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Publicações feministas brasileiras: compartilhando experiências

DOSSIÊ

Publicações feministas brasileiras: compartilhando experiências

Luzinete Simões MinellaI; Miriam Pillar GrossiII

IUniversidade Federal de Santa Catarina

IIUniversidade Federal de Santa Catarina

Este Dossiê registra uma parte significativa da história do envolvimento de mulheres brasileiras com a produção de revistas, livros, jornais, informativos, boletins, etc. Sem a pretensão de esgotar o assunto, aborda um amplo período de publicações feministas produzidas desde o século XIX até o presente e espera ser útil para pesquisadoras e militantes, na medida em que proporciona algumas coordenadas que favorecerão a continuidade do debate sobre o significado e sobre o impacto dessas publicações no âmbito da constituição de um campo de conhecimento acadêmico e militante no Brasil.

Sua realização integra as atividades de um projeto mais amplo, desenvolvido pela Revista Estudos Feministas, que visa a implementar um portal de publicações feministas e consolidar uma rede de divulgação dessas publicações em eventos e a sua distribuição em livrarias, ONGs e outros pontos-de-venda. Financiado pela Fundação Ford, esse projeto objetiva ampliar o acesso à produção teórica feminista, possibilitando assim uma maior disseminação do conhecimento sobre gênero e feminismo e estimulando o debate e as ações políticas nesse campo.

A fim de criar as condições favoráveis para alcançar esse objetivo, potencializando inclusive alguns contatos já existentes entre as diferentes publicações, foram previstos dois eventos: um nacional, que reuniu editoras de publicações brasileiras, intitulado I Encontro Brasileiro de Publicações Feministas, ocorrido em Florianópolis em agosto de 2002, do qual este dossiê é resultado, e um internacional, que reunirá editoras de diferentes países, a ser realizado em novembro de 2003.

Estima-se que o encontro contribuiu significativamente para expandir o conhecimento sobre as diferentes experiências editoriais, criando um espaço privilegiado de diálogo entre os Núcleos de Estudos sobre Mulher e Gênero das Universidades e as Organizações Não-Governamentais, dimensionando os avanços, identificando os desafios a serem enfrentados e evidenciando, simultaneamente, a necessidade de apoio mútuo entre os diferentes tipos de publicações.

Um pouco da história do encontro

A idéia desse encontro surgiu de um diálogo iniciado entre a Revista Estudos Feministas e os Cadernos PAGU na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) de 2000, na qual montamos juntas um estande de vendas. Foi a partir dessa primeira experiência de divulgação conjunta de revistas feministas que surgiu a idéia de organizarmos uma rede de distribuição/divulgação, uma vez que constatávamos, como a maior parte dos editores de revistas cientificas no Brasil, a imensa dificuldade de distribuição no país. Além dessa preocupação de ordem pragmática, a vontade de realizar o encontro, que no início pensávamos ser apenas de um pequeno número de revistas, partia também de nosso desejo de refletir conjuntamente sobre as dificuldades e estratégias para produzir uma revista acadêmica de qualidade, reconhecida por nossos pares e de impacto no campo científico. Aos poucos fomos ampliando nossa idéia de um encontro de revistas acadêmicas para um evento maior que permitisse o diálogo entre revistas acadêmicas e de ONGs feministas, pois constatávamos que o campo de estudos de gênero e feminista era, no Brasil, constituído por essa troca.

Após alguns anos de elaboração do projeto, realizamos esse primeiro encontro em agosto de 2002 no Hotel Canto da Ilha em Florianópolis. Nele estiveram reunidas representantes de 20 publicações feministas, sendo 6 vinculadas a universidades e 13, a ONGs, conforme pode ser verificado nos quadros ao final desta apresentação. Participaram também pesquisadoras feministas, algumas delas ex-editoras de publicações, que muito contribuíram para o debate e para contextualizar o papel das publicações feministas contemporâneas. A mesa de abertura incluiu várias pesquisadoras que, com suas reflexões, ajudaram a construir um mosaico do papel das publicações na história do feminismo no Brasil.

Zahidé Muzart recuperou a história de algumas publicações feministas do século XIX em texto que está publicado neste Dossiê. Bila Sorj e Albertina de Oliveira Costa relembraram algumas publicações dos anos 1970 e 1980, como os jornais Nós Mulheres, Brasil Mulher e Mulherio, a revista Impressões e o papel da Fundação Carlos Chagas no desenvolvimento das pesquisas sobre mulher e gênero, o que permitiu a criação da Revista Estudos Feministas no início dos anos 1990.

Foi também sobre os anos 1990 que falou Adriana Piscitelli, recuperando a história dos 10 anos dos Cadernos Pagu, em texto posteriormente reelaborado em parceria e também publicado neste Dossiê. Cláudia Lima Costa refletiu sobre o papel das publicações e particularmente das traduções de conceitos e teorias estrangeiras na constituição do campo de estudos feministas no Brasil, em texto que também faz parte do Dossiê.

Alice Abreu1 1 Vice-presidente do CNPq naquele momento. apresentou um panorama do lugar que as mulheres ocupam hoje nos diferentes campos científicos no Brasil. Ao detalhar essa presença segundo idade, região do país e disciplina, ela mostrou que, se por um lado as mulheres são minoria no topo da maioria das carreiras científicas (mesmo no campo das Ciências Humanas), por outro as jovens pesquisadoras de Iniciação Científica já são maioria na maior parte das áreas de conhecimento. Em sua apresentação apontou também para os impedimentos, os "tetos de vidro" que impedem as cientistas mais velhas de ascenderem a espaços de maior prestígio e reconhecimento acadêmico, que constituem a legitimidade do campo.

As reflexões da mesa de abertura, assim como os intensos debates levados a cabo em dois dias de encontro, inspiraram todas as colaboradoras deste Dossiê, reforçando a convicção de que "publicar é um ato político".

Em todas as mesas do encontro, as publicações presentes se referiram à história e às diversas circunstâncias que originaram e impulsionaram o seu crescimento e a consolidação de mais de duas dezenas de revistas feministas brasileiras na última década. Além disso, outros tópicos relevantes foram discutidos: áreas temáticas e contribuições para o avanço das discussões teóricas e das práticas feministas; dificuldades com divulgação e distribuição; estratégias de colaboração para a criação da Rede de Publicações Feministas. O encontro, serviu, entre outras coisas, para uma intensa troca de idéias e sugestões mútuas de melhoria de questões vinculadas à produção editorial.

Três foram os principais desdobramentos do encontro, organizados em torno de grupos de trabalho. O primeiro deles visa à incorporação das diferentes revistas no portal que está sendo implantado pela Revista Estudos Feministas. O segundo, denominado de inserção, organiza-se em torno da necessidade de alguns núcleos de estudos e pesquisa sobre mulher e gênero presentes no encontro de refletir sobre possibilidades de ação conjunta na melhoria e implantação dos estudos de gênero em cursos de graduação. O terceiro, que tem como meta consolidar a rede de divulgação/distribuição das revistas, vem atuando de forma articulada em feiras de livros e eventos científicos e militantes com uma banca de publicações feministas que já é referência para muitas novas leitoras.

Mas, para além da troca de experiências sobre a produção editorial e a organização nesses três grupos de trabalho, o encontro permitiu que se estabelecesse um espaço caloroso de reflexão sobre o feminismo brasileiro contemporâneo em duas de suas inúmeras faces, a da divulgação das pesquisas feitas em universidades e a das pesquisas e ações desenvolvidas por ONGs.

Este Dossiê foi elaborado a partir das sugestões relacionadas durante o debate ocorrido na última sessão do evento. De acordo com essas sugestões, os artigos tanto poderiam registrar a história das publicações, ressaltando suas especificidades, alcance, limites e desafios, quanto poderiam abordar outros tópicos importantes que foram debatidos durante o encontro.

Do século XIX ao início do século XXI

Os dois primeiros artigos dedicam-se a refletir sobre a participação das mulheres na produção de periódicos. Inicialmente Zahidé Lupinacci Muzart busca recuperar a memória literária das mulheres brasileiras no século XIX, examinando alguns periódicos fundadores por elas dirigidos. A autora destaca o papel desempenhado por duas periodistas da época - Maria Josefa Pereira Pinto e Juana Paula Manso - assinalando a importância dos periódicos no sentido de despertar a consciência das mulheres para a necessidade de conquistarem direitos fundamentais ligados à educação, à profissionalização e, posteriormente, ao voto.

Em seguida, remetendo-se a tempos mais recentes, Rosalina de Santa Cruz Leite aborda os jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres, recuperando uma parte importante da história da imprensa feminista alternativa que surgiu no estado de São Paulo, Brasil, na segunda metade dos anos 1970. A autora constata que essa imprensa se tornou um espaço de expressão de uma linha política intimamente vinculada ao despertar das mulheres para as idéias feministas do período posterior à luta armada contra a ditadura no Brasil, conforme pode ser verificado em seus editoriais. Tais editoriais registram, entre outros aspectos, o envolvimento na luta pela anistia, pelas liberdades democráticas, por creches, por melhores condições de trabalho, contra a violência doméstica, etc.

Na seqüência, o artigo de Adriana Piscitelli, Iara Beleli e Maria Margaret Lopes reflete sobre o papel desempenhado pelos Cadernos Pagu na consolidação e ampliação do debate sobre gênero e feminismo, partindo do pressuposto de que as publicações científicas contribuem para conformar campos disciplinares, ao mesmo tempo que são por eles influenciadas, na medida em que difundem idéias, conceitos e tendências, fundamentando a reflexão e inspirando novos estudos.

No artigo seguinte, Fabiana Paranhos sintetiza o processo de criação e a dinâmica de funcionamento da LetrasLivres, editora criada pela ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero para servir de mecanismo de divulgação das pesquisas em ética e bioética feminista da instituição. Considerando que a editora resulta da união entre o terceiro setor e a pesquisa acadêmica, a autora destaca o pioneirismo e, ao mesmo tempo, as dificuldades enfrentadas por uma editora especializada na divulgação e comercialização dentro do mercado editorial brasileiro.

A partir de sua experiência como co-editora da Revista Estudos Feministas, Claudia de Lima Costa se debruça sobre o papel das publicações feministas no que ela chama de "viagens das teorias". Seu texto aponta para uma das questões discutidas no I Encontro, qual seja, o papel que as revistas acadêmicas feministas representam dentro do campo científico internacional das Ciências Humanas, Letras e Artes, no sentido de impulsionar a circulação e disseminação de idéias, favorecendo um processo constante de revitalização de teorias e conceitos que circulam por diferentes lugares.

A autora centra seu olhar sobre o processo da tradução cultural e sua imensa complexidade no campo das relações desiguais entre comunidades científicas dos hemisférios norte e sul, defendendo que "teorizar no feminismo implica desde já engajar-se em tradução - traduzir conceitos e terminologias de um campo disciplinar para as categorias analíticas de outro(s) em um processo que Gayatri Spivak caracteriza como 'transação dinâmica de leituras', ou seja, o ato de colocar uma forma de teorizar em contato ou transação com outra na leitura de qualquer tipo de texto, literário ou social".

O artigo de Maria Juracy FilgueirasToneli retoma o debate de uma das mesas do evento, na qual várias ONGs apresentaram suas publicações, indicando aspectos comuns entre as diferentes estratégias de publicação. Alargando o diálogo estabelecido no encontro, através de consulta complementar aos sites das organizações, a autora aponta para os principais desafios e impasses que as publicações feministas de ONGs podem vir a enfrentar, e conclui que "o cenário, embora promissor, revela fragilidades que precisam ser consideradas sob pena do comprometimento dos objetivos dos projetos editoriais descritos".

O artigo de Sônia Malheiros Miguel resgata a experiência em produção editorial acumulada pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) e se detém em um dos principais eixos de discussão do encontro - as semelhanças e as diferenças entre a produção feminista de universidades e das ONGs. Defendendo que a relação entre as duas produções intelectuais é complementar e que é possível fazer pesquisa nos dois espaços, a autora mostra, a partir de uma análise das autoras que publicaram na Revista Estudos Feministas nos últimos 10 anos, que o trânsito entre os dois espaços é constante e regular. Defendendo seu argumento de que não há feminismos, nem feministas, distintos nos dois espaços, Sônia recomenda o aprofundamento do diálogo e sobretudo do incremento de publicações conjuntas entre universidades e ONGs, vendo nesse diálogo as vantagens de um processo de oxigenação mútua, capaz de inovar teorias e práticas.

Fundamentando-se na sua experiência de ensino no curso de graduação em Ciências Sociais da UFPR e preocupada com a expansão do gênero e do feminismo nos currículos das universidades brasileiras, Miriam Adelmann constata que "continua sendo difícil o pleno ingresso da nossa perspectiva ao mainstream das ciências sociais" e discute brevemente algumas das razões de tal dificuldade. A autora retoma o eixo de discussão do encontro sobre o papel das publicações na constituição de diferentes campos científicos no Brasil, detendo-se na reflexão sobre o lugar dos estudos de gênero nos cursos de graduação, reflexão presente também no encontro em outros trabalhos expostos. Miriam mostra como os Cadernos de Estudos de Gênero, que ela classifica como "uma publicação feminista local", têm desempenhado um papel importante de estímulo à produção de alunos e alunas de graduação no contexto das discussões atuais pela atualização e transformação dos currículos das ciências sociais.

O artigo de João Bôsco Hora Góis foi elaborado a partir de uma das constatações do encontro: a dificuldade de diálogo entre os movimentos feminista e homossexual. Seu texto faz uma revisão teórica abrangente dos estudos sobre homoerotismo feitos hoje no Brasil, mostrando as principais questões abordadas e os espaços acadêmicos nos quais eles são desenvolvidos, e aponta para a dificuldade de incorporação do conceito de gênero em parte desses trabalhos. Analisando criticamente as principais revistas feministas acadêmicas brasileiras, o autor constata que há poucos artigos e/ou resenhas sobre a temática da homossexualidade em geral e do lesbianismo em particular. Concluindo seu artigo, ele observa que essa dupla invisiblidade - gênero no campo dos estudos gays/lésbicos e da homossexualidade no campo dos estudos de gênero - vem junto também de uma grande dificuldade de incorporação da questão racial nesses dois campos.

Jacira Melo aborda em seu texto outra das discussões realizadas no encontro, a da importância da avaliação das ações feministas, e particularmente das publicações. Considerando que toda publicação é "uma ação política direta, e não apenas [...] mais um instrumento de divulgação do trabalho desenvolvido pelas organizações", ela argumenta em seu texto que as publicações feministas têm um papel fundamental hoje no Brasil de "aprimoramento e renovação dos discursos políticos sobre a condição da mulher" e que é necessária uma maior profissionalização da atividade editorial feminista para que se atinja melhor esse objetivo. Conclui seu texto refletindo sobre novas formas de produção editorial em momentos de crise, propondo que se trata atualmente de produzir a partir de "um maior acúmulo de experiências e um menor volume de recursos", o que configura uma situação que "exige novas estratégias".

O texto de Luiza Bairros, escrito em uma das madrugadas do próprio encontro, reflete vigorosamente os principais eixos do debate. Ele foi mantido aqui em sua forma original como um documento da história do feminismo, tanto para futuras pesquisadoras interessadas no tema quanto para que as leitoras deste Dossiê pudessem sentir o tom dos debates do encontro. Iniciando pela classificação dos três principais objetivos das publicações feministas presentes, ela aponta os problemas levantados e formas possíveis de saná-los. Algumas das propostas levantadas por Luiza já começaram a se desenvolver ao longo deste ano, e outras se configuram na pauta de ações futuras mais amplas de ONGs e Núcleos de Pesquisa sobre Mulher e Gênero para a próxima década.

Por último, recuperando sua trajetória como atual editora da revista Maria, Maria, publicada pela UNIFEM, Fe Pompeu elabora em seu artigo algumas recomendações para as editoras feministas, que em geral desconhecem o público ao qual se dirigem suas publicações.

Para finalizar, vale a pena ressaltar que o diálogo com essas/es autoras/es representa um momento privilegiado para toda a equipe da Revista Estudos Feministas, particularmente para as organizadoras deste Dossiê, que puderam acompanhar mais de perto tanto as dificuldades que se apresentam para as editoras de publicações feministas quanto os prazeres, o entusiasmo e as alegrias implícitas no ato de poder comunicar idéias e atitudes para um público sempre carente de informações capazes de abalar as certezas que têm sustentado, por séculos a fio, as desigualdades de gênero(s).

Agradecemos o apoio da Fundação Ford, sem o qual teria sido impossível a realização dessa iniciativa, assim como a todas/os as/os autoras/es que colaboraram, expressando seus pontos de vista e impulsionando um vigoroso debate que apenas se inicia. Esperamos poder continuar estimulando a produção de pesquisas e os debates sobre o impacto das publicações feministas no campo dos estudos de gênero e feminismo, assim como sobre os movimentos feministas em geral, no II Encontro Brasileiro e I Encontro Internacional de Publicações Feministas que ocorrerá entre 26 e 28 de novembro de 2003, em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

Publicações Sediadas nas Universidades*

Publicações Sediadas em ONGs*

Copyright © 2003 by Revista Estudos Feministas

  • 1
    Vice-presidente do CNPq naquele momento.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Out 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 2003
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