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As múltiplas vidas de "Chapeuzinho Vermelho"

RESENHAS

As múltiplas vidas de "Chapeuzinho Vermelho"

Eliane T. A. Campello

Fundação Universidade Federal do Rio Grande

Little Red Riding Hood Uncloaked: Sex, Morality, and the Evolution of a Fairy Tale.

ORENSTEIN, Catherine.

New York: Basic Books, 2002. 289 p.

"Uma menina, um lobo, um encontro na floresta. Quem não conhece a história de Chapeuzinho Vermelho?" Com essa pergunta desafiadora lançada a um amplo universo de leitores formado por crianças e adultos, Catherine Orenstein introduz a leitura dos múltiplos símbolos e idéias que se encontram nos bastidores de um dos contos de fadas mais populares do mundo (a afirmativa não é hiperbólica). O título - Little Red Riding Hood uncloaked: Sex, Morality, and the Evolution of a Fairy Tale -, que em uma tradução livre para o português pode ser A Chapeuzinho Vermelho desencapuzada: sexo, moralidade e a evolução de um conto de fadas, indica a proposta analítica da autora.

Orenstein acredita que nosso sentido de identidade social e cultural vem permeado nos contos de fadas, um dos gêneros literários mais poderosos de socialização: "eles nos ensinam o Certo e o Errado" (p. 10), afirma ela. Por esse motivo, modificam-se no decorrer dos séculos, evidenciando de que forma as verdades humanas mudam.

A autora recupera diversas versões do conto, desde as encontradas na tradição do folclore oral, como é o caso de "A história da vovó" (coletada por volta de 1885), passa pelas versões de Perrault (primeira edição em 1697) e dos Irmãos Grimm (primeira edição em 1812), e chega, entre outras, à análise do relato dos crimes de Stubbe Peeter (traduzido do holandês para o inglês em 1590), à canção de Robert Blackwell (1966), aos poemas de Anne Sexton (1971), de Roald Dahl (1983) e de Gwen Strauss (1990), sem esquecer uma piada popular e a adaptação do conto para o cinema (com o título de Freeway) feita por Matthew Bright (1996).

De posse dessa rica e variada matéria-prima, Orenstein cruza sua interpretação de cada um dos textos com comentários elucidativos a respeito do momento histórico da produção da história. Mas não pára aí. Inflamada pelas questões pós-modernas de gênero, a autora persegue, nas versões estudadas, suas repercussões culturais na sociedade contemporânea concernentes ao sexo e à moralidade. Para isso, vale-se também de inúmeras ilustrações (37, no total), cujos significados, explorados com agudeza, corroboram seus argumentos. A novidade é que inclui entre tais ilustrações não só aquelas que acompanhavam o texto nos manuscritos ou nas publicações originais, mas acrescenta reproduções de anúncios muito expressivos do século XX que se apóiam no tema do "Chapeuzinho Vermelho", como bem o demonstram o da Max Factor, na Vogue, de 1953 e o do Chanel nº 5, em um comercial de televisão, de 1998.

Entre as ilustrações originais, chama a atenção a ênfase de Orenstein ao comentar o tratamento dado modernamente à ilustração universalmente conhecida do lobo (disfarçado de vovó) e da menina (tentando cobrir-se com o lençol), na cama, desenhada pelo famoso Gustave Doré, em 1862. Bruno Bettelheim aperfeiçoa-a na capa de A psicanálise dos contos de fadas (1976). Esse não menos famoso analista freudiano "sentiu que era necessário retocar a outra ilustração em branco e preto com uma marca de rubor na face da menina", desvelando desse modo o sentido oculto do conto na forma de uma "parábola sexual" (p. 22), afirma a autora.

Por outro lado, a ilustração que acompanha o manuscrito de Perrault é mais ousada, pois o lobo não usa disfarce e está em cima da menina, com uma pata de cada lado. No fim do conto, a menina é comida por ele, sem salvação nem redenção. A perda da virgindade encontra sinônimo na expressão popular, na época do autor: elle avoit vû le loup - ela viu o lobo, incorporada na arte e na cultura dos últimos séculos com a mesma conotação sexual. Perrault escreveu a história com fins didáticos, para alertar as jovens virgens e mesmo as não-tão-virgens que brilhavam na corte do Rei Sol. Com isso, funda a literatura infantil 'clássica', não-tão-infantil assim. As alegorias de seus contos representam as preocupações políticas e sexuais da França no século XVII. Vestir sua heroína com um capuz vermelho - a cor das prostitutas, do escândalo e do sangue - simboliza o pecado da menina e a previsão de seu destino.

Ao passar da luminosidade do Rei Sol para a penumbra da era vitoriana, isto é, das mãos de Perrault para as dos Irmãos Grimm, Chapeuzinho Vermelho torna-se mais discreta, embora continue ainda bobinha, necessitando, por esse motivo, da figura paterna, o caçador, para salvá-la do lobo. A capa com o capuz vermelho, na edição de 1847 dos Grimm, transforma-se em um chapéu pequeno à maneira das mulheres da aristocracia e da classe média dos séculos XVI e XVII. A finalidade é a de manter seus longos cabelos presos e ocultos, por serem considerados um dos mais perigosos símbolos de sedução. Assim, devidamente resguardada e reprimida, a heroína terá, necessariamente, seu futuro assegurado: o final feliz funciona como o selo de competência da proteção masculina.

No campo da oralidade, Orenstein salienta os meios pelos quais os contos partilham os temas do canibalismo, da sexualidade, da defecação, da troca de identidades e do encontro na cama com um inimigo perigoso. Na maioria deles, porém, a heroína logra escapar do lobo sem a interferência direta dos homens. A autora desenvolve essa abordagem entrecruzando o papel da mulher no folclore com as interpretações alternativas geradas pelo advento da psicanálise, especialmente na visão de Eric Fromm e Bettelheim. Além disso, posiciona-se quanto ao interesse de alguns autores pelos contos de fadas como documentos históricos, fato que os leva à perda de uma compreensão mais ampla dos textos literários. Nesse sentido, por exemplo, Orenstein contrasta a passividade de "Chapeuzinho" nas versões escritas tradicionais e sua agentividade, na "História da vovó".

Por outro viés, pode-se afirmar que, embora Orenstein dê a Bettelheim o devido destaque por suas descobertas hermenêuticas do conto, não o poupa da crítica. Ela discorda frontalmente do psicólogo: enquanto ele situa o valor dos contos de fadas na a-historicidade e na universalidade de seus temas, Orenstein estrutura Little Red Riding Hood Uncloaked, precisamente, sobre a qualidade mutante - "mercurial properties" (p. 12) - desse gênero. Para a autora, os contos adaptam-se ao clima, aos modismos locais e ao conjunto de princípios, normas e valores de cada novo contador da história, bem como à audiência. Bettelheim apresentou os contos de fadas como um cenário seguro para as crianças explorarem seus medos interiores e seus desejos proibidos, no que foi totalmente aceito e acreditado. Isso porque, afirma ela, supomos que os psicólogos são dignos de confiança (p. 236). A negação a essa assertiva final, que representa o "verdadeiro" pensamento de Orenstein, salta claramente das entrelinhas, quando, em sua análise de Freeway (cap. X), a autora considera muito adequado à contemporaneidade o fato de ser destinado ao psicólogo o lugar de vilão, o que torna sua depreciação de Bettelheim exacerbada e irônica.

Orenstein enfoca também a cultura pop, em que Tex Avery, famoso por suas animações, e James Thurber, escritor e humorista, captam em suas representações da "Chapeuzinho" as mudanças radicais na vida das mulheres americanas entre os anos 1920 e 1940. Cada vez mais, a heroína infantil assume os ideais da mulher adulta, define idéias e atitudes revolucionárias (as mulheres passam a usar calças) e simboliza uma nova e crescente camada demográfica: a mulher solteira - no conto não há casamento, nem príncipe, nem irmãos.

Para além desses, entretanto, surgem as escritoras das últimas décadas do século XX com o fim de recontar a história diferentemente dos executivos da Madison Avenue e de todos que a exploraram como um romance água com açúcar. Das escrituras dessas mulheres brotam leituras desveladoras das peculiaridades de gênero. Embora afirmem terem sido doutrinadas e moldadas na mentalidade de vítimas pelas histórias contadas a elas, Anne Sexton, Susan Brownmiller, Anne Sharpe, Gwen Strauss, entre outras, revertem, em seus textos, os papéis construídos pela cultura para homens e mulheres.

Orenstein sumariza essa mudança: "Somente agora, 300 anos depois que Perrault transformou 'A história da vovó' em seu 'Lê petit chaperon rouge', é que o feminismo impregnou o conto de fadas de um sentido de patriarcado e nos deu o vocabulário e a estatística para ler 'O Chapeuzinho Vermelho' como uma parábola do estupro" (p. 152). Os contos que derivam da influência do movimento feminista, complementa a autora, acirram o abismo entre o modo como os homens escreveram o conto e o modo como as mulheres o lêem. Na verdade, tal descompasso cultural aponta para a ideologia vigente no momento da produção do conto e o largo horizonte de expectativas de leitores/as no processo recepcional contemporâneo. Tanto que, cada vez mais, as escritoras protestam pelo resgate da "Chapeuzinho" da barriga do lobo, para colocá-la em seu lugar e até mesmo na sua pele. O caráter subversivo tanto da prosa quanto da poesia de autoria feminina impresso nas reescrituras de "O Chapeuzinho Vermelho" reverte-se em impulsos diferenciados que provocam releituras do texto, abrindo-o para aspectos inusitados da sexualidade e do prazer femininos. O novo jogo que se estabelece entre as categorias narrativas e líricas (personagens, narrador/a, tempo, espaço e eu-poético) funciona tal qual uma tecnologia de gênero.

Nessa perspectiva, a autora desenvolve o assunto pelo viés do transvestismo, recuperando detalhes picantes da história francesa nos séculos XVII e XVIII e do cinema nos tempos modernos. Dos comentários acerca da troca de papéis sexuais - o lobo na pele da vovó e a Chapeuzinho empunhando um revólver (símbolo fálico) em autodefesa -, a autora suscita a repercussão do conto em veículos que visam à pornografia.

No epílogo, "Under the cloak" ("Sob o capuz"), aos dez capítulos que compõem a obra, a autora recorre à imagem reminiscente de sua infância, de uma única boneca que contém, em cada um dos seus lados, as personagens do conto. Elas não conseguem, porém, aparecer todas, fisicamente, como entidades separadas, ao mesmo tempo (conforme exige o enredo), e nisso reside a lição principal dos contos de fadas: de alguma forma, a menina, o lobo e a vovó são, os três, um só e o mesmo.

Apesar da ausência de maior ênfase e aprofundamento na interpretação de alguns dos textos literários trazidos à obra, Little Red Riding Hood Uncloaked revela-se como um reduto de manifestações culturais que nos leva a refletir com qual das múltiplas vidas de "Chapeuzinho Vermelho" nos identificamos. E, como a busca da identidade é um dos temas permanentes da literatura, não há motivo para surpresas ao verificarmos que esse conto continua a satisfazer o gosto pela aventura e o apelo para a imaginação de adultos e crianças, mesmo hoje, na era da tecnologia avançada e da pós-modernidade. De acordo com a autora "os contos de fadas proporcionam uma janela singular nas nossas preocupações mais centrais, nosso sentido de identidade social e cultural, quem pensamos que somos (ou devemos ser) e como mudamos" (p. 8). Acrescento que os contos de fadas também abrem espaço para questionamentos que fomentam a ânsia de resistência à opressão de seus/as leitores/as.

Certamente, a tradução de Little Red Riding Hood Uncloaked para a língua portuguesa parece se impor, devido a alguns aspectos fundamentais que atestam sua relevância. Por um lado, sua importância recai no trabalho de arqueologia literária, em que a autora recupera versões do conto desconhecidas por grande parte dos/as leitores/as. Por outro, apresenta uma visão enriquecedora do conto, na medida em que esta é tingida de elementos, conceitos e códigos provenientes de diversas áreas do conhecimento, tais como a psicanálise, a história e a mídia, entre outras. De acréscimo, a autora imprime ao tratamento dado ao conto uma perspectiva histórica que o coloca em posição de destaque no âmbito da pesquisa acadêmica e da cultura, pois mostra de que forma suas variadas feições, produzidas por escritores/as de diferentes períodos e origens, são capazes de moldar personalidades individuais e coletivas. Mas, acima de tudo, a obra de Catherine Orenstein se faz notar pela inclusão de versões feministas do conto que desafiam posturas patriarcais, contribuindo, dessa forma, para ampliar as fronteiras dos estudos de gênero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2004
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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