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Fourteen Female Voices from Brazil

RESENHAS

Minha casa está cheia de coros

Maria Consuelo Cunha Campos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Fourteen Female Voices from Brazil.

SZOKA, Elzbieta (ed.). "Introduction" by Jean Franco.

Austin, Texas: Host Publications, INC., 2003. 309 p.

Quatorze entrevistas com autoras brasileiras, seguidas de uma seleta de textos dessas escritoras: eis o oportuno trabalho, materializado em livro, ora publicado, em inglês, que a professora Elzbieta Szoka oferece ao público leitor interessado em questões identitárias contemporâneas, tais como gênero, etnia e nacionalidade.

Nascida e formada na Polônia comunista da Guerra Fria, a organizadora de Fourteen Female Voices from Brazil cresceu em um Leste Europeu marcado pelo conceito marxista de igualdade social, sob o qual submergiram, abolidas as antigas desigualdades de classes, também os significados possíveis para diferenças identitárias outras, tais como as étnicas, de gênero, etc.

Por seu turno, a resistência a essa ideologia, hegemônica no chamado Segundo Mundo, materializava-se, no que concerne às questões de gênero, na afirmação do tradicional papel feminino em uma sociedade patriarcal católica como a polonesa, onde a mulher se limitava à reprodução da espécie e à parceria subordinada ao homem, no casamento heterossexual monogâmico indissolúvel. Isso vale dizer que os estereótipos femininos hegemônico e contra-hegemônico oscilavam entre a motorista do trator da propaganda marxista e a mulher casada rodeada de numerosa prole da resistência nacionalista católica.

Os anos poloneses marcaram-na tão fortemente que só nos Estados Unidos, recentemente, Elzbieta pôde descobrir a universalidade das questões ligadas às diferenças de gênero e de raça. Lecionando conto brasileiro contemporâneo na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, localizada próxima ao Harlem, tinha um grupo heterogêneo de estudantes.

Ela surpreendeu-se com a escolha da maioria deles, que preferiu, para seus trabalhos e apresentações de curso, obras de escritoras. Indagando-lhes o motivo, recebeu como resposta que essas vozes femininas lhes eram novas e que, por isso mesmo, gostariam de dispor de mais informação sobre suas autoras, uma vez que unicamente o material bibliográfico crítico sobre elas não lhes respondia às questões que as obras mesmas lhes suscitavam.

Foi do desejo de responder a essa demanda que surgiu o projeto do livro, como o de um coral, um conjunto vocal em que, metaforicamente, houvesse sopranos mas também contraltos, com inúmeras variações e coloraturas no meio.

A seqüência das autoras e de seus textos, na organização de Elzbieta, responderia às modulações, sobre o eixo do tempo, do cânone literário feminino no Brasil, desde a única presidenta, em mais de cem anos de existência, da Academia Brasileira de Letras, até as autoras afro-brasileiras que vêm desenvolvendo, em uma dimensão coletiva, um projeto literário e étnico alternativo ao hegemônico, o que torna assim representativas essas 14 vozes de veredas literárias femininas brasileiras contemporâneas.

Tendo participado de um dos seminários bianuais do Grupo de Trabalho "A Mulher na Literatura", da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras (ANPOLL), na cidade de Belo Horizonte, Elzbieta descobriu, nele, poderoso grupo de escritoras afro-brasileiras emergindo coletivamente no meio acadêmico brasileiro e cujas obras estavam sendo objeto de debate em vários dos painéis do evento. Mérito seu o de incorporá-las, pioneiramente, a seu projeto, confirmando que a escrita feminina afro-brasileira vem sendo alvo de estudo e interesse.

Com introdução de Jean Franco - que também participou do seminário organizado pelo Grupo de Trabalho - Fourteen Female Voices from Brazil abre-se à grande diversidade regional de um país de dimensões quase continentais, bem como à origem migrante, tão diversa, de escritoras eurodescendentes, cujos ancestrais aportaram ao Brasil no bojo da colonização portuguesa, ou, posteriormente, da política de branqueamento da população mestiça, ou afrodescendentes, cujos antepassados foram trazidos à força para o Brasil pelo tráfico escravista.

Jean Franco adverte - inclusive ao público leitor brasileiro, que muitas vezes também necessita ser lembrado disso - que o país tem uma população maior do que a russa, além de ricas tradições culturais não ocidentais, como as indígenas e africanas, sem esquecer as de imigrantes orientais e que o português é um dos poucos idiomas falados em quatro continentes.

Além da própria qualidade intrínseca da produção literária brasileira, esses fatores já deveriam ter-lhe dado um relevo à altura de todo esse patrimônio que ela, todavia, ainda não soube proporcionar-se.

Atenta ao fato de que não só a desigualdade entre escritores e escritoras está longe de resolver-se, no Brasil, mas também o está a desigualdade do acesso de homens e de mulheres ao poder, Franco, na sua Introdução, proporciona ao público americano - de um e de outro hemisfério - interessante paralelo entre os contextos brasileiro e estadunidense.

Ficcionistas (como, por exemplo, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Helena Parente Cunha, Sônia Coutinho, Astrid Cabral, também poeta, Miriam Campello, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Conceição Evaristo, também poeta); poetas (como Marly de Oliveira, Renata Pallotini); teatrólogas (como Leilah Assumpção e a também atriz Jandira Martini) fornecem, com a antologia de seus textos, uma amostra bastante representativa, nos diversos gêneros discursivos que abrange, da produção feminina contemporânea brasileira. Ela não é homogênea nem de um ponto de vista temático nem de um ponto de vista étnico; suas referências espirituais não remetem apenas ao universo católico hegemônico no Brasil, mas, sim, a uma pluralidade de tradições religiosas; seus parâmetros não são apenas os eurocêntricos, heterocêntricos, patriarcais, pois outros e diversos se contrapõem a estes.

Como diz Miriam Alves, uma das três vozes afro-brasileiras do livro, em sua entrevista, "minha casa está cheia de coros, mas não é só isso" (p. 258). Se Virginia Woolf preconizava, para a mulher escritora, a necessidade de um teto todo seu e de uma renda mínima, que lhe garantisse a independência econômica, essa receita, anglófona, é modulada, no coro das vozes à brasileira, pois nem sempre é possível a escritoras, oriundas das classes sociais ditas subalternas ou populares, ou das chamadas camadas médias empobrecidas, nestes tempos neoliberais pós-modernos, seguirem tal receituário europeu da modernidade.

Justificado embora, convincentemente, por Elzbieta, pelas razões de espaço geográfico (suas viagens ao eixo RioSão Paulo, com uma parada em Belo Horizonte) e de limitações de tempo, por ela encontradas inclusive na questão dos contatos prévios com as escritoras, o elenco integrante do livro muito ganharia em representatividade de determinadas vertentes, com outras inclusões, para além dos nomes por ela explicitamente mencionados nessa impossibilidade factual de inclusão: aos nomes de Rachel de Queiroz, Heloíza Maranhão, Lya Luft, Adélia Prado, Hilda Hilst, Patrícia Melo, por Elzbieta referidos, seria possível, apenas por exemplo, acrescentar, na poesia, nomes como os de Elisa Lucinda, com sua proposta literária pessoal e performática na lírica afro-brasileira, e de Olga Savary, com sua temática erótica e sua poética do Éden e do Hades; e, na narrativa, Ana Miranda e sua metaficção historiográfica, a partir do Boca do inferno, e tantas outras residentes nas metrópoles brasileiras visitadas por Elzbieta. Fica, pois, o estímulo a uma seqüência desse projeto, com, pelo menos, mais 14 outras vozes femininas contemporâneas.

Sem dúvida, porém, já nessa presente seleção, nos contrastes de seus timbres, na polifonia de seus acentos, vale a pena ouvir as vozes, ler-lhes as entrevistas e os textos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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