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Pedagogias do corpo ou a constituição de bons-moços e boas-moças

Pedagogias do corpo ou a constituição de bons-moços e boas-moças.

Corpo, Identidade e bom-mocismo: cotidiano de uma adolescência bem-comportada.

FRAGA, Alex. B.

Belo Horizonte: Autêntica, 2000.164p.

O livro de Alex Fraga, produto de sua dissertação de mestrado realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, faz-nos enveredar pelos meandros de uma adolescência bem-comportada na qual jovens de "boa cabeça" estão em estreita sintonia com os preceitos da escola, da família e da religião católica, diferentemente daquilo que a mídia propala como característico da juventude atual: a rebeldia, a revolta e o afastamento paulatino dos valores da família, o descaso para com a escola e um questionamento das doutrinas religiosas.

A pesquisa, feita numa escola municipal de Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto Alegre, tomou como sujeitos alunos e alunas de uma 8ª série do Ensino Fundamental e analisou principalmente os comportamentos desses/as jovens durante as aulas de Educação Física — nas quais eles não eram separados por sexo. O autor buscou tornar visíveis regras, modos de se comportar, que representavam jeitos de ser voltados para aquilo que tradicionalmente reconhecemos como os "bons costumes". A análise incidiu na forma como a sujeição às regras que conformam os bons costumes, incitadas pela forte influência do aparato escolar, e em consonância com o desejo das famílias, marcam os corpos dos sujeitos/alunos e alunas, a fim de que se tornem "bons-moços" ou "boas-moças".

Procurando dar forma e compreensão às vozes dos sujeitos, articulando-as a sua própria voz, o autor apropriou-se dos Estudos Culturais, entrecruzando-os com os Estudos Feministas que enfocam o corpo, o gênero, a sexualidade e a educação. Apropriou-se também dos conceitos de discurso e sujeito de Foucault, procurando dar sentido às práticas que se produzem no ambiente escolar, mesmo que não sejam próprias unicamente desse ambiente, porque fazem parte da complexa trama que produz relações de poder e confere lugares distintos aos sujeitos. É considerável, então, o esforço do autor para não escorregar em análises de cunho psicologizante como o faz grande parte da produção teórica desse campo.

Localizando geograficamente os sujeitos e os espaços de sua pesquisa, no capítulo "Sujeitos e Lugares", Fraga não só nos leva através da cartografia de Cachoeirinha, mas também chama a atenção para o fato de que a localização geográfica não é suficiente para entender como os sujeitos constroem o que, a partir de Certeau, ele denomina "sentimento de cidade". A partir disso, Fraga analisa as maneiras como os/as alunos/as construíam um lugar particular que estava inserido num espaço urbano mais amplo. Ou seja, o autor interessou-se pelo mapa da cidade que era desenhado a partir dos/as alunos/as pesquisados/as A movimentação dos alunos e das alunas por diferentes lugares conferia sentidos particulares a esses locais. Portanto, ao cruzarem diferentes fronteiras territoriais no município, teciam suas imagens do território a partir de seus valores e crenças.

O sentimento de cidade é uma construção que se desenvolve a partir de múltiplos fatores, como as histórias e as memórias contadas, que promovem imagens e que possibilitam às pessoas se conectarem, ou não, umas as outras. Para os/as alunos/as, os diferentes lugares por onde circulavam produziam uma visibilidade de diferentes modos de vida, nem sempre compatíveis com a moral e os bons costumes praticados por eles/as próprios/as.

A maneira como iam sendo produzidos os valores morais incorporados pelos/as jovens estava em estreita consonância com os relatos de uma escritora local, Isabel Mombach, dos quais o pesquisador se apropria e que evidenciam um intenso poder da igreja na regulação dos modos de vida daquela população. Outras instituições, como a escola por exemplo, vão conformando-se a esse poder, que dita as normas morais e as regras de bons costumes. Evidentemente essas normas não são absorvidas de forma consensual por todos os/as moradores/as da localidade.

No caso dos/as moradores/as de Cachoeirinha, há construções identitárias diferenciadas entre aqueles/as que habitam o lado direito da avenida central da cidade e aqueles/as que habitam seu lado esquerdo. Há inclusive rivalidades que se evidenciam entre esses dois lados. Durante o deslocamento da professora de educação física juntamente com os/as alunos/as a um complexo esportivo onde seria ministrada a aula, as diferenças de posições e de submetimento aos discursos iam se desenhando de forma mais nítida, ensejando sentidos diferenciados para cada lugar.

A turma de 8ª série possuía algumas peculiaridades, como o fato de a maioria de seus componentes estudarem há algum tempo juntos num mesmo grupo e serem caracterizados pela maioria dos/as professores/as como uma "boa turma" ou, como alguns/mas professores/as se referiam a eles/as, eram "uns amores". A constituição desses sujeitos também está suscetível aos rituais de disciplinamento organizados pela escola, como por exemplo no conselho de classe, onde são sugeridos os comportamentos ideais para os alunos e alunas no bimestre seguinte.

Assim como vários estudos têm demonstrado, e à luz de Foucault, é possível distinguir a escola como espaço de disciplinamento dos corpos e das mentes humanas. Com um poder de sedução tenaz, a instituição escolar promove a culpa e incita o castigo no caso de qualquer resistência a suas regras. No caso da adolescência, torna-se necessário compreendê-la melhor, a fim de entender os efeitos do discurso da escola e da família sobre ela.

Mas como entender melhor a adolescência sem enquadrá-la em recortes temporais? No capítulo "O tempo 'tatuado' no corpo", Fraga faz uma busca na produção teórica sobre o tema, tratando das questões pertinentes à adolescência e trazendo de antemão uma de suas mais difundidas descrições: a de uma "etapa" da existência humana marcada pela instabilidade das emoções e por comportamentos impulsivos. Essas formulações, já suficientemente criticadas pela produção teórica, demarcam a adolescência não só por sua temporalidade, mas igualmente pela negatividade desse tempo.

No entanto, outras tentativas mais recentes de caracterização da adolescência, que se baseiam na noção de dependência/independência da família, também parecem ser insuficientes, porque, respaldando-se em compreensões meramente biologicistas, negam a inserção cultural que os conceitos de dependência ou independência engendram. Na verdade, essa compreensão não avança em relação a "etapização" imposta pelas ciências dominantes à compreensão da vida humana em sociedade.

A educação, e conseqüentemente a escola, são fortemente influenciadas pelos discursos da Psicologia evolutiva e da Biologia, que instituem os regimes de verdade quanto aos comportamentos normais, próprios aos adolescentes. Há a crença, inclusive, de que a propalada "crise da adolescência" é, ao mesmo tempo, a constante dessa fase e seu tempo de passagem, exigindo dos/as professores/as, por exemplo, muita paciência e abnegação para que num dado momento tudo chegue a um bom final.

A natureza biológica das explicações ditas "científicas" sobre a adolescência, por seu viés psicologizante, vai estruturando as subjetividades e desenhando o padrão de normalidade para os comportamentos, de forma que qualquer violação pode provocar atitudes fora-de-controle, o que justifica a necessidade de uma constante vigilância sobre os/as jovens, assim como faz a instituição escolar.

Qualquer transgressão juvenil aparece nos enunciados como uma ameaça à vida em sociedade e é apresentada como produto do desmantelamento dos valores da família. Os pais também aparecem em inúmeras pesquisas como os responsáveis pelos comportamentos incontroláveis dos/as filhos/as adolescentes. No entanto, e como ressalta Fraga, não só a família, mas também a escola é responsabilizada pela conturbação dessa fase da vida. Uma alternativa é evitar o contato com as ruas para conseguir manter uma atmosfera de bons princípios. O filme Kids tem sido utilizado como um exemplo da "demonização" dos corpos adolescentes, demonstrando o discurso da adolescência perdida dos anos 90.

Diante de atos de demonização — uso de drogas, sexo fácil e agressividade — a escola pretende garantir a correção dos corpos desajustados através dos rituais de confinamento e purificação. Na escola aprende-se a controlar não só os próprios corpos, mas também os corpos dos outros.

O pesquisador observou que boa parte dos/as jovens da escola pesquisada apresentava um comportamento coerente com aquilo que poderia ser denominado uma adolescência endeusada — mais ajustada à mecânica social e conduzida por valores tradicionais como a família, a igreja e a escola — em contraposição à disseminada demonização. Uma moralidade cristã de orientação católica perpassava o modo de ser de alguns/mas desses/as jovens, que afirmavam ter Deus dentro de si.

A estreita ligação de boa parte dos/as adolescentes com movimentos vinculados à igreja católica era o fio condutor das relações que estabeleciam dentro e fora da escola. De diferentes maneiras, meninos e meninas iam concretizando formas de controle ou de "exorcismos" uns/mas sobre os/as outros/as, com o consentimento das famílias em estreita relação com aquilo que Foucault denominou "tecnologias do Eu". A busca da pureza, da felicidade, a assepsia do espírito, tornava-se um sonho a ser alcançado. Entretanto, o texto parece ocultar algumas contradições decorrentes da submissão aos valores religiosos. Em algumas falas dos sujeitos está presente a negação desses valores, o que é sabidamente motivo de desavenças e conflitos entre adolescentes. Assim como a escola oculta as diferenças, o texto permite somente esparsos momentos em que essas diferenças debatem entre si, do mesmo modo como a orientação da escola parece ser consensual em relação às normas de controle.

Nos processos de construção das identidades adolescentes, o autor enfatiza que elas não se constituem a partir de uma referência binária do tipo endeusado/endemoniado. Há entrecruzamentos que não permitem demarcar fronteiras muito nítidas entre um e outro modo de ser. A escola, porém, insiste em atuar diretamente nos processos de recristianização, através da elevação e do reforço de condutas condizentes com o "tenho Deus dentro de mim", acentuando comportamentos positivos e banindo aqueles que ela enquadra como negativos.

Aqueles/as que se salvam das garras da promiscuidade, do sexo desmedido, do uso de drogas, da violência, da agressividade, e aceitam os preceitos dos bons costumes vão formando a legião de bons-moços e boas-moças. Essas duas classificações adquirem algum sentido a partir de uma série de categorias, como classe social, gênero, sexualidade, etnia, nacionalidade, distinção etária.

Quanto às distinções de gênero, Fraga toma como referências Scott e Connell e, a partir destes, destaca que é nos corpos que as práticas sociais generificadas atuam, especialmente aquelas que se constituem na escola. A Biologia ainda se mantém como a ciência que promove as distinções entre homens e mulheres. Nesse caso, as práticas sociais estariam biologicamente determinadas.

Nessa perspectiva, as meninas precisam ter um cuidado especial com seus corpos, objetivando a futura maternidade, necessariamente associada ao recato e à decência necessários a uma boa mãe de família. Aos meninos que desejam ser bons-moços, é exigida uma masculinidade baseada em traços tradicionais: é preciso ter um corpo ativo e desbravador.

De acordo com Scott (1995, p. 93), "homem e mulher são, ao mesmo tempo, categorias vazias e transbordantes. Vazias, porque não têm nenhum significado último, transcendente. Transbordantes, porque mesmo quando parecem estar fixadas, ainda contêm dentro delas definições alternativas, negadas ou suprimidas". O autor identifica inúmeros momentos, em sua estada junto aos meninos e meninas de sua pesquisa, que ratificam esta afirmação. Ou seja, em algumas passagens, as meninas julgam comportamentos de colegas do sexo masculino a partir de valores morais eminentemente masculinos. Igualmente, entre as meninas, há julgamentos morais acerca do que é feio ou permitido para elas, mas tanto os meninos quanto as meninas enunciam dúvidas, interrogações, e deslizam constantemente em campos e papéis nos quais a masculinidade e a femininidade estão em construção.

Esses achados são mais bem compreendidos quando tomamos o capítulo "Corpo em Discurso", no qual o autor chama a atenção para o poder de penetração dos discursos que vão sendo inscritos nos corpos dos sujeitos de forma imperceptível. Os discursos possuem um duplo efeito: ao darem um sentido à normalidade, apresentam o anormal. Os corpos são artefatos produzidos por tecnologias que marcam as diferentes épocas. Os limites e as possibilidades do corpo são, então, determinados por pedagogias e poderes reguladores que se apresentam de maneira sutil e de diferentes formas no cotidiano dos sujeitos.

Historicamente é perceptível que a narrativa cristã sobre a bondade e a maldade está vinculada à oposição entre corpo e alma. O corpo, impuro, precisa ser transformado, controlado, disciplinado para atingir a perfeição ou a imagem e semelhança de Deus. A negação do próprio corpo constitui, dessa forma, a elevação da alma cristã. A integridade da alma depende diretamente da contenção dos gestos, dos movimentos, da expressividade.

Os/as adolescentes observados davam forma ao discurso do bom-mocismo: a discrição com que se portavam, a atenção e a concentração nas aulas, a sujeição às normas da escola. Até mesmo as roupas que usavam, que pouco distinguiam os meninos das meninas, destacavam as cores sóbrias, os modelos largos, enfatizando que a exposição do corpo não era uma preocupação desses/as jovens.

Nas aulas de educação física, mesmo naquelas atividades pouco prazerosas, como o futsal para algumas meninas, e nos movimentos gimno-desportivos para os meninos, havia uma sujeição com discretas resistências dos/as adolescentes. Sabidamente, há fortes resistências culturais à dança pelo sexo masculino, assim como as meninas rejeitam os esportes mais agressivos. A turma observada apresentava somente discretas resistências a propostas como essas. Parece que a professora de educação física exercia um forte poder de sedução sobre a turma, convencendo-a em vários momentos a se "integrar" na atividade por ela proposta. Aparentando um diálogo constante com os/as alunos/as, determinava aquilo que era para ser realizado ou não. No esforço de não desautorizar uma professora "legal", "amiga", num meio onde há tantos supostos "inimigos etários", sabemos que muitos/as adolescentes acabam aceitando propostas nem sempre consoantes com aquilo em que acreditam, e até mesmo se submetendo a alguns "vexames" ou micos.

Através dos relatos é possível identificar que havia no grupo sexualidades em questão. Porém, esse é um tema constantemente silenciado pela escola e pela família, que jogam uma para outra a responsabilidade da formação de seus/as filhos/as ou alunos/as. Quando necessário, a escola, como trata do conhecimento, invoca aqueles que seguem o estatuto científico para falar do assunto, ou seja, médicos e psicólogos, como os especialistas na matéria, o que impede outras formas de se compreender esse tema, estreitando o olhar.

Para finalizar, cabe destacar que a conformação ao bom-mocismo entre os/as jovens pesquisados/as não era um comportamento homogêneo. No entanto, mesmo para aqueles não tão bons moços ou moças, as regalias conquistadas pela turma eram vantajosas, o que nos leva a pensar que alguns eram bons-moços de crença, e outros, de interesse. Uma dúvida que permanece após a leitura do texto diz respeito àquilo que vem sendo denominado de conformação ao discurso. Há uma conformação incondicional ao discurso da escola e da família? Ou um certo adultocentrismo não nos permite ver que arranjos são elaborados por muitos/as adolescentes para que uma "aparente" conformação torne mais suportável a passagem pelo ambiente escolar, tornando também menos tensa a vida no meio familiar, ambos demarcados pela "adultês", que não consegue concebê-los para além de "meramente jovens?"

DÉBORAH THOMÉ SAYÃO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2002
  • Data do Fascículo
    2001
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