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Artifício e excesso: narrativa de viagem e a visão sobre as mulheres em Portugal e Brasil

Artifice and excess: travel narratives and the representation of women in Portugal and Brazil

Resumos

Este artigo analisa as imagens de mulheres brasileiras e portuguesas construídas nos relatos de viajantes ingleses que estiveram em Portugal e no Brasil, nos anos finais do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. Procura-se explorar como um registro moral, que acentuava crescentemente padrões de comportamento burgueses e que orientou o olhar de viajantes sobre o mundo, interferiu nos comentários e imagens que projetaram do universo luso-brasileiro. A conexão entre o mundo europeu 'civilizado' e as regiões marginais ao processo de constituição de uma ordem burguesa capitalista realizada pelos viajantes envolveu, em geral, um duplo processo de enfrentamento e negociação entre valores e concepções de mundo de universos culturais distintos. Assim, os relatos dos viajantes mostram esse espaço de constante remanejamento de sentimentos e de percepções sobre si próprios e os nativos.

livros de viagem; gênero; privado-público; educação


This article analyses the images of Brazilian and Portuguese women in the reports of English travelers who visited Portugal and Brazil in the final years of the 18th century and early decades of the 19th century. We seek to investigate the way in which a moral register based on bourgeois values influenced these travelers' views and interfered in their descriptions of the Luso-Brazilian universe. The connection they made between the 'civilized' European world and the regions which were peripheral to the processes of bourgeois capitalism generally involved a double movement of confrontation and negotiation between culturally distinct values and worldviews. Thus, their travel narratives reveal a space of constant negotiation of feelings and perceptions about themselves and the natives.

travel books; gender; private/public; education


ARTIGOS TEMÁTICOS

Artifício e excesso: narrativa de viagem e a visão sobre as mulheres em Portugal e Brasil

Artifice and excess: travel narratives and the representation of women in Portugal and Brazil

Margareth de Almeida Gonçalves

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

RESUMO

Este artigo analisa as imagens de mulheres brasileiras e portuguesas construídas nos relatos de viajantes ingleses que estiveram em Portugal e no Brasil, nos anos finais do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. Procura-se explorar como um registro moral, que acentuava crescentemente padrões de comportamento burgueses e que orientou o olhar de viajantes sobre o mundo, interferiu nos comentários e imagens que projetaram do universo luso-brasileiro. A conexão entre o mundo europeu 'civilizado' e as regiões marginais ao processo de constituição de uma ordem burguesa capitalista realizada pelos viajantes envolveu, em geral, um duplo processo de enfrentamento e negociação entre valores e concepções de mundo de universos culturais distintos. Assim, os relatos dos viajantes mostram esse espaço de constante remanejamento de sentimentos e de percepções sobre si próprios e os nativos.

Palavras-chave: livros de viagem, gênero, privado-público, educação.

ABSTRACT

This article analyses the images of Brazilian and Portuguese women in the reports of English travelers who visited Portugal and Brazil in the final years of the 18th century and early decades of the 19th century. We seek to investigate the way in which a moral register based on bourgeois values influenced these travelers' views and interfered in their descriptions of the Luso-Brazilian universe. The connection they made between the 'civilized' European world and the regions which were peripheral to the processes of bourgeois capitalism generally involved a double movement of confrontation and negotiation between culturally distinct values and worldviews. Thus, their travel narratives reveal a space of constant negotiation of feelings and perceptions about themselves and the natives.

KeyWords:travel books, gender, private/public, education.

Os relatos de viajantes sobre Brasil e Portugal modelaram um padrão uniforme de perfis e imagens de comportamentos, hábitos e costumes, oferecendo uma taxonomia da vida social luso-brasileira. Este artigo procura fixar-se nas imagens que compõem a concepção dos viajantes sobre o universo português e brasileiro de mulheres dos setores médios e altos nas primeiras décadas do século XIX. 1 1 Este artigo está inserido no programa de pesquisa intitulado "Civilização e artifício: modernidade e educação no Brasil do século XIX", que recebeu apoio do CNPq.

Antes, porém, de avançarmos, convém uma breve introdução sobre a posição dos viajantes oitocentistas, assinalando o lugar de onde falam, no sentido de precisar um delineamento de uma estrutura de mentalidades e de atitudes que regeu a maneira de olhar povos de lugares percebidos como estranhos ao mundo europeu, de uma Europa além Pirinéus, não ibérica. Na posição de repórter-jornalista os viajantes deixaram relatos minuciosos sobre povos que percebiam à margem da matriz civilizatória2 2 Aqui, o processo civilizador refere-se às mudanças apontadas por Norbert Elias para o caso europeu tanto no plano da constituição e consolidação da unidade política do Estado, quanto na dimensão do indivíduo, através do crescente controle e disciplinarização dos afetos, das emoções e dos comportamentos (ELIAS, 1990, p. 216). européia. Assim, os livros de viagem do século XIX recheiam-se de explicações sobre o que é visto no sentido de fornecer garantias de autenticidade ao texto. E é nesse sentido que a escrita desse narrador-viajante aproxima-se do jornalístico, nessa compulsão pela informação. Esse escritor-viajante distingue-se do narrador dos livros de viagem do século XVI, como Jean de Lery, que, em perspectiva distinta, recorriam ao fantástico na busca de sentido para o que viam. Da mesma forma que o romance, também esse modelo oitocentista da literatura de viagem confirmou a propagação da cultura burguesa do livro. A consolidação do capitalismo introduziu uma nova forma de comunicação através da informação, que diluiu as formas narrativas épicas plasmadas no miraculoso e no extraordinário. 3 3 Walter BENJAMIN, 1993, p. 199. O livro de viagem oitocentista é a realização de um indivíduo solitário, que reforça no seu relato a auto-reflexão psicológica, num movimento sem fim do sujeito à procura de uma verdade sobre si, que rompe com as formas épicas de narração.4 4 As formas de narrativa épica caracterizam-se pela concisão enquanto o relato de informação jornalística singulariza-se pelo abuso de detalhes, de explicações. "Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível 'em si e para si'. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito de narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio" (BENJAMIN, 1993, p. 203). A difusão do livro e da imprensa transformou o ato de leitura num prazer único e pessoal, reafirmando na dimensão do sujeito um movimento infindável de autodescoberta e de afirmação da individualidade. E se firmava, então, um pacto entre narrador e leitor na incomensurável busca de fruição na sacralização da existência.

A disseminação dos livros de viagens foi concomitante às transformações econômicas na Europa que consolidaram a ordem burguesa e o avanço do capital. 5 5 Mary PRATT, 1999, p. 197. Os diversos relatos manifestam o espírito científico presente nesse viajante observador que recorre ao vocabulário classificador e técnico da ciência para a compressão de novas formas de organização social e de cultura. 6 6 Lily LITVAK, 1987, p. 14. Um registro moral, que acentua padrões de comportamento burgueses, orientou o olhar de viajantes sobre o mundo,7 7 O confronto entre matrizes de visões de mundo distintas tem sido destacado por vasta bibliografia sobre os viajantes (Luiz Costa LIMA, 1989; Flora SÜSSEKIND, 1990; Maria Helena ROUANET, 1991; Mary PRATT, 1999; e Luciana de Lima MARTINS, 2001). e não só interferiu nos comentários e imagens que construíram, como também, através de suas trajetórias exemplares, propôs um guia de civilidade, paradigma de comportamento no mundo novo da modernidade capitalista. 8 8 Margareth de Almeida GONÇALVES, 2003.

Nas zonas de contacto, recorrendo à expressão de Mary Pratt, a dominação e a desigualdade passaram por renegociações e rearranjos, forjando descrições que expressaram o confronto com a alteridade. Os relatos de viajantes expressam a fronteira de constante remanejamento de sentimentos e de percepções sobre si próprios e os nativos. Na teia discursiva recalcitram as tensões e os conflitos que despontavam da experiência com o outro. Por mais que viajantes tenham conformado manifestações de um padrão civilizatório burguês, a viagem correspondeu a uma esfera de suspensão que auxiliou a reelaborar códigos culturais.

1- Reclusão

A imagem da mulher luso-brasileira encerrada em casa é recalcitrante nos relatos de viajantes. Essa foi uma das representações sobre a mulher oitocentista fixada por viajantes que permaneceu para a posteridade e que remete, entretanto, para distintas concepções de privado e público O privado europeu dos séculos XVIII e XIX diferenciava-se da domesticidade luso-brasileira. Caso se procure articular as categorias de privado e público na matriz luso-brasileira, desponta uma dimensão do privado extremamente dilatada, a qual incluía um uso pessoal da esfera pública, centrada no pater familias. Assim, privado e público tenderam a confluir, indicando uma tendência menor à diferenciação. Esse quadro destaca uma modalidade de sociabilidade que Philipe Ariès denominou de anônima, em que o indivíduo possui uma posição que se confunde com a comunidade à qual pertence. Nesse tipo de sociabilidade, 9 9 Ariès faz menção a um registro de solidariedade no qual a comunidade envolve o indivíduo, e que organizou as mentalidades na medievalidade e no início da época moderna, séculos XVI e XVII, mantendo-se posteriormente como expressão de sociabilidade entre as camadas populares. Assim, para o autor, nas solidariedades anônimas, "a comunidade que enquadra e limita o indivíduo – a comunidade rural, a cidadezinha ou o bairro – constitui um meio familiar em que todo mundo se conhece e se vigia" (ARIÈS, 1991, p. 7-8). as noções de privado e público misturam-se. É um mundo nem privado nem público. A dimensão do público articula-se a uma idéia de rua que é percebida como perigosa e desprotegida. Essa separação casaproteção/ruaperigo implicou experiências distintas de sociabilidade. O convívio social restrito à casa patriarcal, um universo partilhado por crianças, adultos, criados e escravos, pareceu sempre estranho e desconfortável a estrangeiros uma dimensão de solidariedade coletiva que incorporava ainda a rua através do regozijo e da festa.10 10 Uma cultura popular de rua, do riso e da galhardia soltos, foi uma característica particular do Ocidente medieval analisada por Mikhail BAKHTIN, 1999, e que pode ser estendida para outras modalidades de organização da solidariedade coletiva em formas de dominações tradicionais. Observam-se, portanto, dois usos ambíguos, embora complementares, do espaço público, tanto o de lugar de perigo quanto o de local de congraçamento, da galhardia e do riso solto.

James Murphy, um inglês que esteve em Portugal em fins do século XVIII, teceu alguns comentários sobre a sociabilidade da mulher portuguesa. Destaca em sua narrativa que a igreja marcou um dos poucos lugares em que as mulheres eram vistas em público. 11 11 "Respecting the manners of the inhabitants of O Porto, my short residence in this city has enabled me to form but a superficial idea, especially of the females, who are seldom observed out of doors, except in going to, or returning from church, a place they usually visit twice a day; and then the face is veiled, or half-concealed beneath the folds of a black mantle" (MURPHY, 1795, p.15). Murphy, entre as gravuras de seu livro, retrata uma imagem de reclusão e religiosidade da mulher portuguesa, a qual é representada de cabeça coberta, portando entre as mãos um terço. No entanto, essa dimensão da rua, compreendida pelo deslocamento à igreja, é percebida por Murphy mais como uma extensão do espaço da casa. Essa marca foi reproduzida pelas distintas narrativas de viajantes. Daí que, embora as idas de mulheres a igreja e cerimonias religiosas fossem constantes, quase diárias, como os próprios relatos de viajantes indicam, a escrita teima em destacar a ausência de mulheres fora dos espaços da casa. Miriam Moreira Leite aponta esse estereótipo da mulher enclausurada presente no imaginário dos viajantes que estiveram no Brasil. 12 12 "Estas transcrições de textos sobre os costumes das brasileiras, ao lado das transcrições anteriores, permitem desdobrar a análise de dois estereótipos sobre a vida da mulher, no século passado – a reclusão e a religiosidade" (LEITE, 1979, p. 30). Maria Odila Dias menciona o "mito da dona ausente" como organizador da estrutura de interpretação dos livros de viajantes. 13 13 "Os viajantes interpretavam a ausência de mulheres das classes dominantes como um sintoma de costumes patriarcais, de serralho oriental" (DIAS, 1984, p. 68). Os estudos de Eni de Mesquita Samara destacam, ainda, o "mito da mulher submissa e do marido dominador" como um dos estereótipos das imagens da mulher dos setores dominantes. Sobre os viajantes comenta: "os relatos dos viajantes que percorreram várias partes do Brasil trouxeram uma visão parcial da situação da mulher na família e na sociedade, mas souberam enfatizar a sua opressão" (SAMARA, 1998, p. 58). O isolamento da mulher foi uma peça central de um manual que viajantes já decoravam antes da chegada a regiões que, como as regiões portuguesa e brasileira, estavam na periferia ou fora do diapasão capitalista. Nota-se, portanto, uma distinta apreensão das noções de privado e público para portugueses, brasileiros e viajantes.

A percepção de viajantes das esferas privada e pública foi conduzida pelo processo de constituição de uma ordem burguesa no Ocidente que paulatinamente se diferenciava da matriz social que formou a medievalidade. O privado europeu organizou-se em descontinuidade e tensão com a concepção da domesticidade luso-brasileira. A dimensão da intimidade na matriz burguesa encontra-se subordinada à mais profunda privacidade, na qual se realiza a construção de sujeitos, com a demarcação de uma identidade pessoal, única e singular. Sempre que os sinais de intimidade, como a exibição do corpo nu e a sexualidade, são exibidos em público produzem desconforto e crítica.

Nos diferentes relatos de viajantes, mesmo o tipo de sociabilidade oferecido pelas cerimônias religiosas, e sucessivamente ao longo do oitocentos pela ópera e por espetáculos de teatro, aparece mais como uma afirmação do espaço privado em dia de festa. Nessa acepção, o público emerge como possibilidade de constituição performativa do mundo.

Nas narrativas de viajantes são constantes as reações de surpresa crítica diante da movimentação e da vozearia que predominavam no interior das igrejas. Os gestos, fartos e amplos, e as vozes altas são motivo de desagrado. E, desse modo, é destacado o lado paradoxal da religiosidade luso-brasileira, mais expressa pelo componente de festividade do que de meditação. Assim, a iconoclastia a farta intimidade quase profana com as imagens religiosas mostra um indício da artificialidade na experiência religiosa, o que, entre aqueles que eram originários de países protestantes, foi associada ao catolicismo mediterrâneo.

A religiosidade entre brasileiros mais vinculada à exterioridade da festa, em que o culto era mais um espaço de confraternização, com uma extrema humanização dos santos, e que fugia a uma concepção da religião mais de introjeção e sobriedade, foi criticada. O que esteve compreendido na concepção de interioridade é um modo singular de relação consigo que incluía formas específicas de introspeção da mensagem religiosa que resultava na abolição de elementos mágicos na relação com a divindade exatamente o oposto da tradição católica portuguesa que abusa do colorido festivo, aproximando a religiosidade de suas formas pagãs de expressão. 14 14 GONÇALVES, 2002.

Os véus e mantilhas, lembrados no romance histórico Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, e que teve como cenário o Rio de Janeiro de Dom João VI, escondiam os rostos e os segredos femininos, compondo um costume luso-brasileiro que provocou também comentários variados de viajantes de ambos os sexos. O uso do capote por homens e das mantilhas e véus pelas mulheres à maneira árabe compunha uma marca dos diferentes segmentos sociais.

No livro de Murphy já indicado, uma gravura reproduz uma senhora no caminho da missa coberta por longo véu que envolve a cabeça e parte de seu corpo. Assim como os véus, desperta ainda a atenção do viajante o ar arrogante das mulheres mais velhas, o que contrasta com a matreirice das moças de olhos vivazes e expressivos, com seus sapatos de cores alegres.

Ou seja, ocultar o corpo com panos garantia o anonimato no território das ruas, percebido como ameaçador. Mais uma vez, há uma concepção de público que o vincula à idéia de perigo. Daí, possivelmente, o recurso aos mantos e véus enquanto preservadores de uma certa idéia de individualidade que valoriza o não-reconhecimento, protegendo o sujeito quando fora da atmosfera protetora do domínio da casa. Como no exemplo do jilbab islâmico, o recurso às mantilhas por mulheres, um costume remetido à colônia, garantiu o "ver sem ser visto", na feliz expressão de Manuel Antonio de Almeida15 15 Ou ainda, em mais uma expressão do autor, o "observatório da vida alheia" (Ver em GONÇALVES, 1990, p. 154). . Assim como as mantilhas, as rótulas nas casas asseguraram o anonimato de quem olhava a rua.

O comerciante inglês John Luccock, que residiu no Brasil por dez anos (18081818), associou o uso das gelosias nas casas do Rio de Janeiro, um costume abolido com a vinda da corte, à ausência de sociabilidade de seus moradores.16 16 LUCCOCK, 1938. Esse comentário realça, mais uma vez, um dos elementos da vida social que foi captada enquanto restrita aos interiores da casa, da Igreja ou do teatro, uma sociabilidade descrita freqüentemente como confusa, irregular, ora em decorrência da balbúrdia de vozes sobrepostas e do abuso da gesticulação, ora da galhardia que aplainava as diferenças sociais.

Marianne Baillie, por sua vez, teceu comentários semelhantes sobre as portuguesas que conheceu. Baillie residiu dois anos e meio em Lisboa, no início da década de 1820, e publicou um livro composto de cartas destinadas à sua mãe. Baillie, da mesma maneira que James Murphy, refere-se à severidade da vida reclusa da mulher portuguesa, que quando no espaço da rua mantinha a distância ocultada por panos e pelo capote, um recurso partilhado por mulheres e homens.17 17 BAILLE, 1824, v. 2, p. 25.

2 - Indolência

O encerramento em casa resultou em um outro problema moral, segundo a narrativa de viajantes. O território do doméstico emerge como o espaço da indolência, do corpo mole, da preguiça, da lascívia. E daí o contraste com o mundo das ruas. Caem os panos, e essa reclusão que é percebida como confinadora se transforma em alimento de uma moral frouxa. Marianne Baille, em narrativa minuciosa e vigorosa, critica a displicência lânguida da rotina da mulher portuguesa. Nas entrelinhas do texto, está a alusão à preguiça, aos hábitos do uso do corpo sentadas de pernas cruzadas no chão, um sinal de desalinho , à conversa de fofoca, à leitura "deturpada" das Mil e uma Noites. Essas alusões manifestam normas e valores sociais que escapam aos cânones disciplinares de uma colocação do corpo já motivada por dispositivos de autocontrole na percepção de uma ética do trabalho.

A impropriedade de brasileiros/portugueses manteve-se presente na preguiça, no nada fazer, indicando a valoração negativa do trabalho. A ausência de ocupação pareceu incompreensível a essa inglesa que veio de uma sociedade em que a ética do trabalho passou a reger a ação e o domínio sobre o mundo. A ociosidade remetia a um distintivo do mundo aristocrático em vias de esfacelamento.

Falando sobre educação, a completa negligência, mesmo entre as melhores famílias de Portugal, divertiria você: segundo relatos que recebi de uma senhora, que nasceu e viveu aqui por muitos anos de sua vida, a maneira em que os jovens são educados é realmente desoladora, as mulheres nada fazem de manhã à noite, salvo restarem a olhar pelas janelas, perdendo-se languidamente numa atitude apática, com a cabeça apoiada na mão, e fazendo comentários satíricos sobre cada um que passa. Quando a chegada da noite torna esse divertimento não mais possível, elas geralmente sentam, na companhia de suas empregadas, todas de pernas cruzadas sobre o chão, totalmente sem ocupação, enquanto sonolentamente escutam longas estórias [...]. Esses relatos usualmente consistem, ou da mais frívola fofoca, ou de contos deturpados, retirados das Noites Árabes. As empregadas estão freqüentemente saturadas de repetir esses relatos para suas patroas palermas [ênfases minhas].18 18 BAILLE, 1824, v. 2, p. 65. Ao longo do artigo, as traduções de citações de Marianne BAILLE, 1824, e A.P.D.G., 1826, são de responsabilidade da autora.

O trecho acima revela um clima de cumplicidade no interior das casas que aproxima as mulheres da casa, senhoras e serviçais, e que é avaliado negativamente. A preguiça e a indolência aparecem nas entrelinhas do relato de Baille como vestígios de luxúria e pusilanimidade, uma vez que subordinadas a uma percepção corporal descomposta. A referência às Mil e uma noites completa um quadro de torpor sensual que fornece à narrativa uma sensação de incômodo nesse território ameaçador das sensações do corpo. Os peitos desnudos, a exuberância das formas dos corpos, elementos destacados pelos viajantes, foram associados à sexualidade transbordante, que exibida em público transforma um estar "à vontade" corporal em falta de decoro. As narrativas sobre a preguiça feminina denotam uma percepção sobre o corpo que anuncia um excesso em países tropicais.

A reclusão da mulher brasileira/portuguesa é apontada como a origem de uma outra "má" formação de comportamento: a permanência ociosa nas janelas e balcões das casas, espreitando o movimento da rua. E mais, favoreceu um leque de práticas consideradas grotescas, como as do cafuné e da cata de piolhos.

Um outro comentário de um anônimo assinado pelas iniciais A.P.D.G., talvez de um inglês que provavelmente viveu em Portugal, mas que conheceu também o Brasil nos primórdios do século XIX, quando da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro ressalta o hábito das mulheres portuguesas de mostrarem os peitos desnudos, causando estranheza aos costumes de estrangeiras/os. O autor, embora contidamente, aponta para a fartura das formas do corpo feminino, uma característica do excesso da mulher portuguesa/brasileira.

Durante o pico do verão, a maioria das mulheres não usa nenhuma proteção que cubra os seios, os quais são conseqüentemente expostos à vista, mas, como é o hábito do país, não desperta a observação. Talvez, o hábito deste costume pode em alguma medida ser atribuído, não meramente ao calor do clima mas a uma certa consciência de superioridade da forma neste particular, o que certamente distingue as fêmeas portuguesas [ênfases minhas]. 19 19 A. P. D. G., 1826, p. 188.

Nas narrativas de viajantes os costumes não só brasileiros como portugueses manifestam a ausência de decoro corporal. O viver luso-brasileiro realçava sem cessar um estilo de vida que pareceu remoto ao cotidiano desses andarilhos do mundo. Nessa acepção, a exibição de partes do corpo, que as maneiras do código civilizado impunham que fossem cobertas, produziu sempre mal-estar e embaraço. Os corpos desnudos ou mesmo encobertos por inúmeros panos indicavam sem cessar o excesso.

Se acompanharmos as imagens que surgem desses relatos, nos deparamos com uma formulação moral que supõe uma idéia sobre a exibição do corpo ainda não associada a sensações de vergonha e pudor. Se a obscenidade é realçada, o é muito mais em decorrência do padrão de decoro de quem narra do que daquele que é observado. Esses relatos destacam o contraste entre concepções distintas de produção de subjetividades. Entre viajantes desponta uma modelagem de subjetividade centrada na auto-reflexividade e na interiorização, em que o domínio sobre si está associado a uma moral do corpo que implica sentimentos de pudor; a sua exposição restringe-se à mais recôndita intimidade. Assim, a ausência de mecanismos de controle na exibição do corpo transforma brasileiros e portugueses em 'quase bárbaros'. O embaraço e o desconforto, tão presentes nas narrativas de viajantes, são traços, sintomas, do processo civilizador, como indicado por Norbert Elias para o caso europeu. Não se trata, entretanto, de sugerir que a concepção luso-brasileira sobre o corpo estivesse livre de constrangimentos. No entanto, é importante observar que o corpo não estava subordinado ao mesmo regime de interdições compreendido na mentalidade de viajantes.

Como indicado acima, o falar alto, a algazarra das várias vozes simultâneas, a gesticulação larga e exuberante durante a conversa eram sinais de comportamento que mostravam excesso, de algo que resvala para fora de um código de civilidade identificado ao triunfo da educação sobre a rudeza, uma tipicidade de costumes identificados como luso-brasileiros.

A referência a uma gramática dos gestos entre enamorados é notada na escrita de Maria Graham, quando do seu primeiro contato com o Brasil, em setembro de 1821, durante estada em Pernambuco. Essa prática da comunicação através dos gestos e dos olhos é aproximada dos costumes turcos e árabes:

Entre outras coisas, aprendi pela observação, enquanto os mais velhos das famílias estavam entretidos nas ruas com os recém-chegados, que os jovens pernambucanos são tão destros no uso de sinais como os próprios amantes turcos, e que freqüentemente um namoro é mantido desta maneira, e termina em casamento sem que as partes tenham sequer ouvido as respectivas vozes [ênfases minhas].20 20 GRAHAM, 1990 , p. 142.

Na acepção de viajantes, a precisão moral do corpo exige o domínio sobre os gestos, o uso correto do vestuário de forma a exibir o físico como um templo sagrado da individualidade, a externalização do 'eu verdadeiro'. Essa ação moral sobre o corpo delineia-se como condição da constituição do sujeito. Portanto, é uma divergência nas acepções sobre a formação de indivíduos que desponta na denúncia do excesso, recorrente nas interpretações de viajantes sobre o Brasil, o que foi usualmente integrado a um cenário de barbárie e incivilidade, já acima sugerido.

Embora a sexualidade seja raramente mencionada nos diferentes relatos de mulheres viajantes, a temática impregna a escrita em suas descrições sobre o desalinho das mulheres brancas e o vigor físico de escravas e escravos. Na narrativa de Maria Graham a exibição de partes do corpo, não devidamente protegidas por armaduras, como corpetes e espartilhos, é poluidora. E nas entrelinhas desponta um enorme desconforto pelo aspecto voluptuoso do físico feminino. Se na escrita das viajantes a sensualidade de mulheres é sub-repticiamente mencionada, em alguns relatos masculinos ela é claramente indicada. O inglês Thomas Lindley, que esteve no Brasil no início do século XIX, descreve a maneira pouco pudica de as mulheres exibirem o peito e revela o seu desagrado intolerante com a pele escura, uma visão "desagradável", que "violenta a delicadeza feminina".21 21 LINDLEY, 1805, p. 177.

Assim como Lindley, também Maria Graham, em relato durante sua permanência na Bahia, descreve mulheres com corpos indecentemente desalinhados, cujas vestimentas, na ausência da exibição do imaculado branco nas roupas íntimas, apresentam um aspecto sujo. O costume de mulheres em suas casas vestirem-se displicentemente, com as formas visíveis do corpo, sem o suporte de um espartilho, e a ausência de qualquer formalidade constituíam indicadores de contaminação e sujeira. A narrativa de Graham registra a sua "repugnância" com o jeito desleixado das brasileiras:

Como não usam nem coletes, nem espartilhos, o corpo torna-se quase indecentemente desalinhado, logo após a primeira juventude; e isto é tanto mais repugnante quanto elas se vestem de modo muito ligeiro, não usam lenços ao pescoço e raramente os vestidos têm qualquer manga. Depois, neste clima quente, é desagradável ver escuros algodões e outros tecidos, sem roupa branca, diretamente sobre a pele, o cabelo preto mal penteado e desgrenhado, amarrado inconvenientemente, ou, ainda pior, em papelotes, e a pessoa toda com a aparência de não ter tomado banho [ênfases minhas]. 22 22 GRAHAM, 1990, p. 168.

A falta de pudor atribuída à mulher, que foi remetida para a dimensão do vulgar, colide com uma outra imagem que os viajantes difundiram, a da reclusão da mulher brasileira/portuguesa dos setores médios e altos, formando quase um folclore sobre esse universo feminino, como foi mencionado acima. Por um lado, temos a imagem de confinamento da mulher que é reportada na letra de viajantes a um código moral severo de controle. Por outro, relatam-se cenas de mulheres que foram olhadas com repugnância pela exibição de seus corpos e consideradas sem decoro. Esses dois perfis que aparecem como descontínuos, apontam para uma manifestação de impressões ambíguas mas complementares. O texto de viajantes revela diferenças entre suas percepções e a de brasileiros e portugueses sobre a sociabilidade e os usos do corpo. Dessa maneira, tudo que é estranho e que produz embaraço a viajantes é remetido para esse excesso tanto do recato como da exibição.

3 - Educação

A cultura da escrita foi um dos traços da modernidade burguesa que demarcaram uma relação de intimidade entre texto e leitor e que marcaram a separação entre a vida privada e a pública.23 23 Roger CHARTIER, 1991, p. 113. Nessa perspectiva, ler e escrever foram instrumentos que libertaram a humanidade das amarras de um passado percebido como de "obscurantismo" e "barbárie". O processo civilizatório impunha um progressivo movimento de isolamento e interiorização do indivíduo. O livro era o exemplo da possibilidade de riqueza individual que o hábito de leitura desvelava, num mergulho do sujeito num prazer solitário, promotor do autoconhecimento e da consciência de si. No Ocidente, ao longo do oitocentos, o crescimento do mercado livreiro apontava para a disseminação da leitura, atingindo públicos maiores, e promovia a sensação em cada leitor de uma fruição pessoal e única, reveladora da sua onipotência no território da intimidade. Através da leitura abria-se um inesgotável mundo de aventuras e descobertas. E, nesse mercado, o público feminino representou um segmento em intensa expansão.24 24 O século XIX acompanhou ainda o crescimento de mulheres escritoras, como é assinalado por Peter Gay para o caso da Inglaterra: "Artigos, poemas, dramas, romances, livros de viagem e de auto-ajuda eram mostras de um talento arduamente adquirido e precariamente gozado. Nos primeiros anos do reinado de Vitória, a mulher autora era uma figura familiar, embora não universalmente amada, uma protagonista na grande redefinição de papéis que marcou a era" (GAY, 1995, p. 331). Assim, a primeira reação de viajantes, exemplos da missão civilizatória, à falta do hábito de leitura foi de espanto e crítica.

A inexistência de livros na maioria das casas que Maria Graham visitou é por ela indicada como um dos aspectos que confirmam a pouca atenção oferecida à instrução na sociedade brasileira. Poucas eram as residências que possuíam uma estante com livros, quando muito exibiam um exemplar da Bíblia. Mesmo as casas que exibiam livros, em geral parte de uma pequena biblioteca especializada em direito ou medicina, não os transformavam em algo de uso cotidiano. Uma avaliação semelhante à de Graham é realizada por Marianne Baille sobre Portugal. Esta comenta a completa negligência com a educação, mesmo entre as "melhores famílias" de Portugal, qualificando de "triste" o cenário de formação dos jovens, especialmente de mulheres. 25 25 BAILLE, 1824, v. 2, p. 65.

Maria Graham faz menção, quando já de sua segunda visita ao Rio de Janeiro, após um ano de residência no Chile em 1823, à primeira biblioteca que conheceu em terras brasileiras. A viajante indica em tom de surpresa e encantamento as transformações nos comportamentos da elite na cidade corte. A descrição da cena ocorre em casa de um desembargador da Relação do Rio de Janeiro e deputado pela Bahia na Assembléia Constituinte, conselheiro Luís José de Carvalho e Melo, futuro primeiro visconde da Cachoeira. 26 26 Wanderley PINHO, 1970, p. 21. Maria se tornara amiga de sua filha Dona Carlota, como a chama, e foi essa amiga que a apresentou a autores portugueses começava então a falar o português. Em especial, lembra dos versos, que a fascinaram, de Antônio Dinis da Cruz e Silva, um dos fundadores da Arcádia Lusitana em 1756, admirador de Pombal. Antônio Dinis da Cruz e Silva esteve no Brasil, tendo falecido no Rio de Janeiro.27 27 Foi desembargador no Rio de Janeiro de 1776 a 1789. Da paisagem brasileira encontramse referências em seus versos. Retornou ao Brasil em 1790 como um dos juízes designados para julgar os envolvidos na Inconfidência Mineira (Antonio José SARAIVA e Oscar LOPES, 1955, p. 669). Sobre Dona Carlota, Graham tece enormes elogios. E é em casa do conselheiro que conhece mulheres portuguesas/brasileiras que propiciam momentos de prazer na conversa:

A filha do casal, D. Carlota, distingue-se aqui pelo talento e cultura acima de suas companheiras. Fala e escreve francês bem e fez progressos não pequenos em inglês. Conhece a literatura de sua terra, desenha corretamente, canta com gosto e dança graciosamente. Várias de suas primas e tias falam francês correntemente, de modo que tive o prazer de conversar livremente com elas e receber boa cópia de informações sobre assuntos que só interessam a mulheres. 28 28 GRAHAM, 1990, p. 270.

É este o perfil da educação feminina domínio de línguas estrangeiras, conhecimentos de literatura nacional, desenho, canto e dança valorizado por Maria Graham e com o qual está familiarizada. Seu comentário é tecido ao longo do relato sobre a festa de aniversário de Ana Vidal Carneiro da Costa, mulher do conselheiro Luis José. A narrativa elogiosa é, entretanto, interrompida pela introdução de observações de um conterrâneo seu que lembra a "imoralidade" que em geral marca a sociedade brasileira. O inglês reporta-se às maneiras que considera dissimuladas de brasileiros-portugueses, que acredita revelarem um caráter viciado, em muito estimulado pela proximidade da escravidão. A simulação é um mecanismo do comportamento de brasileiros-portugueses que é criticado, uma vez que procura esconder o que as pessoas verdadeiramente são, encobrindo uma essência que, segundo a percepção desse observador em trânsito, permanece rude e simplória. O recurso do fingimento, presente na linguagem dos olhos e dos bilhetes que deslizam por entre as mãos, se sobrepunha ao léxico da civilidade. O artifício que compõe um mecanismo de operação da sociabilidade de corte é traduzido como dissimulação e fingimento.

Felizmente ele avançou demais e ousou apostar (que é a maneira que um inglês tem de afirmar) que havia naquela sala pelo menos dez senhoras providas do bilhete que escorregariam na mão de seus galãs, e que tanto as casadas como as solteiras eram a mesma coisa. [...] Olhou lentamente em torno da sala e comecei a tremer, mas afinal ele disse: "Não, aqui não; mas não nego que tais coisas se passam no Rio. [...] Lembre-se de que entre nós, além da mãe de família, há uma ama, ou uma governante, ou mesmo uma camareira para cada moça, que deve ser bem educada, de bom caráter e de boa moral. Tudo isso são freios para o comportamento e forma uma proteção só inferior à da mãe. Mas no Brasil os serviçais são escravos, e por conseguinte inimigos naturais de seus senhores, dispostos a decepcioná-los e desejosos disso, e de assistir à corrupção de suas famílias. Esta exposição abriu-me os olhos para vários aspectos para os quais até agora minha atenção havia perpassado igualmente. 29 29 GRAHAM, 1990, p. 271-272.

Apesar da europeização da aparência externa que essas mulheres apresentavam, Maria Graham sublinha a extrema artificialidade do comportamento quando as compara às suas conterrâneas presentes na mesma recepção que, embora sejam por ela percebidas como de "segunda categoria", fazem melhor figura.

As inglesas, porém, ainda que quase de segunda categoria, ou mesmo da nobreza colonial, arrebataram o prêmio de beleza e da graça, porque afinal os vestuários, ainda que elegantes, quando não são usados habitualmente, não fazem senão embaraçar e estorvar os movimentos espontâneos e, como nota Mademoiselle Clairon, "para poder representar de fidalga em público, é preciso que a mulher o seja na vida privada" [ênfases minhas].30 30 GRAHAM, 1990, p. 175-176.

Mais uma vez, o trecho acima aguça a descontinuidade entre a casa e o espaço da rua na apreensão que viajantes apresentam da vida brasileira. Se para viajantes o sujeito deve agir de forma similar nos espaços da casa e em público, nos hábitos que são retratados de brasileiros é reforçada a discrepância, em que o domínio público se constitui como o território do artifício, onde são incorporados os papéis identificados com a boa educação. Nessas situações o corpo "desalinhado" é contido por espartilhos, numa elegância à européia, ou seja, na ordem burguesa os indivíduos transitam em público como sujeitos privados. Não se recorre a duas lógicas de comportamento, uma da casa, outra da rua, como se afigura para a sociedade brasileira, seguindo o relato das viajantes.

Em Graham, como em vários outros relatos de viajantes, está presente a dissonância entre o mundo europeizado da civilização e os trópicos do excesso não contido, não educado; descompasso entre os planos externo e interno a revolução realizada na aparência, roupas, penteados, não era ainda internalizada.

Mais uma vez, a idéia de falso presente no recurso ao artifício guarnece a cena com ares de comédia, de uma sociabilidade que brinca de parecer européia e civilizada. As inglesas, mesmo que de "segunda categoria", são detentoras, entretanto, de uma autenticidade que escapa às brasileiras, que exibem em público uma aparência postiça. A compreensão da conduta social como puro artifício retoma uma modalidade de operação da sociedade de corte dos antigos regimes. O artifício remete para esse ideal do fidalgo ibérico e se aproxima do comportamento do mandarim chinês pela correção ritualística. 31 31 GONÇALVES, 2002. Esse formalismo da conduta fornece essa impressão, realçada por viajantes, da ausência de interioridade, de uma superficialidade de boas maneiras que indicava a falta de um centro condutor do controle sobre si. Na verdade, segundo viajantes, se há algum centro, ele é oco e vazio.

Recebido em setembro de 2005 e aceito para publicação em novembro de 2005

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  • SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador e a viagem São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • 1
    Este artigo está inserido no programa de pesquisa intitulado "Civilização e artifício: modernidade e educação no Brasil do século XIX", que recebeu apoio do CNPq.
  • 2
    Aqui, o processo civilizador refere-se às mudanças apontadas por Norbert Elias para o caso europeu tanto no plano da constituição e consolidação da unidade política do Estado, quanto na dimensão do indivíduo, através do crescente controle e disciplinarização dos afetos, das emoções e dos comportamentos (ELIAS, 1990, p. 216).
  • 3
    Walter BENJAMIN, 1993, p. 199.
  • 4
    As formas de narrativa épica caracterizam-se pela concisão enquanto o relato de informação jornalística singulariza-se pelo abuso de detalhes, de explicações. "Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível 'em si e para si'. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito de narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio" (BENJAMIN, 1993, p. 203).
  • 5
    Mary PRATT, 1999, p. 197.
  • 6
    Lily LITVAK, 1987, p. 14.
  • 7
    O confronto entre matrizes de visões de mundo distintas tem sido destacado por vasta bibliografia sobre os viajantes (Luiz Costa LIMA, 1989; Flora SÜSSEKIND, 1990; Maria Helena ROUANET, 1991; Mary PRATT, 1999; e Luciana de Lima MARTINS, 2001).
  • 8
    Margareth de Almeida GONÇALVES, 2003.
  • 9
    Ariès faz menção a um registro de solidariedade no qual a comunidade envolve o indivíduo, e que organizou as mentalidades na medievalidade e no início da época moderna, séculos XVI e XVII, mantendo-se posteriormente como expressão de sociabilidade entre as camadas populares. Assim, para o autor, nas solidariedades anônimas, "a comunidade que enquadra e limita o indivíduo – a comunidade rural, a cidadezinha ou o bairro – constitui um meio familiar em que todo mundo se conhece e se vigia" (ARIÈS, 1991, p. 7-8).
  • 10
    Uma cultura popular de rua, do riso e da galhardia soltos, foi uma característica particular do Ocidente medieval analisada por Mikhail BAKHTIN, 1999, e que pode ser estendida para outras modalidades de organização da solidariedade coletiva em formas de dominações tradicionais.
  • 11
    "Respecting the manners of the inhabitants of O Porto, my short residence in this city has enabled me to form but a superficial idea, especially of the females, who are seldom observed out of doors, except in going to, or returning from church, a place they usually visit twice a day; and then the face is veiled, or half-concealed beneath the folds of a black mantle" (MURPHY, 1795, p.15). Murphy, entre as gravuras de seu livro, retrata uma imagem de reclusão e religiosidade da mulher portuguesa, a qual é representada de cabeça coberta, portando entre as mãos um terço.
  • 12
    "Estas transcrições de textos sobre os costumes das brasileiras, ao lado das transcrições anteriores, permitem desdobrar a análise de dois estereótipos sobre a vida da mulher, no século passado – a reclusão e a religiosidade" (LEITE, 1979, p. 30).
  • 13
    "Os viajantes interpretavam a ausência de mulheres das classes dominantes como um sintoma de costumes patriarcais, de serralho oriental" (DIAS, 1984, p. 68). Os estudos de Eni de Mesquita Samara destacam, ainda, o "mito da mulher submissa e do marido dominador" como um dos estereótipos das imagens da mulher dos setores dominantes. Sobre os viajantes comenta: "os relatos dos viajantes que percorreram várias partes do Brasil trouxeram uma visão parcial da situação da mulher na família e na sociedade, mas souberam enfatizar a sua opressão" (SAMARA, 1998, p. 58).
  • 14
    GONÇALVES, 2002.
  • 15
    Ou ainda, em mais uma expressão do autor, o "observatório da vida alheia" (Ver em GONÇALVES, 1990, p. 154).
  • 16
    LUCCOCK, 1938.
  • 17
    BAILLE, 1824, v. 2, p. 25.
  • 18
    BAILLE, 1824, v. 2, p. 65. Ao longo do artigo, as traduções de citações de Marianne BAILLE, 1824, e A.P.D.G., 1826, são de responsabilidade da autora.
  • 19
    A. P. D. G., 1826, p. 188.
  • 20
    GRAHAM, 1990 , p. 142.
  • 21
    LINDLEY, 1805, p. 177.
  • 22
    GRAHAM, 1990, p. 168.
  • 23
    Roger CHARTIER, 1991, p. 113.
  • 24
    O século XIX acompanhou ainda o crescimento de mulheres escritoras, como é assinalado por Peter Gay para o caso da Inglaterra: "Artigos, poemas, dramas, romances, livros de viagem e de auto-ajuda eram mostras de um talento arduamente adquirido e precariamente gozado. Nos primeiros anos do reinado de Vitória, a mulher autora era uma figura familiar, embora não universalmente amada, uma protagonista na grande redefinição de papéis que marcou a era" (GAY, 1995, p. 331).
  • 25
    BAILLE, 1824, v. 2, p. 65.
  • 26
    Wanderley PINHO, 1970, p. 21.
  • 27
    Foi desembargador no Rio de Janeiro de 1776 a 1789. Da paisagem brasileira encontramse referências em seus versos. Retornou ao Brasil em 1790 como um dos juízes designados para julgar os envolvidos na Inconfidência Mineira (Antonio José SARAIVA e Oscar LOPES, 1955, p. 669).
  • 28
    GRAHAM, 1990, p. 270.
  • 29
    GRAHAM, 1990, p. 271-272.
  • 30
    GRAHAM, 1990, p. 175-176.
  • 31
    GONÇALVES, 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Recebido
      Set 2005
    • Aceito
      Nov 2005
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