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Um roteiro da construção social da "violência de gênero": conflitos interpessoais e judiciarização

Um roteiro da construção social da "violência de gênero": conflitos interpessoais e judiciarização

Violência, gênero e crime no Distrito Federal.

SUÁREZ,Mireya e BANDEIRA, Lourdes (Orgs.).

Brasília: Paralelo 15;Editora da Universidade de Brasília, 1999. 536 p.

O livro organizado por Mireya Suárez e Lourdes Bandeira é fruto de um trabalho coletivo no sentido forte do termo. Trata-se da publicação dos resultados de projetos de pesquisa voltados para o estudo das "violências contra as mulheres" e articulados em torno do convênio do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPeM) da Universidade de Brasília com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. É obra de equipe, composta de 12 capítulos assinados por várias pesquisadoras que, sem perder especificidade nem autonomia, mantêm uma interlocução entre si que demonstra a base cooperativa sobre a qual foi realizado o trabalho como um todo. Assim, supera-se a simples justaposição de trabalhos, ampliando-se o alcance dos resultados de cada um isoladamente. O diálogo entre os capítulos é peça fundamental para a realização do tour d'horizon sobre a complexa temática recortada no livro. A meu ver, o mérito primeiro de Violência, gênero e crime no Distrito Federal é o efeito de conjunto, ou melhor, a complementaridade de perspectivas.

Para se ter uma idéia da extensão do campo coberto pela obra, convém destacar que os 12 capítulos estão organizados em quatro partes: "Discursos sobre a violência"; "Narrativa da violência"; "Reflexões teóricas sobre o estupro" e ; "Uma análise dos dados sobre a violência". A primeira parte engloba os seguintes capítulos: "A noção de crime sexual" (Mireya Suárez, Danielli Jatobá França e Renata Weber); "O discurso policial comentado" (Mireya Suárez); "Notícias de violência: uma leitura" (Tânia Montoro); e "Violência contra mulheres na mídia impressa" (Adriana Carvalho Lopes). Na segunda parte: "Pai e avô: o caso de estupro incestuoso do pastor" (Lourdes Bandeira e Tânia Mara Campos de Almeida); "Violência conjugal: os espelhos e as marcas" (Lia Zanotta Machado e Maria Tereza Bossi de Magalhães); "Uma reflexão sobre a casa como lugar de violência inocente" (Tânia Mara Campos de Almeida); e "Retóricas sobre o crime" (Danielli Jatobá França). A terceira parte é composta por: "Sexo, estupro e purificação" (Lia Zanotta Machado); "Violência sexual, imaginário de gênero e narcisismo" (Lourdes Bandeira); e "A estrutura de gênero e a injunção do estupro" (Rita Laura Segato). Na última parte, um capítulo único intitulado "Um recorrido pelas estatísticas da violência" (Lourdes Bandeira). Destaca-se também a interessante introdução assinada por Mireya Suárez e Lourdes Bandeira.

A complexidade do campo em que se situa a obra está marcada pela transversalidade dos fenômenos abordados, bem como pela sua persistência. Ela tem colocado em questão, nos últimos anos, a capacidade analítica dos modelos clássicos e as políticas de intervenção neles baseadas. Nas últimas décadas essa temática tem sido motivo de inquietação em países tão diferentes quanto Estados Unidos da América, França, Canadá ou Brasil, e atravessa, em cada um deles, o conjunto dos seus segmentos sociais. Desse modo, os movimentos sociais que lutam contra a impunidade nos casos de "violência contra mulheres" são, ao mesmo tempo, fenômeno local e global, e os modelos interpretativos e propositivos resultam de complexo amálgama desses dois campos. Há que se considerar ainda que a expressão violência contra a mulher reagrupa toda uma gama de fenômenos, razão pela qual pode ser considerada como um conjunto heterogêneo de experiências sociais. A homogeneização que resulta dessa expressão é problema teórico, mas também tem implicações na definição de políticas sociais de intervenção.

Os enormes avanços realizados no conhecimento empírico das relações interpessoais, sobretudo no âmbito da conjugalidade e das práticas institucionais correlatas, nos convidam para mais um movimento que deve ser o da dúvida teórica radical. Porém, uma dúvida teórica que envolva a percepção social dos fenômenos estudado e dialogue diretamente com ela. Nesse sentido, entendo que o livro Violência, gênero e crime no Distrito Federal responde a uma demanda, supre uma carência, da maior atualidade para as ciências sociais: uma releitura teórica e empírica da construção social da "violência de gênero" no Brasil.

Na obra cruzam-se discussões teóricas, análise de dados e a construção simbólica da "violência" na mídia, resultando uma visão mais profunda e abrangente dos temas abordados. Assim, temos uma leitura teórica que desloca o centro da análise para fenômenos concretos, afastando-se da homogeneização contida na noção de "violência", o que contribui para desmitificar o alarmismo de um crescente e inelutável aumento da "violência", que, ao invés de nos despertar para a ação, pode inibir nossa capacidade de agir. Neste livro, nos capítulos sobre estupro, incesto e "crimes sexuais", por exemplo, a discussão teórica torna-se mais refinada e abre perspectivas para modelos interpretativos específicos e para o desenvolvimento de ações concretas de prevenção e promoção de políticas públicas alternativas. Seus capítulos se alinham num fluxo comum, compondo um mosaico de questionamentos teóricos em diálogo com a sua base empírica, o que é a segunda, mas igualmente importante, qualidade desta obra.

Uma terceira característica, mais sutil, resulta do cruzamento das duas anteriores: o resgate da polifonia presente nas práticas sociais analisadas pelas pesquisadoras. De fato, ao longo dos 12 capítulos estão presentes as vozes das mulheres, mas também da mídia, dos agressores, além das falas dos policiais e dos discursos dos teóricos. Pode-se afirmar, portanto, que estamos diante de uma obra rara, cuja raridade aponta para uma trajetória, um roteiro de pesquisa, ao mesmo tempo "engajada" - como se dizia no jargão militante - e contemporânea, por mostrar cenários em constante remontagem.

As três marcas que pontuaram a minha leitura da obra fazem pensar na importância desse tipo de trabalho, no seu alcance como instrumento para a elaboração de políticas públicas e, sobretudo, na virtude de apresentar as múltiplas trilhas percorridas para a construção social da "violência de gênero". Isso me leva a identificar na obra uma proposta de pesquisa que deve ser seriamente discutida, porque nos permite refletir para além da generalidade do objeto "violência", especificando-se na complexidade dos conflitos interpessoais e na transformação da intimidade, para usar a fórmula consagrada. O que acredito poderá, no limite, refletir-se nas políticas sociais, especialmente no questionamento da posição privilegiada, senão exclusiva, dos processos de judiciarização. Afinal, precisamos de novos modelos interpretativos que nos permitam ultrapassar os limites dos territórios conceituais que mostraram a sua força fazendo-nos ver a invisibilidade da "violência contra a mulher", mas que agora nos prendem aos seus próprios avanços.

THEOPHILOS RIFIOTIS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2002
  • Data do Fascículo
    2001
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