Acessibilidade / Reportar erro

O público, esse desconhecido

DOSSIÊ

O público, esse desconhecido

Fe Pompeu

Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher

"O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito o que entender os que sabem"

Padre Antônio Vieira em Sermão da Sexagésima (1655)

Quem participou do I Encontro Brasileiro de Publicações Feministas - realizado de 7 a 9 de agosto de 2002, em Florianópolis - pôde observar o quanto as publicações feministas diferem no formato, no gênero, na periodicidade e na distribuição.

Cada publicação tem histórias de nascimento e de desenvolvimento bem particulares, cada uma possui inserções e espaços definidos dentro da expressão feminista. Ou seja, a diversidade não é um problema; ao contrário, é uma indicação saudável.

O I Encontro também mostrou a existência de dois campos de albergamento para as publicações feministas: as universidades e as ONGs. Em que pese as publicações acadêmicas terem um público-alvo mais ou menos homogêneo: pessoas ligadas à universidade ou interessadas na construção do pensamento científico; em que pese as publicações não acadêmicas terem um público-alvo heterogêneo: pessoas com níveis desiguais de escolaridade e de renda. Em que pese essas e outras diferenças, todas as publicações têm algo em comum: levar para um público mais amplo questões caras ao feminismo.

Difícil dourar a pílula

O feminismo trabalha com temas polêmicos, 'fortes'. Por exemplo, apregoa o direito ao aborto ou o direito a amar pessoas do mesmo sexo. Convenhamos que esses assuntos não são iguais a propagandear dietas alimentares, tratamentos para eliminar a barriga ou dicas de como 'fisgar' o partidão.

Nas publicações comerciais, as polêmicas se dividem entre as que podem aparecer e as que não devem aparecer. Por exemplo, denúncias de corrupção e nepotismo são bem aceitas. Mas quando as mulheres decidem sair do seu lugar e reivindicar direitos e eqüidade, a polêmica fica polêmica demais. Aborto, liberdade sexual, remuneração igual para tarefa igual, representatividade política etc. águam a caipirinha brasileira das tradições. As editoras e redatoras das publicações feministas seguram a batata quente dos temas difíceis e, ao mesmo tempo, descascam o abacaxi para popularizar as idéias do feminismo.

Na real, vivemos em um país no qual apenas uma minoria lê com regularidade e continuidade. As redatoras e editoras feministas, se quiserem chegar a um número grande de mulheres, terão que ser tradutoras. Isto é, ouvir o que diz o pensamento feminista e traduzir esse pensamento para mulheres que, em sua maioria, se passaram por uma academia, foi a do Salgueiro ou de ginástica.

E são essas mulheres, pouco escolarizadas, que estão na base dos movimentos sociais. É essa mulherada que está lutando pela saúde, pela escola, pela moradia, pelo lazer. Enfim, pela vida! Se o feminismo quiser triunfar na sociedade brasileira, suas idéias têm que ser difundidas amplamente. Essas idéias, uma vez traduzidas para uma linguagem mais franca e comunicativa, podem furar o cerco das desigualdades. Vamos tentar falar com uma universitária do Recife, com uma trabalhadora rural paranaense, com uma dona de casa em Copacabana, com uma profissional do sexo em uma esquina de São Paulo.

Comunicar é tornar comum

A comunicação é um esforço para chegar ao outro. O outro é aquele que não sabe o que sabemos. Mas o outro é também aquele que sabe o que não sabemos. No fundo, a filosofia da comunicação é a de aproximar os diferentes. O grande fiasco comunicativo é quando escrevemos para as/os outras/outros como se escrevêssemos para os nossos pares. Se desejarmos que nossas idéias cheguem ao grande público, precisamos renunciar à mesmice do nicho, renunciar a um único dizer.

O que vamos dizer nós sabemos, como vamos dizer é que são elas! As maneiras de dizer são os tratamentos de texto. Dentro do tratamento há a tradução e o tom; ambos obedecem a uma estratégia de como dizer. Por exemplo, o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, autor de textos didáticos como O racismo explicado a minha filha e O Islã explicado às crianças, em entrevista à revista Veja, edição de 14 de agosto de 2002, nos conta que a abordagem do racismo é diferente para crianças privilegiadas e crianças discriminadas. Para as privilegiadas, Tahar tenta fazer com que elas se identifiquem com as crianças discriminadas e pergunta: "você aceitaria ser privada da sobremesa só porque é árabe"? Para as crianças discriminadas, ele tenta insuflar a confiança, tenta impedir a vitimização.

Ou seja, não podemos utilizar o mesmo discurso para sujeitos em situações diferentes ou mesmo antagônicas. O objetivo é um só: lutar contra o racismo, mas a abordagem é diferenciada. Não existe um texto único para conseguirmos o que queremos. Essa dificuldade, que sob vários aspectos é tremenda, não deve ser motivo para desanimarmos na comunicação.

A razão de ser é chegar no ouvido alheio

Todas nós que trabalhamos com comunicação sabemos que existem centenas de técnicas para melhor comunicar. Por exemplo: textos com síntese, acompanhados por fotos, ilustrações etc. Simplicidade, clareza, sedução são também bem-vindas pelas leitoras. Mas para que a técnica funcione é preciso fazer com amor.

Fazer com amor significa: escrever o melhor possível, revisar sempre. Evitar o uso abusivo de siglas e de linguagens cifradas. Fugir dos jargões feministas. Escapar da linguagem-planfeto! Também significa: caprichar na diagramação, equilibrar o 'visual' da página e chegar a um 'produto' bonito. Fora isso, é preciso acertar no tom: interessar a quem já sabe e conquistar a quem não sabe.

Certamente que essa conquista de leitores não está escrita em nenhum manual. Não há uma receita recomendável a todas as situações. O que funciona é uma postura editorial comprometida com a comunicação. Uma postura editorial que tenha a leitora e o leitor como idéia fixa.

Rubem Alves, em um artigo assinado no caderno Sinapse da Folha de S. Paulo de 27 de julho de 2002, conta uma inquietante história de professores que, voltando para casa de trem, por anos a fio, falavam de tudo: salários, reuniões, férias, provas. O único assunto de que nunca falaram foi sobre os alunos. E Rubem pondera: "Se não falavam sobre alunos é porque os alunos não tinham importância."

Ora, publicações que não pensam seu público-alvo, não dão importância a quem está do outro lado, os destinatários. Quando isso ocorre, publicar - que é tornar público - perde sua razão de ser.

Quem são elas, quem são eles

É de autoria do compositor Gilberto Gil a frase "o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe". Trata-se, então, de um desafio saboroso: agradar ao público leitor dando o que ele quer e, ao mesmo tempo, surpreendê-lo com algo que ele não previa ou não sabia que queria. Isso também significa que redatoras e editoras feministas não têm outro caminho que não seja o de andar na corda bamba ou, em uma imagem mais precisa, morder e soprar. Morder a leitora e o leitor com os temas que interessam ao feminismo, soprar a mordida com a maneira de transmitir esses temas.

Para que tudo isso e muito mais aconteça precisamos conhecer quem é o nosso público-leitor. E também aferir o que ele pensa dos nossos trabalhos. No I Encontro Brasileiro de Publicações Feministas, discutiu-se a propriedade de as publicações serem avaliadas. Jacira Melo, do Instituto Patrícia Galvão - Comunicação e Mídia, presente no Encontro, pontuou: "Sem saber como o público-alvo recebe e avalia nossas publicações, não teremos como melhorar".

Por fim, parece claro que as publicações necessitam se profissionalizar. O que é isso? Ter pessoas exclusivamente dedicadas a elas; ser encaradas como um projeto orgânico da organização e não como um apêndice, ou como um simples veículo de divulgação dos trabalhos.

Profissionalizar também quer dizer pôr paixão na publicação. Essa paixão é fundamental em uma atividade que conjumina poética e política.

Copyright © 2003 by Revista Estudos Feministas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br