Acessibilidade / Reportar erro

Para a re-inscrição das estórias do gênero no romance português contemporâneo

Para a re-inscrição das estórias do gênero no romance português contemporâneo

Gênero e história no romance português contemporâneo: novos sujeitos na cena contemporânea

SCHMIDT, Simone Pereira.

Porto Alegre: PUC/RS, 2000. 215p.

É curioso que num país em que se publicou, a princípios dos anos setenta, o modelo pioneiro de escrita feminista, intitulado Novas Cartas Portuguesas, ainda se registre uma quase completa ausência de uma crítica literária voltada para a luta por uma sociedade mais justa que vem a ser, em termos latos, o feminismo. E feminismo, no singular, apesar de todas as variações e tensões que o caracterizam nas últimas três décadas, e que o texto híbrido das famosas três Marias já dramatiza. Sem querer privilegiar um ponto de vista qualquer, não imiscuído nas peias discursivas e institucionais que em Portugal têm impedido mais do que uma ou outra expressão isolada de crítica acadêmica feminista, é evidente que só à distância tem sido factível levar a cabo esse labor de forma assumida e sistemática. É isso o que nos sugere o recente livro da investigadora brasileira Simone Pereira Schmidt, Gênero e história no romance português: novos sujeitos na cena contemporânea, um olhar tão distanciado quanto empático e específico sobre a emergência do sujeito feminino, ou melhor, feminista, na produção ficcional portuguesa na segunda metade do século XX.

Diferentemente de estudos temáticos centrados tão só em romances de autoria feminina ou masculina, o trabalho de Simone Pereira Schmidt põe em movimento uma complexidade de perspectivas, não só ao nível de teorização como também de análise e de ilações histórico-literárias, confrontando textos de homens e mulheres dos anos cinqüenta e dos anos oitenta. O resultado não é simplesmente "uma leitura", outra mais, de textos particulares. É antes um exemplo da pluralidade de preocupações, e por conseguinte de enfoques, que a teoria crítica feminista elaborada a partir do anti-fundacionalismo pós-moderno traz à crítica literária, que equivale também a dizer à interpretação de processos históricos e culturais, neste caso portugueses. Estamos perante uma práxis feminista interdisciplinar guiada pelo objetivo de trazer para o centro dos estudos literários uma reflexão atuante em torno da política do gênero que lhes é inerente de forma profunda e difusa, mas não imutável. Daí (também) a importância de não valorizar enunciados ou figurações femininos ou masculinos, colocando-os em diálogo crítico ou, para usar o conceito bakhtiniano que engloba a metodologia do presente estudo, um "cruzamento" de vozes, de ideologemas, de tempos, espaços e locais de enunciação. O que oferece não poucas surpresas, se não à teoria crítica feminista per se, certamente ao entendimento de como o romance português contemporâneo é locus de codificação, transformação e reinvenção de identidades convencionais do gênero.

Gênero e história no romance português contemporâneo surpreende primeiro pelo rigor da problematização teórica que a autora elabora de antemão, e à luz da qual vai cerzindo posteriormente suas análises; em segundo lugar, pela escolha dos quatro romances que integram o corpus primário de investigação. Representando não só dois grandes momentos da história do romance português contemporâneo, como também dois grande autores e duas grandes autoras, esses romances são A sibila (1954), de Agustina Bessa-Luís, Aparição (1959), de Vergílio Ferreira, Notícia da cidade silvestre (1984), de Lídia Jorge, e História do cerco de Lisboa (1989), de José Saramago. Cada texto é objeto de minuciosa análise na procura do modo como seu discurso releva histórias do gênero sexual, incluindo as relações de poder em que se apóiam, e sobretudo como esse discurso traz à tona transgressões ao domínio difuso dessas estórias. Colocam-se assim em evidência não só junções de polifonia e ambivalência discursivas como também a insinuação, e mesmo a auto-afirmação, de sujeitos liminares femininos (mas também não só, como é o caso de Raimundo Silva, da História do cerco de Lisboa). A definição de Boaventura Sousa Santos relativa à identidade de fronteira de Portugal é nesse sentido propícia, indo ao encontro de sugestões teóricas de Linda Hutcheon e Donna Haraway sobre identidades "ex-cêntricas" ou estratégias recombinatórias (o "cyborg") típicas de sujeitos não hegemônicos pós-modernos. Esse olhar simultaneamente abstrato-teórico, especificado num argumento, ou fonte secundária de fundamento local, torna possível a recuperação de vozes e identidades que, não se podendo considerar típicas de um tempo dito pós-moderno, continuariam enterradas num ou noutro discurso hegemônico, como acontece com Sofia em Aparição, personagem que Schmidt lê contra o grão da voz narrativa de Vergílio Ferreira.

Embora não se detendo em maiores detalhes historiográficos, sociológicos ou antropológicos, o estudo da face cambiante do gênero nos referidos romances é desenvolvido a partir de amplos parâmetros contextuais atentos a condicionantes de tempo, espaço e inserção filosófico-literária, antes e depois da grande baliza representada pela revolução de 25 de abril de 1974. Os trinta anos que separam as publicações de A sibila e Notícia da cidade silvestre, por um lado, e as de Aparição e História do cerco de Lisboa, por outro, assistem a não poucas reviravoltas na sociedade portuguesa, que a autora associa corretamente a um lento processo de modernização das estruturas sociais, econômicas e mentais precipitado no período pós-revolucionário com a entrada de Portugal na corrida neo-liberalista do mercado europeu, de que o romance de Lídia Jorge dá notícia. Com relação à perda de antigas utopias democráticas e à dissolução de algumas "grandes verdades" celebradas com o 25 de abril, talvez valesse a pena referir o efeito que o golpe contra-revolucionário de novembro de 1975 teria nos romances dos anos oitenta. Uma ausência menor, que de resto não altera as sensíveis interpretações apresentadas à luz do mais amplo panorama histórico-cultural.

Após seu tratamento isolado em quatro subcapítulos, formando a parte central do livro, os quatro romances são depois confrontados ou "cruzados" num terceiro capítulo. Este é constituído por uma série de análises intertextuais focalizadas em torno de constantes discursivas vindas à tona nas análises anteriores. Essas constantes, que Schmidt denomina "motes", são "Espelhos narrativos", "Subjectividades", "O outro", "Relações do gênero" e "Poéticas de localização". Mais do que síntese ou conclusão, que também não o deixam de ser, ficam assim traçadas novas linhas de leitura. Estas funcionam como pontes de ligação entre textos teóricos e ficcionais, entre vozes "outras" recusando qualquer outra unidade (ou formação de comunidade) que as reduza a um qualquer centro ou mesmo neutralizador de diferenças. Será esse o convite que o livro de Schmidt lança a posteriores incursões teórico-críticas relevantes aos estudos feministas do gênero a acontecer (e com que urgência) no campo específico do romance português contemporâneo.

O penúltimo capítulo da História do cerco de Lisboa (1989), de José Saramago, põe em cena um breve diálogo que poderá servir de fecho para a presente resenha, na medida em que refrata uma das transformações epistemológicas e políticas mais palpáveis vindas da história do feminismo na época contemporânea. Nessa cena, Maria Sara, uma figura de mulher independente, e a vários níveis "idealizada", como bem o afirma Schmidt, imputa o problema da luta pelo poder que reduz as relações entre homens e mulheres à "macheza", acabando por perguntar ao seu interlocutor se os homens "alguma vez se decidirão a ser naturais na vida". A tal provocação, o "feminino" ou "ex-cêntrico" revisor, Raimundo Silva, responde: "Nenhum ser humano é natural". Se bem que ninguém precise ser licenciado para conhecer na pele essa evidência, não há dúvida de que sua articulação e problematização teórica se devem, na época contemporânea, sobretudo ao impulso de uma série de lutas locais e multifacetadas pela emergência civil, cultural e política das mulheres como sujeitos libertos de mitos patriarcais de femininidade. Mais à frente no diálogo é a vez de Maria Sara negar toda e qualquer divisão dicotômica entre as pessoas, postulando o ideal resistente da negatividade — o "não" — como forma última de afirmação da subjetividade contra tudo aquilo que a oprima e silencie.

Ora, as relações de gênero na vida privada são apontadas no estudo de Schmidt como índice, não simples reflexo, de tempos-espaços marcados ora pela repressão e pelos obscurantismos salazaristas, ora pela desilusão no termo da euforia revolucionária e pela nova esperança no ser humano que se precisa continuamente reinventar. O caráter movediço e polivalente desses índices é iluminado para sugerir sua historicidade radical em relação ao presente, o da construção do texto crítico. É aqui o lugar onde o "não" de muitos sujeitos renascidos ou redescobertos pelo sentido crítico da autora reverbera com vistas ao "sim" para lá de seu tempo e espaço. Eis o que nos vem oferecer Gênero e história no romance português: novos sujeitos na cena contemporânea. É de celebrar a atitude distanciada e, contudo, de comprometimento crítico e afetivo com uma literatura nacional em tudo também "ex-cêntrica" no contexto das literaturas européias, e não só.

ANA PAULA FERREIRA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2002
  • Data do Fascículo
    2001
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br