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A guerra para tornar-se humano: Tornar-se humano em tempo de guerra

NEFERTI TADIAR

A guerra para tornar-se humano/ Tornar-se humano em tempo de guerra

Há um poema escrito em 1990 por uma escritora filipina, Joi Barrios, intitulado "Ang Pagiging Babae Ay Pamumuhay sa Panahon ng Digma" ¾ Ser uma Mulher é Viver em Tempo de Guerra. O poema se refere à época em que o povo filipino presenciava o tráfico de mulheres, apoiado pelo Estado, juntamente com a venda de outros recursos naturais nacionais ¾ nosso povo, nossa terra e sua riqueza orgânica ¾ sob um regime repressivo e autoritário e seus sucessores. Esse tempo de guerra, que durou mais de 30 anos, e continua nos dias de hoje, assistiu à prisão, tortura e matança de milhares de pessoas que se opunham aos regimes que o instituíam, regimes apoiados pelo know-how financeiro, político e militar dos Estados Unidos, do Banco Mundial e do FMI. Barrios escreve:

Nenhum momento/ é sem perigo./ Na sua própria casa,/ falar, desafiar/ é cortejar a dor./ Na rua, andar à noite/ é convidar a agressão./ Na minha sociedade,/ protestar contra a opressão/ é se expor a uma violência ainda maior.

Ser uma mulher é viver em tempo de guerra, ou, traduzindo mais ao pé da letra, Tornar-se Mulher é Viver em Tempo de Guerra.

Por muito tempo tenho estudado/ a profundidade e extensão/ da guerra./ No final, compreendi/ que ser uma mulher/ é uma luta sem fim/ para viver e ser livre.

O que significa agora viver em tempo de guerra? Quero falar hoje sobre a atual guerra contra o terrorismo iniciada pelo governo dos Estados Unidos e seus patrocinadores industriais, e sobre o que, para a grande maioria dos povos desse mundo que continua sendo o objeto não declarado dessa guerra, pode ser visto como o desafio de se tornar humano/a nesses tempos. Da parte de seus ardorosos defensores, a guerra contra o terrorismo não é nada menos que uma guerra para ser humano/a. À medida que os Estados Unidos e o Reino Unido continuam continuam a bombardear o Afeganistão em uma escala de violência cada vez maior que os ataques contra o World Trade Center, em setembro, parece que não há maneira de se continuar sendo humano/a. E ainda assim a guerra contra o terrorismo promete ser exatamente isto: uma maneira de assegurar a humanidade para aqueles que apoiarem a causa patriótica universal da América. Lembremos que a devastação de 11 de setembro, enquanto um evento mundial, foi abraçada como dor mundial. Suas vítimas imediatas foram pelo menos de 62 países, e as demonstrações de compaixão vieram de muitos outros. Agora, parece, a dor é apenas da América. Somente a América está sofrendo. E o resto do mundo deve pagar por isso, com sua cooperação ou com suas vidas. "Se vocês não estão conosco, estão contra nós."

Qual é o suposto objeto dessa guerra: o terrorismo? É o domínio e o uso do terror para fins de conquistar e garantir o poder sobre os seres viventes. Não importa se esse domínio e esse uso são feitos em nome do antiterrorismo. Com os anúncios diários de ameaças contra a vida pipocando de todos os lugares, alertas sobre bombardeios, ataques bioterroristas e até nucleares, incertos, mas mesmo assim iminentes, neste momento o terror reina. E enquanto isso são tomadas medidas antiterroristas, que dão ao Estado poderes cada vez maiores que podem e serão usados contra o povo ¾ a suspensão de habeas-corpus para estrangeiros, ou seja, a licença para deter sem acusações legais, a expansão de mandados de busca, a licença para grampear e monitorar linhas de comunicação privadas, para obter histórias pessoais e arquivos de informação, e assim por diante. E mais e mais medidas são propostas, não porque a inteligência e as forças de segurança domésticas e internacionais ainda não podem exercer esses poderes propostos, mas porque elas já os detêm e querem garantir para si a impunidade. Já foram detidos, indefinidamente, por todo o país, 1.147 estrangeiros, em sua maior parte homens do Oriente Médio e do sul da Ásia, e a maioria desde setembro, em prisões contratadas pelo Serviço de Imigração e Naturalização (INS). Apenas 185 desses detentos estão presos devido a violações menores das leis de imigração, e, exceto por um homem que morreu em uma cadeia de New Jersey, e por alguns relatos de abuso físico e psicológico infligidos contra alguns, e a negação do direito de representação legal e de comunicação a muitos outros, quase nada se sabe sobre o restante dos prisioneiros e sobre como estão sendo tratados. Eles, é claro, juntam-se ao número permanente de pessoas não-brancas detidas. A segurança doméstica une-se à segurança internacional, o complexo presidiário-industrial alia-se ao complexo militar-industrial. Enquanto isso, a CIA recupera seu suposto "direito" de conduzir e contratar assassinatos políticos dos "inimigos" dos Estados Unidos no mundo como um todo. As forças armadas norte-americanas estão enviando conselheiros e armamentos para regimes repressores em outros lugares, inclusive para as Filipinas, como forma de apoio a novas campanhas "contra o terrorismo". Essas campanhas tentam extinguir as lutas dos povos nativos pelo direito à vida e à autodeterminação, os movimentos contra o Estado pela justiça social e de resistência contra a opressão, e as demandas da população pobre por seus próprios meios de subsistência, moradia segura e outros recursos para uma vida melhor. E Bush emite uma ordem executiva que torna secretos documentos presidenciais passados e, presumivelmente, futuros, mesmo com o prazo de 12 anos hoje exigido pela lei. O plano é que nunca saibamos o que Bush e seus aliados estão fazendo agora.

Mas tudo isso se passa quase silenciosamente porque o reino do terror tomou conta. Nós somos enfraquecidos através do medo, um medo que é gerado precisamente por aqueles que têm tudo o que ganhar com ele ¾ os detentores e feitores e reguladores das armas do terror e dos instrumentos de defesa. Neste meio tempo, milhões de mulheres, crianças e homens afegãos estão à beira da fome e de um inverno rigoroso sem abrigo adequado, impiedosamente isolados de qualquer assistência humanitária e asilo político, enquanto suas famílias continuam sendo bombardeadas até a morte com explosivos, biscoitos de pasta de amendoim e panfletos. Com a morte de dois funcionários dos correios norte-americanos, um oficial de Estado anunciou: "a lição que estamos aprendendo é que se pode bombardear o alvo errado no Afeganistão e não ser afetado por isso. Mas não mexa com os correios". Na verdade, os danos emocionais, físicos e psicológicos de fato causados às pessoas neste país são usados para criar os órgãos de segurança da pátria, os poderes e os direitos das forças armadas e das polícias, e o pedestal moral irrevogável sobre o qual se apóiam. O poder supremo, este é o produto dessa guerra contra o terror. A guerra contra o terrorismo é, portanto, um modelo exemplar daquilo que se propõe a erradicar.

Quais são os custos dessa guerra? O dinheiro alocado para realizá-la inclui: qualquer quantia dos 40 bilhões de dólares não gastos em auxílios (dos quais uma mínima parte, se é que alguma, foi usada para auxílio às classes trabalhadoras de indústrias falidas, enquanto muito mais foi direcionado ao auxílio de investidores); bilhões de dólares em novos armamentos, incluindo mísseis, e uma conta de 200 bilhões para a Lockheed Martin desenhar e construir aproximadamente 3.000 aviões de guerra Joint Strike Fighter para a Força Aérea, a Marinha e os Fuzileiros, e para a Marinha Real Britânica [unidas, a aviação civil e a militar se mantêm de pé]; bilhões de dólares alocados para as indústrias farmacêuticas em prol da defesa hipotética contra quaisquer tipos de bioterrorismo. E nós ainda não fomos tocados pelo fértil parentesco que faz de George W. Bush e Osama bin Laden, dos Estados Unidos e da Arábia Saudita, semelhantes, oferecendo-nos um retrato inteiramente diferente dos eventos mundiais nas trilhas transnacionais deixadas pelos oleodutos e pelas rotas de transporte de barris de petróleo. Outros países estão lucrando também. O lucro do Egito por ter se engajado na coalizão norte-americana antes da Guerra do Golfo foi 60 bilhões de dólares de uma dívida perdoada ¾ perdão concedido pelos mesmos que ajudaram a fazer a dívida. Existem outras moedas de pagamento: armas, "assistência" tecnológica militar e de inteligência, acordos econômicos, liberdade política, etc.

Constata-se, então, que o poder e a riqueza caminham juntos. E a guerra contra o terrorismo vai garantir que continuem assim. O estado de emergência que reina no momento não é uma "crise" no sentido de um colapso da ordem dominante, mas sim uma extensão e uma intensificação da lógica dessa ordem no momento histórico em que é questionada ¾ certamente pelos ataques de 11 de setembro, porém mais ainda por todas as lutas sociais em todo o mundo, as quais se constituem na condição histórica da possibilidade de uma preocupação real que, no desenlace dos ataques, veio à tona em uma palavra: Por quê? A guerra se torna a resposta prática para essa pergunta. A guerra é o ato pelo qual os suspeitos são julgados e condenados. Sua derrota será a definição cabal de "terrorismo", longe do Estado que realiza essa produção exorcista da evidência ausente de sua base moral. A guerra é o teste para a justificação de uma Nação-Estado e de seu direito unilateral de dominar a terra. Ao invés de propaganda a serviço da guerra, então, a guerra atual está sendo posta a serviço da propaganda. Com isso quero dizer que a guerra é o meio para a propagação em escala mundial de uma ordem duradoura que foi posta em xeque pelas lutas de povos em todas as partes do mundo em busca da vida e da liberdade. E como temos visto, nessa era da informação, tal propaganda em si produz lucros instantâneos. No entanto, lucros imediatos ficam bem atrás se comparados com os ganhos a longo prazo que serão alcançados quando uma força policial global for estabelecida, como a força de segurança principal para as novas alianças políticas e econômicas em processo de consolidação.

Ao afirmar que a guerra atual é uma intensificação e uma forma de proteger uma organização mundial de poder e de riqueza, não quero dizer que as coisas continuam as mesmas. Estamos em uma nova situação na qual os Estados Unidos passaram a adotar técnicas coercitivas e repressivas de autopreservação e auto-engrandecimento usadas pelos Estados pós-coloniais tirânicos que eles mesmos financiaram e continuam a financiar. "Psyops", a estratégia principal de conflitos de baixa intensidade desenvolvida pela CIA e utilizada contra camponeses do Terceiro Mundo e movimentos guerrilheiros, por exemplo, pode agora ser posta em prática contra sua própria população. Essa é a situação contra a qual agora temos que lutar; uma situação sobre a qual aqueles que vivenciaram os regimes repressivos dos Estados pós-coloniais apoiados pelos Estados Unidos e pela CIA têm muito o que falar. Ao afirmar a continuidade, contudo, estou tentando demonstrar a mentira persistente sobre a qual se predicava a paz antes de 11 de setembro. A guerra é um esforço grandioso para reforçar a estrutura de uma mentira. Tal estrutura não se trata apenas de um feito dos meios de comunicação de massa, que satisfazem os interesses da elite dominante; trata-se também da conseqüência de um sistema de produção de riqueza que esconde e contém suas contradições em lugares e pessoas que, em virtude de um colonialismo de classe endêmico, são inumanos, e, portanto, secundários para o sistema em si e para aqueles privilegiados com a humanidade, que têm tudo a ganhar e a desfrutar dela. Deveria ser desnecessário lembrar que tal sistema mundial de exploração contém raça e gênero como princípios centrais de sua organização.

Isso nos traz finalmente aos custos dessa guerra. É em virtude daqueles que já são humanos e que comandam a guerra, a face humanitária que empacota bombas e alimentos em latas amarelas idênticas, que o desafio imenso de viver, por parte daqueles outros que não são considerados humanos ainda, torna-se mais agudo. Os "já humanos" entre nós se envolvem no mesmo terror a que desejam dar fim. Mas eles nunca verão o fim desse terror enquanto o guardarem em seus corações como uma promessa solene, esperando que o Estado, ao qual outorgaram o direito de falar em seu nome e agir em seus interesses, aniquile aqueles que imaginam ser a fonte, o próprio ser e expressão, do terror. Quando um palestino detido indagou aos oficiais o que tinha feito (seu visto estava vencido), disseram-lhe: "Você não fez nada; seu povo fez". Meu corpo pelo meu povo.

Os "já humanos" querem defender suas liberdades. E, no entanto, entregam-na a um Estado-polícia que, sem culpa, leva a cabo o sentido completo dessa liberdade: a liberdade para ser indiferente e para violar as vidas alheias ¾ as próprias vidas que dão suporte às suas, as próprias vidas que agora, com a ajuda da guerra, eles transformam em destino à mercê da Operação Liberdade Duradoura. Fazem isso porque estão sendo reféns de uma dor que, nas garras de um sofrimento patriótico, admite pouca ou nenhuma compaixão pelo sofrimento dos outros. E o valor do resgate? Os inúmeros corpos dos outros. O caráter incomensurável das perdas de um povo é traduzido no valor incomensurável de alguns povos em detrimento de outros. Um milhão de iraquianos, meio milhão dos quais eram crianças abaixo dos cinco anos ¾ o preço das sanções norte-americanas, que, de acordo com Madeleine Albright, valeu a pena. E mais e mais, em outros lugares, antes e depois. Danos colaterais. Seja como objetos de crimes de ódio, ou alvos de bombas e embargo de alimentos, ou mercados confortáveis para o tráfico de drogas, os povos não-brancos são esses colaterais desde o início. Povo em excesso, em excesso para a nação, em excesso para a humanidade, supérfluo, e, ainda assim, a própria condição para o poder e a riqueza excedentes, agora defendidos tão maldosamente contra eles. Enquanto excesso, eles podem ser usados, como as mulheres do Afeganistão têm sido usadas, como símbolos, meros meios simbólicos, na luta de poderes viris e Estados patriarcais. É alguma surpresa o fato de que elas sejam totalmente excluídas dos planos e das negociações em andamento acerca de seus futuros?

Gostaria de concluir dizendo que não há uma crise real no âmago do estado de emergência permanente que monstruosamente cresce diante de nós. Longe de serem vítimas passivas, os custos sociais dessa guerra são também as causas de uma crise global real. Essa crise reside nas demandas feitas em todo o mundo por vidas melhores, por presentes e futuros abertos, por uma atmosfera limpa, por terras soberanas, alimento, abrigo, trabalho criativo e educação, demandas pela diferença e liberdade; não uma liberdade vinda de mãos assassinas, e não aquela diferença que somos forçados a habitar, mas uma diferença para o mundo como o construímos. Existem muitos exemplos da crise real que as lutas dos povos causaram ao super-Estado americano e aos seus patrocinadores capitalistas militares, industriais, petroquímicos e farmacêuticos. Tal crise é evidente nas decisões do Tribunal Mundial e nas resoluções do Conselho de Segurança da ONU contra as violações dos norte-americanos à lei internacional no caso da Nicarágua, e na resolução da Assembléia Geral da ONU, de 1987, contra o terrorismo, ambas as quais os Estados Unidos vetaram ou votaram contra, da mesma forma como se retiraram da Conferência Mundial da ONU sobre o racismo e renegaram o protocolo de Kyoto. E existem as lutas para garantir assistência médica aos pobres doentes em países como Índia, África do Sul e Brasil, que estão produzindo versões genéricas mais baratas de remédios patenteados e caros para a AIDS, assim como outros medicamentos vitais atualmente sob o monopólio de companhias farmacêuticas multinacionais, as mesmas companhias que constituem o maior lobby industrial no Congresso norte-americano. Essas são lutas em nome da vida, e não da morte. A vida não tem país, não tem bandeira, não tem nome próprio. Não possui medida de acordo com a qual possa ser eterna ou garantida para todos. Esse é seu grande poder, e, no entanto, diante da potência dominante da morte, também a sua fragilidade. Porque a potência do sujeito da morte reside na sua capacidade de marcar o morto a seu bel-prazer, de fincar o mastro de uma bandeira, um símbolo, em um corpo, como se esse fosse o significado da vida que o deixou. Alguns dos parentes dos mortos em 11 de setembro recusam esse segundo assassinato. E nós deveríamos também. Assim como deveríamos reforçar nossa discordância com essa guerra, nossa incessante recusa de sermos usadas como combustíveis ou símbolos dela, ou como beneficiárias de seus ganhos.

Nesse tempo mortal de guerra, tornar-se humano/a é a luta de práticas de vida, a luta pela vida. Precisamos fortalecer essas práticas e nossas capacidades de criar e não de destruir. Para fazer isso, em vez de memoriais e louvores que cobrem, no intuito de cicatrizar, as feridas abertas diante de nós, precisamos de memórias vivas, histórias vivas, como aberturas para outros futuros. Aqui, na pessoa de Tahmeena Faryal, da Associação Revolucionária das Mulheres no Afeganistão, temos a sorte de ter um exemplo inspirador dessas histórias vivas.

Tradução de Ana Cecília Acioli Lima

Revisão de Susana Bornéo Funck

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2002
  • Data do Fascículo
    2001
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