Acessibilidade / Reportar erro

Em jogo... os jogos da beleza

Em jogo... os jogos da beleza

Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20

SCHPUN, Mônica Raisa.

São Paulo: Boitempo Editorial/Editora SENAC, 1999. 164 p.

Os jogos da beleza há muito vêm fazendo parte de nossa cultura, aliás, de muitas culturas. Compostos de estratégias distintas, de valores e múltiplas faces, tais jogos se revestem de diferentes significados: prestígio social, talvez político, ou mesmo como alavanca para uma carreira de sucesso, entre outros tantos. Diferentemente do que possa parecer, os significados dados à beleza não obedecem a qualquer linearidade, tampouco aquilo que pode ser chamado de os "jogos da beleza" surge descolado de um contexto histórico. A beleza, assim como os jogos que a determinam, tem história e como tal está permeada de inúmeras relações, de idas e vindas que se mostram através de pequenos e grandes detalhes: das diferenças visíveis naquilo que chamamos de padrões de beleza aos contextos que os constituem.

Os muitos jogos que envolvem a busca pela beleza têm alcançado nos últimos tempos uma grande notoriedade, que pode ser percebida através de diferentes meios. De capas de revistas que ora se alternam apresentando os segredos da beleza, ora alertam quanto aos problemas que essa busca pode suscitar, aos estudos feitos sobre ambas as perspectivas, percebe-se que um longo caminho tem sido traçado.

Assim, se de um lado têm-se constantemente presente na mídia os mais diversos tipos de debate que envolvem a cultura física, de outro evidencia-se a preocupação de muitos pesquisadores em discutir essa questão. Pesquisas na área de Saúde, Psicologia, Sociologia, Antropologia, entre outras, demonstram e identificam problemas como a bulimia, a anorexia nervosa, entre tantos outros, o que tem nos alertado para a emergência do tema. Sob perspectivas muito distintas, esses pesquisadores parecem preocupados, sobretudo, com a disseminação de um ideal de beleza magro, jovem e branco.

Por outro lado destaca-se a preocupação em dar historicidade a essa temática, questionando assim quais as relações que estão permeando esse processo que poderíamos definir como o do nosso trato com o corpo. Assim, a história também tem participado desse debate, justamente lembrando a necessidade de contextualizar os padrões, as relações e os contextos que os constituíram e mesmo os sujeitos que são construídos através deles.

Beleza em jogo, de Mônica Raisa Schpun, está entre as contribuições dessa disciplina e como tal nos convida a conhecer, através da análise discursiva, da observação de práticas sociais e de outras atividades, o modo como em determinado período e espaço os padrões de beleza vão sendo construídos e ganhando visibilidade. Apresentado inicialmente como tese de doutorado à Universidade de Paris VII, com o título de Paulistanos & Paulistanas: rapports de genre à São Paulo dans le annés vingt, e posteriormente publicado pela Éditions L'harmattarn e pelo Institut des Hautes Études de L'Amérique Latine como Les annés folles à São Paulo, o trabalho de Mônica Schpun aposta portanto em um tema atual, polêmico e instigante.

Em sua análise Schpun observa um contexto e um local específico, a cidade de São Paulo dos anos 1920, investigando como, sob o processo de urbanização dessa cidade, desenharam-se papéis específicos para homens e mulheres a partir de referenciais tidos como próprios aos universos masculino e feminino. A principal implicação de sua problemática é mostrar como o processo de urbanização dessa cidade transformou as relações entre homens e mulheres e como estas, por sua vez, também marcaram as transformações urbanas. O duplo caminho apresentado nessa proposta nos evidencia como os padrões de beleza e mesmo outros valores dados ao corpo são construídos historicamente, como eles emergem em determinados contextos e como também influenciam as próprias relações sociais.

Para nos apresentar sua tese a autora traz um extenso levantamento de fontes que incluem revistas femininas (Cigarra, Revista Feminina), romances, fotografias, reportagens sobre os concursos de beleza e, ainda, os arquivos de clubes de esportes. Nesses espaços, ela mostra como foi criada uma 'pedagogia da beleza', destinada a apresentar padrões, comportamentos e físicos ¾ orientados para uma elite que buscava afirmação de seu prestígio. Isso porque o período em questão marca o processo de reorganização da cidade de São Paulo, onde uma elite cafeeira passava a ocupar o espaço físico e social. Conforme a autora, após a mudança para a cidade, a oligarquia rural passou a pôr em prática estratégias que a distinguissem e que criassem uma identidade dessa classe. Os instrumentos de tal processo de distinção foram expressos, portanto, através dos discursos apresentados nas fontes citadas acima e também através das suas práticas sociais.

Além de recuperar tradições, de investir em figuras heróicas como os bandeirantes, bem como na idéia de modernidade, a elite paulistana recorreu a seus próprios membros para atestar e garantir suas prerrogativas. Para isso, passou então a investir em 'códigos de diferenciação' relativos ao físico, que deveriam ser seguidos nas apresentações públicas.

Mas certamente não seriam as mesmas regras apresentadas a mulheres e homens. Ao contrário, as pedagogias eram diferentes e apostavam em caminhos opostos quanto à apresentação pública feminina e masculina. Assim, homens e mulheres tiveram não apenas prescrições distintas no que diz respeito à sua participação nesse processo de urbanização, mas também passaram por diferentes experiências, como se preocupa em alertar a autora: "o apelo mais freqüente à exibição pública está vinculado à diferença entre os gêneros: a experiência de homens e mulheres é fundamentalmente distinta" (p. 21-22).

E o que significou essa diferenciação? Quais as implicações dessas diferenças? Bem, inicialmente o que se destaca é a oposição entre os parâmetros oferecidos a homens e a mulheres, que podem ser acompanhados desde as práticas esportivas oferecidas a ambos até as vestimentas e a apresentação física propriamente dita.

Segundo a pesquisa de Mônica Schpun, os discursos que remetem às experiências e aos corpos de homens e mulheres estão vinculados a um "imaginário manifestadamente sexuado" (p. 22) e naturalizado, e como tal investem sobre ele. Ou seja, ao se prescrever quais as atividades esportivas, por exemplo, mais apropriadas para cada um dos sexos, o que era aconselhado estava circunscrito ao que se julgava próprio e natural para eles. Essa assimetria nas relações evidencia-se quando descobrimos que tipos de atividades eram aconselhados às mulheres e aos homens, respectivamente: para elas, esportes como dança clássica, natação, ginástica sueca e os exercícios 'menos pesados'; para eles, esportes da força, como atletismo, futebol, lutas, entre outros. Para prescrever atividades esportivas e físicas para os homens e as mulheres foram buscados como parâmetros idéias de preservação do físico e aproveitamento dos 'dons naturais', como escreveu a autora: "desde o começo, os discursos que defendem maior atenção à forma física dos jovens, com preocupações higiênicas, eugênicas, médicas, morais ou disciplinares, estabeleceram nítida distinção às práticas aconselhadas a cada sexo, observadas suas diferentes 'naturezas'" (p. 34).

As estratégias discursivas e práticas utilizadas para colocar em ação essas idéias também são destacadas pela autora, através de textos de revistas e de médicos higienistas que se preocupam em listar os benefícios das práticas esportivas. A tônica de tais textos também recai sobre o papel socializador dos esportes, que podem permitir e fortalecer laços de amizade. Mas não é apenas sobre esse fato que a pesquisadora nos chama a atenção. Sem perder seu foco, ela menciona outra fronteira construída entre homens e mulheres ao destacar como a presença feminina nos eventos esportivos é menos sentida que a masculina. Trazendo fotos que atestam a pouca visibilidade das mulheres nos espetáculos públicos desse tipo de sociabilidade, Schpun reforça seu argumento de que a participação feminina estava sendo solicitada de modo restrito, ou melhor, distinto.

Outro ponto que merece destaque na pesquisa dessa historiadora é a análise dos artigos de revistas e outros pronunciamentos que falam especificamente às mulheres sobre beleza, moda, saúde e comércio. Nesses textos, de forma geral o que se pode notar é a instalação da idéia de investimento sobre a beleza e a exibição pública, entretanto esse era um procedimento que deveria ser orientado para evitar excessos na maquiagem, nas roupas, etc. Os discursos médicos, por exemplo, consideravam hábitos importantes a prática de exercícios, uma boa alimentação e os cuidados com a pele, cabelos, unhas, etc., pois isso estava associado à idéia de saúde e juventude, que era o referencial de beleza. Mas como foi dito anteriormente, era necessário impor regras para, sobretudo, evitar a vaidade e aquilo que se chamava de exposição mundana.

É interessante observar que o momento abordado neste trabalho também é marcado por fatos como uma maior circulação das mulheres de elite pelas ruas, bem como a sua transformação em consumidoras. Tais acontecimentos repercutem de modo intenso na imprensa dedicada às mulheres e estão em perfeita associação com a estratégia distintiva adotada pela elite paulistana. Entretanto, para se expor era necessário resguardar a imagem da distinção, ou seja, evitar maquiagem exagerada, roupas ou comportamentos semelhantes às mulheres das camadas pobres ou mesmo às chamadas mulheres fatais. A beleza esperada para ser exibida pela elite era, portanto, a beleza natural, apenas realçada com moderação no uso dos cosméticos.

Percebemos que nesse contexto os jogos da beleza atendem às demandas sociais. A beleza representa e significa prestígio social. Fazer-se bela é, assim, antes de mais nada, um investimento social sobre o qual, não se pode esquecer, passam as atribuições de gênero. A mulher bela não era apenas aquela que se mostrava impecável em suas aparições públicas; ela também deveria demonstrar a graça, a descrição, enfim a natureza de seu gênero.

Em nossos dias as experiências de homens e mulheres no que diz respeito ao cuidado com o corpo passam por outras questões, assim como são outras as exigências feitas. A presença das mulheres na sociedade pode ser percebida das mais diversas formas, e seu relacionamento com os homens é outro. Mas ainda convivemos com padrões de beleza, ainda falamos em corpos certos e errados... Apesar de haver a possibilidade da escolha, ainda parecemos presos a esses jogos onde a beleza é supervalorizada. Mas como foi colocado logo no início desta discussão, cada vez mais essa supervalorização tem sido colocada à prova.

Trabalhos como este de Mônica Schpun são um exemplo e talvez seja aqui que Beleza em jogo mais se destaca. Apresentando as estratégias utilizadas para divulgar determinados padrões de beleza, atribuindo-lhes uma historicidade, esta autora contribui para um debate que deve se aprofundar. Desnaturalizar os estereótipos, historicizar os padrões de beleza, lembrar das 'invenções' que cotidianamente estão presentes em nossas relações são compromissos que devemos assumir. Em jogos, em experiências, a beleza é uma questão histórica, faz parte de muitas das nossas vivências, e como tal precisa ser discutida e problematizada. Esse empreendimento não apenas pode desfazer mitos, desconstruir preconceitos, mas também pode oferecer novas possibilidades: a convivência com a diferença é uma delas. O diálogo é recolocado aqui e espera por respostas...

NUCIA ALEXANDRA SILVA DE OLIVEIRA

Universidade Federal de Santa Catarina

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2002
  • Data do Fascículo
    Jan 2002
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br