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Observações sobre a libido colonizada: tentando pensar ao largo do patriarcado

Remarks on the colonized libido: trying to think beyond patriarchy

Resumos

Nestas observações procuro refletir sobre algumas conseqüências da maneira como pensamos e vivemos nossos desejos. Procuro contrastar nossos desejos com a idéia de liberdade e com a maneira como pensamos a natureza. Isso me leva rapidamente a pensar na pornografia, na identidade masculina e em seguida no nosso regime de auto-estima. Desemboco então em um conjunto de temas que se relacionam com as estruturas institucionais e emocionais do patriarcado sob um regime de heterossexualidade normatizada. Tento considerar esses temas sob um ponto de vista da experiência de quem foi treinado na masculinidade e se incomoda com suas conseqüências. Procuro encontrar um modo de repensar o agenciamento de nossos desejos e encontrar caminhos para um exercício de nossas capacidades de desejo que sejam, de alguma forma, mais livres.

desejo; liberdade; masculinidade; pornografia; auto-estima


In these remarks I attempt to think through some of the consequences of the way we conceive and live our desires. I try to contrast those desires with both our idea of freedom and the way we usually understand nature. This takes me quickly to issues such as pornography, male identity and then to how we gain and preserve our self-esteem. This, in turn, takes me to issues that are somehow linked to the institutional and emotional structures of patriarchy under a regime of heterosexuality as a norm. I try to consider these issues from the point of view of someone who was trained within the practices and thoughts of masculinity and is bothered by the consequences of such training. I endeavour to find a way to rethink the colonization of our desires so that we can find paths to an exercise of our capacities of desire that could be somehow freer.

desire; freedom; masculinity; pornography; self-esteem


ENSAIO

Observações sobre a libido colonizada: tentando pensar ao largo do patriarcado

Remarks on the colonized libido: trying to think beyond patriarchy

Hilan Bensusan

Universidade de Brasília

RESUMO

Nestas observações procuro refletir sobre algumas conseqüências da maneira como pensamos e vivemos nossos desejos. Procuro contrastar nossos desejos com a idéia de liberdade e com a maneira como pensamos a natureza. Isso me leva rapidamente a pensar na pornografia, na identidade masculina e em seguida no nosso regime de auto-estima. Desemboco então em um conjunto de temas que se relacionam com as estruturas institucionais e emocionais do patriarcado sob um regime de heterossexualidade normatizada. Tento considerar esses temas sob um ponto de vista da experiência de quem foi treinado na masculinidade e se incomoda com suas conseqüências. Procuro encontrar um modo de repensar o agenciamento de nossos desejos e encontrar caminhos para um exercício de nossas capacidades de desejo que sejam, de alguma forma, mais livres.

Palavras-chave: desejo, liberdade, masculinidade, pornografia, auto-estima.

ABSTRACT

In these remarks I attempt to think through some of the consequences of the way we conceive and live our desires. I try to contrast those desires with both our idea of freedom and the way we usually understand nature. This takes me quickly to issues such as pornography, male identity and then to how we gain and preserve our self-esteem. This, in turn, takes me to issues that are somehow linked to the institutional and emotional structures of patriarchy under a regime of heterosexuality as a norm. I try to consider these issues from the point of view of someone who was trained within the practices and thoughts of masculinity and is bothered by the consequences of such training. I endeavour to find a way to rethink the colonization of our desires so that we can find paths to an exercise of our capacities of desire that could be somehow freer.

Key words: desire, freedom, masculinity, pornography, self-esteem.

0. Neste texto faço um conjunto de observações exploratórias acerca de como lidamos com nossos desejos. Meu pensamento norteador é que nossos desejos são parte de uma arena que é, em sentido amplo, uma arena política e portanto pertence à esfera de nossa soberania em relação, por exemplo, aos ditames da natureza. É porque nossos desejos são politizáveis que nossa libido - o que conduz nossos desejos - pode ser colonizada. Penso que o patriarcado que normatiza a heterossexualidade - o heteropatriarcado - é um regime político acerca dos nossos desejos. Por ser esse regime político alguma coisa que parece estar profundamente enraizado em nossa maneira de pensar (e de escolher como e sobre o que queremos pensar) não achei que poderia abordar o tema senão na forma de explorações em muitas direções. Rondando muitas vezes os condicionamentos de nossas maneiras de pensar, apostei que podemos conseguir pensar ao largo do patriarcado.

1. Vivemos em um regime de desejo. Existem normas específicas para o desejo, normas ditadas pelos outros e que parecem fazer parte da forma e do conteúdo dos nossos desejos. Léu Pimentel1 1 Este texto surgiu primeiro como notas para discussão no grupo PULGGAs (Pessoas Unidas pela Libertação dos Grilhões de Gênero Agora). Obrigado às pulgas por tudo. Os nomes mencionados sem outra referência são nomes de membros do grupo. Gostaria de agradecer também a dois pareceristas anônimos por sugestões e críticas. e outras dizem que nossas capacidades de erotização são, desde que somos muito jovens, agenciadas por um conjunto de instituições mentais que constroem objetos para o nosso desejo e articulam como devemos tratar tudo aquilo que nos excita. O desejo por sexo - nós aprendemos nos folhetins, novelas e filmes - é de uma forma ou outra o que ativa o elemento épico de nossas vidas.2 2 Robin Morgan, 1989. Penso que vivemos em um regime de desejo que tanatiza3 3 Robin Morgan cunha esse tipo de expressão em Demon Lover (1989) para designar a morte, ou o que parece morto, sem controle, submetido. Robin Morgan escreve: "A cultura popular (filmes de Hollywood, novelas de baixa categoria, cartões de aniversário etc.) trivializa e sentimentaliza o enorme, genuinamente duro trabalho de amar apaixonadamente - um trabalho que as mulheres fazem quase que sozinhas em relações humanas. A cultura menos popular mas influente em muitas áreas do intelecto e da arte associa o amor puro com o tema do Liebestod (amor-morte) - a paixão torna-se obsessiva apenas em amantes com um destino terrível, floresce brevemente e termina em traição, caos, assassinato ou suicídio. A antiga sensibilidade pagã e a espiritualidade ginocrática eram completamente diferentes, pois celebravam a combinação da libido com o afeto e entendiam a sexualidade feminina [...] como uma a força vibrante. Mas o que as bruxas euro-péias chamavam de Velho Modo [...] foi derrubado e substituído por instituições religiosas e culturais patriarcais - que poderiam mais eficientemente inspirar e justificar a violência política. O afeto com libido não tem muito lugar aqui. Em compensação, nos oferecem amantes puros, trágicos como Romeo e Julieta, que ostensivamente transcendem essas hostilidades. Mas na sociedade e na consciência social esses modelos fortaleceram a suposição cultural de que a hostilidade é inevitável e ligada à violência e que, portanto, o amor precisa de uma fuga que é a liberação na morte" (Morgan, 1989, p. 103) (tradução minha). o desejo - enfatiza uma conexão entre desejo e morte - e que erotiza o poder - gruda em qualquer libido um desejo de dominar ou submeter (de possuir, de ocupar, de ter o controle ou de entregar, de colaborar, de perder o controle). Associar assim o desejo ao tanótico evoca a luta contra a morte - uma inspiração épica. A conexão privilegiada entre desejo e pulsão de morte promove uma colonização dos nossos desejos em que desejar alguma coisa nos coloca em um terreno cheio de moiras, de elementos de tragédia que podem colocar toda a nossa vida em cheque. Em um regime assim somos convencidos de que apenas algumas relações com algumas pessoas (ou com partes dos corpos de algumas pessoas) podem ter o caráter distinto e privilegiado de uma relação erótica; nem tudo - e de fato quase nada - pode ser erotizado por si mesmo. Muita coisa é erotizada, mas apenas como símbolo dos objetos primordiais de desejo estes sim são a origem de toda a erotização e todo o resto fica apenas como círculos concêntricos em torno da pedra atirada sobre a água. São erotizações subalternas - os saltos altos que representam as pernas, que representam o corpo feminino etc.4 4 Segue-se nessa cadeia de representações até chegar à vagina ou a outra representação (sic) da feminilidade. Os desejos primordiais são sancionados: somos treinados para discernir os objetos que são kosher5 5 Iídiche para "apropriado", mas com um elemento forte de 'coisa certa', em oposição ao sancionado como ruim, pecaminoso. para o nosso desejo dos que não devem ser desejados. Os objetos primordiais do desejo nós podemos escolher - na melhor das hipóteses - em um cardápio pequeno de opções; eles são desejáveis porque são seios, ou porque são genitais, ou porque são jovens, ou porque são brancos ou porque são ícones de distinção de classe, ou porque femininos ou masculinos. O desejável não se articula por si mesmo; ele depende de outras propriedades. Isso é colonização. O regime coloniza de uma forma específica o desejo; entende o desejo como algo que precisa ser saciado e o seu objeto consumido, aprisionado.

2. Pode ser que a origem da colonização da libido seja o comprometimento das pessoas no projeto da reprodução da espécie. É preciso conclamar todos os desejos para que sejam orientados de uma forma que permita que a humanidade seja reproduzida com tranqüilidade e eficiência como se para nada mais servisse ter desejos. Assim, foram a libido e o desejo postos para trabalhar, trabalhar para que nossa sanha de que alguém nos herde e nos continue seja satisfeita. E o melhor: satisfazer essa sanha mobiliza uma enorme quantidade de nosso empenho erótico. Um arranjo bem feito. E fica parecendo um arranjo natural. O que é um arranjo natural?

3. A natureza muitas vezes parece ser um repositório das idéias, pulsões, interesses e tendências que não queremos ter o trabalho de examinar.

4. Estou no saguão de um aeroporto. Leio, olho as pessoas à minha volta. Muitas delas se vestem, gesticulam, falam como se tivessem que estar sempre prontas para a caça, para serem predadores ou para serem presas. Meus olhos seguem bem treinados um ritual conhecido: eles correm para aonde estão os ícones femininos: os saltos, as pernas, os cabelos. Depois posso retirar os olhos. Mas parece que posso apenas retirar os olhos; antes eles estavam lá. Meus olhos estão treinados por completo e parece que eles agem por conta própria. A masculinidade requer muitas coisas, mas um dos requisitos mais sub-reptícios é esse treinamento dos olhos (e também dos ouvidos, dos narizes), essa colonização pela mentalidade do caçador. Essa mentalidade pode aparecer e por vezes aparece em atitudes não-heterossexuais.6 6 Será que a masculinidade dispõe também sobre um desejo que se insere em uma ordem não-heterossexual? Algumas vezes os nossos modelos de masculinidade são mais entrincheirados em nós do que o objeto do nosso desejo. Parece às vezes que a masculinidade homossexual deseja outras partes do corpo, porém da mesma maneira. A masculinidade, é claro, não coloniza sozinha; ela coloniza em cooperação com os arquétipos de classe, com os arquétipos de idade, com os arquétipos de cor. Nossos olhos simplesmente vão aonde interessa aonde - interessa caçar. Interessa a quem? Estes são, no entanto, os meus olhos, e assim muitas vezes parece impossível destituir o que nos foi inculcado: parece que, sem cumprir esse programa, meus olhos não são mais meus; parece que eu teria de abandonar os meus desejos, estes desejos que são eu, que são minha identidade. Como nos aferramos à nossa identidade como se ela garantisse nossa existência, parece que o melhor que podemos fazer é colonizar a colonização; ou seja, assumir que tudo isso é assim mesmo e em seguida aprender a conviver com tudo. O melhor a fazer é civilizar essas nossas disposições elas são incorrigíveis (por exemplo, são naturais). Essa imagem de minha identidade como sendo fundamentalmente aquilo que faz com que meus olhos7 7 Tom Waits em uma entrevista recente foi perguntado por que ele falava de pessoas marginalizadas, desprezadas, excluídas etc. em suas músicas; teria ele algum compromisso de engajamento? A resposta: "Não, é para onde meus olhos vão". Este é o modo como eu gostaria que fosse possível fazer a coisa certa: por meio de uma disposição. corram para os saltos, para os tornozelos, para os seios antes mesmo que eu perceba concede já quase tudo ao regime de desejo em que vivemos e, portanto, aos requisitos da masculinidade. A alternativa que fica assim tomada como impossível é a de que nos descolonizemos ao invés apenas de recolonizar aquilo que estaria, por sua própria constituição, colonizado (pela masculinidade que atua em conjunção com o regime de desejo). Parece, aqui, que descolonizar não é apenas aceitar que a colonização está feita - é preciso encontrar um modo de desfazer a colonização.

5. O tema da natureza. Quem é natural? Nós, os chimpanzés ou os bonobos?8 8 Os bonobos, parentes próximos dos chimpanzés e até recentemente confundidos com eles, apresentam uma libido não diferenciada por sexo, que não exclui quem não está no casal que copula e que é usada para tranqüilizar as comunidades nos momentos de perigo e ansiedade. Interessante pensar nas relações entre sexo e gênero nesse contexto - ver Joan Scott, 1990. Nossas semelhanças com outros animais são muitas vezes orientadas pelo que queremos considerar fora de discussão.

6. "A pornografia é degradante", ouvimos muitas vezes. E, no entanto, uma sentença assim é freqüentemente motivada por uma convicção de que a pornografia é de alguma forma sexo puro; ela mostra os nossos desejos (e instintos) da forma mais bruta possível e essa crudeza, essa apresentação sem maquiagem do que subjaz ao que nós chamamos de romance, de flerte, de sedução, de vida amorosa e de casamento degrada porque mostra o que só deve aparecer maquiado. Segue-se, de acordo com uma convicção assim, que exibir o casamento, a vida amorosa, a sedução, o flerte e o romance não constitui jamais, em si mesmo, pornografia. A idéia é que a pornografia apresenta as coisas de forma bruta - demais e elas raramente são vividas de uma maneira tão bruta quer dizer, sem maquiagem, sem disfarce. Os instintos, concordam os pornógrafos e esses críticos da pornografia, aparecem desencapados, em forma pura (alguns querem dizer 'de forma natural') na pornografia - uns se excitam com isso, outros pensam que isso degrada (e muitos enriquecem - em todo caso, mostrar a vida como ela é9 9 Proposital. Os pornógrafos, e todos aqueles que pensam que a pornografia mostra os nossos instintos sexuais como eles são, tendem a pensar que há um modo de apresentar como nossos desejos são de uma forma transparente; tal como eles são. Pensam assim também pornógrafos que aparecem como sensíveis à degradação que a pornografia promove, como Nelson Rodrigues. é produzir mercadoria). No meio da discussão toda somos convidados a ter certeza de que os nossos - instintos que podem ser apresentados, dizem uns, e que devem ser escondidos, dizem outros - são, no fundo, no fundo, assim.

7. A pornografia é uma invenção dos homens. Ela tem um antigo lastro nas nossas formas artísticas que exibem a fêmea como sendo um prêmio, uma caça, um corpo a ser dominado. Ela tem uma função grande na formação de homens: ela ensina os homens como pensar nos seus instintos puros. A pornografia, que inventa sujeito e objeto do desejo, quer apresentar aos homens a libido em si mesma, que é diferente da libido aparente; mostra o que as mulheres realmente querem e gostam - em contraste com o que elas dizem que gostam, com o que parece que elas querem - e contam aos homens que desejos eles devem ter. E o desejo (em si) do homem, revela e manda a norma da pornografia, está em uma harmonia preeestabelecida com o desejo (em si) do seu objeto sexual - apesar das aparências; por exemplo, apesar dos protestos das mulheres, diretos ou indiretos,10 10 Andrea Dworkin, em Pornography: Men Possessing Women, diagnostica: "O pênis deve incorporar a violência da masculinidade para que um homem seja macho. [...] A redução do potencial erótico humano ao 'sexo', entendido como a força de um pênis visitando uma mulher que não parece querer a visita, é o cenário que governa a sexualidade em uma sociedade da supremacia masculina. [...] Em toda cultura masculina o pênis é visto como uma arma, especialmente uma espada. [...] Por séculos, a relutância feminina em 'fazer sexo', o desgosto feminino do sexo, a frigidez, foram legendários. Esta foi a revolução silenciosa das mulheres contra a força do pênis, gerações e gerações de mulheres unidas com seu corpo cantando uma canção contemporânea de liberdade em uma linguagem ininteligível mesmo para elas" (Dworkin, 1981, p. 55-56) . de que não é bem aquilo que elas querem. Segue-se que uma certa dose de imposição do desejo masculino (em si) é erótico. Sexo e dominação das mulheres aparecem inseparados. Se pudermos separar a pornografia dos nossos corações, a pornografia produz o roteiro que seguimos quando fazemos ou desejamos sexo - precisamente porque ela se apresenta como revelando elementos do nosso desejo em si. A autoridade da pornografia reside na nossa confiança em seus pressupostos básicos - que há uma forma de desejar e ser desejado, que nosso desejo e nossa capacidade de ser desejado é um instrumento de poder da nossa disposição, que nós não conhecemos nossos desejos em si mas apenas a aparência de nossos desejos - e, dada essa confiança, a pornografia aparece como uma fonte de conhecimento (os homens aprendem sobre o que desejar; as mulheres aprendem como ser desejáveis).11 11 Aprendendo como ser desejáveis, elas abdicam de parte de sua autonomia para ganhar uma versão empalidecida de uma vida erótica (com os homens). Andrea Dworkin diz: "A definição de mulher articulada pela pornografia de modo sistemático e consistente é objetiva e real, pois mulheres reais existem dentro dela e devem viver em constante referência aos limites desta definição. O fato de que a pornografia é amplamente tomada como sendo 'representações sexuais' ou 'imagens de sexo' enfatiza apenas a opinião de que mulheres são prostitutas baixas e que a sexualidade das mulheres é percebida como baixa e prostituta em si mesma. O fato de que a pornografia é amplamente tomada como 'imagens de sexo' significa apenas que a inferiorização de mulheres é tomada como o real prazer do sexo. [...] A idéia de que a pornografia é 'suja' se origina na convicção de que a sexualidade de mulheres é suja e mostrada na pornografia [...] (Dworkin, 1981, p. 201).

8. Se a pornografia é degradante apenas porque ela mostra as coisas como elas são, melhor seria mostrar tais coisas apenas de uma forma oblíqua - encobri-las com um véu de Maia de romances, tramas de casamento e traição, enredos de sedução. Ela assim fica mais palatável. Porém, assim, também, sua função (de autoridade) pode ainda ser exercida.

9. A construção do que é tolerável, do que é erótico e do que é desprezível de um modo tal que todas essas coisas são associadas à conquista e à entrega, à dominação e à submissão, à ocupação e à colaboração é que degrada. Aquilo que os pornógrafos estão prontos a chamar de sexo em estado bruto12 12 O sexo em estado bruto é entendido pela pornografia como o conteúdo essencial do desejo. Uma defesa da mentalidade que motiva a pornografia tradicional e a condenação tradicional da pornografia podem aqui se valer de alguma biologia evolucionária que postule que certos conteúdos de desejo são inevitáveis porque são naturais: o que desejamos são falos ou seios ou formas simétricas. A postulação sub-reptícia aqui é que o conteúdo dos nossos desejos (em forma primitiva) é natural - e ineludível. é degradante - mostrado nu ou com embrulhos.

10. Os homens relutam em considerar, mesmo por alguns instantes, que seus instintos de desejo não sejam naturais e que, portanto, esteja tudo bem com eles. Em nossa sociedade que propõe sempre um convício cheio de opções difíceis, de relatos com significados ocultos, e que nos treina a desconfiar muito, aquilo que é natural é um bálsamo, um terreno de paz onde parece que podemos estar contentes - ou antes temos que estar contentes, pois nada mais nos resta fazer; só nos resta nos resignar. Os homens, é claro, ordenham os benefícios dessa ordem natural e desse contentamento com ela - eles exercitam o poder que ela lhes confere, eles raramente são espancados por causa dela, eles são menos vezes abusados e violentados em nome dela. Eles aprendem mais facilmente a estarem confortáveis com essa ordem - e então insistem: a ordem é ditada pela natureza ela mesma, em pessoa; resignemos, - aproveitemos deixem-me aproveitar. As mulheres ficam com as fatias podres desse melão natural.

11. O amor romântico é um pacote de (níveis de) desejos obrigatórios e de compromissos em termos já estabelecidos. Parece que o regime de desejo nos coloca em um jogo - um jogo em que apenas alguns movimentos são permitidos. O amor é usualmente condicionado pela reciprocidade - às vezes parece que é como se ele envolvesse sempre um elemento de sacrifício, e o sacrifício deve ser mútuo. Para deixar de ter que ser mútuo, tinha que não poder ser sacrifício.

12. Nossos hábitos - especialmente os que estão acolchoados por privilégios - enraízam-se e se transformam em nossa identidade, e a identidade dos homens é muitas vezes entendida como sendo constituída por aquilo do que nós gostamos. Nossos desejos parecem ser a expressão mais bruta daquilo que nós somos. Muitas vezes tomamos nossos desejos sexuais como sendo a expressão bruta de todos os nossos desejos. Pensar nossa identidade é embarcar em um projeto político; a noção de pessoa - ao contrário do que supõem muitos dos que combatem a liberdade reprodutiva e condenam o aborto - e a nossa identidade pessoal - ao contrário dos que pensam que temos identidade porque somos indivíduos - não derivam apenas de nossas suposições biológicas. Parece que toda a sociedade em que vivemos gira em torno dos desejos masculinos e portanto da afirmação (e dos privilégios ) da identidade masculina. Há um sentido em que todos têm direito à autodefesa - a combater pela sobrevivência - mas o problema então é o tamanho do que está sendo defendido. Também poderia dizer isto: há um sentido no qual queremos dizer que os desejos podem ser uma das matérias-primas para a identidade das pessoas; queremos talvez que esses desejos sejam sancionados pelos outros, pelos que nos identificam. Nosso regime de desejo é um regime de identidade. Os homens são identificados pelos seus desejos, sancionados por outros homens e por mulheres que permitem e encorajam cada homem a ser seu desejo (e a pensar que tem o direito de vê-lo satisfeito). Nós, homens, somos treinados para sofrer com cada ocasião em que temos desejos fora da ordem; eles ameaçam nossa dignidade, nosso direito de sermos o que somos - nossos desejos aceitos. Está em jogo alguma coisa que parece ser a nossa honra13 13 A masculinidade parece vir à tona muitas vezes como uma questão de honra, e a própria masculinidade rege como nós devemos lidar com a honra: pouco pode ser tolerado se nossa honra está em questão. Veja, por exemplo, Ondina Leal e Adriane Boff, 1996. e que se apresenta freqüentemente como tendo supremacia sobre muitas outras de nossas motivações para agir e pensar, inclusive nosso senso de justiça. Nossos desejos sexuais são a fonte de todos os nossos desejos e de nossa identidade; abdicarmos de nossos desejos é o mesmo que perdermos a nós mesmos, não satisfazer nossos desejos sexuais é o mesmo que abdicar do direito de sermos nós mesmos: não somos livres; vivemos agenciados porque não escolhemos (não desejamos) os nossos desejos. Uma vez, no entanto, que deitamos na acolchoada cama dos desejos colonizados temos o direito de sermos o que somos e nossos desejos são sancionados, legítimos. Nossos sentimentos, sentidos a partir de nossos desejos kosher, são expressos por todo o regime.14 14 John Stoltenberg, em Refusing to be a Man, comenta a opinião comum de que os homens não expressam seus sentimentos: "Os homens expressaram seus sentimentos sobre as mulheres, a morte, pais ausentes e assim criaram as religiões. Os homens expressaram seus sentimentos sobre mulheres, riqueza, possessão e territorialidade e transformaram estes sentimentos em leis e em estados. Os homens expressaram seus sentimentos sobre mulheres, assassinato, a masculinidade de outros homens e destes sentimentos surgiram batalhões e bombas. Os homens expressaram seus sentimentos sobre mulheres, fodas e irritação feminina para além do controle e destes sentimentos surgiu a psiquiatria. Os homens institucionalizaram seus sentimentos, de modo que, se um homem em particular está sentindo o sentimento em um dado tempo ou não, o sentimento está sendo expresso pelas instituições que os homens criaram" (Stoltenberg, 1989, p. 93).

13. Pensar em desejos agenciados por uma sociedade que institucionaliza a masculinidade é pensar na distribuição de poder e de privilégios. A denúncia do agenciamento é a especificação de como funciona a supremacia masculina; a supremacia da erotização da violência, da conjunção de prazer e morte, da tanatização do desejo.15 15 O esforço pelo desagenciamento dos desejos é o esforço pela desconstrução da supremacia masculina. Robin Morgan, em Sisterhood is Poweful, diagnostica que a análise radical da revolução feminista sugere que "o capitalismo, o imperialismo, o racismo são sintomas da supremacia masculina - do sexismo" (Morgan, 1984, p. xxxiv). Ao contrário do que pensa Letícia Antipenélope e outras, penso que a denúncia da supremacia masculina é uma empreitada libertária que tem que ser pensada ao lado da luta pela libertação das supremacias que inibem e constrangem a liberdade - a supremacia branca, a supremacia da classe média, a supremacia dos proprietários. Penso que a supremacia masculina - e o regime de desejo que a baliza está na base do pensamento supremacista. Construir uma sociedade sem supremacias é uma mudança cultural que requer a criação de uma cultura de paz, de liberdade e de valores de cooperação. Robin Morgan, que participou de movimentos terroristas no início dos anos 1970, suspeita que a falta de conexão com alguns elementos centrais do esforço por entender como o mundo pode ser melhorado foi o que fez muitos de seus ex-companheiros de terrorismo abandonarem o propósito de salvar o mundo nos anos 1980. Ela diagnostica que "o problema nunca foi o abandono de uma análise radical ou da luta para acabar com o sofrimento [presente]. Era, antes, que a esquerda nunca foi longe o suficiente em análise, visão ou prática. A isto, é claro, meus antigos irmãos revolucionários respondem que eu estava indo longe demais" (Morgan, 1989, p. 219). Ela conta como se livrou de uma companheira revolucionária que insistia em que ela participasse de uma ação (plantar alguma bomba); ela disse que participaria da ação se a companheira participasse de uma outra ação com o alvo que ela escolheria. A companheira topou; Robin Morgan então disse que ela gostaria de uma ação no clube da Playboy; e ela conta: "Ela me olhou como se eu fosse uma louca. Eu sabia que ela nunca poderia fazer o seu homem aceitar isto: 'seria um desperdício absurdo de nossos recursos', ele diria" (Morgan, 1989, p. 233). De um modo geral, tendo a pensar que uma articulação de libertação que não enxergue e procure transformar as estruturas de gênero é vazia e um feminismo que não se alinhe à esquerda é cego. Essas estruturas que intitucionalizam a supremacia são o marco de referência no qual pensamos sobre nossos problemas, escolhemos alternativas e somos movidos por nossos desejos.

14. Mesmo cheio de desconfortos com a masculinidade, eu me masturbo. Masturbo-me enquanto imagino episódios que terminam com penetração e então vem o gozo - uma simulação do sexo que parece que quero fazer. Não sei como se masturbam outros homens, se eles pensam em atos ou criam imagens de sexo na cabeça. O papel da masturbação masculina parece muito com o da pornografia - a representação autorizada do sexo-em-si. Quando os homens se masturbam eles concentram suas expectativas em um ato-clímax, em um ato redentor e freqüentemente de um modo vingativo e compensatório.16 16 Germaine Greer, em A mulher inteira, cita um homem que relata que se sente esmagado quando vê mulheres bonitas na rua e então vai para casa e se masturba para se livrar da tristeza (Greer, 2001, p. 216). Penso que esse sentimento é muito comum entre os homens - as mulheres não acessíveis parecem desafiadoras e merecem uma compensação em fantasia, a masturbação. A cada masturbação, fica maior a concentração de atenção sobre o ato sexual e sobre o que faz gozar. Também as mulheres como imagens - aquilo que excita-em-si o homem-em-si - aparecem como as que promovem a excitação e o gozo. As mulheres então são encurraladas mais uma vez para terem a aparência que os homens querem. As imagens de mulheres (tal como a pornografia etc.) atuam como um exército industrial de reserva - imaginário - que obriga as mulheres a se comportarem como os homens as imaginam nas punhetas e as enxergam na pornografia; tal como o exército industrial de reserva faz as operárias serem obrigadas a receberem menos. Talvez algumas mulheres também tenham seu auto-erotismo agenciado dessa maneira - elas também sonham com homens que as fodam, que as possuam, que as comam17 17 Imaginei alguém replicando assim: palavras, palavras vãs, termos são termos, como outros quaisquer; podemos descrever qualquer desejo sexual como quisermos; há muitas maneiras de descrever o que quer que seja. Eu penso que não é assim, pois o que quer que seja é sempre descrito de uma maneira ou de outra; esses termos trazem à mente um modo de pensar em sexo; qualquer descrição expressa um modo de pensar naquilo que se descreve. e com essas fantasias se masturbam. Os homens, também eles agora, ficam na armadilha de se adequar às fantasias agenciadas: enquadrem-se, é a mensagem que recebem. A colaboração das mulheres torna o agenciamento poderoso - o regime é um sistema, fechado sobre si mesmo. O auto-erotismo foca-se inteiramente na simulação do ato sexual orquestrado, e com isso na simulação do domínio e da entrega que acontece no ato sexual com significado orquestrado. Simulada e repetida, a obsessão com a foda lentamente assume ares de maior e mais clara naturalidade. Fica inalcaçável qualquer resposta a uma pergunta formulada apenas sorrateiramente, entre os pensamentos: como poderia ser diferente?

15. Isso nos faz pensar na natureza outra vez: quem sabe o agenciamento é natural? Pesquisadores muitas vezes associam a síndrome de Turner (pessoas com só um X no par final de cromossomos) com explicações genéticas da masculinidade: a falta de um segundo X provocaria a falta de sociabilidade e de sensibilidade para os desejos e sentimentos dos outros. Esses traços parecem ser comuns a pessoas X e pessoas XY. Quando dizemos coisas assim, parece que as letrinhas X e Y nos falam uma linguagem que já entendemos antes mesmo de aprender a falar; não parece com as batidas do nosso coração - que também não aprendemos - porque as batidas do nosso coração não põem pensamentos e sentimentos na nossa cabeça; em particular não agenciam. Quando o coração bate mais forte nos sentimos agitados, ansiosos, inquietos; não é, no entanto, que nos sentimos agitados, ansiosos e inquietos porque o coração bate mais forte. Não é nem mesmo que o coração acompanha nossos sentimentos - se assim fosse, o coração teria que saber quando ficar agitado, ou ansioso, ou inquieto - nós, de alguma maneira, o ensinamos. O coração só põe idéias e sentimentos na nossa cabeça quando aprendemos a falar dele,18 18 Acredito que uma maneira de pensar sobre isso é considerar as conseqüências do chamado argumento da linguagem privada das Philosophical Investigations, de Wittgenstein (WITTGENSTEIN, 1968, p. 258-260). e aprender a falar do coração é aprender a usar critérios para fazer distinções entre, por exemplo, o coração e os rins. Nós aprendemos a fazer distinções quando aprendemos a falar - vem tudo junto. Aprendemos então, em nossos anos com os que primeiro cuidam de nós, sobre sociabilidade, sensibilidade e segurança. Etc. Mas então alguém diz: mas seguramente haveria lugar para tendências naturais, tendências inatas. Penso que as tendências inatas são como aquelas de os homens serem mais fortes que as mulheres - depende inteiramente do padrão de referência que estamos dispostos a utilizar para fazer julgamentos sobre quem é mais forte.

16. Agenciamento é o oposto da liberdade: agir como parecer melhor. Natural é tudo o que não é livre. Uma vida agenciada é a vida de uma pessoa raptada, não-acreditada, enganada e forçada a ter intenções que ela não está completamente convencida a ter. Expandir a liberdade é destituir agenciamentos. Nosso regime de desejo se expande para todos os campos onde esbarramos com pessoas ou com suas imagens. Associamos o erótico ao dominável ou ao dominador; parece que ele agencia também os padrões de desejo que escapam da norma heteropatriarcal - a reforçada insistência na faculdade dos patriarcas de terem seus desejos, normas e sanções, satisfeitos. Assim, por exemplo, pares homossexuais por vezes repetem estruturas de relacionamento de casais. Muitos homens reclamam de homens que pensam que eles podem ser abordados, seduzidos, devem estar disponíveis e estão esperando seus conquistadores - em uma palavra, que os tratam como mulheres: aí uma fonte de homofobia. Nosso regime de desejo faz com que os machos odeiem tudo o que diz respeito ao que lhes atrai - o que promove desejo deixa os homens vulneráveis se não for rapidamente ocupado, possuído, anexado. Também a pedofilia parece um corolário da masculinidade inventada por um regime heteropatriarcal: os homens, quando desejam mulheres frágeis, estão prontos a infantilizar as mulheres; a vulnerabilidade é um convite - "venha, estou pronta para ser ocupada". O homem está armado, tem que fazer valer sua arma. E ganhar a guerra.

17. Como poderíamos ter um erotismo livre do espectro de tanatos? Politizar o desejo, politizar a violência, politizar tudo o que dirige nossa atenção. Acho que não basta afirmar a liberdade de cada um de desejar o que quiser - aquilo que queremos desejar, é claro, já está agenciado. Temos também que criar formas de vida em que o desejo não é a borda de um alçapão - violento e engolidor. Politizando o que dirige nossa atenção, talvez cheguemos rapidamente a algumas estruturas centrais do nosso modo de pensar e de nos ver no mundo: vivemos com uma má distribuição da vulnerabilidade.19 19 Tendo implícita e explicitamente tantas vezes dito que o terrorismo não traz muito de novo e traz poucas esperanças, lembro agora de uma defesa de algum atentado que fez uma vez meu amigo Marcelo Senna Guimarães (uma pulgga em espírito): os atentados terroristas redistribuem vulnerabilidade. Também, nossos medos e inseguranças são tratados como batatas quentes das quais queremos nos livrar com pressa. Acho que temos que encontrar um outro regime de medo e de insegurança para encontrarmos um outro regime de desejo. Porque penso que só a destituição do regime heteropatriarcal de desejo pode promover uma maneira de viver mais livre, acho que devíamos pensar em como seria possível desejar sem heroísmo, sem querer dominar ou querer entregar, sem excluir. Parece que nosso regime de desejo está sempre às turras com o modo como gostamos das pessoas e o jeito como criamos afeto. O afeto, freqüentemente separado a ferro e fogo do que podemos desejar, pode ser um elemento de resistência; pode ser a fonte de uma utopia.

18. O desejo masculino é muitas vezes esquartejante - nós desejamos partes, nos excitamos com seios, pernas, cabelos; tal como a pornografia ensina. O desejo masculino, promovido a parâmetro de desejo, é intrinsecamente comparativo; com facilidade separamos as partes dos corpos. Um desejo assim raramente pode ter pessoas em foco; mais facilmente nós desejamos aquilo que se aproxima de um ícone do que é lícito erotizar. Fica a impressão de que os objetos do desejo não podem ser pessoas; que desejamos tornozelos, ou pescoços, ou mãos. Fica parecendo que o desejo nos leva a encaixar em uma fôrma dentro de nossa cabeça as partes das pessoas com quem nos relacionamos nós nos relacionamos com pessoas, mas desejamos suas partes. O desejo aparece como uma trincheira de hormônios esquartejantes entre nós e as outras pessoas.

19. A desigualdade de vulnerabilidade promovida por nosso regime de desejo que separa as pessoas entre predadores e presas é um pilar de sustentação de muitas outras desigualdades. As estatísticas e os dados mais comumente divulgados - que tornam invisíveis as conseqüências do regime em que somos postos a desejar - dividem as desigualdades de renda e de classe por famílias. Os privilégios de classe e renda são desigualmente distribuídos dentro das famílias. Nas famílias a vulnerabilidade é dividida de acordo com o que divide predadores e prisioneiras. Subalternidade e pobreza, em nossas sociedades, têm gênero.

20. A liberdade vem logo à tona quando pensamos nos nossos desejos. Primeiro, pensamos que nossos desejos são nossos e, portanto, somos livres para segui-los: ninguém está nos impedindo de fazer aquilo que queremos fazer. Quando pensamos que nossos desejos estão agenciados, passamos a pensar que temos que desagenciá-los ou que descolonizá-los nos levaria a revelar o que há lá dentro, o que está embrulhado pelo agenciamento. Parece que nos libertar do agenciamento significa fazer aparecer a real natureza dos nossos desejos. E, aqui sim, encontramos a natureza, neste caso, a nossa natureza, aquilo que é naturalmente nosso - e, portanto, é genuinamente nosso: conquistamos assim o direito de poder fazer aquilo que queremos. Conquistamos o direito de seguir os nossos desejos; eles agora são todos naturais. Aqui também pensamos na liberdade como sendo a liberdade de nos livrar da liberdade: desde que descobrimos nossa pessoa profunda, nosso eu-em-si, não temos mais como evitar aquilo que esta tal pessoa profunda quer, afinal de contas ela está liberta. Continuamos querendo encontrar os desejos legítimos e então satisfazê-los. Sobre esses desejos, tomados como legítimos, fica parecendo que não temos mais nenhuma responsabilidade então; que seu conteúdo é dado pela natureza. Ela mesma nos livra de responsabilidade e nos oferece uma excelente desculpa: estamos seguindo nossos desejos - eles são assim. É confortável fazer uma imagem da descolonização assim: tentemos alcançar os desejos autênticos e assim poderemos segui-los sem temor (se eles são autênticos, ninguém poderá reclamar deles). O conforto se origina pelo menos em parte de um pensamento assim: se não encontrarmos a natureza - nossa natureza que nos libertará de sermos livres -, então o agenciamento será inevitável e estaremos apenas trocando uma escravidão por outra. Só se não for assim, seguimos pensando, haveremos de encontrar um porto seguro, uma base sólida e natural que terá direito a ser entendida como o nosso repositório de idéias e ações que não precisamos examinar. Abandonar o pensamento confortável é posicionar-se em uma posição intranqüila em que não procuramos mais um rochedo para além da nossa liberdade e que seja apenas natural.

21. A natureza se apresenta com a marca de como as coisas são - a natureza dentro de nós traz a marca de como somos, no fundo: se é assim, já ninguém poderá nos culpar por ser assim. Muitas vezes ouvimos dizer que o desejo, ele mesmo, é natural. E parece que menos natural pode ser apenas o conteúdo dos desejos - temos uma propensão a desejar e isso é o fundo do poço. Mas como podemos pensar nesse fundo do poço - pensamos sempre no desejo com um certo conteúdo - sem água e nem terra? É certo que, dado o regime que agencia os nossos desejos, desejamos algumas coisas - bocas, pernas, seios etc. no meu caso - e não outras. São essas coisas que desejamos. Não desejamos o que queremos; não desejamos o que escolhemos desejar. Também não acreditamos no que decidimos acreditar, mas as nossas crenças sobre o mundo poderiam ser diferentes.

22. A relação entre o que imaginamos e o que fazemos parece ser uma relação política. Parece que nossa imaginação - minha imaginação quando eu me masturbo - é dirigida por uma necessidade de re-equilibrar um balanço confortável ou habitual do espaço que nos sentimos permitidos a ocupar. Compensação. Sempre temos associado a cada um de nós um território que nos sentimos com o direito de ocupar - a atenção que cada um se sente no direito a receber, as vontades que cada um sente o direito de impor, quantos cada um afeta com seus humores e com suas ações de mando. Esse espaço é facilmente confundido com o que nós somos, com nossa área de influência emocional que aprendemos a defender. Acho que a distribuição desse território é o que alimenta primordialmente qualquer relação política. O regime político do heteropatriarcado distribui a priori o território emocional desigualmente. Nossa relação política com ele - nós, os privilegiados - é determinada por quanto desse território assumimos como nosso; ou seja, por quantos privilégios que nos foram gratuitamente oferecidos estamos prontos a ocupar. O espaço que nós ocupamos delineia a nossa identidade pessoal: ela é a fonte mais primária de nossa auto-estima. Por esse jogo de conquistas de territórios emocionais nós somos educados a orientar nossas relações pessoais. Muitos homens me dizem que se masturbam quando se sentem mal consigo mesmo; a masturbação parece então um exercício rápido de auto-complacência que nos lembra que, de fato, podemos ocupar mais espaço do que parece quando nos sentimos mal conosco mesmos. Podemos fazer muita coisa com nossa baixa auto-estima; o rápido tratamento é imaginar o lugar que já ocupamos ou que podemos ocupar e gozar. Gozamos pesando no que podemos seduzir. Politicamente, com isso reafirmamos o território para nosso conforto que o heteropatrarcado nos concedeu - também, é claro, com isso embarcamos em diversionismo: se nossa baixa auto-estima se deve ao nosso chefe que ocupa parte do que gostaríamos de ver como nosso território, em vez de confrontar seu direito a nos tratar mal, reafirmamos que temos também nosso grande território.

23. A política sexual é uma rica fonte de diversionismo. Diversionismo da política de classe, de raça, de idade. Quando eu me sinto diminuído em alguma interação com algum superior hierárquico de alguma natureza, muitas vezes eu penso em sexo. E muitas vezes o sexo no qual eu penso é basicamente penetração. Compensação. Os homens, com seus privilégios inatos, parecem estar muitas vezes prontos a se conformarem se eles têm uma fonte de compensação do território emocional que estão obrigados a abrir mão. A imaginação - e a masturbação - não parecem ser suficientes sempre: o espaço do macho, eventualmente, precisa ser não apenas recordado, mas experimentado. A pornografia, e a masturbação, mostram então que foram ensaios úteis: passamos a nos sentir habituados à extensão do nosso espaço.

24. Muitas vezes me sinto compelido a me masturbar. É uma forma de estar compelido a fazer alguma coisa que é estranha e difícil de descrever. Simples é dizer: veio-me um súbito de desejo e tive que agir. Por quê? Ora, são hormônios, eles circulam por nosso corpo e produzem desejo. Quando dizemos assim, parece que os hormônios não cuidam de nada mais em nosso corpo, em nossa vida, que eles apenas zelam para que nossos desejos sexuais - que não têm nada com o que estamos fazendo quando não estamos fazendo sexo; eles têm um ciclo próprio - sejam atendidos de uma forma ou de outra. Fica parecendo que é uma história subterrânea que acontece dentro de nós e que de vez em quando emerge e nos compele a trepar ou pelo menos se masturbar. Se não há a história subterrânea, por que me sinto compelido a me masturbar em certos momentos?

25. Eu, como talvez outros homens, muitas vezes procuro adotar posições e escolher atitudes feministas de forma masculina; faço diferente para alimentar minhas vaidades hipertrofiadas. O agenciamento, é claro, fica mais poderoso se ele se encontra sempre ao alcance da mão. E ao alcance da mão está sempre o repertório de comportamentos que reafirmam nossos privilégios masculinos tácitos, que inflam nosso senso de ego em detrimento dos outros - e nos faz competir (com boas chances) por atenção - e que contribuem para retirar mais um espaço das mulheres. Às vezes penso que o caráter generoso e aberto de muitos movimentos feministas facilita que homens assediem partes de seu espólio e as registrem com seu logo.20 20 Muitas vezes encontro nos movimentos pela paz, pela preservação do planeta, pelo entendimento entre as culturas, pelo respeito pelas crianças etc. estratégias e objetivos que tiveram origem em idéias e práticas de movimentos feministas. Os feminismos, então, ficam como muitas mulheres que, durante o curso dos últimos séculos de heteropatriarcado, ficaram invisíveis, mas tornaram possível que a vida humana durasse e ficasse um pouco mais tolerável.

26. Nossas relações com a vulnerabilidade. Aprendemos cedo a evitar ou dissimular nossa vulnerabilidade - a tornar as outras vulneráveis. Penso que apenas se toda vulnerabilidade puder ser aceita, estimada, desenvergonhada e erotizada nós podemos ter alguma chance de ter uma civilização não-patriarcal. O patriarcado é o regime em que armamos fortalezas em torno das nossas vulnerabilidades - nossa força são nossas capacidades de defesa; nós somos as nossas armas.21 21 Berit Ås, em "More Power to Women!", em Sisterhood is Global (MORGAN, 1984a), também citado por Robin Morgan em Demon Lover: "Um estado patriarcal é um estado que está se preparando para a guerra, em guerra ou se recuperrando de uma guerra" (MORGAN, 1989, p. 514) (tradução minha). Berit atribui essa definição ao mesmo tempo precisa e instigante a Mary Daly. Ao invés de reconhecer e ter empatia com nossas vulnerabilidades, nós as escondemos com um pensamento sempre armado.

27. Somos controlados pela vergonha.22 22 Os itens 27, 29 e 30 são rearticulações do que eu apresentei no fantástico Colóquio Vergonha, organizado por Raquel Viviani Silveira e outras nos dias 15, 16 e 17 de novembro de 2002, em Campinas, São Paulo. Parece que estamos sempre cercados de possibilidades de vergonha de quase todos os lados porque vivemos de um modo em que a aceitação das pessoas é bem escassa - no escambo da aceitação, as pessoas são aceitas por um preço. A moeda de troca é o pensamento - e o comportamento - contratado: pensamos de acordo com a condição para que sejamos aceitos. O medo de um sentimento de humilhação constitui como aceitamos o que pensamos e como agimos. A capacidade de controle da vergonha precisa que ela não seja apenas uma sensação que acontece quando estamos com outros. A vergonha constitui o nosso caráter, o que parece que podemos e o que parece que devemos fazer. O medo de sermos descobertos parece que não seria suficiente para constituir nosso caráter, para determinar uma forma de ver o mundo e agir nele coordenada com a maior parte dos outros. No entanto, freqüentemente pensamos em episódios de vergonha em termos de que estamos sendo observados - é por causa desse panóptico que somos controlados por meio do medo da vergonha. Bernard Williams, em Shame & Necessity,23 23 Bernard WILLIAMS, 1993. escreve que a vergonha não é simplesmente um medo de ser visto por um outro imaginado, mas é um medo de ser visto por um outro imaginado com um determinado modo de ver. Ele diz: "De fato, a visão do observador nem precisa ser crítica ela mesma: as pessoas podem ficar envergonhadas de serem admiradas pela audiência errada e de modo errado. Igualmente, elas não precisam ficar envergonhadas de serem mal-vistas, se estão sendo vistas por um observador que elas desprezam".24 24 WILLIAMS, 1993, p. 82 (tradução minha). Os observadores que importam para a experiência da vergonha são aqueles que nos vêem sob o ponto de vista que queremos ser vistos. A vergonha parece depender de como queremos ser vistos - muito envergonhados estamos quando não queremos ser vistos do modo como aparecemos na maior parte das ocasiões. A vergonha, assim, regula o modo como vivemos quando regula o modo como achamos acertado viver; nos envergonhamos quando nos vemos espiados por trás daquilo que gostaríamos de mostrar - em algum nível de convicção, o modo como julgamos acertado viver se torna aquilo que deixamos que se mostre, que não nos envergonhamos que seja visto. Muitas vezes queremos mostrar aquilo que pensamos que será julgado como acertado de acordo com aquilo que parece ser a nossa própria visão. É assim que do que nos envergonhamos informa o que gostaríamos de ser - como gostaríamos de sermos vistos. Nós nos envergonhamos quando aparece alguma coisa diferente daquilo que queremos mostrar - e aqui quanto mais pessoas verem pior. A vergonha denota que não somos como gostaríamos de ser; ela diminui se cumprimos aquilo que queremos mostrar. Freqüentemente notamos a conexão entre vergonha e nudez genital. A idéia aqui talvez seja que quando estamos nus estamos de um modo que nós não queremos que seja mostrado - queremos ser vistos vestidos. Talvez então queremos nos ver vestidos, e então nos vestimos. Quando nus - esta talvez seja a idéia -, apresentamos aquilo que nós realmente somos. Essa conexão entre nudez e vergonha, no entanto, parece sugerir que a vergonha está em mostrarmos como somos ao invés de mostrarmos como gostaríamos de ser. Uma sugestão assim pode fazer com que pareça que temos um cerne do que somos e uma capa feita de uma espécie de persona social - há uma âncora firme do que somos que, pode parecer, não tem nada com o nosso caráter moldado pelo terror da vergonha (nós vestidos). Bastaria então que saíssemos nus, ou seja, que passássemos a mostrar o nosso caráter genuíno, por trás das capas, e que deixássemos de ter vergonha dele. E, no entanto, penso que não há esse caráter genuíno por trás das máscaras, o caráter que não foi moldado pela vergonha. Toda parte de nós é susceptível à vergonha porque toda parte de nós necessita ser afirmada para ser constituída e assim - no nosso regime de escambo de aceitação - toda parte de nós é moldada pela cultura do medo à rejeição. Não ficamos envergonhados de estarmos nus em toda circunstância e de fato o nosso corpo - e não porque está nu - freqüentemente nos deixa com vergonha. Não existe um território de nós que é naturalmente imune a ser moldado pela vergonha; tudo é envergonhável porque tudo pode ser modelado, tudo precisa ser afirmado - e, no escambo pela aceitação, fica controlado.

28. Olho para as ruas lotadas - muitas pessoas, e todas elas parecem ser movidas por uma necessidade emocional de serem afirmadas, de manterem um grau mínimo de autoconsideração. Cada uma dessas pessoas precisa ser afirmada - e vivemos em um sistema de escambo de afirmação em que todos têm que comprar o seu grau de auto-estima. Por que, eu pergunto, todos precisam ser afirmados? Trata-se de algum componente da natureza humana, de um elemento invariável presente em todos? A afirmação talvez pudesse ser entendida em termos de alguma necessidade biológica, alguma coisa que compartilhamos com outros primatas. Parece que o desejo de afirmação é uma condição para a nossa identidade enquanto pessoas; parece que precisamos perceber uma mínima legitimidade nos nossos desejos e crenças para que possamos seguir tendo crenças e desejos. Nós, então parece, fazemos pessoas e, em seguida, as colocamos em condições em que elas raramente podem exercer seu caráter de pessoas.25 25 Jorge Semprum, em Le Grand voyage, diria que vivemos em um sistema em que as pessoas são tornadas inabitáveis (SEMPRUM, 1963). Parece que uma vulnerabilidade fundamental é uma condição para que sejamos pessoas ou talvez a pessoalidade dependa de um exercício sobre nós por parte de outras pessoas; não pode ser que haja uma só pessoa. A necessidade de afirmação entendida assim seria de alguma forma um fim à nossa liberdade e também uma condição para que ela possa ser exercida - é preciso que sejamos pessoas.

29. A aceitação de pensamentos e comportamentos - coisa escassa é também desigualmente distribuída: o dinheiro, a masculinidade, a heterosexualidade, a clareza da pele e o pedigree de classe média garantem logo de começo uma possibilidade de envergonhar menos. É certo que vivemos em um regime em que toda aceitação é condicionada, mas algumas aceitações são mais condicionadas que outras - algumas pessoas precisam fazer qualquer serviço, ocuparem-se de se tornarem sedutoras ou adorarem um homem, disfarçarem seu desejo, estarem prontas a parecerem sempre submissas ou reconhecerem sua inferioridade tácita para serem aceitas. Se não fazem isso, se envergonham - e também, muitas vezes, não sobrevivem. Outras pessoas não precisam fazer nada disso - basta que elas não façam nada que envergonhe, e elas serão aceitas. A distribuição da vergonha então fixa as hierarquias. A referência de toda hierarquia parece ser a diferença entre as pessoas que se sentem bem e aquelas cuja auto-estima está sempre na linha do tiro.26 26 Aqui eu não consigo resistir a uma nota de rodapé com trecho do final do glorioso artigo "Doing Sixty", de Gloria Steinem. Ela diz: "Sistemas hierárquicos prevalecem porque fazem nos sentir imperfeitos e que nós somos culpados por isto. Quando sumimos com a noção de perfeição, podemos ser o que for" (STEINEM, 1994, p. 283). E depois ela diz sobre o que quer ser mais e mais depois de fazer 60 anos e fala do que acontece com ela, às vesperas de fazer 60 anos, com o espírito rebelde e que não aceita merda: "Mais e mais, fica apenas o sentido do exatamente agora que é completo, pleno, vivo-no-momento, sacudo-os-ombros mas cuidando-de-todas-as-coisas" (tradução minha - ela diz "don't-give-a-damn yet caring-for-everything sense of the right now"). Esse talvez seja o espírito não-envergonhado, o cuidado com os outros que não põe em jogo a afirmação e a aceitação de si mesmo e de quem quer que seja. O regime controla por meio do terrorismo com respeito a nossa aceitação - as imagens culturais de grande parte dos filmes, da televisão, dos livros, das canções mostram como temos que ser para que não fiquemos com vergonha e mostram o que acontece com quem não é assim: sofre vergonhas. A resistência ao escambo das aceitações é uma política de auto-estima. A auto-estima é o que permite que alguém tenha empatia com quem seja parecido: mulheres que acham que são inadequadas por não viverem, pensarem e agirem como os homens dificilmente terão solidariedade com outras mulheres; negros que querem ser brancos dificilmente conseguirão se incluir entre os beneficiados das reivindicações dos negros organizados etc. A opressão requer que o oprimido se veja com pouca estima, que esteja envergonhado - e não furioso - de sua opressão. A vergonha enfraquece. Com vergonha de si, não há quem encontre forças para reivindicar sua justiça. Penso que nas últimas décadas - tempos de contra-ataque à auto-estima de operários, de mulheres - houve um bem concertado esforço para fazer imperar os modelos de vida de classe média e fazer minguar as bases de uma cultura operária. Se os operários querem ser um pouco como a classe média, torna-se difícil que eles se enxerguem um no outro - eles se engajam em projetos individuais que fazem com que sejam ou pareçam menos operários. O opressor, por outro lado, raramente é posto a sentir vergonha do que faz quando oprime. Politizar a questão da distribuição da auto-estima pede que passemos a fazer ter vergonha do que fazem aqueles que usam seus privilégios porque eles estão ao alcance da mão. Trata-se de distribuir melhor o senso de auto-estima; parar de torná-lo objeto de escambo.

30. A vergonha dá vontade de escapar; de não estar à mostra. A auto-estima, antídoto da vergonha, muitas vezes está associada à nossa capacidade de honestidade. Mentimos porque temos vergonha da verdade - a verdade parece inadequada; é melhor não mostrá-la. Nós no fundo sabemos que estamos mentindo e portanto combalimos nossa auto-estima - em prol da estima que os outros têm de nós e assim estamos no escambo da aceitação: você têm que ser assim para ser aceito e, se você não for assim, tem que mentir que é assim. A intimidação - claro, o feijão-com-arroz do nosso regime muitas vezes terrorista de nos relacionarmos com as outras pessoas - nos compele a nos esconder e a nos odiar. Camus uma vez disse: "Liberdade é não ter que mentir". Acho que há graus de liberdade - nos libertamos de certas coações, de certas imposições, e nessa libertação somos conduzidos freqüentemente por outras coações, por outras imposições - e assim há, é certo, graus de honestidade. E diversos níveis de intimidação que conduzem nossa fuga da vergonha por meio da mentira; há muitas mentiras que, intimidadas, ficam escondidas por trás de outras honestidades. A intimidação torna certas mentiras habituais, quase rituais - mentimos para mostrar que satisfazemos o que está sendo esperado de nós; tentamos nos impor o que está sendo esperado de nós para evitarmos a vergonha. Se não fizermos o que está sendo esperado não nos aceitam, não nos aceitamos. Emancipar é permitir a honestidade - desarmar as bombas da vergonha. A vergonha é o que dá lastro à consciência dividida que dá a impressão de que temos nudez por trás de todas as camadas de roupa que mostramos: temos algo que encobrir, temos que mentir, não somos livres. A liberdade surge quando o que pensamos e fazemos não dependa de coisas tão importantes quanto a nossa aceitação, a nossa auto-estima, o nosso bem-estar emocional. A liberdade de pensamento só é possível se não tivermos que fazer um enorme investimento emocional em nossos pensamentos - se deles não dependerem que somos aprovados, que somos aceitos, que somos adequados, que somos interessantes etc. A liberdade só aparece quando não precisamos mentir.

31. Em um regime em que sempre precisamos estar prontos para pegar em armas e nos defender, as metáforas bélicas que usamos para pensar parecem ter raízes profundas. Estamos sempre pensando nos termos de nossos objetivos emocionais: fazer valer nossas idéias nos dá a impressão de que nosso ego fica mais expandido e assim mais afagado - ficamos mais afirmados. Diversas vezes queremos que nosso pensamento seja reconhecido como maior; muito mais do que queremos que nosso pensamento leve em conta aquilo que precisa levar em conta. Quando pensamos, surge a tentação de preservar nossos pensamentos de qualquer ataque - pensamos armados, entrincheirados. O investimento de emoções que fazemos sobre nossos pensamentos é quase sempre na defesa daquilo que pode nos afirmar. Nossa identidade, aquilo que amamos quando amamos a nós mesmos, facilmente se associa com nossas idéias e nossas ações - e a identidade é alguma coisa que temos que defender. Pensamos em forma de guerra.

32. Alguém pode dizer: temos que ser responsáveis por nossos pensamentos. É como dizer: temos que poder defendê-los. Os pensamentos são logo postos em um regime de escassez: há que se defender seu direito a existir - se ele não se sustenta nessa guerra, ele não tem direito a existir. Mais uma vez, qualquer vida precisa de um pretexto para ser afirmada - até prova em contrário, não precisamos de um pensamento a mais (não precisamos de uma forma de vida a mais, não precisamos de um regime político a mais, não precisamos de um tipo diferente de desejo). Pode-se afirmar a vida amando os recém-nascidos e amando os fetos mais do que as mulheres que os geram. Mas talvez esta seja já uma forma de apenas impor uma maneira de pensar na vida como sendo apenas o tema da nossa biologia atual - é este tema que fica afirmado, é este tema que fica preservado.

33. A nós, homens e privilegiados, ficam reservadas poucas experiências de vulnerabilidade. É fácil para mim me sentir culpado pelo sofrimento dos outros; se sou culpado posso fazer alguma coisa - se sou culpado por tudo sou omnisciente.

34. O desejo poderia ser visto como um exercício de dádiva - uma vontade, uma compulsão a dar afeto a alguém. Rapidamente então entramos em um raciocínio de troca: queremos, em troca de nosso afeto, alguma coisa, talvez afeto, mais provavelmente afirmação - um bem sempre posto em regime de escassez. Esse regime de afirmação controla nossas tendências de afeto. E então talvez, se estivéssemos sempre afirmados, daríamos sempre afeto como dádiva. Mas resulta difícil para nós pensar em termos em que a vulnerabilidade é igualmente distribuída. Rapidamente nos concentramos em canais de afirmação, nos instituímos em pares afetivos em geral desiguais na troca de afirmação. Entre os heterossexuais muitas vezes os homens tendem a encontrar fontes fixas de afirmação e cuidado emocional, e as mulheres ficam relegadas à sua baixa auto-estima: elas devem prover emocionalmente os homens. Angústia, melancolia, falta de perspectiva. A divisão sexual e emocional do trabalho promove a divisão das vulnerabilidades.

35. A melancolia, o desespero quieto, parece ser um sintoma de lealdades divididas - entre o que queremos e o que estamos acostumados a fazer uso. Muitas vezes penso que a melancolia e o desespero quieto são uma raiva que não transborda, uma cisão na cabeça entre o que queremos e nossos privilégios de poder, conforto e afirmação que nós, de alguma maneira, queremos preservar.

36. O que queremos, o que queremos - a liberdade outra vez. Hegel inaugurou um modo de pensar27 27 Para ressaltar a novidade e a especificidade da relação entre liberdade e natureza que Hegel vislumbrou, ver Robert Pippin, 1999. segundo o qual não há ação livre se não há atribuição de liberdade. Algumas vezes somos sugeridos a ver a uniformidade das ações nas nossas sociedades como uma mostra de que estamos sempre apenas seguindo padrões constantes e que, portanto, em algum sentido, não somos livres. A existência de padrões, ela mesma, no entanto, pode indicar apenas que todos livremente - em algum sentido - agem de acordo com os padrões. Se, no entanto, pensamos a partir da liberdade como alguma coisa que nós atribuímos ao agente, pensamos logo que os padrões criam as expectativas de que eles sejam mantidos - as expectativas não nos deixam conscientes de que poderia ser diferente; com essas expectativas, somos menos livres se elas nos deixam a alternativa de não segui-las, mas nos livram de responsabilidade se as seguirmos - "é assim que todo mundo faz...". Pensar dessa maneira nos afasta da questão de se a ação foi deliberada - a pergunta deve ser antes se somos responsabilizados pelo que fazemos. Uma pergunta assim só pode ser considerada suficiente - e não um disfarce para uma pergunta sobre a natureza da ação - se estivermos já convencidos de que uma ação não pode ser, ela em si mesma, livre (ou não ser nela mesma livre).

37. Nossas escolhas pessoais são escolhas pelas quais podemos ser responsabilizados - podemos fazer escolhas pessoais diferentes. O pessoal não é um reservatório de justificação de nossas ações ele mesmo. O pessoal é político. Nossas escolhas pessoais são sempre movidas por nosso caráter - por aquilo que estamos dispostos a afirmar e por aquilo que de alguma maneira resistimos. Nosso hábito de apelar para alguma fonte pura e inesgotável de subjetividade que orienta nossas escolhas pessoais torna difícil aplicar qualquer dimensão política para o que é pessoal. O inconsciente é mais freqüentemente concebido como um repositório de experiências primeiras puras ou como um mosaico de representações e símbolos alheios ao nosso treinamento social do que como um emaranhado de suposições de poder e privilégios. Assim se torna grande a tentação de entender que a política começa apenas com o que fazemos de nossos impulsos, hábitos, tendências e disposições pessoais - o nosso temperamento, poderíamos dizer - enquanto parece que, se tudo isso fica estabelecido independentemente de qualquer política, a política pode fazer muito pouco.

38. Cada pessoa, supostamente como um exercício de liberdade, tem suas preferências; fruto de sua personalidade. Pensamos na personalidade como imutável, como sendo o fruto de uma fonte pura de nossos desejos. Muitas vezes ouvimos o apelo ao sujeito, à subjetividade como sendo a referência última de nossos desejos - como ouvimos falar do mundo como sendo a referência última de nossas crenças. Mas que podem ser uma subjetividade e um mundo que estão para além do escopo da nossa responsabilidade?

39. Até onde estamos dispostos a considerar política nossa vida pessoal - nossas escolhas de nossos amigos, de nossos vizinhos, de nossos parceiros, de nossa aparência e de nossas atitudes? Todas essas escolhas são escolhas poderiam ser diferentes. Não quer dizer que poderíamos decidir a agir de uma maneira diferente - não por meio de uma decisão que aconteça como um fiat. Para que a economia capitalista continue funcionando - e com ela a divisão de classes, a miséria e a degradação inescapável e a produtividade crescente gerando lucros crescentes - ela precisa encontrar certas condições de disciplinamento, hierarquia e reprodução da força de trabalho e da ordem. Essas condições são todas elas fornecidas pelo sistema de nossas vidas pessoais. Pense por exemplo nas implicações de remunerar apropriadamente o trabalho de reproduzir a mão-de-obra e de treiná-la - o trabalho das mães.28 28 A remuneração desse trabalho é a principal bandeira do movimento por Salário para Trabalho Doméstico. O movimento começou na Itália em março de 1974 e na época foi saudado como a demanda estratégica para toda a classe operária. A idéia era insistir que o caráter privado do trabalho doméstico é uma ilusão. Veja, por exemplo, o capítulo I, item 4, do Towards a Feminist Theories of the State, de Catherine MacKinnon (MACKINNON, 1989). Ali ela examina algumas conseqüências de remunerar o trabalho doméstico - a exploração por não-pagamento desse trabalho emerge como sendo uma fonte central de lucro capitalista. Muitas vezes, no entanto, o tema do controle de natalidade é dissociado do tema da melhora das condições de vida das pessoas que trabalham. O controle de natalidade é as vezes confundido com esterilização abusiva. Margareth Sanger, ativista norte-americana do início do século XX pelo controle da natalidade, entrou em rota de colisão com o partido socialista ao defender a esterilização em massa de incapazes, aleijados, criminosos, prostitutas etc. em um programa de rádio em 1932 (ver Gena COREA, 1977, p. 149). Rosa Luxemburg e outros certa vez defenderam uma greve de nascimento para não mais suprir as fábricas de mão-de-obra. Uma greve assim dificilmente funciona - nunca houve mobilização suficiente para a proposta ser seriamente tentada. Os advogados de uma esfera pessoal isenta de política dizem logo que a vontade de reproduzir a vida, desconstruir famílias etc. não pode ser envolvida em uma batalha por melhores condições de vida - essas vontades brutas seriam simplesmente fatos da vida. E, no entanto, esses fatos da vida alimentam os fatos do sistema econômico em que vivemos. A greve de natalidade se liga também ao que fazemos com nossos apetites sexuais - tomados pelos advogados da independência da vida pessoal como outros fatos da vida com os quais devemos aprender a lidar. Quem tem que aprender a lidar é freqüentemente a esposa que aprende a se submeter aos apetites do marido muitas vezes com custos altos para ela - a maternidade compulsória. Bem informada, ela escolheria isso? Insistir que o pessoal é político é decifrar o que fazem para que nós tenhamos que aceitar esses fatos da vida.

40. Há uma enorme medida de aceitação das regras sociais e emocionais da vida - familiaridade e resignação aos fatos da vida - que são requeridas para que possamos ser aceitos. Quando eu era criança e adolescente, eu estranhava essas regras e a intimidação que aparecia sempre por trás delas. Desde cedo, temos que fazer uma escolha solitária entre sermos aceitos de um lado e nossa inconformidade com as regras e a intimidação por trás delas de outro; entre aceitar responder a intimidação com terror ou confrontar-se com isso. Essa escolha, entre conformar em nome da aceitação e confrontar uma mentalidade como sendo menos que compulsória, é a primeira decisão política que tomamos - entre sermos um estorvo para a sociedade dessas regras ou sermos acolhidos por ela. É a escolha entre politizar a nossa auto-estima ou aceitar que o que quer que sejamos não pode ser maior do que a nossa estima dos outros. Eu penso que escolhi ser aceito, escolhi estar entre os que obedecem e tornam legítimas as regras.

Notas

Recebido em fevereiro de 2003 e aceito para publicação em setembro de 2003

  • COREA, Gena. The Hidden Malpractice New York: A Jove/HB, 1977.
  • DWORKIN, Andrea. Pornography: Men Possessing Women New York: Putnam/Perigee, 1981.
  • GREER, Germaine. A mulher inteira Rio de Janeiro: Record, 2001.
  • LEAL, Ondina; BOFF, Adriane. "Insultos, queixas, sedução e sexualidade: fragmentos de identidade masculina em uma perspectiva relacional". In: PARKER, Richard; BARBOSA, Maria Regina (Orgs.). Sexualidades brasileiras Rio de Janeiro: Relume-Dumará Editores; ABIA; IMS/UERJ, 1996. p. 119-135.
  • MACKINNON, Catherine. Towards a Feminist Theory of the State Cambridge: Harvard UP, 1989.
  • MORGAN, Robin. Demon Lover New York: Norton, 1989.
  • MORGAN, Robin (ed.). Sisterhood is Poweful New York: Anchor Press, 1984.
  • _____. Sisterhood is Global New York: Anchor Press/Doubleday, 1984a.
  • PIPPIN, Robert. "Naturalness and Mindedness: Hegel's Compatibilism." European Journal of Philosophy, v. 7, n. 1, 1999, p 194 - 212.
  • SCOTT, Joan. "Gênero: uma categoria útil de análise histórica". Educação e Realidade, Porto Alegre: Faculdade de Educação/UFRGS, v. 6, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.
  • SEMPRUM, Jorge. Le Grand voyage Paris: Gallimard, 1963.
  • STEINEM, Gloria. Moving Beyond Words London: Bloomsbury, 1994.
  • STOLTENBERG, John. Refusing to be a Man Glasgow: Fontana/Collins, 1989.
  • WILLIAMS, Bernard. Shame and Necessity Berkeley: University of California Press, 1993.
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations Oxford: Blackwell, 1968.
  • 1
    Este texto surgiu primeiro como notas para discussão no grupo PULGGAs (Pessoas Unidas pela Libertação dos Grilhões de Gênero Agora). Obrigado às pulgas por tudo. Os nomes mencionados sem outra referência são nomes de membros do grupo. Gostaria de agradecer também a dois pareceristas anônimos por sugestões e críticas.
  • 2
    Robin Morgan, 1989.
  • 3
    Robin Morgan cunha esse tipo de expressão em
    Demon Lover (1989) para designar a morte, ou o que parece morto, sem controle, submetido. Robin Morgan escreve: "A cultura popular (filmes de Hollywood, novelas de baixa categoria, cartões de aniversário etc.) trivializa e sentimentaliza o enorme, genuinamente duro
    trabalho de amar apaixonadamente - um trabalho que as mulheres fazem quase que sozinhas em relações humanas. A cultura menos popular mas influente em muitas áreas do intelecto e da arte associa o amor puro com o tema do
    Liebestod (amor-morte) - a paixão torna-se obsessiva apenas em amantes com um destino terrível, floresce brevemente e termina em traição, caos, assassinato ou suicídio. A antiga sensibilidade pagã e a espiritualidade ginocrática eram completamente diferentes, pois celebravam a combinação da libido com o afeto e entendiam a sexualidade feminina [...] como uma a força vibrante. Mas o que as bruxas euro-péias chamavam de Velho Modo [...] foi derrubado e substituído por instituições religiosas e culturais patriarcais - que poderiam mais eficientemente inspirar e justificar a violência política. O afeto com libido não tem muito lugar aqui. Em compensação, nos oferecem amantes puros, trágicos como Romeo e Julieta, que ostensivamente transcendem essas hostilidades. Mas na sociedade e na consciência social esses modelos fortaleceram a suposição cultural de que a hostilidade é inevitável e ligada à violência e que, portanto, o amor precisa de uma fuga que é a liberação na morte" (Morgan, 1989, p. 103) (tradução minha).
  • 4
    Segue-se nessa cadeia de representações até chegar à vagina ou a outra representação (sic) da feminilidade.
  • 5
    Iídiche para "apropriado", mas com um elemento forte de 'coisa certa', em oposição ao sancionado como ruim, pecaminoso.
  • 6
    Será que a masculinidade dispõe também sobre um desejo que se insere em uma ordem não-heterossexual? Algumas vezes os nossos modelos de masculinidade são mais entrincheirados em nós do que o objeto do nosso desejo. Parece às vezes que a masculinidade homossexual deseja outras partes do corpo, porém da mesma maneira.
  • 7
    Tom Waits em uma entrevista recente foi perguntado por que ele falava de pessoas marginalizadas, desprezadas, excluídas etc. em suas músicas; teria ele algum compromisso de engajamento? A resposta: "Não, é para onde meus olhos vão". Este é o modo como eu gostaria que fosse possível fazer a coisa certa: por meio de uma disposição.
  • 8
    Os bonobos, parentes próximos dos chimpanzés e até recentemente confundidos com eles, apresentam uma libido não diferenciada por sexo, que não exclui quem não está no casal que copula e que é usada para tranqüilizar as comunidades nos momentos de perigo e ansiedade. Interessante pensar nas relações entre sexo e gênero nesse contexto - ver Joan Scott, 1990.
  • 9
    Proposital. Os pornógrafos, e todos aqueles que pensam que a pornografia mostra os nossos instintos sexuais como eles são, tendem a pensar que há um modo de apresentar como nossos desejos são de uma forma transparente; tal como eles são. Pensam assim também pornógrafos que aparecem como sensíveis à degradação que a pornografia promove, como Nelson Rodrigues.
  • 10
    Andrea Dworkin, em
    Pornography: Men Possessing Women, diagnostica: "O pênis deve incorporar a violência da masculinidade para que um homem seja macho. [...] A redução do potencial erótico humano ao 'sexo', entendido como a força de um pênis visitando uma mulher que não parece querer a visita, é o cenário que governa a sexualidade em uma sociedade da supremacia masculina. [...] Em toda cultura masculina o pênis é visto como uma arma, especialmente uma espada. [...] Por séculos, a relutância feminina em 'fazer sexo', o desgosto feminino do sexo, a frigidez, foram legendários. Esta foi a revolução silenciosa das mulheres contra a força do pênis, gerações e gerações de mulheres unidas com seu corpo cantando uma canção contemporânea de liberdade em uma linguagem ininteligível mesmo para elas" (Dworkin, 1981, p. 55-56) .
  • 11
    Aprendendo como ser desejáveis, elas abdicam de parte de sua autonomia para ganhar uma versão empalidecida de uma vida erótica (com os homens). Andrea Dworkin diz: "A definição de mulher articulada pela pornografia de modo sistemático e consistente é objetiva e real, pois mulheres reais existem dentro dela e devem viver em constante referência aos limites desta definição. O fato de que a pornografia é amplamente tomada como sendo 'representações sexuais' ou 'imagens de sexo' enfatiza apenas a opinião de que mulheres são prostitutas baixas e que a sexualidade das mulheres é percebida como baixa e prostituta em si mesma. O fato de que a pornografia é amplamente tomada como 'imagens de sexo' significa apenas que a inferiorização de mulheres é tomada como o real prazer do sexo. [...] A idéia de que a pornografia é 'suja' se origina na convicção de que a sexualidade de mulheres é suja e mostrada na pornografia [...] (Dworkin, 1981, p. 201).
  • 12
    O sexo em estado bruto é entendido pela pornografia como o conteúdo essencial do desejo. Uma defesa da mentalidade que motiva a pornografia tradicional e a condenação tradicional da pornografia podem aqui se valer de alguma biologia evolucionária que postule que certos conteúdos de desejo são inevitáveis porque são naturais: o que desejamos são falos ou seios ou formas simétricas. A postulação sub-reptícia aqui é que o conteúdo dos nossos desejos (em forma primitiva) é natural - e ineludível.
  • 13
    A masculinidade parece vir à tona muitas vezes como uma questão de honra, e a própria masculinidade rege como nós devemos lidar com a honra: pouco pode ser tolerado se nossa honra está em questão. Veja, por exemplo, Ondina Leal e Adriane Boff, 1996.
  • 14
    John Stoltenberg, em
    Refusing to be a Man, comenta a opinião comum de que os homens não expressam seus sentimentos: "Os homens expressaram seus sentimentos sobre as mulheres, a morte, pais ausentes e assim criaram as religiões. Os homens expressaram seus sentimentos sobre mulheres, riqueza, possessão e territorialidade e transformaram estes sentimentos em leis e em estados. Os homens expressaram seus sentimentos sobre mulheres, assassinato, a masculinidade de outros homens e destes sentimentos surgiram batalhões e bombas. Os homens expressaram seus sentimentos sobre mulheres, fodas e irritação feminina para além do controle e destes sentimentos surgiu a psiquiatria. Os homens
    institucionalizaram seus sentimentos, de modo que, se um homem em particular está sentindo o sentimento em um dado tempo ou não, o sentimento está sendo expresso pelas instituições que os homens criaram" (Stoltenberg, 1989, p. 93).
  • 15
    O esforço pelo desagenciamento dos desejos é o esforço pela desconstrução da supremacia masculina. Robin Morgan, em
    Sisterhood is Poweful, diagnostica que a análise radical da revolução feminista sugere que "o capitalismo, o imperialismo, o racismo são sintomas da supremacia masculina - do sexismo" (Morgan, 1984, p. xxxiv). Ao contrário do que pensa Letícia Antipenélope e outras, penso que a denúncia da supremacia masculina é uma empreitada libertária que tem que ser pensada ao lado da luta pela libertação das supremacias que inibem e constrangem a liberdade - a supremacia branca, a supremacia da classe média, a supremacia dos proprietários. Penso que a supremacia masculina - e o regime de desejo que a baliza está na base do pensamento supremacista. Construir uma sociedade sem supremacias é uma mudança cultural que requer a criação de uma cultura de paz, de liberdade e de valores de cooperação. Robin Morgan, que participou de movimentos terroristas no início dos anos 1970, suspeita que a falta de conexão com alguns elementos centrais do esforço por entender como o mundo pode ser melhorado foi o que fez muitos de seus ex-companheiros de terrorismo abandonarem o propósito de salvar o mundo nos anos 1980. Ela diagnostica que "o problema nunca foi o abandono de uma análise radical ou da luta para acabar com o sofrimento [presente]. Era, antes, que a esquerda nunca foi longe o
    suficiente em análise, visão ou prática. A isto, é claro, meus antigos irmãos revolucionários respondem que eu estava indo longe
    demais" (Morgan, 1989, p. 219). Ela conta como se livrou de uma companheira revolucionária que insistia em que ela participasse de uma ação (plantar alguma bomba); ela disse que participaria da ação se a companheira participasse de uma outra ação com o alvo que ela escolheria. A companheira topou; Robin Morgan então disse que ela gostaria de uma ação no clube da Playboy; e ela conta: "Ela me olhou como se eu fosse uma louca. Eu sabia que ela nunca poderia fazer o seu homem aceitar isto: 'seria um desperdício absurdo de nossos recursos', ele diria" (Morgan, 1989, p. 233). De um modo geral, tendo a pensar que uma articulação de libertação que não enxergue e procure transformar as estruturas de gênero é vazia e um feminismo que não se alinhe à esquerda é cego.
  • 16
    Germaine Greer, em
    A mulher inteira, cita um homem que relata que se sente esmagado quando vê mulheres bonitas na rua e então vai para casa e se masturba para se livrar da tristeza (Greer, 2001, p. 216). Penso que esse sentimento é muito comum entre os homens - as mulheres não acessíveis parecem desafiadoras e merecem uma compensação em fantasia, a masturbação.
  • 17
    Imaginei alguém replicando assim: palavras, palavras vãs, termos são termos, como outros quaisquer; podemos descrever qualquer desejo sexual como quisermos; há muitas maneiras de descrever o que quer que seja. Eu penso que não é assim, pois o que quer que seja é sempre descrito de uma maneira ou de outra; esses termos trazem à mente um modo de pensar em sexo; qualquer descrição expressa um modo de pensar naquilo que se descreve.
  • 18
    Acredito que uma maneira de pensar sobre isso é considerar as conseqüências do chamado argumento da linguagem privada das
    Philosophical Investigations, de Wittgenstein (WITTGENSTEIN, 1968, p. 258-260).
  • 19
    Tendo implícita e explicitamente tantas vezes dito que o terrorismo não traz muito de novo e traz poucas esperanças, lembro agora de uma defesa de algum atentado que fez uma vez meu amigo Marcelo Senna Guimarães (uma pulgga em espírito): os atentados terroristas redistribuem vulnerabilidade.
  • 20
    Muitas vezes encontro nos movimentos pela paz, pela preservação do planeta, pelo entendimento entre as culturas, pelo respeito pelas crianças etc. estratégias e objetivos que tiveram origem em idéias e práticas de movimentos feministas. Os feminismos, então, ficam como muitas mulheres que, durante o curso dos últimos séculos de heteropatriarcado, ficaram invisíveis, mas tornaram possível que a vida humana durasse e ficasse um pouco mais tolerável.
  • 21
    Berit Ås, em "More Power to Women!", em
    Sisterhood is Global (MORGAN, 1984a), também citado por Robin Morgan em
    Demon Lover: "Um estado patriarcal é um estado que está se preparando para a guerra, em guerra ou se recuperrando de uma guerra" (MORGAN, 1989, p. 514) (tradução minha). Berit atribui essa definição ao mesmo tempo precisa e instigante a Mary Daly.
  • 22
    Os itens 27, 29 e 30 são rearticulações do que eu apresentei no fantástico Colóquio Vergonha, organizado por Raquel Viviani Silveira e outras nos dias 15, 16 e 17 de novembro de 2002, em Campinas, São Paulo.
  • 23
    Bernard WILLIAMS, 1993.
  • 24
    WILLIAMS, 1993, p. 82 (tradução minha).
  • 25
    Jorge Semprum, em
    Le Grand voyage, diria que vivemos em um sistema em que as pessoas são tornadas inabitáveis (SEMPRUM, 1963).
  • 26
    Aqui eu não consigo resistir a uma nota de rodapé com trecho do final do glorioso artigo "Doing Sixty", de Gloria Steinem. Ela diz: "Sistemas hierárquicos prevalecem porque fazem nos sentir imperfeitos e que nós somos culpados por isto. Quando sumimos com a noção de perfeição, podemos ser o que for" (STEINEM, 1994, p. 283). E depois ela diz sobre o que quer ser mais e mais depois de fazer 60 anos e fala do que acontece com ela, às vesperas de fazer 60 anos, com o espírito rebelde e que não aceita merda: "Mais e mais, fica apenas o sentido do exatamente agora que é completo, pleno, vivo-no-momento, sacudo-os-ombros mas cuidando-de-todas-as-coisas" (tradução minha - ela diz "don't-give-a-damn yet caring-for-everything sense of the right now"). Esse talvez seja o espírito não-envergonhado, o cuidado com os outros que não põe em jogo a afirmação e a aceitação de si mesmo e de quem quer que seja.
  • 27
    Para ressaltar a novidade e a especificidade da relação entre liberdade e natureza que Hegel vislumbrou, ver Robert Pippin, 1999.
  • 28
    A remuneração desse trabalho é a principal bandeira do movimento por Salário para Trabalho Doméstico. O movimento começou na Itália em março de 1974 e na época foi saudado como a demanda estratégica para toda a classe operária. A idéia era insistir que o caráter privado do trabalho doméstico é uma ilusão. Veja, por exemplo, o capítulo I, item 4, do
    Towards a Feminist Theories of the State, de Catherine MacKinnon (MACKINNON, 1989). Ali ela examina algumas conseqüências de remunerar o trabalho doméstico - a exploração por não-pagamento desse trabalho emerge como sendo uma fonte central de lucro capitalista. Muitas vezes, no entanto, o tema do controle de natalidade é dissociado do tema da melhora das condições de vida das pessoas que trabalham. O controle de natalidade é as vezes confundido com esterilização abusiva. Margareth Sanger, ativista norte-americana do início do século XX pelo controle da natalidade, entrou em rota de colisão com o partido socialista ao defender a esterilização em massa de incapazes, aleijados, criminosos, prostitutas etc. em um programa de rádio em 1932 (ver Gena COREA, 1977, p. 149).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Abr 2004

    Histórico

    • Aceito
      Set 2003
    • Recebido
      Fev 2003
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