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Corpos em tensão: feminino, masculino e barroco no espetáculo Bach

Bodies and tension: feminine, masculine and baroque in Bach

Resumos

Em 1996, a Companhia de Dança Corpo de Belo Horizonte apresentou o espetáculo Bach. A música, a coreografia e os elementos visuais como cenário e figurino se combinam de forma a revisitar a estética barroca. Neste contexto, os corpos dos bailarinos exercem função central ao inscrever estados de tensão comuns ao barroco, principalmente na forma como performatizam a relação entre os gêneros.

dança; gênero; barroco; neobarroco


In 1996, the dance company Corpo from Belo Horizonte presented the spectacle Bach. The music, the coreography and the visual elements as scenery and costumes are combined in a rereading of the baroque aesthetics. In this context, the dancers bodies play a major role in the inscription of tension, common in the baroque, especially through the way they perform gender relations.

dance; gender; barroque; neobarroque


ARTIGOS

Corpos em tensão: feminino, masculino e barroco no espetáculo Bach

Bodies and tension: feminine, masculine and baroque in Bach

Tereza Virginia de Almeida

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Em 1996, a Companhia de Dança Corpo de Belo Horizonte apresentou o espetáculo Bach. A música, a coreografia e os elementos visuais como cenário e figurino se combinam de forma a revisitar a estética barroca. Neste contexto, os corpos dos bailarinos exercem função central ao inscrever estados de tensão comuns ao barroco, principalmente na forma como performatizam a relação entre os gêneros.

Palavras-chave:dança, gênero, barroco, neobarroco.

ABSTRACT

In 1996, the dance company Corpo from Belo Horizonte presented the spectacle Bach. The music, the coreography and the visual elements as scenery and costumes are combined in a rereading of the baroque aesthetics. In this context, the dancers bodies play a major role in the inscription of tension, common in the baroque, especially through the way they perform gender relations.

Key words: dance, gender, barroque, neobarroque.

Em 1996, a Companhia de Dança Corpo de Belo Horizonte estreou um espetáculo intitulado Bach, com coreografia de Rodrigo Pederneiras, responsável pelos trabalhos do grupo desde 1981. Como o título do espetáculo assinala, a relação com a estética barroca é inevitável, principalmente através da criação livre que Marco Antônio Guimarães elabora sobre a obra do compositor Johann Sebastian Bach.

O cenário, de Fernando Velloso e Paulo Pederneiras, apresenta mínimos elementos cênicos que se resumem praticamente a um fundo azul de tecido em relevo e de tubos de metal que caem do teto e que aludem aos tubos de um órgão,1 1 Inês BOGÉA, 2001, p. 31. uma interessante composição sinestésica em que o elemento visual remete ao auditivo. É curioso observar que, a partir da combinação desses mínimos elementos, os cenógrafos vão explorar as possibilidades de aludir a uma estética ligada ao excesso e à proliferação. Do relevo do tecido azul do fundo, é possível criar um efeito de sombreamento que simula a relação entre luz e sombra presentes no barroco. Da presença dos tubos que descem do teto, constrói-se uma noção de verticalidade cênica que oferece ao espectador a consciência espacial entre o alto e o baixo, também amplamente explorados na estética barroca. Já se disse, inclusive, em comentário à obra de Bach que ali "está realizada a suprema ambição da época barroca: a conquista do espaço pela música".2 2 Otto Maria CARPEAUX, 1977, p. 78.

Desde o primeiro momento do espetáculo, a noção espacial é estabelecida como algo central, já que os bailarinos descem para o solo pelos tubos de metal e assim inauguram sua presença em cena. A utilização de mínimos elementos alcança, entretanto, um efeito de expansão, já que a cena e a repetibilidade que nesta se instaura aludem à idéia de infinito e transcendência.

O presente ensaio tem como objetivo central abordar o espetáculo Bach de uma posição subjetiva nitidamente informada pelas relações com a literatura, a partir da consciência do quanto a inscrição do corpo como suporte material da linguagem da dança desafia a própria prática interpretativa. Nesse sentido, vale lembrar, a partir das propostas do medievalista Hans Ulrich Gumbrecht, o quanto as modernas práticas de configuração de sentido para as obras literárias estão ligadas a um conceito de subjetividade que emerge com a institucionalização da imprensa no século XV. A partir da configuração do objeto livro, o corpo como fonte significativa é recalcado, já que, na trovadoresca medieval, a idéia de composição poética estava diretamente ligada à constituição de um texto com a voz e com o corpo e à co-presença física entre o trovador e a audiência. Na medida em que o corpo e sua ambivalência vão sendo substituídos pelo texto, consolida-se uma noção de autoria como origem significativa e uma tradição de leitura como prática de inferência de intencionalidade autoral, que transformam a modernidade em uma época profundamente marcada pela idéia de signo e interpretação, bem como por uma dicotomia entre espírito e corpo que começa a se tornar insatisfatória em fins do século XX.3 3 Hans Ulrich GUMBRECHT, 1998a.

Essas observações poderiam remeter, em princípio, à idéia de que qualquer tipo de manifestação artística que pressuponha a co-presença física da audiência seja absolutamente resistente a interpretações análogas às praticadas dentro da tradição literária. Entretanto, é preciso ressaltar que espetáculos teatrais e de dança, enquanto apresentações, pressupõem a presença de uma separação entre atores e platéia, por intermédio da cortina, elemento desconhecido na Idade Média: "a cortina correspondeu a uma diferenciação marcada entre os papéis de autor e leitor, cujas ações seriam cada vez menos experimentadas como intercambiáveis".4 4 GUMBRECHT, 1998b, p. 121.

Claro que, com isso, pretendo legitimar um lugar de leitura do espetáculo Bach que se encontra em posição intermediária, ou seja, entre derivar-se de uma prática de estudos literários e ser testemunho de uma época em que esses mesmos estudos encaminham-se para o que Gumbrecht denomina "campo não-hermenêutico". Nesse sentido, o campo hermenêutico corresponde ao conjunto de crenças que remontam à invenção da imprensa e a partir das quais "o corpo serve apenas de instrumento que articula ou oculta o sentido",5 5 GUMBRECHT, 1998c, p. 139. sentido este que é conduzido pelo espírito.

Ao contrário, a abordagem de um espetáculo de dança requer a atenção diferenciada para o papel do corpo. Vale a pena mencionar que o próprio Gumbrecht aponta o ritmo como elemento de desafio ao sentido, tal como este é concebido pelo campo hermenêutico. O ritmo pressupõe a interação entre dois sistemas em acoplagem por meio da qual a referência externa será produzida (e não descoberta) na da forma adquirida. É o que se dá no caso da relação entre o corpo humano e a música, na dança, ou seja, a interação entre dois sistemas que produz forma e referência externa.

Portanto, é possível partir do pressuposto de que a abordagem de um espetáculo de dança requer não a revelação de sentidos relacionados a alguma intencionalidade autoral, mas a percepção dos diversos elementos que compõem a forma, a partir da própria coreografia, enquanto processo de acoplagem entre corpo e música, bem como a partir da interação entre e com outros elementos cênicos. No que diz respeito aos movimentos que compõem a coreografia, é possível compará-los à utilização gestual como meio de comunicação interpessoal, referindo-se à relação com os processos de significação. Paul Zumthor já assinalou que a gestualidade pressupõe "processos térmicos e químicos, traços formais como dimensão e desenho, caracteres dinâmicos, definíveis em imagens de consistência e peso, um ambiente, enfim, constituído pela realidade psicofisiológica do corpo de que provém... e do entorno desse corpo",6 6 ZUMTHOR, 2001, p. 243. uma interação, portanto, bastante complexa de elementos e que coloca inúmeros desafios a qualquer abordagem informada unicamente pela prática de análise de textos.

Dessa forma, o presente ensaio terá como foco o aspecto visual do espetáculo e como objetivo central apontar para a relação e diferenciação entre corpos masculinos e femininos dentro da coreografia, em suas relações não somente com o próprio feminino e masculino mas também com outras formas de corpos orgânicos, como os animais, e com corpos maquínicos. Vale ressaltar, a partir do que foi dito anteriormente, que não se trata aqui de analisar ou interpretar o espetáculo, mas de elaborar algumas reflexões sobre os pontos sugeridos, a partir da percepção do espetáculo Bach.

No que diz respeito à diferenciação entre bailarinos e bailarinas, vale ressaltar que se faz presente aqui a distinção entre sexo e gênero, no sentido que lhe confere Judith Butler: "O gênero não deve ser concebido meramente como a inscrição cultural do significado de um dado sexo (uma concepção jurídica); o gênero deve também designar o próprio aparato de produção por meio do qual os próprios sexos são estabelecidos".7 7 BUTLER, 1990, p. 7. Nesse sentido, o espetáculo Bach parece performatizar as problemáticas entre feminino e masculino de diversas maneiras, através da simultânea inscrição e subversão aos valores dominantes. Um exemplo reside na própria uniformização das vestes em que, em nenhum momento, são marcadas as diferenças de gênero. Ao contrário, o figurino parece querer remeter a uma anulação das diferenças, principalmente porque, como já dito, os corpos em cena serão o suporte de representações aquém e além do humano. Entretanto, um dos pontos centrais a serem abordados, mais adiante, diz respeito à forma transgressora como se inscrevem os pas-de-deux, momentos estes que dialogam inevitavelmente, pela própria tradição do balé, com a dramatização das relações entre os gêneros.

É possível, ainda, indagar se as representações de gênero às quais se relacionam os corpos dos bailarinos, em função de sua inscrição cultural, não configurariam desafios à própria idéia de origem significativa. Se, na literatura, o escritor elabora textos com palavras pertencentes ao léxico e, portanto, pré-constrangidas, e as redimensiona em um processo que desafia a cristalização de significados operada pelo uso cultural, também a dança vai complexificar as usuais representações culturais do corpo, a partir mesmo da suspensão de seu caráter funcional em nome da apropriação estética e, portanto, performatizar as próprias ambivalências das relações entre corpo e sexualidade, por exemplo, ponto de indagação para qualquer filosofia que desloque da racionalidade a compreeensão do humano: "não sei se a diferença sexual é uma diferença ontológica", pergunta-se Jean-François Lyotard, "Como sabê-lo? [...] A diferença sexual não está apenas ligada ao corpo que experimenta a sua condição de incompleto mas ao corpo inconsciente, ou ao inconsciente do corpo. Ou seja, separado do pensamento, inclusive do pensamento analógico. Esta diferença está por hipótese fora de controlo".8 8 LYOTARD, 1988, p. 29. No caso de Bach, por meio da uniformização das vestimentas e de muitos outros recursos, acentua-se a referência inicial de oposição mínima entre os gêneros, como se os corpos fossem inicialmente despidos das cristalizações significativas dadas pela cultura para, em seguida, serem reelaborados a partir da própria exploração dos limites e extensões comunicacionais do corpo através da dança, problematizando, inclusive, as próprias relações entre corpo e gênero.

Embora o espetáculo leve o nome do compositor Bach, a modernidade dos elementos que o compõem permite inseri-lo como manifestação nitidamente neobarroca. Nesse caso, trata-se não de revisitar a estética barroca apenas, mas de expressar, na alusão a esta, uma mesma série de tensões por que passa o homem contemporâneo, ao vivenciar o processo de derrrocada dos próprios valores da modernidade, que vêm a coincidir com aquelas vividas pelo homem no próprio limiar da cultura moderna. Por essa razão, os termos pós-moderno e neobarroco têm sido igualmente utilizados para denominar a cultura contemporânea, na medida em que se constata que a crise da modernidade acaba por levar o homem a paradoxos semelhantes àqueles vivenciados na época barroca.

Dessa forma, Bach inscreve elementos da estética barroca, mas de forma tal que esta aparece mediada por elementos tão nitidamente contemporâneos, que operam como forma de subversão àquela própria estética. Assim, se as relações entre alto e baixo e os jogos de luz e sombra estão presentes, da economia de elementos cênicos ao uso do metal e do tecido impermeável, o tempo que se marca é o da contemporaneidade que insere o espetáculo em um contexto neobarroco, não definido como um conjunto de características estéticas, mas como um estado de turbulência, um estado de busca, "como procura de formas em que assistimos à perda de integridade, de globalidade, da sistematicidade ordenada em troca da instabilidade, polidimensionalidade, mutabilidade, investidas de valores próprios do contemporâneo".9 9 Nízia VILLAÇA, 1996, p. 126.

O filósofo Gilles Deleuze relê a obra de Leibniz na tentativa de articular as relações entre barroco e neobarroco. O barroco, por ser ainda uma tentativa de reconfigurar a razão clássica, produz tensão, divergência, dissonância e polifonia, as quais, no entanto, se resolvem na harmonia, já que se mantém o limite extremo da divergência como algo referente ao contraste absoluto entre mundos distintos. No neobarroco, a divergência se opera no centro do mesmo mundo e Deleuze não encontra melhor expressão para defini-lo do que a dissipação da própria tonalidade na música.10 10 DELEUZE, 2000, p. 141. Como ponto de intersecção de ambos, Deleuze escolhe a noção de dobra de Leibniz: "O traço do barroco é a dobra que vai ao infinito. Primeiramente, ele diferencia as dobras segundo duas direções, segundo dois infinitos, como se o infinito tivesse dois andares: as redobras da matéria e as dobras na alma".11 11 DELEUZE, 2000, p. 13.

É possível associar à noção de dobra a própria dança como processo de expansão do corpo, não só no que diz respeito à sua própria materialidade orgânica mas também na forma como, através dos movimentos em suas relações com a música, o corpo vai relacionar-se com as dobras da alma. Entretanto, o que mais chama a atenção nas relações entre o espetáculo Bach e a obra de Deleuze é a própria forma como o cenário do espetáculo elabora uma clara distinção entre dois andares. Se o figurino está muito distante das dobraduras de tecido que se expandem nas telas das pinturas barrocas em continuidade como as dobras também existentes nos próprios elementos da natureza, parece ser o próprio corpo que se dobra e desdobra em Bach para ocupar os dois andares do espaço cênico.

Se o figurino de Freusa Zechmeister não apresenta texturas barrocas, é ele a base a partir da qual se elabora, a partir de uma variação mínima de elementos, a relação entre luz e sombra típica do barroco. Os bailarinos descem do teto vestindo macacões curtos colantes de tecido impermeável de forma tal que o brilho da superfície refletindo a luz, em contraste com a prevalência do tom negro do tecido, simula o efeito da oscilação entre luz e sombra sobre seus próprios corpos. Em um segundo momento, o efeito é o de clareamento, já que passam a usar vestimentas similares, mas na cor azul e em tecido fosco. Mas, logo em seguida, retornam à utilização dos macacões escuros e, por último, vestem macacões dourados, em uma clara alusão ao excesso de ornamentação da arquitetura barroca.

No que diz respeito à troca de vestimentas, é importante observar que esta determina um processo de ordem narrativa, no eixo temporal, horizontal. Ou seja, ao longo do espetáculo, na medida em que se desenvolvem os temas de Bach e se performatizam tensões na linguagem corporal, ocorre um processo de 'iluminação' do palco partindo do figurino, em contraponto com a iluminação propriamente dita, de Paulo Pederneiras. O palco vai gradativamente se transformando a partir de uma gradação mínima de cores que aludem a um jogo entre claro e escuro. E esta oscilação entre luz e sombra se dá por meio também de recursos mínimos que vão sendo conjuntamente explorados, no figurino, na luz, no jogo entre alto e baixo.

Quando os bailarinos descem do teto no início do espetáculo, há uma tela que encobre os tubos, de forma que os bailarinos caem em um solo iluminado de forma tal que seus corpos tornam-se espectros dançantes. Como a tela continua suspensa, deixando encoberta a parte superior da cena, o que o espectador vê é apenas a parte debaixo intensamente iluminada sendo perpassada pelos espectros dos 18 bailarinos cujos movimentos tendem a enfatizar o baixo corporal e o desejo do domínio do solo, através de amplos movimentos de pernas. Devido à forte iluminação, os corpos não têm propriamente contorno; são formas que parecem ainda pertencer a uma ordem transcendente. Formas que tentam, por intermédio da dança, do apelo à corporeidade, dominar e conquistar o espaço terreno.

Ao longo dessa coreografia inaugural, o que se vê é que os corpos masculinos e femininos formam pequenos grupos, de três ou quatro, sendo que cada grupo realiza movimentos diferentes dos outros. A tendência, entretanto, parece ser a de manter uma alternância entre coreografias: algumas tendem a acompanhar os desenhos melódicos e outras a enfatizar a marcação rítmica. O efeito da variação permite presentificar, por meio dos corpos, a orquestração. O resultado cênico é o de tumulto, conflito, coexistência de opostos. Mas, logo em seguida, a tela que divide as partes superior e inferior da cena cairá até o chão e formará um fundo negro na frente do qual dançam duas bailarinas.

Cabe ressaltar, ainda, que o solo é de um azul escuro tão forte que permite aludir ao céu noturno, o que aponta para a possibilidade de inversão entre os valores do alto e do baixo. As bailarinas agora têm seus corpos iluminados de forma a se visualizar o contraste entre a cor da pele e o negro de suas vestes. A ênfase é no carnal, no terrestre, no nível sensorial, em nítido contraste com as silhuetas espectrais da cena anterior.

Na maior parte do espetáculo, seja enquanto permanece esse fundo escuro, seja enquanto a iluminação escamoteia o azul do painel mais ao fundo, a luz tende a incidir mais insistentemente nos corpos, seus movimentos e suas formas, o que inevitavelmente remete às diferenças entre corpos masculinos e femininos.

A partir dessas observações, é possível notar que o corpo humano pode ser percebido ao longo do espetáculo como suporte para a experimentação barroca e nem sempre como a própria representação do humano. Como ponto em que incide luz, sombreamento, mero ornamento em movimentação, o corpo pode estar ao longo de Bach a representar da matéria orgânica à matéria inorgânica, entre as quais a dança se coloca como dobra e redobra, no sentido em que as compreende Deleuze em sua releitura de Leibniz.

Mas é o estado de turbulência do humano que nos cabe focar aqui, já que o presente ensaio tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre as formas como o espetáculo Bach coloca em cena as relações de gênero e as performatiza, não apenas na linguagem corporal da dança, mas também na singular relação que estabelece com o espaço através da movimentação cênica dos bailarinos entre o alto e o baixo e as conseqüentes inscrição e subversão da estética barroca. Mais especificamente, o ensaio pretende abordar algumas formas pelas quais o espetáculo Bach se utiliza da diferença de gênero para, por meio desta, performatizar tensões entre masculino e feminino no limiar das relações entre o humano e a matéria orgânica e inorgânica, tensões estas que se tornam cruciais como expressão neobarroca.

Nesse sentido, vale lembrar a forma como Deleuze define a dobra barroca como diferenciada em duas direções, "como se o infinito tivesse dois andares: as redobras da matéria e as dobras na alma".12 12 DELEUZE, 2000, p. 13. Quando se compreende que, no nível da matéria, as dobras se expandem como se esse andar inferior fosse aberto com janelas e que no nível superior, em que residem as almas racionais, a comunicabilidade se dá apenas com o andar de baixo, é possível estabelecer uma analogia entre os contrastes entre movimento/dança existentes no nível do solo e a tendência à imobilidade de todos os corpos que ascendem aos tubos da parte superior da cena do espetáculo Bach.

Os tubos de metal corresponderiam não só ao espaço das almas mas também ao da música, enquanto o solo é o espaço da dança, já que, nas palavras de Deleuze, "Leibniz opera uma grande montagem barroca entre o andar de baixo, perfurado de janelas, e o andar de cima, cego e fechado mas que é, em troca, ressoante como um salão musical, salão que traduziria em sons os movimentos visíveis de baixo".13 13 DELEUZE, 2000, p. 15.

Por volta da terceira peça de Bach, recriada por Marco Antonio Guimarães, desce um homem negro e forte para realizar um pas-de-deux com uma das bailarinas em coreografia que será repetida por outro casal, marcando uma tendência que perpassa o espetáculo: a de repetição que aponta para o prolongamento de estados de tensão. Muitas vezes os bailarinos executam movimentos que, embora peçam resolução, encontram, ao contrário, na repetição sua expressão máxima.

Nesse caso, o segundo casal surge após a performance do primeiro casal apenas para repetir, dobrar o mesmo estado de tensão, já que o que se apresenta cenicamente na relação entre os corpos masculinos e femininos é a expressão da dissonância: o corpo masculino apenas sustenta, equilibra com sua força o corpo feminino que se debate em movimentos agressivos, pouco graciosos, pesados e que algumas vezes mimetizam movimentos animais, como o de uma rã. O corpo masculino pouco se move e quando o faz é apenas para mover o corpo feminino, arrastá-lo pelo solo, lançá-lo para o alto. Sua função é ambivalente: ao mesmo tempo que parece opor resistência ao corpo feminino que faz movimentos agressivos como a querer libertar-se, é ele quem impede sua queda.

Desfeitas as duplas, o contraste é nítido: surgem bailarinas e bailarinos sozinhos e seus movimentos são leves, harmoniosos e plenos de graciosidade. Dançam em cena quatro bailarinas e um bailarino de forma a enfatizar, através da alegria, o contraste com a dramaticidade performatizada pelas duplas anteriores. A clareza de seus movimentos parece remeter ao inevitável elogio da liberdade e, por meio do contraste, enfatizar a violência e a tensão proveniente das relações de gênero.

É interessante observar, na peça acima descrita, que se trata de um só fundo musical desdobrado em duas coreografias totalmente contrastantes: a dos casais, e a dos indivíduos. A peça é cantada por uma voz masculina e, quando se dá a passagem para o segundo momento, os cinco bailarinos vão entrando aos poucos no palco. Primeiro, entra uma bailarina, e isso se dá no momento instrumental. E o que se torna nítido no momento de sua aparição é que, além de sua agilidade, já que se trata de um corpo liberto da resistência imposta pelo corpo masculino, essa liberdade é acentuada pelo silenciamento transitório da voz masculina que surgirá de novo quando o bailarino entrar em cena.

A nova mediação será feita por um corpo feminino, que surgirá em dissonância vestindo seu corpete azul a funcionar como um ponto de alta incidência de luz. Como o único bailarino em cena é um negro vestindo uma malha negra no extremo oposto do palco, o contraste é ainda mais forte. A entrada da bailarina também ocorre em um momento instrumental da peça, e ela funciona simultaneamente como um elemento de mediação entre uma peça e outra e como forma de adiantar visualmente a próxima cena em que todos os bailarinos estarão vestindo azul em uma composição absolutamente monocromática com o solo e o fundo do palco.

Embora o objetivo do presente ensaio não seja comentar o trabalho feito sobre o repertório de Bach, parece interessante observar a forma como Marco Antonio Guimarães apresenta a conhecida peça Overture n. 3 do compositor, que será performatizada pelos bailarinos em azul.

O que se ouve como forma de reconhecimento da peça é o baixo, sendo que a melodia aparece em fragmentos, sobre os quais os bailarinos apenas simulam exercitar-se de forma lenta e absolutamente minimal, como se executassem exercícios preparatórios para a dança. Na verdade, os bailarinos se movimentam pelo palco às vezes em marcha, mas em direções opostas uns aos outros, em um nítido efeito de caoticidade em que os corpos expressam visualmente o que ocorre na polifonia em música. Algumas vezes simulam com o corpo o desenho melódico silenciado. Ouve-se no início apenas a primeira nota de cada frase melódica executada por uma flauta, como se se esperasse que a própria platéia fosse completar o restante da melodia, devido à celebridade da peça. Aqui se dá a inscrição do inconsciente coletivo. Mas também a inscrição da relação com o passado. Através daquilo que se silencia, o passado se reafirma, ao mesmo tempo que o presente se apresenta lacunar como se dependesse dessas vozes internas vindas de um outro tempo para adquirir forma e produzir referencialidade. Sem esse suporte de um outro tempo, as notas executadas pela flauta soam solitárias. E, embora ao longo de toda a peça os bailarinos pareçam executar exercícios solitários em direções díspares, sem que seus olhos nunca se encontrem, ao final, formam casais dos quais um se destaca para a próxima peça que se configura como a surpresa do espetáculo.

Afinal, o que poderia ser mais radical e surpreendente em um espetáculo de dança, que a absoluta imobilidade? Trata-se aqui de mais um casal. O bailarino eleva a bailarina a um dos tubos e ela aí se mantém enquanto se desenvolve a peça cantada por uma voz masculina. Como o bailarino se encontra de costas para a platéia, tem-se o efeito de que ele está olhando para a bailarina no alto e cantando para ela, que cai em seus braços desfalecida ou morta no acorde final.

Parece nítido que esse momento do espetáculo marca a relação entre ascensão e imobilidade. Nesse sentido, a peça anterior da Overture n. 3, de movimentos econômicos e vestes azuis, parecia apenas ser um momento de passagem para essa tentativa de busca de um espaço sagrado e trancendental que encontra na morte sua finalização ou contradição maior.

Como não poderia deixar de ser, em um espetáculo dedicado ao barroco, o contraste com essa bailarina desfalecida nos braços masculinos se marca pela aparição em cena de uma bailarina dançando livremente, de novo agora, em corpete negro, em movimentos saltitantes, cabelos encaracolados presos no topo da cabeça que se movimentam ao ritmo do corpo, e que será seguida por duas outras bailarinas e um bailarino. Aqui, a ênfase da coreografia está nos rodopios e, portanto, no equilíbrio dos corpos em liberdade sobre seus próprios eixos. Mas trata-se apenas de mais uma mediação contrastiva, pois, logo em seguida, a iluminação tende à penumbra e surgem três novos casais que adentram o palco caminhando.

E os casais se colocam em posições que performatizam radicalmente o estado de tensão e a prevalência e domínio do corpo masculino sobre o corpo feminino. De forma lenta, quase imóvel. O braço do bailarino sustenta o corpo feminino que se une a seu corpo apenas pelo seus extremos, as mãos e os pés, ou seja, qualquer movimento o fará tombar ao chão. Durante alguns segundos, a coreografia se resume a esta tensão: o corpo feminino perpendicularmente em risco sustentado unicamente por um braço masculino. O corpo feminino se mantém rigidamente estendido no ar, sem nenhuma sustentação, além das extremidades unidas ao corpo masculino. Quando o bailarino dobra os joelhos, o corpo da bailarina se aproxima do chão e é com esse movimento, feito de forma lenta, que o corpo feminino é estirado ao solo, virado com um leve movimento, de forma que fique de bruços para ser, em seguida, arrastado pelo palco ao longo da peça. Claro está o quanto essa performance, que se configura como um dos pontos de maior dramaticidade do espetáculo, inscreve e subverte a idéia do pas-de-deux. Os casais formam núcleos que inevitavelmente remetem à performatização das relações homem-mulher, tal como no pas-de-deux tradicional ao qual se referem, ainda, pelo papel do corpo masculino como ponto de sustentação do corpo feminino. Entretanto, a própria existência em cena de mais de um casal já aponta para a idéia da produção em série, dissonante em relação à idéia de unicidade e singularidade marcadas na idealização das trocas amorosas. Além do mais, os casais não dançam: a forma de acoplagem entre corpo e música se dá na lentidão com que o corpo masculino se move e arrasta o corpo feminino, mas, como os extremos do corpo (mãos e pernas) estão comprometidos com o corpo a que se liga, não há qualquer possibilidade de gestualidade ou movimentação que desenhe linhas melódicas tal como ocorre em outros momentos do espetáculo. O braço masculino apenas segura, sustenta o braço feminino. As pernas masculinas se movem na proporção exata do esforço necessário para mover e arrastar o corpo feminino que, por sua vez, está totalmente aprisionado e subjugado ao solo pela força do corpo que o mantém.

Na seqüência, todo o grupo de bailarinos se levanta a performatizar a mesma marcação rítmica com amplos movimentos de pernas ocorrida no início do espetáculo, a remeter ao domínio do solo e à marcação do tempo. Mas a cena se dissolve, e essa marcação rítmica é quebrada a partir da formação de casais, em seqüência, que encenam, mais uma vez, dissonância e violência. Agora, de forma acelerada, repete-se o domínio do corpo masculino, que, com um único movimento de braço, suspende e lança ao chão o corpo feminino. Ao contrário da performance de violência descrita anteriormente, o corpo feminino aqui não se debate, deixa-se mover de todas as formas, já que o que é enfatizado é o domínio, a capacidade de manipulação do mais forte sobre o mais fraco.

De novo, o corpo feminino será perpassado pela idéia de morte: primeiro o corpo desfalecido é suspenso e enlaçado pelo bailarino. Depois, um por um, os bailarinos vão elevando as bailarinas aos tubos de metal, mas de forma tal que o corpo destas, extremamente rígidos e de pernas abertas, aludem a corpos maquínicos. Parece que o que se performatiza é uma tentativa de ascensão ao andar de cima, ao mundo das almas racionais, para usar o termo de Deleuze, tentativa esta que é imediatamente frustrada, já que cada corpo feminino que é colocado no tubo por um bailarino é imediatamente retirado por um bailarino subseqüente que irá deixar cair ao chão o corpo feminino totalmente inerte, desfalecido.

Não é de todo impossível aqui apontar para a incongruência entre a racionalidade moderna a que remeteriam esses corpos femininos maquinizados, e que encontra sua analogia na morte, e a feminilidade, já que a seqüência se desfaz quando um último bailarino em um cenário repleto de corpos femininos estendidos ao chão retira o último corpo feminino do tubo e, ao invés de deixá-lo cair ao solo, opta por envolvê-lo ludicamente através da dança no primeiro pas-de-deux harmônico de todo o espetáculo.

A partir daí, todos os casais que dançam nas próximas peças performatizam relações bastante distintas das cenas de violência anteriormente descritas. Principalmente, torna-se bastante acentuada a forma como os corpos femininos apóiam os corpos masculinos para que estes rodopiem de forma igualmente graciosa. Instaura-se uma linguagem lúdica, relacionada a uma busca do prazer sem funcionalidade que Severo Sarduy já relacionou à superabundância do barroco: a linguagem do erotismo. "No erotismo", diz Sarduy, "a artificialidade, o cultural, manifesta-se no jogo com o objeto perdido, jogo cuja finalidade está nele mesmo e cujo propósito não é condução de uma mensagem - neste caso, a dos elementos reprodutores - mas seu desperdício em função do prazer".14 14 SARDUY, 1979, p. 177. E é claro que essa relação com o artifício e com o excesso permite estabelecer uma relação direta entre o erotismo e o ornamento. Relação esta que surge no espetáculo Bach na citação da ornamentação barroca, como nos corpetes dourados utilizados pelos bailarinos nas últimas peças do espetáculo.

Mas é preciso aqui fazer algumas observações em torno desses elementos. Antes de tudo, essas vestes vão levar o espetáculo ao ápice, à apoteose, e isso se dá através por meio do excesso de luz provocado pelo dourado das vestimentas mas também pelas coreografias leves e alegres. Ao final, entretanto, instaura-se uma interessante ambivalência: há um momento em que a turbulência do mundo neobarroco ressurge. Os bailarinos não dançam, caminham em direções diversas pelo palco. O efeito é o de uma metrópole e, de forma surpreendente, é possível perceber que suas vestes, com o auxílio da iluminação que tende à penumbra e que provê o tecido dourado de tom mais soturno, lembram muito mais os figurinos futuristas dos filmes de ficção científica do que o passado arquitetônico barroco.

E como se estivéssemos mesmo no limiar entre dois tempos, Bach finaliza em estado de tensão: dos oito homens que fazem parte do corpo de balé, cinco corpos masculinos se penduram nos tubos. Corpos masculinos que se excluem do solo, em atitude corporal muito similar àquela que tentaram impor aos corpos femininos em peça anterior. Corpos rígidos, pernas eretas e amplamente abertas. Mas, ao contrário das bailarinas que eram logo dali retiradas e colocadas no chão desfalecidas, o espetáculo se encerra com os bailarinos nessa posição. Excluídos do espaço da dança, mas sem que propriamente ascendam ao espaço superior. Terminam o espetáculo ali dependurados como pontos de interrogação acerca do lugar da própria masculinidade no mundo contemporâneo. Assim se fecha Bach: cinco corpos masculinos imóveis e reluzentes em um espaço de fronteira, como ornamentos de sua própria cultura.

Recebido em março de 2003

aceito para publicação em maio de 2003

Copyright © 2003 by Revista Estudos Feministas

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Out 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 2003

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2003
    • Recebido
      Mar 2003
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