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Humanização do parto: entrevista com Robbie Davis-Floyd

PONTO DE VISTA

Humanização do parto: entrevista com Robbie Davis-Floyd

Carmen Susana Tornquist

Universidade Federal de Santa Catarina

Esta entrevista foi feita quando a antropóloga e ativista do parto natural Robbie Davis-Floyd esteve em Florianópolis para participar da Conferência Ecologia do Parto e do Nascimento, realizada simultaneamente no Rio de Janeiro e em Santa Catarina. Essa Conferência foi promovida, entre outras entidades, pela Rede Nacional de Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa), com a qual Robbie (como é conhecida nessas ocasiões) tem estabelecido uma relação bastante intensa nos últimos anos. A entrevista foi realizada em dois momentos: inicialmente como uma conversa informal, entre uma palestra e outra, e posteriormente em um encontro marcado especialmente para a realização da entrevista. Participaram desses encontros Ricardo Herbert Jones,1 1 Médico obstreta no Rio Grande do Sul, homeopata e membro da ReHuNa. que também fez a revisão dos trechos em inglês, Carmen Susana Tornquist2 2 Doutoranda em Antropologia Social, participante do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), da UFSC, e do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Parto e Nascimento, também da UFSC. e Miriam Pillar Grossi.3 3 Antropóloga, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC e coordenadora do NIGS.

Para além da sua atuação no âmbito dos movimentos civis ligados ao parto e ao nascimento, Robbie Davis-Floyd é pesquisadora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Austin, Texas, e tem escrito vários trabalhos importantes, entre eles o livro Birth as an American Rite of Passage,4 4 DAVIS-FLOYD, 1992. no qual utiliza a noção de 'rito de passagem', desenvolvida pelo antropólogo Arnold Van Gennep, para mostrar o quanto o parto medicalizado é um evento ritualístico que afirma os valores dominantes da sociedade industrial e patriarcal sobre a mulher. Esse livro, até hoje não traduzido para o português, tem sido uma referência para os ativistas do movimento de humanização do parto no Brasil e para as estudiosas das questões ligadas ao parto, e sobre o qual temos nesta mesma revista a resenha crítica de Simone Diniz.

Nos últimos anos no Brasil, Robbie Davis-Floyd tem sido presença cativante nos eventos organizados pelo movimento de humanização do parto e do nascimento, nos quais tem trazido ao público não apenas sua crítica ao 'modelo tecnocrático', mas também sua experiência com organizações de parteiras nos Estados Unidos e no México, as quais, segundo a autora, identificariam-se com o que ela chama de 'modelo holístico' de atenção ao parto.

Sobre a instigante temática da organização das parteiras profissionais (nurse-midwives) e de 'entrada direta' - aquelas que não são enfermeiras, mas fazem cursos específicos nas Escolas de Parteiras (Midwifery Schools) ou nos programas de treinamento para parteiras nos Estados Unidos - Davis-Floyd escreveu o artigo "Intuition as Authoritative Knowledge in Midwifery and Homebirth", em co-autoria com Elizabeth Davis. Nesse trabalho, as autoras analisam as diferenças internas ao campo de profissionais envolvidos com o parto e as disputas que envolvem grupos com formações e condições diferenciadas quanto ao evento do parto e ao tipo de conhecimento que se atribui às pessoas que atuam nesse processo. Esse trabalho está publicado no livro Childbirth and Authoritative Knowledge: Cross-Cultural Perspectives,5 5 DAVIS-FLOYD e Elizabeth Davis, 1997. organizado por ela e por Carolyn Sargent, e também em Intuition, the Inside Story: Interdisciplinary Perspectives,6 6 DAVIS-FLOYD e Davis, 1998. organizado juntamente com R. Sven Arvidson.

Seu interesse pelo corpo e pela sexualidade feminina e a crítica à excessiva tecnologização da vida, já presentes em seu primeiro livro, permanecem em pauta, a exemplo de uma de suas obras mais recentes, publicada em 1997, sobre cyborg-babies.7 7 DAVIS-FLOYD, 1997. Nesta entrevista Robbie Davis-Floyd fala um pouco sobre sua trajetória como antropóloga e ativista dos movimentos de modificação da assistência ao parto, a partir de sua crítica à obstetrícia convencional.

CARMEN SUSANA TORNQUIST (CST): Nós gostaríamos de saber como foi a sua formação profissional como antropóloga, como você começou a estudar as questões da assistência ao parto?

ROBBIE DAVIS-FLOYD (RDF): Quando eu tinha quinze anos e estava em uma escola particular em Santo Antônio (Texas), comecei a não entender por que a empregada negra podia comprar a comida, cozinhar e nos servir, mas não podia sentar-se à mesa para comer conosco. E não sei por que, mas aos quinze anos comecei a ver isso como uma coisa muito rara, muito estranha, a qual eu não comprendia bem. Era óbvio que os meus pais eram racistas, porém eu não podia entender como pessoas tão boas como eles podiam tratar outras pessoas dessa maneira. E fiquei com essa pergunta. Quando fiz a minha primeira faculdade, encontrei a Antropologia e fiquei encantada com ela e com as suas respostas a perguntas tais como: "Por que as pessoas agem dessa maneira?". Logo depois entrei na Universidade do Texas, porque me casei aos 19 anos (eu era uma criança) e meu marido estava estudando lá. Na Universidade do Texas concluí minha graduação, o mestrado e o doutorado. Minha graduação foi em Antropologia e Folclore, assim como os meus estudos posteriores em nível de mestrado e doutorado. Iniciei meu estudo do parto através das narrativas de mulheres, porque comecei como folclorista.

Porém, depois de ouvir tantas narrativas comecei a me dar conta de que havia um padrão: mais que histórias individuais, estava se formando um padrão coletivo da obstetrícia. Fiquei fascinada com isso. Então deixei o folclore como abordagem teórica e comecei a ler sobre Antropologia Simbólica depois de acabar meu curso na Universidade do Texas. O meu doutorado terminou em 1986, e esse livro não saiu até 1992. Para acabar a tese tive de começar a ler Antropologia, para entender mais sobre os rituais e os mitos e sobre como funcionam nas sociedades, e também tive de começar a estudar Antropologia Médica, que eu não havia estudado formalmente na universidade. Então eu mesma fiz Antropologia Médica... Eu me recordo vivamente como foi a minha primeira apresentação no Congresso da American Anthropological Association (AAA). Foi o meu primeiro painel de Antropologia Médica e me sentia bastante temerosa. Eu já havia falado de Antropologia e Folclore em congressos anteriores, mas jamais de Antropologia Médica. Entretanto, logo percebi que o meu pensamento já estava 'na onda', no fluxo do que meus colegas estavam fazendo em seus novos projetos. Nesse momento passei a ter mais confiança. Foi uma bela revelação. Eu sou autodidata nessa área, embora esse já fosse meu campo de trabalho. Meu segundo campo de estudo é a Antropologia da Reprodução e depois a Antropologia da Ciência e Tecnologia, a Antropologia das Mulheres e, é claro, Estudos de Gênero. O contato com os estudos de Ciência e Tecnologia se justifica porque, quando você estuda o parto, você se depara com a tecnologia e precisa entendê-la. E também porque em 1993, nessas reuniões da AAA, a Antropologia da Ciência e Tecnologia fez o seu primeiro painel sobre Cyborg e Antropologia. E eu fui atraída pela tecnologia, pelas perguntas que eu tinha sobre o uso da tecnologia no parto e pelas teorias que estavam sendo trabalhadas. Fiquei fascinada, porque esses painéis sobre o Cyborg falavam de monstros e de milagres, como disse Donna Haraway. Ao entrar em contato com essas idéias eu entendi que esse era um conceito que eu podia usar para ampliar os meus próprios pensamentos sobre a interface entre a tecnologia e os seres humanos. Iniciei assim meus contatos com as pessoas que trabalham com a antropologia do Cyborg, que se tornaram minhas amigas há alguns anos. Esporadicamente vou a conferências com elas, e isso me abriu caminhos para estudar Ciência e Tecnologia através da Engenharia Espacial e realizar um trabalho de quatro anos nessa perspectiva. É algo muito diferente para mim, mas muito fascinante, e me ajuda a entender que o que está acontecendo no espaço sideral está acontecendo aqui embaixo também, que é o que estamos fazendo com as parturientes.

CST: Como é a sua interlocução com os Gender Studies e os Women Studies, campos de estudo tão fortes nos EUA?

RDF: Por todos os Estados Unidos há departamentos de Gender Studies, e eu poderia ser professora tanto em um departamento de Women Studies como em um de Antropologia, ou seja, tudo o que eu faço é com mulheres. As autoras feministas americanas foram peças-chave para o desenvolvimento da Antropologia Médica nos Estados Unidos. Desde quando eu comecei os meus estudos, nos anos 1970, o status das mulheres na Antropologia aumentou muito. Por exemplo, uma das minhas mentoras foi Brigitte Jordan, para quem eu mandei meu trabalho sem conhecê-la pessoalmente quando eu ainda era estudante. Uma semana depois ela me respondeu dizendo que tinha muito trabalho, teses, uns 250 papers para corrigir e tal, e que iria viajar para a Europa em dois dias, mas que quando abriu a minha tese não conseguiu mais parar de ler. Ela escreveu: "Creio que é a melhor coisa que já chegou às minhas mãos sobre parto. E além disso estou trabalhando para a Universidade da Califórnia e vou pedir que publiquem o teu livro, se quiseres transformar a tua tese em um livro". Fiquei com essa carta em minha pasta por um ano até que se despedaçou toda, infelizmente. Ela foi a minha mentora durante esse processo de transformar a minha tese em livro. Em gratidão, quis dar uma maior visibilidade ao trabalho que ela realizara. Seu livro Birth in Four Cultures tinha sido publicado em 1978 e estava para ser reimpresso sem revisão. Perguntei então a Brigitte sobre o que ela acharia de fazer uma quarta edição revisada. Ela respondeu que já havia trabalhado com a questão do parto por quinze anos e que naquele momento estava trabalhando com outros temas, como a Antropologia das Corporações, para a Xerox Co. Assim, ela "deixava para mim" Antropologia do Parto, passava-me o bastão. Cada vez que alguém lhe pedia uma conferência em um congresso sobre parto e nascimento, ela dizia: "Chamem a Robbie e não a mim porque eu já não faço mais isso". E então ela me pediu que revisasse o seu livro. Eu fiz a revisão, que foi um processo incrível, porém uma longa história. Logo eu me apropriei do seu conceito de 'authoritative knowledge' para organizar um painel. porque tanto o seu livro como o meu e o de Emily Martin (Women In the Body) já haviam se esgotado. Nosso trabalho já tinha despertado interesse de uma geração anterior de estudantes e começava a interessar outra que acabava de iniciar os estudos sobre parto. Então pude encontrar um número suficiente de antropólogos para elaborar um livro sobre Nascimento e Authoritative Knowledge. Esse livro se refere a 16 culturas, porém, se eu o fizesse agora, teria de incluir mais ou menos 50 culturas, porque quando Brigitte começou não havia quase nada e agora temos etnografias excelentes sobre o parto em muitíssimas culturas, o que é uma dádiva para nós, nos faz muito felizes. Bem, Brigitte e eu nos amamos. Ela tem uma gratidão especial porque, conforme me disse, eu tinha conseguido que seu trabalho de Antropologia do Parto fosse divulgado e usado em todas as partes do mundo. Eu acabei me tornando o meio de transmitir essas idéias a outras gerações, e isso para mim tem sido uma dádiva.

CST: Durante nosso encontro, nós vimos os vídeos que você trouxe sobre as parteiras mexicanas com quem você desenvolve um trabalho. Gostaria que você falasse sobre essa atuação, que envolve pesquisa e militância nessas associações de parteiras.

RDF: Bom, primeiro teríamos de falar sobre o trabalho nos Estados Unidos com as parteiras, porque aí é que eu comecei a estudar o assunto. Primeiro fiz entrevistas com parturientes, e em 1991 me convidaram para fazer uma conferência no Congresso da MANA (Midwives Alliance of North America), que é a organização das parteiras, e eu fiquei fascinada com essas mulheres. Entrei no hotel e pensei: "O que querem essas mulheres?". E nesse mesmo Congresso comecei a fazer as entrevistas, que acabaram resultando no meu primeiro trabalho que publiquei sobre a intuição das parteiras.8 8 DAVIS-FLOYD e DAVIS, 1997. Ao estudar o uso da intuição e escutar as suas histórias, e observando-as quando podia, percebi a política que subjaz ao trabalho dessas profissionais. Então vi que a organização das enfermeiras obstétricas (nurse-midwives)9 9 Essa organização (ACNM - American College of Nurse Midwives) foi fundada nos anos 1950 nos Estados Unidos e se restringe a agrupar as enfermeiras obstétricas (nurse-midwives), ou seja, enfermeiras que se especializam (através de um ano suplementar de estudos) em obstetrícia. Com formação biomédica de base, elas costumam atuar fundamentalmente nas maternidades. Já as midwives, de formação em escolas de parteiras ou programas de treinamento, estão aglutinadas na MANA, que foi fundada em 1982. Essas midwifes trabalham geralmente em partos domiciliares ou em casas de parto (DAVIS-FLOYD e DAVIS, 1998, p. 152). É difícil traçar analogias entre o sistema de atenção ao parto norte-americano e o brasileiro em função das imensas diferenças institucionais, de formação e legais. é diferente da organização da MANA, dêem relação a muitas atitudes, leis, etc. Fiquei muito preocupada pensando que isto era uma coisa feminista: os dois grupos de baixo brigando entre si, em lugar de se unirem para lutar contra a outra onda que é muito maior. Para esse livro eu queria fazer um capítulo pequeno, de umas nove páginas, tratando das diferenças e similaridades entre enfermeiras obstétricas e as parteiras propriamente ditas, que atuam basicamente em Casas de Parto ou em domicílios e que são chamadas de 'de entrada direta'. Fiz 45 entrevistas com estudantes de enfermagem obstétrica e outras 30 com parteiras, mas tinha de esperar. Eu dizia: "Vou ter de fazer mais para poder escrever este capítulo". Então eu fiquei seis meses fazendo entrevistas com estudantes do curso de parteiras e com parteiras domiciliares, e através desse material comecei a entender muito bem como funciona a educação dos dois grupos, como se formam ideologicamente e como essa ideologia se transfere para a prática. Foi um processo longo: eu escrevia e mandava para uma enfermeira obstétrica; ela lia e me mandava de volta; e eu fazia uma revisão. Em seguida eu enviava o material a uma parteira 'de entrada direta', e ela me devolvia outra vez para trabalhar.

CST: Há parteiras de outros países nessas organizações norte-americanas?

RDF: Há um grupo de parteiras afro-americanas na MANA, mas poucas hispânicas, mesmo no Texas, onde se esperaria haver muitas mexicanas. (O que você mais encontra no Texas são médicos mexicanos que não querem morar no México, mas não podem exercer a profissão nos Estados Unidos.) Elas não são hispânicas, são mexicanas, são parteiras tradicionais e profissionais que vêm ao México, aos congressos de MANA, nos Estados Unidos, uma vez que a MANA congrega o México, o sul e o norte dos Estados Unidos. Tanto as americanas quanto as mexicanas são marginalizadas na sua sociedade, sendo irmandades transculturais, no entanto também há essas diferenças bastante sutis, mas óbvias, de status e privilégios entre elas. E nossas parteiras - eu digo nossas porque nossas interações com as parteiras são delicadas, sempre há essa questão de que somos colonialistas, conquistadoras, somos quem somos em relação a elas - elas sempre estão perguntando: "Deveríamos ser mexicanas ou deveríamos nos colocar em conjunto com a MANA; devemos trabalhar juntas como irmãs transculturais ou é mais importante ser mexicana?". Essa é sempre a pergunta que se coloca para elas. No México tenho de caminhar com muitíssimo cuidado, porque sou 'gringa', sou 'superior' em comparação a elas e trago comigo, pelo fato de ir ao México sendo norte-americana, trago o authoritative knowledge. Assim, cada palavra que falo tem um peso no México que não tem nos Estados Unidos, onde me conhecem.

CST: Você falou em uma das conferências que há mulheres que querem fazer uma cesárea, mesmo se informadas dos riscos, e que, como antropóloga, você precisa entender as razões, compreender, aceitar suas razões, o que é diferente do papel da ativista, que seria outro.

RDF: O mesmo tenho a dizer, porque também me choca. Mas, como diz a prática, não devemos fazer a Gestapo do parto natural.

CST: Esta é uma expressão forte, Gestapo do parto natural!

RDF: Sim, é importante ter uma opção pelo parto em casa, mas não se deve descartar a opção pela cesárea. Qual é a saúde que se busca? Se eu quero operar o meu nariz ou se estou muito gorda, e se quero uma cirurgia plástica? O perigo disso não é maior do que o perigo da cesárea. Então, ainda que saibamos que a cesárea é mais perigosa que o parto natural, não devemos transformar o direito em obrigação.

CST: Há muitas mulheres no Brasil que se culpam diante dos descompassos entre o desejo de um parto natural e a necessidade de uma cesariana. Quando não conseguem ter um parto 'natural', se sentem fracassadas. Você percebe isso em suas experiências?

RDF: Sim, nos Estados Unidos, claro, existe isso. E aqui nos encontramos com o feminismo... Eu fui uma dessas mulheres, eu queria um parto natural e no primeiro parto eu tive uma cesárea. Eu me senti inferior mas eu entendi aquilo. E as feministas dizem que é ridículo você se sentir inferior, mas é que, você sabe, você teve um bebê, você teve um parto, e depois você teve uma cesárea. Este tem sido um grande debate nos Estados Unidos, fonte de conflitos mesmo, porque há feministas que valorizam o corpo e outras não. Muitas pensam que alta tecnologia é a fonte libertadora da mulher da escravidão biológica, liberando você de ter de ficar em casa amamentado crianças. A tecnologia elabora novas maneiras, e nós podemos assumir nossas crianças, cuidar delas e sair para trabalhar - essa é a grande questão feminista. Mas há um outro tipo de feministas que dizem que nós temos, sim, de ter direito a tudo, mas temos o direito de valorizar nossos corpos. Quero dizer, todos nós temos conexão com a natureza, é natural. Mas, muito além disso, justamente porque nós somos mulheres, porque nós sangramos e damos à luz, isso não significa que somos mais naturais que os homens. Outras feministas dizem: "Não, nós somos mais naturais que os homens e conhecemos o uso de nosso corpo e nós damos a vida". E há essa discussão que eu penso que é importante para ambos os lados, porque, quanto mais se amplia a discussão, quanto mais as feministas argumentam, mais espaços estão sendo abertos, mais opções para parir uma vida.

CST: Fala-se muito em recuperar o parto fisiológico. Você acha que é possível existir um parto puramente fisiológico?

RDF: Talvez, algumas vezes... Porque todos temos nossas idéias, todos temos nossas crenças, e o parto é tão sagrado que muitas das pessoas que vão ao hospital não compartilham dos rituais de um hospital. Essas pessoas vêem o parto como um sacramento, e então encontramos tentativas de conservação de uma identidade, por parte de culturas tradicionais, já que há choques entre seus rituais de parto e os ritos médicos de parto. Por aí pode-se ver se a cultura vai sobreviver, vai desaparecer depois de um tempo, ou então vai se modificar profundamente. Por exemplo, os inuits, um grupo indígena no Canadá, passaram a mandar as mulheres para o hospital, no sul do Canadá, três semanas antes do parto, porque levava muito tempo para chegar ao hospital; eles levavam muitas horas para atravessar o gelo. É uma comunidade que estava perdendo a sua identidade por mandar as suas mulheres darem à luz fora da sua terra. Porque acreditam que é necessário nascer na própria terra para pertencer a essa sociedade. Então construíram o seu próprio hospital, fizeram treinamento de parteiras, uma parteira profissional dos Estados Unidos e uma parteira que fazia parto domiciliar, porque não se pode fazer cesáreas nesse hospital. Então, tomaram uma decisão para a sua comunidade: assumir o risco de que algumas mulheres pudessem morrer de parto. E preferiram esse risco ao risco de perder a sua identidade cultural.

Miriam Pillar Grossi (MPG): Você acredita que tem tanta influência em outros países no movimento de humanização do parto como no Brasil?

RDF: No México me conhecem muito, muito bem, porque estou sempre por lá, e quando te conhecem muito bem não te levam tanto a sério. No Congresso de San Miguel, por exemplo, fui uma das principais conferencistas, então tenho algo a dizer. No Japão, por exemplo, em uma conferência havia 700 pessoas - parteiras, enfermeiras, todas estavam lá, além da diretora da Escola de Enfermagem e de representantes do governo, etc. Como sou estrangeira, isso te dá uma autoridade que às vezes você não merece. Bom, discutimos como poderiam ser preservadas as parteiras no Japão, e eu dei uma sugestão, elas aceitaram e disseram: "Vamos fazer isso, esta 'entrada direta', ou seja, vamos ver se cumprem". Mas, pelo menos de vez em quando, posso dar uma contribuição que faz a diferença - algumas vezes pode ser pequena, outras vezes maior, e é para isso que sinto que nasci e pelo qual vivo hoje. Sabe por que eu acabo de dizer isso? Porque eu tenho de saber por que nasci, por que estou aqui, por que a minha filha morreu há um ano e meio. E quando morre uma filha que é a preciosidade de sua vida, então logo você se pergunta: "Por que estou aqui?". Estou procurando uma razão nesse trabalho que eu estou fazendo, talvez esta seja a razão, o porquê de ainda estar aqui.

MPG: Como você vê a influência que você tem sobre o movimento de humanização e o seu trabalho como antropóloga? Qual seria, em seu entender, a diferença entre esses dois papéis?

RDF: Sim, é uma pergunta fabulosa. Há anos fiquei muito preocupada com isso, porque sou antropóloga e estava sendo ativista, e ser ativista quer dizer que tomas uma posição e trabalhas para isso. E ser antropóloga quer dizer que estás aberta a tudo e não julgas. Então, demorou anos para as coisas ficarem mais claras para mim, porém a decisão a que cheguei é que posso fazer as duas coisas. Eu já não tenho qualquer problema com os dois papéis, porque como antropóloga minha responsabilidade é expressar o que as pessoas pensam, compreender suas próprias teorias e seus próprios pontos de vista. Realmente, fazer uma antropologia ativista implica sempre pagar um preço, pois alguém vai ficar furioso contigo, alguém vai ficar insatisfeito. Sempre há um preço.

Referências bibliográficas

DAVIS-FLOYD, Robbie. Birth as an American Rite of Passage. Berkeley, University of California Press, 1992.

_____. Cyborg Babies: From Techno-Sex to Techno Tots. New York, Routledge, 1997.

DAVIS-FLOYD, Robbie, and Davis, Elizabeth. "Intuition as Authoritative Knowledge in Midwifery and Homebirth." In: DAVIS-FLOYD, Robbie, and ARVIDSON, R. Sven. Intuition, the Inside Story: Interdisciplinary Perspectives. New York, Routdlege, 1998.

_____. "Intuition as Authoritative Knowledge in Midwifery and Homebirth." In: DAVIS-FLOYD, Robbie, and SARGENT, Carolyn. Childbirth and Authoritative Knowledge. Cross-Cultural Perspectives. Berkeley, University of California Press, 1997.

Copyright ã 2002 by Revista Estudos Feministas

* Agradecimentos especiais a Sonia Hotimski pelos comentários acerca da trajetória de Robbie Davis-Floyd.

  • 1
    Médico obstreta no Rio Grande do Sul, homeopata e membro da ReHuNa.
  • 2
    Doutoranda em Antropologia Social, participante do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), da UFSC, e do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Parto e Nascimento, também da UFSC.
  • 3
    Antropóloga, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC e coordenadora do NIGS.
  • 4
    DAVIS-FLOYD, 1992.
  • 5
    DAVIS-FLOYD e Elizabeth Davis, 1997.
  • 6
    DAVIS-FLOYD e Davis, 1998.
  • 7
    DAVIS-FLOYD, 1997.
  • 8
    DAVIS-FLOYD e DAVIS, 1997.
  • 9
    Essa organização (ACNM - American College of Nurse Midwives) foi fundada nos anos 1950 nos Estados Unidos e se restringe a agrupar as enfermeiras obstétricas (nurse-midwives), ou seja, enfermeiras que se especializam (através de um ano suplementar de estudos) em obstetrícia. Com formação biomédica de base, elas costumam atuar fundamentalmente nas maternidades. Já as midwives, de formação em escolas de parteiras ou programas de treinamento, estão aglutinadas na MANA, que foi fundada em 1982. Essas midwifes trabalham geralmente em partos domiciliares ou em casas de parto (DAVIS-FLOYD e DAVIS, 1998, p. 152). É difícil traçar analogias entre o sistema de atenção ao parto norte-americano e o brasileiro em função das imensas diferenças institucionais, de formação e legais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Abr 2003
    • Data do Fascículo
      Jul 2002
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