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Gender in Amazonia and Melanesia: an exploration of the comparative method

RESENHAS

Melazônia e suas sombras

Oscar Calavia Sáez

Universidade Federal de Santa Catarina

Gender in Amazonia and Melanesia: an exploration of the comparative method.

GREGOR, Thomas A., and TUZIN , Donald (eds.).

Berkeley: University of California Press, 2001. 392 p.

A Wenner Gren Foundation patrocinou em 1997 um evento memorável. O lugar, Mijas, uma ensolarada paragem no extremo sul da Espanha; o tema, o estudo comparativo das relações de gênero na Melanésia e na Amazônia; os protagonistas, uma série de especialistas em ambas regiões, vindos dos Estados Unidos, da Grã Bretanha e da França. Aquele encontro forneceu o material desse livro e, diga-se já, um modelo do que poderiam e deveriam ser os trabalhos coletivos nessa especialidade: breves apresentações de cada texto que o situam no conjunto da obra, uma rede quase exaustiva de referências recíprocas que unem e opõem os diversos trabalhos, e um diálogo efetivo que fica longe da unanimidade, e também da paz dos solilóquios.

Mas essa bem travada discussão tem propósitos diversos que não se harmonizam com facilidade.

De um lado, trata-se de reivindicar o método comparativo. Os coordenadores o fazem na introdução com argumentos bem matizados, fazendo história dos excessos e das vias mortas em que já mergulhou no passado. Ao mesmo tempo, enveredam por uma dessas vias mortas: a busca de uma razoável identidade entre os termos comparados. O neologismo Melazonia, uma sorte de leitmotiv que encabeça vários capítulos do livro, maximiza as coincidências entre ambas regiões e se vê refutado por boa parte dos autores, saudavelmente mais interessados em mostrar, e eventualmente sistematizar, as diferenças. Se o gênero foi escolhido, entre as diversas temáticas - os códigos corporais, a belicosidade, o canibalismo, etc. - que parecem aproximar essas duas últimas fronteiras da civilização global, foi para que, como eixo básico da sociedade em uma e outra região, fornecesse um elo seguro na comparação. Mas essa escolha implicava também uma indagação sobre a dominação masculina e as suas sombras; uma pergunta dramática sobre as origens, adequadamente endereçada às encarnações mais habituais da humanidade selvagem ou primitiva.

A Melanésia do livro é, sobretudo, a Papua Nova-Guiné, e não a Melanésia malinowskiana das Ilhas Trobriand e arredores. A Amazônia do livro é a do Alto Rio Negro, a dos Mundurucu e a do conjunto Xinguano - embora com incursões alhures, como é o caso dos Jívaro ou dos Kaiapó, que introduzem um desvio significativo na média dessa seleção. Em primeiro plano, um universo ritual bem definido: cerimônias masculinas, freqüentemente associadas a instrumentos musicais proibidos às mulheres (as flautas, o zunidor...), que encenam toda uma teoria sobre o perigo feminino e a sua subjugação. A sua versão máxima se encontra em uma série de complexos rituais melanésios - Sambia, Baruya, Ilahita-Arapesh, Gilli - já objeto de algumas descrições famosas, como as de Godelier e Herdt, que constituem verdadeiros testes da fleuma multiculturalista do antropólogo, e pesadelos para qualquer sensibilidade heterosocial: nítida segregação de homens e mulheres; ideologias que definem um ser feminino com tintas especialmente sombrias; processos de iniciação em que os meninos são dramaticamente separados de suas mães e irmãs, veículos de morte e doença e culpáveis da dura expiação que deverá seguir; um estado liminar em que os iniciandos são aterrorizados, insultados, feridos e 'inseminados' por via oral ou anal, em um processo que os fará nascer como homens depois de ter morrido como filhos de mulher; performances masculinas que mimetizam a gravidez, o parto ou a menstruação e que expropriam simbolicamente o poder gerador das mulheres, etc., etc. Entre todas as colaborações do livro, é a de Biersack a única que se debruça diretamente sobre esta versão máxima, perguntando-se a que se deve essa ginofobia dos rituais, modelo por excelência de todas as outras ginofobias. Talvez só haja, à escala dessa pergunta, uma resposta possível, esta mesma que escolheram muitas outras explanações da dominação masculina: o objeto não são as mulheres, mas as mães, cujo poder diferencial no que tange à geração deve ser desapropriado ou escamoteado por meios simbólicos. A autora percebe uma elipse semelhante em textos fundamentais da antropologia, como Estruturas elementares do parentesco e Mitológicas, em que a mulher é essencialmente irmã ou esposa, e a mãe não aparece. Uma elipse que se estende a outros textos canônicos da cultura ocidental: a mãe de Édipo é a mulher do pai muito mais que uma genitora. Se a maternidade não aparece nas duas obras de Lévi-Strauss, no entanto, é bem visível nelas a dicotomia que se insinua na análise de Biersack, isto é, o par natureza-cultura: gerando segundo a natureza, as mulheres condenam a humanidade à morte. O único - e dúbio - remédio é recorrer à permanência garantida só por uma geração segundo a cultura, que surgiria assim como um âmbito antifeminino por definição .

Mas a maior parte dos textos se afasta dessa grande e sombria narrativa, preferindo a ela uma relativização dos universais por meio da diversidade do detalhe etnográfico. Isso já é possível na própria Papua-Nova Guiné, onde a ginofobia ritual está longe de ser homogênea e unânime. Basta lembrar que os Ilahita-Arapesh, detentores de uma das versões mais duras dessa segregação dos gêneros, são parentes imediatos dos Arapesh das montanhas que Margaret Mead descreveu como um modelo de harmonia e equilíbrio entre os gêneros. Bonnemère, por exemplo, se refere à grande variabilidade que pode se observar a esse respeito na região: os rituais Akave apresentam uma versão consideravelmente suavizada dos vizinhos Sambia, embora coincidam com eles em linhas gerais. Sobretudo, eles prevêem a participação ativa das mulheres, pondo entre parênteses o valor central da exclusão.

Os textos que tratam da Amazônia se afastam de modo muito mais decidido do "rito de referência", inclusive naqueles casos em que descrições anteriores haviam sido enfáticas em se referir à dominação e à exclusão. Assim acontece com o capítulo de Hugh-Jones sobre o ritual Barasana, que, revisando passadas análises, tende a considerar agora o lado feminino do ritual, e a interpretá-los em um sentido mais consensual. O valor e a força da dicotomia de gênero são postos em dúvida: Hill prefere falar em rituais "de fertilidade"; Fisher aponta que o gênero aparece entre os Kayapó como uma variável dependente da idade; Descola - com uma proposta que muitos outros especialistas na Amazônia subscreveriam - mostra que esse papel de eixo básico corresponde antes à oposição entre cons-angüinidade e afinidade, que engloba no universo Jívaro a oposição entre gêneros: segundo um mito citado por Descola, a primeira mulher foi um afim transformado com propósitos eróticos. Dir-se-ia que os amazonistas resistem a se afastar do arquétipo libertário do índio americano, mas o fazem com alguns bons argumentos: na Amazônia são difíceis de encontrar as estruturas clânicas que dão sentido aos rituais melanésios, e pode ser precisamente essa transcrição do par afinidade/con-sangüinidade em termos de grupos exógamos a que consegue realçar até esse ponto a dicotomia de gênero na Melanésia. No mundo amazônico, o cosmológico engloba o sociológico, e o regime de homosubstituição (em que cada sujeito equivale exclusivamente a outro sujeito, e o poder se resume à destreza no manejo das relações) deixa pouco espaço para a heterosubstituição - isto é, a possibilidade de incorporar valores sociais em objetos, e portanto de acumular riqueza e poder. As flautas sagradas do Alto Rio Negro ou do Xingu contam entre os raros casos de heterosubstituição nas culturas amazônicas, mas não por isso abrem o caminho para os sistemas de bridewealth, ou de construção de big men que caraterizam a Melanésia. Sobre as relações de gênero não pendem os custos do acúmulo de poder.

O dilema é o de toda pesquisa em diálogo com a tradição feminista: buscar nas mesmas instituições os signos de uma opressão universal, ou pelo contrário trocas horizontais e poderes alternativos. Pela segunda via pode se disfarçar a opressão; pela primeira, ela chega a se tornar virtualmente natural e indiscutível. O livro não tenta resolver o paradoxo: pelo contrário, os dados que ele apresenta podem muito bem exacerbá-lo. Essas sociedades selvagens ou primitivas, que exploram de um modo mais radical e explícito a oposição entre os sexos, são ao mesmo tempo sociedades que não constroem os pesados arcabouços de segregação prática ao alcance de outras sociedades maiores e dotadas de algum tipo de ideologia igualitária: em geral, homens e mulheres convivem estreitamente e com-partilham a maior parte das habilidades e as capacidades. Ideologias de confronto, ou visões da sexualidade como agressão, não impedem um vivo interesse pela convivência cotidiana ou sexual. A mimese masculina da gravidez - na interpretação que Conklin faz do resguardo do homicida Wari - não compete necessariamente com a gravidez feminina. Mesmo a violência doméstica, que deveria representar o ápice da dominação, parece conviver com altos graus de autonomia feminina - de resto, no que respeita a outras formas de violência, e contrariando uma intuição liberal muito comum, são com freqüência as sociedades mais belicosas as que atribuem um status mais alto às mulheres. Vale a pena notar que em vários casos, melanésios ou amazônicos, os rituais de domínio masculino que constituem o cerne do livro tem sido subvertidos ou abolidos pela conversão religiosa, ou esvaziados pela implantação da economia de mercado (um tema tratado no texto de Michael Brown, e no trabalho de Knauft, que fez parte do colóquio mas foi publicado alhures). Os resultados dessa subversão ou dessa abertura não são necessariamente alvissareiros: em alguns casos, segue-se uma reação masculina; em muitos outros se assiste ao incremento de uma violência agora factual e não mais simbólica, privatizada e anômica. Talvez seja um aviso para reformadores: os sistemas simbólicos parecem ser mais inocentes, ou mais ambíguos, ou simplesmente mais profundos do que supõe quem se empenha em corrigi-los.

As análises de maior alcance do livro - que se encontram no texto de Strathern, e no diálogo que Hugh-Jones estabelece com ela - se dedicam a refinar a articulação entre termos que se amalgamam com demasiada freqüência: ordem simbólica e sociedade (um par ao qual voltaremos pouco mais adiante), e sobretudo sexo e gênero. Sexo e gênero - retomam-se aqui análises anteriores de Strathern - não são estratos diferentes de uma mesma realidade; isto é, homens e mulheres não são invólucros onde estão contidas a masculinidade e a feminilidade, senão fontes de metáforas sobre uma e outra. Junto a um estado não marcado em que cada indivíduo é socialmente andrógino, cada ordem social prevê situações em que o masculino e o feminino se distribuem, se combinam ou se separam. A indagação sobre as relações de gênero não se ocupa assim de homens e mulheres, ou dos papéis que lhes correspondem, mas do jogo que cada sociedade estabelece entre relações same sex e cross sex - uma definição, diga-se de passagem, que permite radicalizar a análise da dominação, mas a eleva a um nível de abstração em que ela apresenta talvez pouco interesse para a militância.

Tuzin e Gregor, no capítulo que conclui o livro, mostram-se incômodos com toda essa elucidação do tecido simbólico da vida humana, perguntando se não teria se perdido no curso dela algo importante, logo aquilo que costumávamos chamar realidade. Encontrar o lado feminino dos "rituais de flautas" pode ser uma sublimação filosófica que transforme a desigualdade em complementaridade, e a opressão em colaboração. Mas talvez não passe de uma elaboração secundária de realidades menos dialógicas. Um bom critério a esse respeito seria, então, observar o modo em que os rituais motivam a ação. Ambos os autores se referem a situações em que o ritual masculino não consegue se liberar de um sentimento de culpa. Tuzin aduz uma história melanésia em que os homens decidem coletivamente revelar às mulheres o secreto do culto que consagrava sua sujeição; Gregor, uma história amazônica em que um homem se nega a participar na execução de sua amante, que havia contemplado as flautas proibidas, e a resgata viva da fossa em que foi enterrada. Se a culpa existe, é porque o pecado é real. Mas é sempre difícil resgatar na análise dos símbolos algo tão intuitivo como a realidade. A violência real narrada a Gregor pelos Mehinaku é sempre uma violência atribuída à crueldade dos bisavôs; a confissão dos Ilahita narrada por Tuzin exorcizou un ritual que havia anos não se celebrava, demonizado pelo cristianismo - uma religião que concede à crença e à descrença um papel em geral superior ao que os pagãos reconhecem.

A discussão parece se organizar em último termo entre uma tendência - a de Biersack, Tuzin e Gregor - que assinala continuidades entre a ordem simbólica e a prática, e outra - formulada mais explicitamente por Hugh Jones - em que as cerimônias não são a estrutura social, mas uma estrutura paralela e alternativa à vida cotidiana. No primeiro caso, o ritual revela ou dá vazão a tensões; no segundo, ao contrário, as exaspera e as isola. Um bom dilema - mais um - para os estudos de gênero, que tem feito boa parte da sua história nesse caminho de ida e volta entre o cotidiano e os grandes símbolos.

Gender in Amazonia and Melanesia é ja uma referência obrigatória para vários dos temas nele tratados: a comparação entre ambos os mundos, a revisão do modelo Sambia, as generalidades dos cultos de flautas. Resta ver se no âmbito dos estudos de gênero consegue o eco que os seus organizadores quiseram provocar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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