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Nacionalidade literária como identidade

Nacionalidade literária como identidade

Les rêveries de la femme sauvage

CIXOUS, Hélène.

Paris: Galilée, 2000. 168 p.

até o dia em que, repentinamente, como se

acordasse de um sono de quarenta anos, vi

que reconhecia...

Les rêveries de la femme sauvage, de Hélène Cixous, que tem por subtítulo "Cenas primitivas", inscreve-se na esteira do ensaio Photos sans racine, publicado em 1994, no qual a escritora afirma na contracapa: "O que constitui o solo originário, o país natal de minha escritura, é uma vasta extensão de tempo e terras, nos quais se desenrola minha longa e dupla infância. Tenho uma infância com duas memórias". Nesses dois textos Cixous libera uma parte importante da narrativa autobiográfica: sua infância na Argélia. Desde então, a volta à origem constitui-se em germe de um parto difícil. A feliz liberação se dá pelo fogo sagrado de uma brilhante escritura. Profundamente ligada a cada um dos lugares de onde fugiu, cada instante detestado e detestável constitui-se em figura vital, que Cixous declara não trocar por nenhum doce ou moderado instante no mundo.

Geografia da memória genealógica, Cixous situa Les rêveries de la femme sauvage nas margens da África do Norte. Em sua praia. À esquerda, a oeste, a família paterna, que seguiu o clássico trajeto dos judeus expulsos da Espanha para o Marrocos. Seus avós viajavam no dorso de burros, acompanhando o exército francês como vendedores ambulantes e intérpretes, chegando ao lado ocidental da Argélia, em Oran, cidade natal da escritora, que até hoje guarda características espanholas.

Com a sabedoria que se reconhece em narrativas da maturidade, Cixous entrega-se ao texto e dele extrai a seiva das palavras com o intuito de liberar a paixão, os barulhos antigos, a felicidade inestimável que enfim consegue alcançar: "Eu nunca quis escrever sobre a Argélia, esse país natal desconhecido [...], e ao mesmo tempo observava nesses últimos anos, ao abrir a janela antes do sol nascer, que acontecia de eu ouvir, quer dizer, de acreditar ouvir [...], um latido ao longe, como se fosse a lembrança de um sonho..." (p. 167). Pensado na década de 1990, esse livro zune de barulhos longínquos.

Conduzida pela urgência de dizer e escrever, Cixous inscreve sua voz vibrante, clara e corporal nesse texto cuja palavra caracteriza-se por estar no feminino. Desde 1968 seu nome vem associado às edições des femmes, mulheres que nas décadas de 1970 e 1980 militaram ardentemente em prol da 'diferença sexual'. Figura de proa ao lado de Antoinette Fouque, Luce Irigaray e Julia Kristeva, a grande arte de Cixous é exercida em dois estilos: a ficção e o teatro, destacando-se pelas cenas fortes, nas quais assenta personagens capazes de assombrar a imaginação de quem a lê com a mesma intensidade que povoam a imaginação da própria autora. No teatro, onde a escrita é palavra, ela desdobra sua verve acentuada por uma clara consciência. Ariane Mnouchkine e o seu Théâtre du Soleil abriram-lhe a via da epopéia, na qual se aplicou em unir o antigo e o atual, o próximo e o longínquo, em atuais entrecruzamentos.

Na escrita ora enfocada ¾ traçada com rapidez¾ a obstinada segregação das raças tem gosto de morte. O pai de Cixous, judeu expulso da Espanha, é um médico sem direito ao exercício da profissão; a mãe, judia alemã perseguida por um anti-semitismo agudo, ficou viúva muito cedo; o irmão, o cúmplice de sempre, é freqüentemente associado a uma bicicleta, objeto real e simbólico ¾ "ato fundador da morte" ¾, imaginário que a menininha cobiça em vão. É na cabeça que rodam as imagens do lugar chamado Clos Salembier, na cidade de Argel, "um lugar que logo me agradou intensamente, assim que o vi" (p. 66). Imagens intensas, tumultuadas e ruidosas, desfilam em abundância, paralelas à vida difícil da mãe parteira dos árabes, nas favelas.

Ao pintar o próprio retrato na evocação dos próximos, em Les rêveries de la femme sauvage Cixous trabalha o alter ego em espelhamento. No ginásio, a jovem tem a experiência da doença que acomete o corpo social. O espaço da vida quotidiana é fechado por múltiplas portas, tão invisíveis quanto intransponíveis. A brancura da Argélia, justaposta à miséria popular, recebe desde a escola um cheiro de complicação histórica. Muito cedo Hélène transformou-se em combatente de sua própria iniciativa, incapaz de ocultar os enormes obstáculos impostos pela sociedade. Mais tarde ela colocará palavras sobre imagens, no momento do estouro do projeto político de Vichy, que articulava o plano de apagamento do ser argelino, o que explica as expulsões súbitas, a incorporação ou a exclusão conhecidas em sua família: "o apagamento do ser judeu".

Como tantas/os outras/os nascidos em Oran, Cixous teve de deixar a terra natal e conquistar uma identidade interior, que chamou de "nacionalidade literária". Única, sua escrita colore-se de uma vida movimentada, que investe retrospectivamente na longínqua memória. Se hoje ela consegue conter-se no presente, mostrando e demonstrando-se, do ontem ao agora e vice-versa, nada mais de sua infância parece ordinário. O singular conjuga-se ao universal, explica Cixous, meio feliz, meio infernal, guiada pela força tranqüila das origens, inventando o encadeamento das causas. Não, a infância não se perde no adulto. Todavia, para reencontrar sua força ativa, a escritora evoca um árduo combate, intenso como um filme de terror. Há muito a descobrir nessa Argélia que evoca um país inapreensível e inacessível, tanto para ela que nele habitou quanto para qualquer ocidental. Argel, a intocável. Oran, enterrada nas trevas do esquecimento. Passa-se do terreno pessoal ao histórico por correspondências convincentes, aferindo o impacto da história em todas as dimensões íntimas da vida. Cixous atribui à força argelina de sua imaginação as cicatrizes que marcaram seu corpo. E escreve com brio, ela que pensa o que revê e revê o que hoje os indivíduos empenham-se em esquecer...

Hélène Cixous recebeu vários doutorados honoris causa (Queen's University e Université d'Edmonton, no Canadá, York University, na Inglaterra). Publicou nas Editions des femmes L'heure de Clarice Lispector (1989) e foi contemplada no Brasil com a Ordem do Cruzeiro do Sul pela sua contribuição ao desenvolvimento da literatura brasileira. Participa todos os anos de numerosos encontros internacionais ¾ na Europa, na América e na Ásia ¾ a respeito de sua vasta obra literária e do reconhecido trabalho que empreende em prol dos Estudos Feministas.

NUBIA JACQUES HANCIAU

Fundação Universidade Federal do Rio Grande

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2002
  • Data do Fascículo
    Jan 2002
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