser isolado do ato de cortar.

REF: Retornando ao tema da identidade, você disse que as identidades são ou eram fluidas em diversas tradições nativas norte-americanas. Mas esse não seria também o caso atual, em nossas sociedades ocidentais contemporâneas?

ES: Minha questão sobre a fluidez era para invocar uma organização social inteiramente diferente, que não gira em torno da produtividade e que foi muito mais igualitária (como a dos Iroqueses), e isso não é uma idéia romântica. A fluidez pós-moderna existe no interior de uma inacreditável estratificação social. Em termos de gênero, o discurso hegemônico não permite uma identidade de gênero flexível. Ou se é masculino ou feminino, sem muito espaço para uma identidade no "entre-lugar", mais complexa. Identidades tais como feminino-identificado-com-masculino, masculino-identificado-com-feminino, transgênero e transsexual não exatamente existem no plano discursivo, visto que nossas estruturas de identidade estão articuladas em termos binários. É por isso que a questão da performance joga um papel importante nas recentes teorias sobre a construção de identidades. As identidades não são essenciais, mas são "performadas" e construídas.

REF: Você está se referindo à perspectiva butleriana de performance? Como você vê o trabalho dela?

ES: Considero seu trabalho de desestabilização do gênero muito importante e inovativo. Porém, também me preocupo em apoiar a desconstrução do gênero em análises historicizadas, que multiculturalizem e transnacionalizem o debate. Em outras palavras, minha introdução ao Talking Visions oferece uma análise que negocia uma abordagem pós-estruturalista e anti-essencialista que está ao mesmo tempo ligada às especificidades de uma contextualização histórica e geográfica. Me incomoda uma posição pós-estruturalista anti-essencialista que apague todas as outras questões, entre elas as questões de história e geografia e seu impacto na mobilização política. Discursos não são apenas significantes flutuantes; eles são percebidos, consumidos e têm impacto material, político e cultural na vida das pessoas. Ao mesmo tempo, eu também me inquieto com um marxismo reducionista, que ignora a questão da mediação discursiva em relação ao "real". Em Talking Visions, tentei criar um diálogo entre pós-estruturalismo e materialismo. Dizer que as identidades não são apenas biológicas, mas são construídas, não significa que elas estejam desprendidas das instituições e das forças políticas e econômicas. Uma vez que tenhamos compreendido que as identidades estão em contínuo movimento, que elas são fluidas, precisamos negociar essa idéia com uma análise do poder e da estratificação.

REF: Mas como você vê essa questão da representação como mediação?

ES: Dizer que o "real" é mediado tem sérias implicações para o modo como analisamos as representações. Se é verdade que nada escapa da mediação das representações, também é verdade que as representações têm um impacto no mundo _ em nossas identidades projetadas, em nossas identificações sociais e filiações culturais. Nós não podemos negligenciar a importância das imagens; temos que delineá-las dentro de uma noção da história como palimpsesto. Pense em Colombo vindo para as Américas. Ele trouxe, da Ibéria, discursos sobre o "outro" _ discursos e imagens sobre muçulmanos e judeus; a Reconquista cruzou o Atlântico com os conquistadores, que estavam equipados com um aparato ideológico já pronto de "nós contra eles". Em seu retorno para a Espanha, Colombo levou com ele não apenas pessoas (os Arawaks), mas também imagens do Paraíso e do Inferno, de virgens e canibais. O imaginário é muito real e o real é imaginado. Precisamos constantemente negociar a relação entre o material e sua narrativização.

REF: Voltando à questão das identidades, no feminismo observa-se atualmente uma preocupação crescente com as identidades masculinas. O que você pensa dos estudos de masculinidade?

ES: Eu penso que o estudo da masculinidade é importante. As feministas abriram o caminho para a questão de como a identidade social e a feminilidade são permanente construídas; e isso agora é estendido às questões da masculinidade assim como às fronteiras que separam essas identidades. Um cenário similar é verdadeiro também para os estudos raciais. Se a raça negra é construída, também o é a "branquitude". Como resultado dessas análises dos discursos e representações da feminilidade e da negritude, novos campos emergem: estudos da identidade branca e estudos de masculinidade. O perigo é que certas formas desses estudos da identidade branca e da masculinidade acabam solapando o diálogo com os discursos que, num primeiro momento, ajudaram a fazê-los possíveis _ ou seja, o feminismo e os estudos raciais, feitos por negras e por mulheres não brancas. O que devemos evitar é que os estudos de masculinidade se tornem um meio de apagar as categorias mulheres e feminismo. Ainda, é preciso que esses diferentes campos sejam usados no sentido de iluminar uns aos outros.

Se você quer fazer estudos de masculinidade, é necessário também explorar feminilidade ou feminilidade masculinizada em relação a outros discursos que estão jogando na construção de identidades sexuadas e gendradas: é necessário olhar para isso como uma interseção com questões de raça, classe e religião. O estudo das masculinidades hegemônicas no interior do capitalismo transnacional, por exemplo, pode ser uma etapa para esse tipo de investigação matizada e contextualizada. Talking Visions tem uma contribuição de Jacqui Alexander que foca a questão das viagens de gays norte-americanos para o Caribe. O artigo analisa como "gayness", associado com uma política sexual progressista, pode também funcionar dentro de uma mercantilização transnacional do sexo, impregnada de aspectos classistas e raciais. Jacqui Alexander defende que os homens gays do primeiro mundo, com o capital e o poder de uma economia de primeiro mundo, estão viajando para lugares do terceiro mundo para consumir outras sexualidades (turismo sexual gay), num sentido não muito diferente do das utopias dos viajantes heterossexuais masculinos. Viagem é algo sempre associado com liberdade. Em meu trabalho anterior, intitulado "Gender and the Culture of Empire", tentei mostrar como as celebrações feministas de "encontrando o Eu longe de casa" mascaram o fato de que tais explorações individuais de espaços "exóticos" estavam completamente inseridas no poder imperial ¾ em seu pertencimento à família do homem (branco). O artigo de Jacqui Alexander, em uma lógica similar, desconstrói os discursos gays sobre liberdade. Uma celebração de utopias homossexuais que não desafiem a economia política ¾ o capitalismo do primeiro mundo, a globalização, etc. que, por sua vez, garante o privilégio de alguns sobre tais utopias ¾ é totalmente problemática.

Ironicamente, a preocupação sobre como a "branquitude" e a masculinidade são construídas resulta em um recentramento dos discursos dominantes como objeto de estudo, mesmo quando busca desconstruí-los. Em outras palavras, tais estudos basicamente contêm um paradoxo que resulta, por vezes, no desalojamento institucional de comunidades desempoderadas. Por esta razão, em Unthinking Eurocentrism, o nosso interesse não foi o de escrever um livro que simplesmente desconstruísse o eurocentrismo, precisamente pelo perigo de, ao tentar desconstruí-lo, acabar recentrando-o. Nesse livro, como em Talking Visions, defendo a relacionalidade, uma abordagem que não segrega períodos históricos nem regiões geográficas em áreas circunscritas de especialização, que não fala em comunidades isoladas, mas em "relação". Mais do que lançar uma corrente rotativa de comunidades em resistência contra um ocidente dominante (uma estratégia que privilegia o ocidente, pelo menos como antagonista constante), eu sugiro estender os laços horizontais e verticais entrelaçando comunidades e histórias em uma rede conflituosa. Analisar as múltiplas identidades e filiações sobrepostas que ligam diferentes discursos de resistência ajuda-nos a transcender alguns dos efeitos politicamente debilitantes das fronteiras disciplinares e comunitárias. Nosso desafio é, eu penso, produzir conhecimento dentro de uma espécie de estrutura caleidoscópica de comunidades-em-relação; explorar o que eu chamei na introdução as "analogias conectadas" e as "polifonias dissonantes" entre as diversas ditas "margens". Assim, como se pode ver, o método da relacionalidade é múltiplo. O livro oferece o conceito de relacionalidade também para significar o desmantelamento das fronteiras nítidas entre disciplinas, culturas, identidades, nações, espaços geográficos e periodizações históricas.

REF: Na introdução ao livro que você co-organizou, Dangerous Liaisons, você afirma que o discurso pós-colonial emerge, na academia anglo-americana, devido em parte à migração de intelectuais de antigas colônias para os Estados Unidos. Até que ponto os desenvolvimentos mais inovativos e interessantes na teorização feminista, assim como suas críticas mais vigorosas, são uma decorrência de acadêmicas feministas do "Terceiro Mundo" que estão morando e lecionando nos Estados Unidos?

ES: As idéias viajam o tempo todo, assim como nós mudamos, em múltiplas direções. O interessante é por que certas idéias de "outro lugar" são recebidas em um determinado contexto, enquanto outras não. A recepção de uma idéia, de um discurso, nos diz muito sobre o processo de tradução como um espaço disputado, negociado. É nesse contexto que eu quis redefinir o feminismo como um lugar de disputa de discursos e posicionalidades contraditórias, mais do que um monolito homogêneo. É por isso que prefiro falar sobre feminismo no plural. Também quis ver o feminismo como área de pesquisa com genealogias múltiplas. Essa formulação vai a contrapelo de uma narrativa feminista eurocêntrica que simplesmente situa a emergência do feminismo na Europa e nos Estados Unidos. Também vai a contrapelo de uma narrativa difusionista iluminista que só consegue ver o feminismo no interior do projeto de modernidade. Nessa narrativa universalizadora etapista, as feministas do "terceiro mundo"/ do mundo "subdesenvolvido" só podem repetir a marcha do progresso como articulada por um feminismo monocultural.

Talking Visions inclui um artigo de Teresa Carrillo que compara temas importantes para as chicanas (raça e sexualidade) com questões relevantes para as mulheres ativistas mexicanas, que estão muito mais preocupadas com questões de trabalho. Essas preocupações diferentes criaram uma tensão entre as chicanas da Califórnia e as ativistas da cidade do México, impedindo-as de colaborar em um projeto comum. Ambos os grupos de mulheres experimentaram opressões diferentes e, assim, chegaram a agendas que complicaram a tarefa de construir coalizões feministas.

Agora, sobre a questão da migração de intelectuais, se observamos os intelectuais que deixaram a Índia e se estabeleceram na academia norte-americana, nós veremos que a maior parte deles vêm das classes e castas mais altas, tiveram uma educação inglesa e, consequentemente, estão situados no mundo da linguagem e da cultura inglesas. Esses intelectuais também tiveram uma recepção surpreendente na academia anglo-americana, em parte porque muitos administradores universitários sentem-se mais confortáveis com "rostos escuros" que falam um inglês erudito do que com outros tipos de "rostos escuros" que falam espanhol, árabe ou um inglês com sotaque. Os estudos pós-coloniais não estão associados com a história americana de escravização dos africanos. Estou propondo a conexão entre os estudos pós-coloniais e as questões raciais e da diáspora africana dentro da cultura e das instituições contemporâneas. Preocupo-me com as tensões e fronteiras, nos Estados Unidos, entre os estudos étnicos feministas e aqueles associados aos estudos pós-coloniais. Causa-me inquietação a cisão que está se instalando. Este cisão não é culpa de intelectuais individuais, mas tem a ver com a recepção institucional, sua abordagem classista e elitista, que acaba em uma abordagem de divisão e dominação das diversas "minorias".

REF: Como você se sentiu quando começou a trabalhar na academia nos Estados Unidos?

ES: Minha história pessoal é muito complicada, em função da tragédia de minha comunidade como resultado do colonialismo e do nacionalismo. Minha família veio de Bagdá, onde por milhares de anos judeus babilônios, que posteriormente foram arabizados, conviviam nas mesmas ruas e vizinhanças com outras religiões e etnicidades. Tanto o colonialismo quanto o crescimento dos nacionalismos árabes e judaicos trouxeram um importante conflito de identidade para árabe-judeus. Dada a geopolítica violenta da região, comunidades foram destruídas de um dia para o outro. Minha família acabou como refugiada do Iraque em Israel, onde nos tornamos vítimas de atrocidades racistas. De fato, éramos chamados de "árabes" e de "negros". Cresci em uma família que perdeu tudo, não apenas materialmente, mas também culturalmente: nossa "arabidade" foi associada com o "inimigo". Classe e raça tornaram-se marcas dramáticas em minha vida. Fui rotulada de "retardada" quando tinha seis anos. Foi parecido com o que era feito (e ainda é feito) com negros e latinos nos Estados Unidos. Quando me mudei para os Estados Unidos, tinha bacharelado em Filosofia e Literatura Comparada e iniciei meu doutorado. Nas humanidades, o discurso feminista dominante era a psicanálise feminista. Sentia-me completamente fora dessas abordagens, na medida em que não havia nenhum lugar para enfocar raça, classe e estratificação nacional. Quando escrevi a minha primeira crítica explícita sobre o eurocentrismo no feminismo ("Gender and the Culture of Empire", no final dos 80), era em parte uma resposta à teoria feminista do cinema. O ensaio propôs métodos alternativos de análise feminista. Por exemplo, procurei uma presença racial subterrânea em filmes de representação hegemônica branca; também examinei tropos do império, por exemplo a noção freudiana do "continente negro da sexualidade feminina", o qual contextualizei no interior dos discursos arqueológicos e geográficos do império. Foi fascinante ver posteriormente as teóricas feministas do cinema, que nunca haviam tematizado raça antes, começarem elas também a analisar a metáfora freudiana em relação à questão da raça. Contudo, porque a ênfase era gênero, muitos desses escritos feministas, em vez de desconstruir a interseção histórica do gênero e raça, acabaram diluindo os aspectos materialistas dessa interseção.

Sobre a minha chegada nos Estados Unidos, eu imediatamente me vi ocupando o espaço da imigrante não branca do Terceiro Mundo e, por causa de minha história, me identifiquei com as mulheres não brancas e posso dizer que o meu trabalho vem dessa identificação. Também sofri perseguição política em New York devido à minha posição crítica em relação a Israel, particularmente àquela expressa em meu primeiro livro Israeli Cinema: East/West and the Politics of Representation. Meu artigo publicado em Dangerous Liaisons, intitulado "Sephardism in Israel: Zionism from the Standpoint of its Jewish Victms", dialoga parcialmente com um artigo de Edward Said, intitulado "Zionism from the Standpoint of its Victims" (ambos foram publicados originalmente na revista Social Text e republicados em Dangerous Liaisons). Said enfocou a perspectiva palestina sobre o sionismo, projetando uma visão homogenizadora dos judeus. Ao mesmo tempo em que endosso grande parte da crítica palestina, eu também desconstruo a idéia de uma visão homogênea da "História Judaica". Ironicamente, senti que esses discursos críticos estavam caindo nos paradigmas da historiografia sionista. Eu queria criar um espaço intelectual e político que pudesse enfocar o sionismo sob uma perspectiva árabe-judia e sefardita.

Vivo nos Estados Unidos desde 1981, e sendo uma árabe-judia, não foi exatamente fácil. Quando digo às pessoas que sou de Bagdá, elas ficam sobressaltadas, particularmente outros judeus. Freqüentemente tenho que fazer a mesma descrição detalhada sobre as minhas origens, e é muito doloroso testemunhar o ódio das pessoas em relação a tudo que é árabe. Nos Estados Unidos, onde existe o discurso Árabes-versus-Judeus, é virtualmente impossível insistir no hífen, ou seja, insistir que eu sou árabe-judia. Isso me fez escrever uma série de trabalhos críticos.

REF: Você poderia elaborar um pouco mais sobre o subtítulo do livro Talking Visions: Multicultural Feminism in a Transnational Age?

ES: O subtítulo chama atenção para temas que tendem a ser segregados e não examinados uns em relação aos outros: feminismo em relação a multiculturalismo e a transnacionalismo, e também transnacionalismo em relação ao multiculturalismo. Isso não exalta uma preocupação política (o feminismo) sobre outra (o multiculturalismo); ao contrário, ilumina e reforça a imbricação mútua entre ambas. Ao amarrar os dois termos, o livro recusa a hierarquia entre as lutas de classe, raciais, nacionais, sexuais e de gênero, acentuando o entrecruzamento (Kimberly Crenshaw) de todos esses eixos de estratificação. O termo "multiculturalismo" tende a ser associado com os temas de raça enfocados no contexto norte-americano, que normalmente não leva em conta uma perspectiva transnacional e além-fronteiras. O "transnacionalismo" está associado ao debate sobre globalização, imigração e deslocamentos, que não são usualmente associados no contexto norte-americano com temas raciais. E ambos os debates não necessariamente salientam questões de gênero e de sexualidade. Em Talking Visions, tentei criar um debate múltiplo.

O subtítulo também reflete meu esforço para além de um zoneamento dos conhecimentos de acordo com cartografias que foram inventadas pelo, e através do, projeto colonial. A circulação de bens e idéias, de imagens e sons, e de pessoas não é um fenômeno novo, mas foi intensificada nas últimas décadas devido às novas tecnologias e às novas formas de capitalismo. Talking Visions assume, em outras palavras, que gêneros, sexualidades, raças, classes, nações e mesmo continentes existem não como entidades hermeticamente seladas, mas sim como partes de uma relacionalidade permeável e entrecruzada. Em vez de segregar períodos históricos e regiões geográficas em áreas de especialidade nitidamente circunscritas, o livro dá ênfase à multiplicidade de histórias e perspectivas das comunidades, assim como à cultura híbrida de todas as comunidades, especialmente num mundo caracterizado pela "viagem" de imagens, sons, bens e pessoas. Como uma prática situada, o feminismo multicultural toma como seu ponto de partida as conseqüências culturais dos movimentos e deslocamentos mundiais de pessoas, associados com o desenvolvimento de um capital "global" ou "transnacional". Assim como as fronteiras nacionais, as fronteiras disciplinares também estão fora de sincronia com tais movimentos transnacionais. Eu sinto que, mesmo que o principal ponto de referência no livro seja os Estados Unidos ¾ na medida em que é o contexto de sua produção ¾, Talking Visions não é nacionalista em seu alcance. De fato, em minha introdução, ao mesmo tempo em que critico alguns tipos de pesquisas multiculturais e queer que muitas vezes possuem uma agenda implicitamente nacionalista, ou seja, centrada nos Estados Unidos, critico também uma certa tendência nos estudos transnacionais e pós-coloniais nos Estados Unidos de se descolarem dos estudos de raça. Talking Vision tenta, nesse sentido, situar diferentes histórias e geografias sexuadas/gendradas em relação dialógica e em termos das tensões e sobreposições que têm lugar "no interior de" e "entre" culturas, etnicidades e nações.

TRADUÇÃO

Sônia W. Maluf

REVISÃO TÉCNICA

Claudia de Lima Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2002
  • Data do Fascículo
    2001
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